sábado, 9 de abril de 2011

Alegria: a experiência de ser em Deus



Podemos nos alegrar de diferentes modos e por diferentes motivos. É justamente essa diversidade de fontes da alegria que a torna ainda mais intensa. É como encontrar um jeito de se inebriar sem a ressaca depois - apenas a descoberta de novas variedades de felicidade. A breve happy hour parece estendida ao infinito. É aí que percebemos que a alegria não depende das circunstâncias, nem da boa sorte, nem da satisfação dos nossos desejos; ela simplesmente faz parte da natureza do ser.

Tal alegria de ser não se deixa limitar. É repetidamente ativada por coisas distintas e, em geral, muito simples. Pode até parecer tolice encontrar tal felicidade por toda parte, pelo simples fato de as coisas serem como são. As cores, as características das pessoas, mesmo pequenas decepções veem-se de tal modo enredadas em uma alegria que tem tantas causas em potencial que até parece não ter causa alguma. Assim começa a experiência de Deus refletida no cotidiano de cada um.

A experiência oposta também existe. Podemos vivenciar a tristeza do mesmo modo. Imersos em alguma grande perda e ainda ignorantes da aprendizagem que, com o tempo, ela acabará nos proporcionando, a tristeza pode permear tudo o que fazemos. Mesmo o que normalmente nos consola, levanta, delicia e tudo o que já foi motivo de alegria torna-se razão de dor. É como se tivéssemos perdido para sempre o segredo da felicidade. Como se qualquer possibilidade de alegria nesta vida se tivesse esgotado irreversivelmente. E, através de alguma ferida invisível em nossa alma, as águas da tristeza nos penetram - e vamos afundando.

Compreender esses dois estados pode nos levar para além de um dualismo feliz-infeliz, em que ambos são mutuamente excludentes. A verdadeira tristeza não se resolve se ficarmos alegres, assim como a verdadeira alegria não é eclipsada por nenhuma tristeza. A arte da atenção, iluminada pela sabedoria inerente ao nosso próprio espírito, nos ajuda a discernir e transcender toda dualidade, elevando-nos para um lugar novo. Surge uma nova visão de mundo, em que tudo está presente e as perdas e ganhos convergem. A Quaresma conduz a esse estado de consciência por meio do desapego. A meditação conduz a ele por meio do amor.

Não se trata de uma "experiência de Deus", mas de uma experiência de "ser em Deus".


- Laurence Freeman OSB
Publicado originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Amar a nossa falta mesma de amor


Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


- Carlos Drummond de Andrade

Doris Day e o patrulhamento gay



Da capinha do CD, seu sorriso luminoso me acena, solar. Eu sorrio em resposta e me deixo embalar pela voz doce, suave, de dicção impecável e afinação perfeita que escapa das caixas de som e preenche a sala.

Para aqueles que a conhecem, hoje em dia Doris Day é cult, chique, reverenciada como símbolo de uma era de ouro e outros salamaleques mais. Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que gostar de Doris Day era quase que se dizer abertamente comunista, confessar uma perversão inimaginável ou mesmo crer fervorosamente na vinda da cegonha. Houve uma época (principalmente no final dos anos 60) em que a ruptura de paradigmas, a chacoalhada na ordem e o surgimento das ideologias de contestação viram-se quase que no dever de eleger símbolos que representassem tudo contra o qual se deveria lutar, para depois demoli-los impiedosamente.

E assim, estupidamente usada como moeda de troca para justificativas ideológicas, Doris tornou-se careta, cafona, a "eterna virgem do cinema", uma chata de galocha, água-com-açúcar... e, por último, como se já não bastasse, acabou identificada com o universo gay. A partir daí, dessa cristalização do símbolo em torno de um dado pejorativo, deu-se um curioso mecanismo de transferência que imediatamente associava aquele que gostava de Doris Day à homossexualidade. Por outro lado, entre os próprios gays, apreciar Doris significava estar ligado a uma mentalidade conservadora, careta, antiquada.

A lógica cartesiana própria do pensamento humano (de que já falei quando toquei no assunto dos afetos) nos ensina que devemos catalogar e categorizar todos os elementos que apreendemos do universo ao nosso redor. Assim sendo, aos olhos de muita gente, não basta que eu seja apenas humano. Tenho de ser esquartejado, esmiuçado e rotulado de acordo com dados representativos como sexo, cor, idade, prática sexual predominante, local específico onde moro e até mesmo preferências musicais. Com isso, abre-se espaço para um certo controle tácito – vamos chamar patrulhamento – dessas características, a fim de que aquele elemento não se diferencie tanto dos demais integrantes de seu grupo social e, portanto, não se “desgarre”.

Todo e qualquer patrulhamento se apóia em modelos pré-estabelecidos que podem, é claro, ser substituídos tão logo uma nova ordem necessária à manutenção da coesão da estrutura social se estabeleça, em contraposição à antiga ordem vigente. Todo e qualquer desvio às normas prescritas naquela cartilha é imediatamente apontado pelos representantes do modelo como algo no mínimo suspeito e, portanto, não confiável. O patrulhamento induz à formulação de preconceitos e à propagação de verdades aceitas tão somente porque se verificam nas práticas usuais do grupo.

Nós, gays, estamos acostumados no dia-a-dia com esse tipo de situação. Volta e meia somos identificados e criticados pelos mais diversos motivos: a roupa, o modo de andar, o gestual, o grupo de amigos, as músicas que escolhemos para a nossa playlist etc, etc, etc. Isso não é novidade. Mas e quando isso acontece “de dentro”? O que fazer quando o controle parte de alguém inserido no próprio “universo gay”?

Esse tipo de comportamento, por incrível que pareça, é muito comum. Existe um patrulhamento gay que se manifesta de diversas maneiras. A mais freqüente delas é a que tenta “normalizar” a conduta. Namorei um menino que agia assim. O rigor com que ele apontava as falhas ou deslizes nos outros não era menor quando aplicado a si próprio. Eu o via constantemente se torturar ao se cobrar posturas e atitudes “de homem” no modo de vestir, de falar, de cortar o cabelo, até de andar. De pitoresco (e até engraçado), aquilo passou, com o tempo, a me parecer triste, angustiante.

Condicionado por inúmeros fatores e justificado por outros tantos, esse tipo de patrulhamento lida com um certo sentimento de culpa ou inadequação por não se pertencer à regra e força aquele que o adota a procurar comportamentos ajustáveis aos padrões sociais estabelecidos. “Gay? Não! Sou um homem que gosta de homens...” Quantas vezes já não se ouviu essa frase por aí? O contrário, o patrulhamento militante, é igualmente sem sentido, até mesmo travestido de um rancor revanchista. E, por isso, também triste.

A duras penas fui descobrindo que todo patrulhamento é burro. Porque é egoísta. Baseia-se nas suas próprias regras ou apóia-se em pressupostos acessórios que não correspondem a verdades essenciais. Fechado em si mesmo, não dialoga, não coteja outras realidades, não contempla novas possibilidades e, por fim, não se enriquece da experiência da troca de informações e visões de mundo.

Hoje em dia ouço Doris Day com as janelas abertas.

Mr. MM

P.S.: No último dia 3 de abril, Doris completou 89 anos de idade. Está bem de saúde, vive num rancho na Califórnia e dirige a Doris Day Pet Foundation, entidade que se dedica há várias décadas à proteção de animais. Como sempre acontece todos os anos, uma rádio de Baltimore realizou um especial de 3 horas com suas músicas e uma conversa ao vivo com ela.

A caminhada


Naqueles dias, o Senhor disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua família e da casa do deu pai, 
e vai para a terra que eu te vou mostrar”. 
Gênesis 12:1

Existe uma ligação irrevogável entre a terra prometida e o total despojamento. Desde o início, quando Deus chama a Abrão (ainda não Abraão), a convocação a fundar um povo novo num lugar distante vem com uma tarefa: tem que deixar tudo o que possui. Abrão não tem dúvida, nem medita muito. Pega e sai. Seria por não ter muita coisa a perder? Não sabemos. Por outro lado, ele mostra total confiança no Senhor que acabou de conhecer, naquele momento.

O futuro pai de multidões tem de superar a comodidade da rotina, a inércia de ficar no mesmo porque já está. Inovar sempre custa caro, pois significa começar tudo de novo. Alguma facilidade tinha, pois o semi-nomadismo já o fazia viver desinstalado, constantemente em busca de águas frescas e pastos novos para seus rebanhos. Já era caminhante. Aos aficionados da televisão, lhes custa mais - quiçá por não terem o costume do movimento constante. Para começar, andar faz bem.

Mesmo na pobreza, custa deixar o país, sua gente, a família, e quantas coisas mais. O catolicismo autoritário, recalcitrante e intransigente, de quaresmas austeras que duram todo o ano sem se acabarem jamais, inventou a falsa razão de que Deus impõe sobre Abrão uma exigência de sacrifício a fim de pô-lo à prova, para ver se era digno. Assim justificam os requisitos prévios para a salvação que têm inventado, a fim de se eximirem de levar a Boa Nova (de uma ressurreição que desconhecem) à multidão faminta de terra prometida.

As igrejas protestantes - especialmente as variantes fundamentalistas e pentecostais - não imaginam o despojamento como parte dum processo espiritual. Primeiro, por não entenderem de processos espirituais, nem de caminhadas largas. A sua versão da salvação ocorre no dia que a sua vida mudou. Por outra parte, se aferraram ao salmo primeiro, que promete prosperidade aos crentes. A acumulação de coisas, o consumismo irracional que está matando o planeta, é parte do seu evangelho da prosperidade: a recompensa atual como adianto do céu futuro.

