quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A entrevista de Leonardo Boff sobre Bento XVI



A entrevista de Leonardo Boff sobre Bento XVI que a Folha não publicou

“O perfil do próximo Papa não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política”

Por Leonardo Boff, eu seu blog
Dei generosamente uma entrevista à Folha de São Paulo que quase não aproveitou nada do que disse e escrevi. Então publico a entrevista inteira a seguir para reflexão e discussão entre os interessados pelas coisas da Igreja Católica. As perguntas foram reordenadas. (Leonardo Boff)
1.Como o Sr. recebeu a renúncia de Bento XVI?
Eu desde o principio sentia muita pena dele, pois pelo que o conhecia, especialmente em sua timidez, imaginava o esforço que devia fazer para saudar o povo, abraçar pessoas, beijar crianças. Eu tinha certeza de que um dia ele, aproveitaria alguma ocasião sensata, como os limites fisicos de sua saúde e menor vigor mental para renunciar. Embora mostrou-se um Papa autoritário, não era apegado ao cargo de Papa. Eu fiquei aliviado porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo. Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja mas um representante de Jesus que disse: “se alguém vem a mim eu não mandarei embora” (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transsexual.
2. Como é a personalidade de Bento XVI já que o Sr. privou de certa amizade com ele?
Conheci Bento XVI nos meus anos de estudo na Alemanha entre 1965-1970. Ouvi muitas conferências dele mas não fui aluno dele. Ele leu minha tese doutoral: O lugar da Igreja no mudo secularizado” e gostou muito a ponto de achar uma editora para publicá-la, um calhamaço de mais de 500 pp. Depois trabalhamos juntos na revista internacional Concilium, cujos diretores se reuniam todos os anos na semana de Pentecostes em algum lugar na Europa. Eu a editava em portugues. Isso entre 1975-1980. Enquanto os outros faziam sesta eu e ele passeávamos e conversávamos temas de teologia, sobre a fé na América Latina, especialmente sobre São Boaventura e Santo Agostinho, do quais é especialista e eu até hoje os frequento a miúde.

Leonardo Boff: Que Papa esperar que não seja um Bento XVI?
Depois em 1984 nos encontramos num momento conflitivo: ele como meu julgador no processo do ex-Santo Ofício, movido contra meu livro Igreja: carisma e poder” (Vozes 1981). Ai tive que sentar na cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno entre outros sentaram. Submeteu-me a um tempo de “silêncio obsequioso”; tive que deixar a cátedra e proibido de publicar qualquer coisa. Depois disso nunca mais nos encontramos. Como pessoa é finíssimo, tímido e extremamente inteligente.
3. Ele como Cardeal foi o seu Inquisidor depois de ter sido seu amigo: como viu esta situação?
Quando foi nomeado Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé(ex-Inquisição) fiquei sumamente feliz. Pensava com meus botões: finalmente teremos um teólogo à frente de uma instituição com a pior fama que se possa imaginar. Quinze dias após me respondeu, agradecendo e disse: vejo que há várias pendências suas aqui na Congregação e temos que resolvê-las logo. É que praticamentea cada livro que publicava vinham de Roma perguntas de esclarecimento que eu demorava em responder. Nada vem de Roma sem antes de ter sido enviado a Roma.

Havia aqui bispos conservadores e perseguidores de teólogos da libertação que enviavam as queixas de sua ignorância teológica a Roma a pretexto de que minha teologia poderia fazer mal aos fiéis. Ai eu me dei conta: ele já foi contaminado pelo bacilo romano que faz com que todos os que aitrabalham no Vaticano rapidamente encontram mil razões para serem moderados e até conservadores. Então sim fiquei mais que surpreso, verdadeiramente decepcionado.
4. Como o Sr. recebeu a punição do “silêncio obsequioso”?
Após o interrogatório e a leitura de minha defesa escrita que está como adendo da nova edição de Igreja: charisma e poder (Record 2008) são 13 cardeais que opinam e decidem. Ratzinger é um apenas entre eles. Depois submetem a decisão ao Papa. Creio que ele foi voto vencido porque conhecia outros livros meus de teologia, traduzidos para alemão e me havia dito que tinha gostado deles, até, uma vez, diante do Papa numa audiência em Roma fez uma referência elogiosa. Eu recebi o “silêncio obsequioso” como um cristão ligado à Igreja o faria: calmamente o acolhi. Lembro que disse: “é melhor caminhar com a Igreja que sozinho com minha teologia”. Para mim foi relativamente fácil aceitar a imposição porque a Presidência da CNBB me havia sempre apoiado e dois Cardeais Dom Aloysio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns me acompanharam a Roma e depois participaram, numa segunda parte, do diálogo com o Card. Ratzinger e comigo. Ai éramos três contra um. Colocamos algumas vezes o Card Ratzinger em certo constrangimento pois os cardeais brasileiros lhe asseguravam que as críticas contra a teologia da libertação que ele fizera num document saido recentemente eram eco dos detratores e não uma análise objetiva. E pediram um novo documento positivo; ele acolheu a idéia e realmente o fez dois anos após. E até pediram a mim e ao meu irmão teólogo Clodovis que estava em Roma que escrevêssemos um esquema e o entregássemos na Sagrada Congregação. E num dia e numa noite o fizemos e o entregamos.
5. O Sr deixou a Igreja em 1992. Guardou alguma mágoa de todo o affaire no Vaticano?
Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela que é de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do pais. Quem entende a lógica de um sistema autoritário e fechado, que pouco se abre ao mundo, não cultiva o diálogo e a troca (os sistemas vivos