Então, despojar-se não ergue ninguém, e ainda cheira a antiquadas penitências católicas. Porém, por mais bíblicos que sejam, esquecem-se dos chamados de Jesus, quando diz coisas radicais como "deixa todo o que tem: os seus pais, a sua mulher e seus filhos, e vem e segue-me". A sua religião é para assegurar essas coisas, não para despojar-se delas.

O amor de Deus é universal. A Boa Nova é gratuita. O despojamento começa com o chamado, livremente aceito, com alegria. Significa caminhar em direção a algo melhor. Os afeitos a caminhadas sabem que é bom andar de bagagem leve - quanto menos, melhor.

A convocação para a terra prometida é acompanhada do despojamento total pela simples razão de que não é possível viver em dois lugares. Não se pode ter dois mestres. Não adianta dedicar-se a dois ofícios. Não é possível ter dois amores, nem viver duas vidas.

Terra prometida para os discípulos de Jesus é mais que um espaço geográfico. É uma vida. É evangelho encarnado, boa notícia, amor incondicional. O chamado é para deixar para trás as condições, os apegos e as coisas insensatas de que a gente acha que precisa, como dinheiro, aplausos e honras. A promessa é Jesus mesmo, transfigurado, pleno, entregue, amor em pessoa, dando sentido e direção a tudo. Ele é nossa terra prometida. É hora de caminhar.


- Nathan Stone, S.J.
Publicado originalmente no Mirada Global. Grifos nossos.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Um minuto de silêncio


Hoje, dia de tragédia no Rio, assisti, em meio ao choque generalizado diante do ocorrido e às primeiras reações de compaixão e solidariedade, a uma crescente onda de boatos nas redes sociais acerca do autor dos disparos: que seria religioso, fundamentalista, islâmico, soropositivo, homossexual, ateu, crente - imediatamente acompanhada de uma avalanche de trocas raivosas de acusações... "gays" contra "religiosos", "fundamentalistas" contra "libertinos", "conservadores" contra "progressistas", "crentes" contra "ateus", "defensores dos direitos humanos" contra "reacionários"... e, em meio ao recrudescimento da raiva generalizada, as crianças feridas e mortas e o rapaz transtornado que as feriu e matou pareciam ter virado apenas um pretexto para o cabo-de-guerra entre interesses rivais.

...E, em meio à polarização das paixões e à intensificação da troca de insultos e agressões, o santo nome das crianças chacinadas me parecia cada vez mais usado em vão. Do impulso inicial de compaixão, algo parecia ter se perdido.

A mim não parece que a questão seja identificar de quem é a culpa - se da religião ou do ateísmo ou do fundamentalismo ou da libertinagem ou da homossexualidade ou do reacionarismo ou da soropositividade ou do fracasso do referendo contra as armas. Sobretudo, não me parece que a questão seja aproveitar - por convicção ou oportunismo - para identificar a culpa com aquele "outro" que pensa diferente de mim. Ao menos não agora.

Ao menos não agora. Por ora, demo-nos um minuto.

Mais que encher-nos de ódio pelo criminoso - seja ele louco, radical, gay, soropositivo, crente, ateu ou E.T. - a ocasião pede sobretudo humanidade diante de tanto sofrimento - das crianças, das famílias, dos amigos, dos profissionais que atuaram no resgate, nos hospitais, nos bancos de sangue, e por que não? Também do perpetrador de tamanha insanidade.* Diante de tamanho sofrimento, resta-nos sentir, resta-nos por um instante suspender toda pretensão, arrogância e julgamento, resta-nos baixar os olhos, e baixar a guarda, baixar as certezas de que certo estou eu e toda diferença está errada, e guardar por um instante as palavras e fazer um minuto que seja de silêncio, em silenciosa abertura para tão-somente compartilhar com o outro a sua dor. Resta-nos, diante da tragédia - desta de hoje como de outras - por um minuto que seja baixar as baionetas e as palavras aguçadas e dar-nos as mãos, como quem diz "Vem, irmão, apóia-te por um instante no meu ombro, sei que estás cansado, como cansado estou eu". E a dor assim dividida, com o peito assim aberto, por um minuto que seja nos faz mais humanos, porque mais humildes perante o mistério insondável da existência; o mistério da dor diante da qual só podemos dar-nos as mãos, calar e confiar que um dia as lágrimas secarão, as feridas irão cicatrizar um dia, e um dia - embora em meio a tamanha treva seja impossível acreditar - o sol voltará e será outro dia, outra vez.

E a dor assim dividida, por um minuto que seja desse silêncio que se instala porque não há resposta para o "por quê?!" mortificado, a dor assim dividida anula as diferenças. E porque anula as diferenças, porque não importa por ao menos um minuto a tua ideologia ou religião ou raça ou classe ou seja lá o que te faz diferente de mim e a mim, diferente de ti; porque nada mais importa voltamos a ser iguais como quando chegamos neste mundo, e a igualdade nos torna de novo simplesmente humanos e irmãos na dor.

Partilhemos com as vítimas essa dor tamanha, e demo-nos as mãos e façamos silêncio por um minuto que seja, para que pelo menos a tragédia nos torne outra vez irmãos. Porque a dor assim sentida, de mãos dadas, humaniza. Por um minuto, que assim seja.

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*Quem leu a sua carta? Quem, em meio ao horror das suas palavras, leu, nas entrelinhas, o fardo de solidão e desespero...?

O afeto é subversivo


Foto: arquivo pessoal

"Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns aos outros." (João 13:35)

É com uma triste frequência que nos deparamos com notícias que dão conta de violência sofrida por casais gays pelo fato de terem demonstrado afeição em público, quer seja através de um simples carinho, um abraço, um beijo ou mesmo andar de mãos dadas.

Eu me pergunto: o que será que mobiliza esse tipo de reação? Que tipo de emoção ou energia represada no íntimo dos seres humanos é emulada a ponto de se manifestar em desrespeito e violência? Na raiz das duas representações, tanto naquela manifesta pelo carinho entre representantes do mesmo sexo quanto na que transborda em agressividade como resposta, reside o mesmo elemento propulsor: o afeto.

No século XXI o pensamento humano ainda está firmemente condicionado à lógica fundada por Descartes, que pensava o mundo através da oposição corpo/alma. O primeiro elemento seria o repositório de todo o caos gerado pelos sentidos, enquanto o segundo estaria destinado a ordenar sob a égide da razão o universo do pensamento e dos conceitos.

Assim sendo, ao corpo caberia lidar desordenadamente com os afetos, pois que se originam do irrealizado do irracional, do incontrolável, obedecendo a esquemas muito mais tarde mapeados pela psicanálise como mecanismos ligados ao inconsciente. Através dessa mesma lógica cartesiana é que a cultura elegeu a psicanálise como o instrumento que, aliado à razão, teria como tarefa primordial desvendar as profundezas insanas da mente humana de forma a ordená-la em paradigmas lógicos.

O afeto está na gênese do ser humano. É uma força tão poderosa e insondável que Freud por diversas vezes em sua obra tangenciou conceituá-la sem obter grandes sucessos, pois que insistia em tematizá-la em termos de uma energia objetivável. É o afeto que mobiliza o homem em direção àquilo que ele considera bom ou útil para a garantia da sua sobrevivência, inicialmente através dos sentidos e, posteriormente, justificado por uma série de esquemas lógicos que compõe o pensamento racional - este último condicionado, obviamente, por todo um processo cognitivo que insere o ser humano em determinados contextos históricos, sociais, culturais, educacionais, familiares etc, etc, etc. Grosso modo significaria dizer que o afeto é a primeira instância que vai dar ao homem as noções do que, mais tarde, ele vai objetivar intelectualmente como "aquilo pelo que é imprescindível lutar."

Dessa forma, podemos pensar tanto os grandes movimentos sociais quanto as piores tragédias da humanidade em termos de mobilização maciça de afeto em prol da união de seres humanos pela defesa de pontos de vista e/ou questões supostamente vitais para a sobrevivência e permânencia da raça. A ansiedade, a angústia com que a experiência dos sentidos comunica ao homem a necessidade de adaptar a ordem estabelecida (porém já obsoleta) às novas necessidades desencadeia o início do processo que vai inquirir, questionar, pensar, desarticular e, por fim, romper com hierarquias e organizações, abrindo campo para a gênese do novo.

O afeto une, congrega, aproxima. O afeto cria laços. O afeto é subversivo.

Também Jesus e os apóstolos foram vistos com imensa desconfiança pelos mantenedores da ordem quando saíam juntos a propagar a doutrina cristã, toda ela firmemente plantada na força propulsora e grandiosa do afeto. Também os primeiros cristãos eram olhados por uns com admiração, por outros com desdém quando deles se dizia: "vede, como se amam..." (Tertuliano. In: Apologético 39,7; 5)

Daí o porquê de um beijo entre dois homens ou duas mulheres mexer tão radicalmente com afetos que ainda não foram organizados de forma a dar lugar ao verdadeiro e profundo sentimento de compreensão de humanidade.

Mr. MM

Você se lembra do homem das cavernas?

Foto: Sociedade Arqueológica Tcheca

Deu no site da Folha: "Cientistas acham provável homem pré-histórico homossexual."

Segundo notícia colhida da BBC de Londres, cientistas tchecos encontraram o esqueleto de um homem que teria sido sepultado de acordo com ritos funerários destinados às mulheres. Uma das hipóteses formuladas para explicar tal procedimento é a de que esse indivíduo teria sido, em seu tempo, eminentemente homossexual ou mesmo transexual.

Acho interessantes essas elocubrações e a avidez com que os arqueólogos buscam evidências de homossexualidade na pré-história do homem. Se isso servir para se constatar (o que, por mim, já é mais do que sabido) que tanto diversidade de noções de gênero quanto prática sexual sempre foram comuns na história da humanidade, beleza. Mais do que isso, se essa constatação servir para modificar os paradigmas de compreensão sócio-cultural acerca da homossexualidade pelos homens de HOJE, melhor ainda.

Agora, se isso servir somente de notícia pitoresca para atrair atenção da mídia e fornecer matéria para as piadinhas ultrapassadas de gente como Jô Soares e cia, eu preferia sinceramente que o "segredo" do moço permanecesse inviolado, ainda que para azar da ciência.

Por falar nisso, vocês se lembram do Homem do Gelo? Um que encontraram, há 20 anos, nas encostas dos Alpes, incrivelmente preservado por ter ficado enterrado numa geleira por uns 5 mil anos? Lembram-se que também aventou-se a possibilidade dele ter sido homossexual? A esse respeito fizeram uma animação que ficou célebre há algum tempo, com narração do Paulo César Pereio.

Para quem estiver interessado na saga de Ötzi, como ficou denominado, eis aqui uma interessante e longa matéria sobre ele, esclarecendo muitos dos mitos que foram divulgados à época.

Mr. MM

Jesus de Nazaré: um fascínio duradouro

Foto: Hien

(...) Nesse tempo de pluralismo religioso, surge o desafio de destacar Jesus como “figura de diálogo”, cuja mensagem evangélica não toca apenas núcleos cristãos privilegiados, mas a todos os povos, religiões e culturas, no profundo respeito às diferenças que são sagradas e irrevogáveis. Os cristãos não precisam se envergonhar de anunciar essa mensagem de vida, mas o devem fazer não por um “mandato”, mas pelo desejo irremovível de compartilhar com os outros o amor profundo por Jesus e seu Reino: um amor que tomou conta do coração e trasbordou para todo canto. É esse Jesus que encantou Rãmakrishna[1], Gandhi, Dalai Lama[2], Tich Nhât Hanh e tantos outros. E encantou pelo fato de trazer à tona uma “fragrância” de amor e espiritualidade que não se prende a crenças particulares, mas que desvela qualidades especiais, que estão presentes e vivas em nossa história humana. Com sublinhou com acerto Felix Wilfred, “Jesus é alguém tão fascinantemente humano que não se pode deixar de amá-lo. Ele pertence a toda a humanidade. Ele não é monopólio de algum grupo, comunidade e religião. Nele aprendemos a gramática do que é ser humano. Sua vida e seus ensinamentos são também uma janela para o incompreensível mistério divino”.

Infelizmente, ao longo da história, nem sempre o cristianismo soube anunciar esse Jesus portador de vida. Ficou mais preso à obsessão de explicitar os “mecanismos” que estruturam o seu ser, em vez de traduzir aos povos o seu significado e mistério. A experiência missionária na Ásia, ao longo de quinhentos anos, é um exemplo dessa dificuldade de traduzir um rosto de Jesus que cativa e hospeda os outros. Todo o trabalho realizado não conseguiu falar senão a 2,5% dos cristãos na Ásia. Para Felix Wilfred, “se a obra missionária não produziu os resultados esperados, é porque, excluindo algumas exceções, a maioria dos missionários apresentou Jesus a partir de outros pressupostos e o relacionamento com povos de outras crenças foi negativo e apologético”. Hoje, busca-se recuperar a “experiência de Jesus”, tão bem delineada nos escritos do Segundo Testamento. Privilegia-se os métodos narrativos, e Jesus ganha novos delineamentos: é o mestre de sabedoria, o libertador, o guia espiritual, o ser iluminado, o amigo compassivo, o peregrino e o dançarino.

(...) Jesus traz consigo a afirmação da “vulnerabilidade de Deus e da eminente dignidade do corpo humano” (C.Geffré). Como assinalou Christian Duquoc[3], em texto clássico sobre o tema, ao se revelar em Jesus, Deus não absolutizou uma dada particularidade, mas quis sublinhar que nenhuma particularidade histórica pode pretender-se absoluta, e, em virtude mesmo desta relatividade, Deus também pode ser encontrado nas inusitadas malhas de nossa história real.

Os cristãos encontram em Jesus o caminho de acesso ao mistério maior. Jesus é percebido como alguém que envia ao mistério de Deus. Alguém em cujas pegadas os cristãos encontram orientação da vida para Deus (Joseph Moingt). Para os cristãos, ele é vivenciado como constitutivo da salvação, por ser o mediador da vida no Espírito. Esta é uma experiência existencial e de caráter confessante, partilhada pelos cristãos em comunidade, mas não pode ser entendida em sendo objetivante, de validez universal. Em verdade, Jesus não encerra a história das religiões nem o movimento revelador de Deus. A história continua sendo palco da incessante comunicação do mistério gratuito de Deus, por caminhos que são misteriosos. Como indica Geffré, “a pluralidade dos caminhos que levam a Deus continua sendo um mistério que nos escapa”.

A percepção cristã da singularidade de Jesus não exime o ousado exercício de buscar captar a presença da graça multiforme de Deus em toda a história. E não apenas na história das religiões. Segundo Joseph O’Leary, “a tendência de afirmar que ´já temos a plenitude da verdade em Cristo, de modo que não se requer nenhum diálogo com religiões estranhas é, de fato, não cristã. A Bíblia nos mostra como o encontro com os outros (...) amplia a compreensão de Deus e derruba prévias estreitezas”. Há que resgatar hoje, e com intensidade, o traço da hospitalidade como algo essencial que resulta do encontro com Jesus. A experiência do mistério de Jesus é radicalmente desinstaladora: provoca o exercício essencial de ruptura com os círculos fechados e de abertura a novos horizontes relacionais.

- Faustino Teixeira
Reproduzido via Amai-vos. Grifos nossos.

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[1] Rãmakrishna Paramahamsa (1836-1886): foi um dos mais importantes líderes religiosos hindus da Índia, referenciado por milhões de hindus e não-hindus como o mensageiro de Deus. (Nota da IHU On-Line)

[2] Dalai Lama: líder político do Tibete. Dalai significa “Oceano” em mongol, e “Lama” é a palavra tibetana para mestre, guru, e várias vezes referido por “Oceano de Sabedoria”, um título dado pelo regime mongoliano. (Nota da IHU On-Line)

[3] Christian Duquoc: é teólogo dominicano francês, professor emérito da Faculdade de Teologia na Universidade Católica de Lion, França, diretor da revista Luz e vida e membro da direção da revista Concilium. É conhecido, sobretudo, por seus estudos sobre cristologia. De suas obras, confira Cristologia: o Messias (São Paulo: Loyola, 1980); Cristologia: o homem Jesus (São Paulo: Loyola, 2002); Cristianismo, memória para o futuro (São Paulo: Loyola, 2005); A teologia no exílio (Petrópolis: Vozes, 2006). Ele participou da edição 197, de 25 de setembro de 2006, intitulada A política em tempos de niilismo ético. A entrevista “Uma discussão sobre a teologia na contemporaneidade” está disponível no site da IHU On-Line.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Deus NÃO odeia os gays :-)


Recebemos hoje o seguinte tuíte do ótimo @ACapacombr: "Deus odeia os gays", levando a um artigo de Cindy Butterfly, e uma de nossas colaboradoras deixou um comentário que gostaríamos de registrar aqui:

Cindy, que belo depoimento. Sou gay, católica praticante, e faço parte de um grupo que acolhe gays católicos. Temos todos a mesma experiência que você: de um Deus de amor incondicional, irrestrito, que nos ama exatamente como nos fez.

É tb muito importante salientar que, na Igreja católica como em outras denominações cristãs, por mais que a voz "oficial" não nos seja muito favorável, toda igreja é composta de uma infinidade de vozes. A esse respeito, se se interessar dê uma olhada em "Diversidade sexual e Igreja, um diálogo possível".

Às vezes, tão importante quanto denunciar a homofobia fundamentada com argumentos religiosos (um excelente documentário sobre isso, alias: Assim me diz a Bíblia), é lembrar também que existem vozes de abertura e lugares de acolhimento (como o Diversidade Católica e a Pastoral da Diversidade em SP). Recebemos no nosso grupo muita gente muito ferida - que, porque só a posição dos conservadores fundamentalistas ganha ampla divulgação, acabam acreditando que são mesmo indignos do amor de Deus. Quer dizer, o tiro acaba saindo pela culatra: no esforço de denunciar, acabamos reforçando as crenças fundamentalistas... é preciso ter muito cuidado com isso. :-)

Enfim: ninguém precisa se sentir abandonado por Deus. Ninguém precisa ficar sozinho, nem viver sozinho a sua fé. Pelo contrário: há uma fonte de amor inesgotável por cada um de nós. ESSE é o nosso testemunho... :-)

E obrigada por este seu artigo... :-)

Um grande abraço,



Cris

O segredo é ver



Um dos heróis do Dalai Lama, como ele mesmo costuma contar, é um sujeito de Belfast que, em menino, estava um dia voltando da escola para casa quando levou um tiro de um soldado inglês que o deixou cego para sempre. Ao sair do hospital e voltar para casa, a mãe de Richard Moore puxou-o no canto para lhe dizer duas coisas. Primeiro, que ele não voltaria a enxergar. E, segundo, que ele não deveria jamais odiar os ingleses.

Em uma das suas visitas a Belfast, o Dalai Lama conheceu Richard e soube que ele tinha acabado de fundar uma obra filantrópica para crianças vítimas da violência e do conflito. Ele era uma testemunha viva daquilo em que os mestres da não-violência de todas as tradições tanto insistem: que é possível, por mais impossível que pareça, transcender as reações instintivas de ódio e vingança que vêm à tona e em geral nos subjugam depois de termos sofrido nas mãos dos outros.

A maneira mais importante de conseguir isso que parece impossível é ver. Uma vez visto e experimentado algo, por mais fora do alcance que pareça, penetra a esfera das possibilidades. Para ver desse modo, precisamos fechar os olhos às imagens ilusórias que, na realidade, são indícios da cegueira espiritual.

Quando, no Evangelho, Jesus cura o cego - o cego de nascença (Jo 9, 1-41) ou o mendigo cego Bartimeu (Mc 10, 46-52) - não age no plano físico somente. Com a visão restaurada, o Homem passa a ver com uma clareza e nitidez que o enche da coragem e capacidade de decisão que só a visão da realidade é capaz de despertar em nós. Em ambos os casos, os curados o seguem.

A meditação é, simultaneamente, um caminho de fé e de visão. À medida que a fé se aprofunda, a visão fica mais clara; e, quando enxergamos com suficiente nitidez, já mudamos de rumo. O instante preciso da mudança - como o da ressurreição dos mortos - esconde-se sempre no momento em que o grau de visão atinge seu ponto crítico. Não conseguimos jamais enxergar a Deus como um objeto, mas só participando no modo como Ele nos vê, que – como nosso ego só admite com relutância – não é um ponto final, mas apenas parte de um quadro infinitamente maior que nós, de nossa parte, podemos apenas imaginar.


- Laurence Freeman, OSB
Publicado originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil. Grifos nossos.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O poder das palavras


Vejam esse vídeo. Nada mais precisa ser dito...

Mr. MM

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Na placa: "Por favor, me ajudem, sou cego."

Quando ela volta, ele pergunta:
- O que você escreveu?
- A mesma coisa, mas com outras palavras.

E na placa: "Hoje é um belo dia, mas não posso ver."

MUDE SUAS PALAVRAS
MUDE O MUNDO

Carta de um padre católico a um jovem homossexual


Caríssimo,

Que grande privilégio que é, ter a oportunidade de te escrever! Tanto mais que gostaria de saborear a palavra «tu», durante alguns momentos e pedir-te que ponderes sobre a novidade que isso representa, quão aberta é esta forma de trato.

Quantas vezes já foste abordado pela palavra «tu», numa publicação católica? Não me refiro à palavra «tu» no sentido fraco, como quando um anúncio pergunta: «Já consideraste a vocação de seres padre ou freira?», porque estes anúncios não pretendem realmente significar o «tu». Querem, isso sim, significar «alguém que é como tu em todos os aspectos, mas que por acaso não é homossexual, ou que, pelo menos, é bom em escondê-lo». Normalmente, sempre que acontecem discussões acerca de temas envolvendo a homossexualidade, nas publicações católicas, o estilo passa rapidamente a ríspido e um misterioso «eles» aparece. Este «eles» parece habitar um planeta diferente do teu. Quem quer que fale acerca do «eles» está, de facto, noutro planeta, um onde uma estranha falta de oxigénio torna impossível usar pronomes como «eu», «tu», «nós». Se alguém começar a usar esses pronomes rapidamente ficas com a sensação que a única coisa que lhes dá a liberdade de procederem desse modo é o facto de serem heterossexuais e têm a honestidade suficiente de admitirem que não compreendem do que se trata.

Podes ter tentado falar informalmente acerca do facto de seres homossexual católico a um padre, ou mesmo a um Bispo, a quem o teu sexto sentido escolheu como provavelmente sendo da «família» e certamente que já reparaste que, com todo o seu desejo de serem amigáveis, uma necessidade escondida de verificação surge na sua voz. Uma espécie de auto-censura interna significa que quando eles dizem «tu», podes verificar que o «eu» que está a falar, se transformou numa espécie de dissimulação e tornou-se, de algum modo, oficial e o «tu» que fala não se encontra chamado a ser, mas de alguma forma designado como «manusear com extremo cuidado». Há um «mas» flutuando em segundo plano na voz e que fala tão alto como tudo o que dizem, porque o «mas» diz: «tu, mas não como tu és».

Portanto, aqui estamos, lendo uma publicação católica*, parte daquela rede fantástica espalhada pelo mundo e que é uma das alegrias de ser um católico e, de algum modo, é permitido que algo de novo aconteça. Para ti, um católico que por acaso é homossexual (o que quer que isso signifique), se está dirigindo como «tu», por um católico que é capaz de dizer «eu sou um católico, que por acaso é homossexual, o que quer que isso signifique». É-me permitido falar-te, a ti que te encontras no começo de uma história de vida na qual ser homossexual desempenha um papel. E é-me dada a oportunidade de te falar não numa qualquer qualidade oficial, mas como irmão, um irmão com uma história de vida que inclui o facto de ser um homossexual assumido. É-me dada a oportunidade de me dirigir a ti a partir do nível em que te encontras, como alguém que não conhece melhor que tu quem tu és e que não sabe mesmo muito acerca de si próprio. Contudo, algo de novo aconteceu. Tornou-se possível numa publicação católica de referência*, que a palavra «tu» seja pronunciado de um modo completamente aberto, um que espero possa ressoar de forma criativa no teu ser, através de um «eu», cujo tom tenha sido insuflado e dilatado através de uma vida como homem homossexual assumido dentro da Igreja Católica.

Tal como acontece com todos os cobardes, quando me foi oferecido o privilégio de tomar parte nesta comunicação, a minha primeira reacção foi fugir. Pois um privilégio é também uma responsabilidade. E existe algo de particularmente impressionante acerca deste privilégio, uma vez que somente há Um que se pode dirigir a ti como «tu», de tal modo a chamar o teu «eu» sem te deslocar ou importunar. E esse é Nosso Senhor. E ele ganhou essa capacidade, ao passar pela morte de modo a ser capaz de te falar a ti e a mim, fazendo-nos ser e dando-nos um «eu» que não seja governado pela morte e pelo medo dela. Não há nada de rude em ser capaz de tratar o outro por «tu», de tal modo que o chame a ser.

Quando as autoridades doutrinais oficiais da nossa Igreja se recordam – o que normalmente acontece quando estão na defensiva – realçam que o que chamam de «magistério» jamais pode ser um substituto para a consciência, mas somente pode ser uma voz ao lado da tua, ao mesmo nível que a tua, tão sujeito ao sopro de Nosso Senhor como a tua. Uma voz que te incita, te aconselha, que te ajuda a formares a tua consciência e nunca uma voz que te abafa de modo a que assumas a sua voz em vez de te dares ao trabalho árduo de te permitires ter a tua própria voz.

Eles têm absoluta razão nisto. E eu não tenho o direito de ser menos cuidadoso do que o magistério é, quando falo contigo. Repara que a diferença entre a minha tentativa de me dirigir a ti como «tu» e aquela do padre ou do Bispo com a «verificação», o «mas» carrancudo, no fundo da sua voz, não significa que ele seja um hipócrita e eu não, que ele esteja constrangido e eu não. Não, eu sou tão hipócrita quanto ele e eu sinto-me igualmente constrangido. Também existe um «mas» no fundo da minha voz, embora não se aplique a ti. Contudo, seria desonesto da minha parte se eu pretendesse que amar a Igreja, enquanto homossexual masculino não tivesse deixado algo de estranho no fundo da minha voz. As realidades que fazem com que o padre ou o Bispo te falem de um modo tenso e pouco natural, são as mesmas realidades que me obrigam a pensar longa e profundamente sobre o modo como devo falar contigo. E temo só de pensar o quanto inadequado me acharias se pudesses falar-me frente-a-frente, em vez de me encontrares através desta máscara que estou tecendo com palavras, palavras que posso corrigir, editar e alterar antes que cheguem até ti.

Se existe uma diferença entre o tom da minha voz e aquele que estás acostumado a ouvir, isso acontece por acidente, ou graça, dependendo da forma como o interpretas. E sim, terás de o interpretar, terás de decidir se eu que me dirijo a ti como «tu», sou capaz de o fazer somente por causa de algum deslize, alguma falha no sistema, ou, pelo contrário, se há alguma coisa do Pastor nesta voz não autorizada que se dirige a ti; alguma coisa do Pastor cuja voz conheces e ao qual não temes. Não posso pretender em absoluto ser um canal dessa voz dentro de mim. Nenhum de nós pode. Podemos esperar somente ser usados, ou encontrarmo-nos em preparação para sermos usados. Contudo somente aqueles a quem cada um de nós se dirige, podem aperceber-se quem ela é, que mistura de vozes é a que chega cantando através do ar.

Se existe uma diferença, então deixa-me confessar que ela tem origem num acto de teimosia, de desafio da minha parte. Uma recusa em acreditar em algo. Esse é o «mas» no fundo da minha voz. «… mas o Deus que nos é revelado em Jesus não poderia de modo algum tratar aquela pequena porção da humanidade que é homossexual e lésbica com mensagens contraditórias conforme a Igreja o tem feito. Não poderia dizer «Amo-te, mas somente se te transformares noutra coisa qualquer», ou «ama o teu vizinho, mas no teu caso, não como a ti próprio, mas como se fosse outra coisa qualquer», ou «o teu amor é demasiado perigoso e destrutivo, arranja outra coisa para fazeres». E para um católico, um acto de teimosia ou de desafio não aparenta ser um bom ponto de partida. Soa algo de satânico. A menos, claro está, que esta recusa em acreditar algo seja reforçada por um forte sentido da bondade de alguém, a quem saberias de antemão estar seriamente a ofender se os julgasses capazes de agir da maneira que lhes é imputada.

Podes imaginar, como eu, uma esposa a recusar-se a acreditar na culpa imputada ao seu marido, por um tribunal legalmente constituído e um conjunto de jurados, respeitante a alguma desonestidade financeira. Toda a evidência parece apontar na mesma direcção, mas mesmo assim a esposa de forma teimosa e desafiadora recusa a acreditar que o marido pudesse ter feito isso, mesmo quando ele próprio algumas vezes vacila na sua própria defesa, talvez como forma de a aliviar do fardo de ter de o apoiar. Nalgumas histórias este caso terminará com novas provas, ou uma reviravolta nas circunstâncias, que isentarão o marido de qualquer responsabilidade e a esposa será vista em ter tido razão ao recusar que a sua fé na bondade do marido tenha sido contaminada pela calúnia pública. Noutras histórias, não haverá um final feliz e a geração dos mirones considerará a mulher como uma figura patética, desligada da realidade, num estado de negação tão profundo que é incapaz de aceitar que o marido era um sem-vergonha.

Bem, não te quero deitar areia para os olhos! Eu sou aquela esposa teimosa e desafiadora e a história ainda não acabou. Nem eu nem tu sabemos se a minha recusa em acreditar que Deus poderia alguma vez tratar as pessoas homossexuais e lésbicas do modo como os mais idosos da aldeia e o tribunal local dizem que Ele o faz é uma recusa nascida da fé no amor que se revelará verdadeira, ou é somente um sinal do meu voo ilusório para o irreal. Aqueles que te falam com uma necessidade de certificação nas suas vozes, sabem perfeitamente bem que é uma coisa ou outra e eles levam a tua segurança a sério ao não pretenderem embarcar-te numa viagem tão arriscada.

Não, não quero deitar-te areia para os olhos. Convidar-te para o lugar dessa esposa desafiadora e portanto para um lugar de vulnerabilidade e de incerteza até que a história seja levada ao seu fim, não é algo que eu faça de forma leviana. É um lugar assustador, pois não te posso oferecer uma solução. Eu não sei se é um acto de arrogância da minha parte que diz: «é melhor ousar passar pelo medo de que ser homossexual seja somente uma mentira, um modo de auto-engano que não leva a lado nenhum, acreditando que o Espírito de Deus dissipará o medo, revelará o medo como uma miragem, permitir-me-á crescer como uma criança à medida que enfrento o medo. É melhor isso, do que me agarrar à opinião de que o medo é para nossa segurança, protegendo-nos de um abismo de insignificância e, deste modo, permitirmo-nos ser guiados pelo prudente «não» da tradição da nossa Igreja».

Estás a ver, já não desprezo o prudente «não». Costumava fazê-lo. Costumava odiar a cobardia, as duas caras e as mentiras. Mas agora que me apercebo do custo de sair disso, também me dou conta do quanto cuidadoso tenho de ser quando me dirijo a ti. Pois qual de nós pode afirmar se algum desejo petulante de heroísmo não nos pode estar a «puxar os cordelinhos», em vez do espírito do Senhor dizendo “Duc in altum!” - «Faze-te ao largo!» (Lucas 5, 4)? Lá onde os prudentes pensam que não há peixes para serem pescados, nenhuns humanos que mereçam amar com igualdade de coração, mas somente um turbilhão de desejos confusos e irrecuperáveis. O custo de sair do «não» protector, de acreditar que alguém se pode estar a dirigir a mim como «tu» sem aquele horrível «mas», é encontrar-me a mim próprio nu perante o Espírito e mais vulnerável do que nunca ao meu próprio auto-engano. E a única resolução será quando a pescaria começar a chegar e isso pode não acontecer durante o meu tempo de vida, ou mesmo no teu.

Não, não quero ter a pretensão de que ser um católico abertamente homossexual é algo fácil e óbvio. Não o é. Para começar, o simples facto de desejares ler uma carta como esta é um sinal dos muitos obstáculos que já tiveste de ultrapassar. Podes ter enfrentado o ódio e a discriminação no teu próprio país, de membros da família, na escola, às mãos de políticos ansiosos por um punhado de votos, através de títulos gritantes de jornais que dilaceram a tua alma e à luz dos quais ficas sem palavras em tua defesa. E provavelmente já reparaste que na melhor das hipóteses, a Igreja que se intitula, e é, a tua Mãe Santa manteve o silêncio acerca do ódio e do medo. Ainda que, com demasiada frequência, os seus porta-vozes desçam ao nível de políticos de segunda categoria, emprestando a sua voz ao ódio enquanto proclamam que se erguem em defesa do amor. O próprio facto de que, através e no meio de, e apesar de, todas estas vozes carregadas de ódio, teres ouvido a voz do Pastor que te chama a fazeres parte do seu rebanho é já em si um milagre maior do que podes imaginar, que te prepara para um trabalho mais subtil e delicado do que essas vozes jamais poderiam conceber.

Partilharás todo o desprezo que o mundo moderno tem pela Igreja Católica ao te manteres firme na fé que te foi dada – serás visto como tendo pouco que valha a pena para oferecer. E, pela virtude de seres católico, estarás sempre em risco de seres considerado um traidor para qualquer projecto que os teus contemporâneos procurem construir. Não há, porém, nisto qualquer surpresa: as coisas são mesmo assim. Contudo, terás de enfrentar, por acréscimo, algo mais, pois serás visto como um traidor dentro da própria igreja. «Não és bem igual a nós». E certamente não serás alguém que possa representar publicamente a Igreja, que possa ser uma parte visível do sinal que conduz à salvação. E como poderia ser de outra forma? Pois se ser homossexual é um defeito da criação, como é afirmado, então o único sinal de graça associado ao facto de ser homossexual, seria a remoção do ser homossexual daquilo que te faz a ti ou a mim como pessoas.

Não te surpreendas, pois, que sejam considerados leais e dignos de confiança todos os que seguem todas as pistas psicológicas falsas e concebíveis, com o intuito de encontrar apoio científico para o argumento de que ser homossexual é uma patologia. Receberão aprovação como «sinal de contradição», por não terem sucumbido ao espírito da época. Ao mesmo tempo, serás considerado um mau católico, se é que serás considerado mesmo católico de todo. Pois, muito depois dos grupos evangélicos que estiveram na génese da «terapia reparadora» e do movimento dos «ex-homossexuais» terem deixado essas posições e os seus dirigentes terem pedido desculpa por enganar as pessoas, essas ideias encontraram eco e apoio em sectores católicos, pois adulam os actuais ensinamentos da igreja. Contudo, não tenhas medo de tais ideias e não odeies os seus propaladores. Eles são os nossos irmãos. O simples facto desses irmãos compreenderem que se o ensinamento da igreja é verdadeiro, então deve ter alguma base no reino empírico da natureza, significa que, em última instância, o que nos fará livres será a prova do que, nesse âmbito, é verdadeiro. Isso será maior do que tu, ou eu, ou eles podem imaginar, neste momento, e libertar-nos-á a todos.

Mas e quanto ao longo «entretanto»? Para ti, chamado pelo teu nome, tal como para mim, que estou a aprender a receber um «eu», ser católico implica uma vocação a alguma espécie de ministério; alguma espécie de agir criativo; alguma espécie de imitação pública da vida e morte de Nosso Senhor. Portanto não quero fingir: irás encontrar-te desenvolvendo um ministério, tal como eu me encontro a desenvolver um, sem qualquer apoio público da autoridade da igreja. Será como se não existisses. Terás de aprender a viver no silêncio de não seres nem aprovado, nem desaprovado. Cairás fora do campo de visão do homem e, se fores como eu, desesperado por um olhar de relance aprovador, experimentarás isto como uma forma de morte. Pois a cada um de nós é-nos dado sermos o que somos, através do olhar dos outros e respondemos a esse olhar, permitindo que este nos dê quem seremos e comportamo-nos em conformidade. Portanto, cair no chão num local onde não há olhar, não há aprovação, nem mesmo reprimenda, é algo de terrível e arriscado.

Pois naturalmente, eu posso ter caído no chão, no espaço onde não há olhar porque eu me tornei fechado no meu próprio orgulho e auto-engano. Em qualquer dos casos nunca encontrarei um olhar, mas dançarei ao ritmo desse engano, julgando-me muito santo e especial até que a morte chegue. Ou, se estou a ser conduzido pelo Espírito de Deus, o local onde não há olhar pode transformar-se no espaço onde sou encontrado à vista de Deus. E isto será experimentado por mim como um «nada», que me rodeia inteiramente e somente outros se podem aperceber de que existe um «eu» sendo chamado a ser por Um, cujos olhos não posso ver, mas que me podem ver a mim; um sopro que não posso sentir, mas que me sustem. E, claro está, outros não entenderão necessariamente mais do que eu, o que está nascendo.

Em que poderias estar a embarcar? Deixa-me deixar-te uma analogia. Não sei se tens idade suficiente para te lembrares da Guerra Fria? Ou mesmo se a Guerra Fria teve incidência suficiente na tua parte do mundo, de modo a ter deixado marcas em ti à medida que cresceste. Um dos produtos da Guerra Fria foi um género literário e cinematográfico de histórias de espiões, contos de intriga e de vida clandestina protagonizados (no pior dos casos) pelos bons contra os maus e nos casos mais raros, e melhores, por pessoas moralmente ambíguas em ambos os lados da divisória OTAN/ Bloco de Leste.

Tenta imaginar-te um agente de um ou do outro dos lados – da minha perspectiva é mais fácil imaginar-me com um agente do Ocidente profundamente embrenhado em terras comunistas. Agora imagina que há muito tempo atrás tinhas recebido as tuas ordens do chefe da tua agência e que te foram nomeados os «peritos» para a tua missão. Então, confiante de que eras apoiado por eles, mergulhaste no teu trabalho, dando início à construção de pequenos sinais do reino que serves, na comunidade, bem fundo em território inimigo. Depois imagina que algo de estranho acontece, há algo parecido com um golpe dentro da tua agência, uma mudança de política e todas as pessoas que tinham lidado contigo, que te tinham conhecido e preparado, retiram-se calmamente. Portanto, encontraste sem nenhuma linha directa com ninguém na agência. Estás profundamente infiltrado e subitamente sem cobertura, sem apoio, sem recursos, sem mesmo reconhecimento. Tanto mesmo, que até os novos agentes enviados pela agência, desconhecem a tua existência e provavelmente a desaprovariam de forma categórica uma vez que se és quem afirmas ser, então fazes parte de uma abordagem antiga e actualmente desacreditada ao «território inimigo», no qual estás infiltrado há muito tempo.

E, claro está, há pessoas na agência que podem conhecer a tua existência, mas já não se podem dar ao luxo de o afirmar. Pois ser visto a entrar em contacto contigo, poderia colocar em risco a sua própria posição na agência. Resumindo, encontras-te tendo-te tornado uma não-pessoa. «Não existe nos nossos livros, minha senhora”, é a resposta dada a qualquer pergunta efectuada no QG por alguém suficientemente tolo para afirmar que te tinha conhecido. A negação plausível é o óleo lubrificante através do qual a agência trabalha.

Que tens então que fazer? Ainda te manténs lealmente no trabalho, adorando o projecto para o qual foste originalmente enviado. Mas as comunicações tornaram-se seriamente problemáticas. Podes ouvir na rádio as declarações oficiais da agência. Consegues ler nas entrelinhas o «verdadeiro» significado do que está a ser dito, mas não existes, não possuis qualquer linha de comunicação com o QG, és um Zé-ninguém. Portanto, permites que a tua ira e ressentimento devido à forma como foste tratado pela agência façam com que desistas de trabalhar no projecto para o qual foste originalmente chamado e treinado? Ou amas tanto o projecto que estás preparado a amar a agência que agora te odeia confiante de que eventualmente as coisas se irão recompor? Amar a agência quando esta te ama é fácil, mas amá-la mesmo durante o tempo em que ela te renega? Agora surge o dedo de Deus!

É aqui que te instigo, como o faço a mim próprio, muitas vezes com espírito vacilante, a que vejas o privilégio do que temos. Sim, há uma suspensão da comunicação com um QG que somente pode falar acerca de um «eles» e nunca se dirige a «ti». Sim, eles ou não sabem da tua existência, ou necessitam de uma negação plausível para seu próprio bem, mas entretanto aqui, bem fundo no território do inimigo podemos continuar a construção não somente de um pequeno canto de algo defensivo, mas a própria Igreja Católica – a coisa completa, a porção total. E curiosamente, com menos interferências por parte de intrometidos do que aconteceria se as linhas de comunicação funcionassem. Portanto, atrevemo-nos a estender o nosso amor, construindo sem aprovação, enquanto esperamos ansiosamente pelo dia em que algum Muro de Berlim caia e a comunicação seja restaurada? És capaz de assumir essa responsabilidade? És capaz de ser perseverante?

«Vai ser um grande esticão!» - foi o sábio conselho que me foi dado por um dos meus formadores, um dos meus treinadores, que, para além de ser homossexual, é historiador. Ele estava a contar-me, tal como o faço agora a ti, que o processo de ajustamento à verdade nesta esfera, vai levar muito, muito tempo. E somente acontecerá se pessoas como tu e eu estiverem preparadas a amar o projecto e não se incomodarem com a turbulência na agência; se formos generosos em darmos aos treinadores o tempo suficiente para reunirem a valentia de nos procurarem e falar-nos como colaboradores. Uma das coisas que nos manterá a avançar é a de que podemos continuar a regressar àqueles lugares estranhos de encontro da guerra fria, às caixas de comunicação de espião, onde calmamente, a partir de debaixo de textos antigos e através de pão e vinho, o nosso formador original e nosso primeiro treinador, o Único que primeiramente nos deu vida ao projecto, nos infundirá coragem e força e perseverança, enquanto que os actuais rapazes da agência se distraem, criando barulho sem nexo, mas falham em conseguir eliminar o antigo código.

Quem sabe, meu amigo, se esta oportunidade de comunicação se voltará a repetir? Quem sabe se isto é somente um eco no éter, se os bloqueadores das ondas de rádio católicas conseguirão impedir futuras trocas de impressões entre um «eu» católico e um «tu» católico, ambos dos quais acontece serem homossexuais? Ou se não haverá algum degelo no gelo eclesiástico permanente e a troca de impressões se tornará muito, mas muito mais fácil? De qualquer modo, deixa-me dizer-te aquilo que descobri nos meus anos de infiltrado em território inimigo: não estás sozinho e a Sua promessa é verdadeira.

Recebe um grande abraço do teu irmão,

James

O teólogo católico James Alison é padre e escritor inglês. Estudou, viveu e trabalhou no México, Brasil, Bolívia, Chile e Estados Unidos, bem como sua terra natal, a Inglaterra. Obteve o doutorado em Teologia pelas Faculdades Jesuítas de Belo Horizonte. É autor de, entre outros, "Knowing Jesus" (London: SPCK 1992), "Raising Abel" (New York: Crossroad, 1996), "The joy of being wrong" (New York: Crossroad 1998) e "Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay" (São Paulo: É Realizações, 2010). Trabalha atualmente como um pesquisador itinerante, acompanhando uma imensa variedade de públicos, em leituras acadêmicas, seminários de pós-graduação, cursos de catequese para adultos, retiros para padres, e encontros católicos e ecumênicos de gays e lésbicas.

Traduzido para o português pelo Rumos Novos - grupo de gays católicos de Portugal. Grifos nossos.

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*Este artigo foi escrito e publicado na Revista Teológica Católica Internacional Concilium, no número dedicado ao tema “Homossexualidades” (2008/1, sem edição em português).

segunda-feira, 4 de abril de 2011

De cartas, máscaras e trocas afetivas

Oscar Wilde em 1882.
Foto: Napoléon Sarony

"O homem é menos fiel quando fala por si próprio. 
Deem-lhe uma máscara e ele dirá a verdade" 
- Oscar Wilde

Quando fui convidado a colaborar no blog, a princípio me perguntei sobre o que poderia falar ou de que maneira poderia contribuir dentro de um universo tão específico, cujos conhecimento e autoridade para me pronunciar a respeito certamente me faltam.

Foi a Cris que veio em meu socorro, fazendo uma análise precisa das mensagens que eu volta e meia envio lá para o mailing list do Diversidade, no Yahoo. Ela me chamou a atenção para o fato de que as minhas colocações pessoais de certa forma humanizavam as questões abordadas e discutidas no grupo e isso me deu o tom com que me dirijo a todos, aqui.

É difícil falar de experiências pessoais, todo mundo sabe disso. Acho que foi por isso que resolvi abrir o texto com esse aforismo do Wilde, que expõe uma característica humana tão comum: a de se revelar tanto mais quanto menos se mostra o rosto.

É assim na Internet. Salvaguardados pelos biombos protetores dos blogs, dos sites, das redes de relação, das listas de discussão, dos e-mails sem face, das palavras frias numa tela, é com frequência que nos expomos e deixamos falar aquele que, por conta de inúmeras circunstâncias, nem sempre pode ter voz ativa. Para o bem e para o mal, é importante frisar.

Assim o é também na vida. Ancorados no anonimato são cometidos, em número sem fim, atos covardes, assassinatos, injustiças, desrespeito de toda ordem. Porém também são levados a termo gestos de carinho, atenção, amparo, ajuda, afeto...

O afeto talvez seja a coisa mais delicada com que o homem, nesse século XXI, ainda tem que aprender a lidar. Digo isso porque, ainda hoje mesmo, publiquei uma carta que escrevi há algum tempo para alguém que amava muito, mas que se recusava a sair de si próprio. Muito frequentemente, na educação que recebemos, afeto é algo que somos estimulados a não demonstrar. Para se ter respeito somos ensinados a ser sérios demais, duros, inflexíveis, monolíticos. A máscara da sobriedade, da ascese, da secura sempre coube ao homem.

O afeto está restrito ao universo feminino, subjetivo, sutil e, por isso, numa sociedade estruturada sobre distintas relações de poder e que privilegia as noções de força, objetividade e virilidade, não é visto com bons olhos. Quem fala abertamente de afeto tende a ser identificado com uma série de características ou defeitos repudiados pelas convenções sociais: fraqueza, fragilidade, passividade, pieguice etc, etc, etc. Para os homens, falar de afeto significa, em última instância, negar o próprio gênero, abdicar de sua posição no status quo social e relegar-se a um plano inferior.

Numa relação amorosa, aquele que fala de afeto em geral é o que outorga o poder ao outro, o que se inferioriza, o que se entrega, o que deixa de ter voz ativa para comungar única e exclusivamente da visão de mundo do parceiro. Na exacerbação dessa visão distorcida, é aquele que se anula, pelo qual se perde o respeito.

E, assim, volto-me para a carta que escrevi e vejo que aquilo tudo, toda aquela gama de sentimentos conflitantes, desencontrados, poderia ter sido evitado se não estivéssemos tão condicionados por essas máscaras que somos obrigados a usar desde cedo e com as quais constantemente interpretamos papéis no mundo.

Se manejássemos corretamente o afeto e o transformássemos não só em ferramenta de autoconhecimento mas, principalmente, em moeda corrente para a comunicação, o diálogo com o outro, transformando as relações de poder em trocas afetivas, quem sabe os corações humanos não falassem mais por si próprios?

Não foi por acaso essa uma das lições repetidas com mais afinco pelo Cristo?

Paz e carinho a todos, sempre.

Mr. MM

P.S.: Wilde escreveu uma carta longa, intensa e emocionada a Lord Alfred Douglas, o grande amor de sua vida, por quem sofreu um dos mais abjetos processos judiciais da Inglaterra, no final do século XIX, tendo sido condenado a mais de dois anos de trabalhos forçados por ter praticado o "amor que não ousa dizer seu nome". A carta, escrita na prisão em 1897, foi publicada sob o título de "De profundis" pela primeira vez em 1905, numa versão reduzida. A versão completa e totalmente fiel ao original só veio a público em 1962.

Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém*


Arte: "Devotion: The Two Girlfriends" (1895), Toulouse-Lautrec

Ontem me deparei com uma carta que escrevi há muitos anos para um namorado por ocasião de um episódio aparentemente bobo, mas carregado de um sentido particular e ao mesmo tempo abrangente, que eu gostaria de compartilhar com vocês por achar que tem muito a ver com a nossa própria luta em prol da afirmação dos nossos valores.

A carta foi motivada pela contrariedade absolutamente infantil causada nesse meu namorado pelo fato de eu ter, à época, criado para mim um fotolog (de onde vem esse apelido Mr. MM) no qual pretendia expor minhas idéias, divulgar meus textos... enfim, expressar-me. Ele foi terminantemente contra e só sabia justificar a sua recusa com a seguinte frase: porque eu não quero! Na discussão, entre outras coisas, ele me disse que eu permanecia no meu "mundinho" e foi por aí que eu comecei a carta. Hoje, relendo-a, confesso que vejo muita arrogância da minha parte, expressa nas intenções professorais mal disfarçadas, principalmente porque a minha raiva era tanta que eu sentia necessidade de colocá-lo no seu devido lugar.

No entanto, vejo nela questões com as quais nós, gays ou não, nos deparamos dia-a-dia na tentativa de nos entendermos nesse projeto chamado vida, em meio às relações humanas e principalmente ao complicado processo de construção da individualidade que conjuga tantos e tão diferentes aspectos e que acaba esbarrando inevitavelmente nos muros das interdições, das proibições, dos "quereres" alheios. Bem... vou deixar que o texto da carta fale por si:

"Em primeiro lugar: tenho orgulho do meu 'mundinho'. Tenho orgulho porque foi através dele que me tornei o que sou hoje: essa pessoa que você ama, admira, respeita e valoriza.

Acontece que o que aconteceu ontem me dá pistas para acreditar no contrário. Para início de conversa, vamos ao porquê de eu estar tão profundamente magoado e decepcionado. Ao contrário do que você pode pensar, não foi o fato de não poder ter um fotolog que me deixou nesse estado, embora isso mereça, por si só, um tratamento especial aqui.

Você me passa a imagem de um homem centrado, reflexivo e dedutivo, cuja lógica cartesiana privilegia os aspectos práticos da vida (a prova disso é a sua atitude em relação a coisas como plano de previdência, planilhas de orçamento, gastos etc). No entanto, quando foi obrigado a me expor um simples motivo (o porquê de eu não poder ter um fotolog), você não o soube fazer, repetindo apenas, e incessantemente, 'porque eu não quero, porque eu não quero…' Como assim? Então não existe um motivo racional para isso? O porquê é simplesmente a sua vontade própria, impositiva, proibitiva, tirânica e intransigente? Êpa! Então isso vai contra toda essa imagem de cara centrado e racional que você tem me passado, pois não consigo entender como é que alguém assim não possua uma explicação ou argumento coerente para defender suas idéias.

Essa falta de coerência, você a tem demonstrado muito nesses meses de namoro. E sabe por quê? Porque você tende a acreditar firmemente nas suas próprias opiniões e não leva em conta o que os outros pensam. Por isso, quando alguma coisa o contraria ou foge ao seu entendimento, você a rechaça com violência. Isso só me faz chegar a duas conclusões:

1) Que o meu erro foi ter, desde o início, me submetido à sua lógica e não ter feito você enxergar o que era realmente importante para mim;

2) E que, na verdade, você trabalha com 2 sistemas lógicos: um que você utiliza para o cotidiano, para o trabalho, a família e as relações impessoais. Este é frio, racional, pautado no 'ou você tem ou você não tem' (conforme você me exemplificou ontem quando falou sobre a minha possibilidade de emprego na área de publicidade). O outro é uma corruptela desse primeiro. Quando digo isso, quero dizer o seguinte: o segundo sistema lógico nada mais é do que o primeiro que você TENTA aplicar às suas relações afetivas. No entanto, ele se corrompe porque, nessa área, a gente tem de lidar com SENTIMENTOS e sentimentos, infelizmente (para você), não são exatos como cálculos matemáticos. Daí que a sua lógica cartesiana, aplicada ao universo afetivo, é irremediavelmente falha e acaba por criar a lógica do 'eu quero' e do 'eu não quero'. E pronto: você se infantiliza, você anula a sua capacidade analítica, você reduz tudo a uma verdade prática que é inaplicável ao universo amoroso. Assim sendo, quando, por exemplo, eu faço o que você acha que eu não devo fazer, isso logo significa (nessa sua lógica truncada) que eu não te amo, o que NÃO é verdade.

Amor, entre as muitas definições existentes no dicionário, significa: 1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa. 2. Sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro ser ou a uma coisa; devoção extrema. 3. Sentimento terno ou ardente de uma pessoa por outra, e que engloba também atração física. 4. Afeição, amizade, carinho, simpatia, ternura. 5. Inclinação ou apego profundo a algum valor ou a alguma coisa que proporcione prazer; entusiasmo, paixão. 6. Muito cuidado; zelo, carinho.

Isso quer dizer, menino, que só existe amor quando um está disposto a fazer um movimento de ida em direção ao outro, de encontro, de compreensão, de conhecimento. Aqui vou me valer da minha lógica para evocar o significado contido na raiz etimológica do verbo conhecer (em Latim, cognoscere), que é o de saber pelos sentidos. Assim, só 'conhecemos' algo se dele nos aproximamos pelos sentidos, se trazemos para perto de nós o que está afastado. Ora, só trazemos para perto de nós aquilo que amamos, as coisas pelas quais temos afinidade, afeição, simpatia, carinho, ternura, apego profundo. Conhecer, portanto, é um ato de amor.

O seu comportamento, ao me impedir de ter um fotolog sem sequer me apresentar uma razão prática para tal, indica que você é ainda muito resistente a esse movimento realizado em direção ao ser amado. Que você reluta em abrir mão de suas convicções, de suas opiniões e verdades cristalizadas, em favor de um bem comum. Esse seu comportamento te impede de crescer, de se aprimorar como ser humano e de, consequentemente, expandir os limites do seu conhecimento. Limites são muros imaginários que criamos para proteger (ou não perder) aquilo que conquistamos ou para não entrar em contato com uma realidade outra que não conhecemos, que nos é estranha e, por isso, potencialmente hostil. Você não quer o nosso bem? Você não deseja a nossa felicidade? Então você deveria tentar me conhecer melhor, saber o que é importante para mim, quais as coisas que prezo, nas quais acredito… enfim, você deveria sair um pouco do seu 'mundinho' para entrar em contato com o meu, conhecê-lo e tentar compreendê-lo.

Chegamos, afinal, à razão principal da minha decepção: o fato de você não ter reconhecido que o importante para mim não era TER um fotolog, mas, sim, poder expressar LIVREMENTE as minhas idéias, sem censura, sem proibições, sem ter que me anular intelectualmente por uma coisa que nem um motivo concreto tinha. O que estou tentando te dizer é que eu possuo uma individualidade, eu sou um EU que é capaz de se expressar em palavras, ações e idéias. Ao me negar a possibilidade de me expressar intelectualmente através de QUALQUER veículo (jornal, internet, e-mail, carta, blog, fotolog, outdoor, rádio, televisão, teatro, música, literatura etc, etc, etc), você está se investindo de um direito que não tem. Você está, por fim, me desrespeitando. Ora bolas, se você não tem respeito por mim, por quem sou, pelo que prezo, pelo que acredito e/ou pelas idéias que professo, consequentemente você não me valoriza. Mais ainda: você então me valoriza de acordo com o que você QUER e não de acordo com o que eu SOU. Assim sendo, esses seus valores vêm carregados de preconceitos (entendido aqui como PRÉ-CONCEITOS, aquilo que se formaliza antes do que é real e, portanto, uma verdade imaginária, uma ilusão), de ciúmes, de irracionalidade, de possessividade, de mesquinharia e egoísmo… enfim, de uma série de sentimentos que acaba por excluir a possibilidade do 'conhecer', pois que nega a individualidade do outro, que aprisiona o relacionamento nos limites da lógica do 'eu quero' e do 'eu não quero'.

Isso me faz lembrar um dia, quando estávamos no seu carro e eu te disse que queria muito fazê-lo feliz. Você se lembra da sua resposta? 'Eu também quero que você me faça muito feliz…' Isso foi uma pequena amostra de como a sua lógica funciona. Você pode até dizer que não, mas isso é uma forma de egoísmo, de querer apenas que o outro vá até você, que apenas o outro se interesse por você e pelo seu mundo, sem que você precise descer do seu patamar, sem que você precise se explicar ou dar alguma satisfação. Enfim, sem que você precise sair de si para chegar ao ser amado.

Se você quiser mesmo ficar comigo, vai precisar repensar as suas próprias definições de amor, relacionamento… vai precisar aprender que a lógica aplicada ao amor só é possível através do DIÁLOGO, ou seja, por definição do dicionário: 'troca ou discussão de idéias, de opiniões, de conceitos, com vista à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia; comunicação.' E vai perceber, enfim, que dialogar no amor não é apenas expor suas idéias, pontos de vista, desejos ou vontades: é estar preparado para adequá-los aos do seu parceiro para que, desta adequação, surja o entendimento, a harmonia, o CONHECER expresso pelo movimento de trazer para si (de ir ao encontro de) o que está, a principio, afastado. Está aí, creio eu, a raiz de toda a admiração, todo o respeito que tenho por você e o verdadeiro valor que lhe atribuo como indivíduo, enquanto meu parceiro na vida e no amor.

Mais do que nunca (e ainda mais do que sempre) afirmo: quero conhecê-lo. E continuar a amá-lo."

Com carinho,

Mr. MM
_______________
*O título da carta é um verso de "Berimbau", música de Baden Powell e Vinicius de Moraes.

Mãos dadas


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


- Carlos Drummond de Andrade

Porque às vezes, quando o coração aperta e os pés se arrastam, o que vale é o amor e a mão amiga dos irmãos.

E encontrar aí a expressão do colo amoroso do Pai... :-)

Confiar, com Maria

Foto: hume

A introdução da Quaresma no calendário litúrgico é acontecimento muito posterior àqueles últimos dias de Jesus. Contudo, tal como a Quaresma é hoje para nós tempo de preparação para a celebração dos mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, podemos imaginar que Maria também viveu um tempo em que – mesmo não sabendo precisar o que iria acontecer – preparava-se para algo diferente, pois tinha total conhecimento sobre as consequências do trabalho que seu Filho.

A relação de Jesus com Maria era especial. Mãe e filho eram unidos não só pela condição familiar, mas pela fé na Missão que o Pai lhes confiara. Pode-se, então, imaginar longas conversas entre os dois, nas quais ora um, ora outro, desvendavam as entrelinhas das Escrituras e entravam mais e mais no Mistério de Deus. Conversas que também tratavam do mundo terreno, das ações de Jesus, de seus resultados efetivos, de suas dificuldades e de suas possíveis consequências. As leis terrenas da época de Jesus previam graves punições, e, a mais terrível delas, que era a morte na cruz. E os dois sabiam que isso poderia acontecer. Jesus já havia anunciado aos apóstolos que passaria por um grande sofrimento e é óbvio pensar que também já deveria ter prevenido Sua mãe sobre isso.

Maria, por sua vez, conhecia seu povo, conhecia a maldade e a dureza dos corações dos poderosos e sabia o que poderiam tramar contra seu Filho. Maria sabia que pode perder seu Menino e que a dor lhe chegará ao coração. Talvez se lembrasse constantemente das palavras de Simeão e Ana quando esteve no Templo para oferecer os sacrifícios a Deus. Talvez se lembrasse da perseguição em Belém e da vida no Egito. Talvez se lembrasse de tudo o que os profetas anunciaram sobre o Messias... Maria, como hoje os fiéis o fazem, também se preparou para enfrentar aqueles dias dolorosíssimos que chegariam e que arrasariam seu coração de mãe.

Mas, certamente, Ela também haveria de se lembrar das promessas que Deus fizera a seu povo. Portanto, sabia que Deus lhe seria fiel. Deus lhe concederia a força necessária para compreender os momentos que estavam por chegar e que não seriam facilmente compreensíveis aos olhos humanos. Deus estaria ao seu lado, seria o seu sustento e o seu amparo. Essa é sua única certeza – e somente essa pode ser a certeza atual diante do sofrimento incompreensível e do silêncio que cerca o período que antecede a celebração da memória da Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo.

Que possamos nos preparar com Maria para os Mistérios que se aproximam: com certezas, com confianças, com o olhar a ver o invisível.


- Gilda Carvalho
Publicado originalmente no Amai-vos. Grifos nossos.

domingo, 3 de abril de 2011

Quem esteve nas Forças Armadas sabe...

Foto: Felipe Costa

Queridos,

Nos últimos dias causaram repulsa os comentários do Sr. Jair Bolsonaro, Deputado Federal pelo PP (Partido Progressista) do Rio de Janeiro, em relação a questões como discriminação racial e homossexualidade.

É mais do que sabido que Bolsonaro é um elemento egresso das fileiras das Forças Armadas Brasileiras e que sua plataforma política prega, entre outros princípios, o respeito aos valores tradicionais familiares, à moral e ao civismo, bem como a defesa dos interesses da família militar. No entanto, muito do que ele vem defendendo no congresso já não mais se verifica como a voz de uma maioria e, sim, de uma parcela reacionária da instituição, que não o reconhece como representante de seus interesses. Em meio a tanto absurdo dito e ouvido, eis o depoimento dos dois sargentos que, há alguns anos, foram notícia por terem assumido sua relação em âmbito nacional, aqui.

Há elementos importantes nessa entrevista que mostram principalmente que os pontos de vista do Sr. Bolsonaro não são mais unânimes dentro das Forças Armadas, mas que, como em qualquer instituição tradicional, ainda evoluem com lentidão para uma mentalidade mais aberta e democrática.

Atenção para a seguinte declaração: "Eu penso que Bolsonaro, na verdade, é um malandro que finge ser representante dos militares para viver de dinheiro público. Como militar, que eu ainda sou, eu vejo que ele é totalmente desacreditado na instituição. Ele é usado pela cúpula para dar esses recadinhos, pra fazer esse auêzinho. Mas, no meio, ele é desacreditado. Acham que ele é um palhaço."

Isso é verdade e eu mesmo posso confirmar porque meu pai, militar e inicialmente eleitor do Sr. Bolsonaro (o que me rendeu brigas homéricas com ele), hoje em dia pensa dessa forma: "esse aí é um palhaço!"

Outras considerações (como a de que Bolsonaro seria um "gay internalizado" ou ainda o conceito de "orientação" sexual ainda vigente no discurso dos dois) eu simplesmente acho desncessárias e mesmo equivocadas. Mas vale a pena reconhecer nelas o quanto ainda é necessária a disseminação da informação correta, isenta de ambiguidades, para que se possa fortalecer perante o status quo oficial a defesa imprescindível de nossa liberdade e nossos direitos.

Paz e abraços em todos,

Mr. MM

Olhos para ver o invisível

Foto: .mye

Havia um cego de nascença que esmolava próximo ao local conhecido como piscina de Siloé. Os discípulos de Jesus lançam-lhe uma pergunta: quem pecou para que aquele homem nascesse cego? Ele ou seus pais? (cf Jo 9, 2-4) Este era o raciocínio dos homens daquele tempo, ou seja, se alguém nascesse ou adquirisse alguma deficiência física ou mental, isto era fruto do pecado dele ou de seus antepassados. O Mestre responde não apontando um culpado, mas dizendo que aquilo que aos olhos dos homens possa parecer repugnante é motivo para a glória de Deus.

Neste episódio, Jesus mostra a novidade de Sua mensagem: Deus-Pai é um Deus de futuro, não de passado: diante do sofrimento não se deve perguntar o porquê ou a culpa, mas olhar para frente e vislumbrar que caminhos se abrem a partir daquele sofrer. Ao curar o cego, Jesus mostra que para Deus nada é impossível e, assim, confirma que outras possibilidades podem surgir do sofrimento. O milagre foi feito porque para a realidade daqueles homens a ação miraculosa era um modo de mostrar concretamente a glória de Deus; talvez não lhes fosse possível ainda ler as entrelinhas das palavras de Cristo, o que hoje nos é facultado fazer – ainda que milagres continuem acontecendo diariamente.

O que precisamos para vermos os milagres, é ter um outro olhar diante do que o mundo concebe como miraculoso. Nem sempre o perfeito ou o bem sucedido é o miraculoso. É preciso moldar nosso olhar aos valores do Reino para ver o que é invisível aos olhos humanos.

Há, ainda, um outro detalhe importante neste episódio: Jesus cura o cego em um dia de sábado, dia considerado sagrado para os judeus, quando, teoricamente, não deveriam fazer qualquer tipo de ação ou esforço físico. Jesus transgrediu essa regra por diversas vezes, ensinando-nos que fomos feitos para a vida plena e esta exige a plenitude do viver, o não se deixar formatar por convenções que apenas enrijecem as possibilidades de salvação. Sábados feitos para os homens e não homens feitos para os sábados, ensina-nos o Mestre.

Que possamos (re)modelar nossos olhares, dando à visão um outro sentido, oferecendo às nossas vidas novas possibilidades, fazendo acontecer milagres ainda necessários ao amadurecimento do nosso próprio processo de conversão pessoal.



Texto para sua oração:
Jo 9, 1-41

- Gilda Carvalho
Publicado originalmente no Amai-vos. Grifos nossos.

* * *

Atualização em 04/04/11:
Vale ler este comentário a respeito dessa mesma passagem. De certo modo, acaba sendo um depoimento comovente acerca da justiça de nós, gays, abrirmos os olhos para nos vermos e aceitarmos também como somos. Porque "ver é um milagre, só que não lhe damos atenção porque estamos acostumados. Eis aí então que Deus às vezes atue de forma repentina, extraordinária, a fim de sacudir-nos de nosso estupor e tornar-nos atentos..." Aqui. :-)
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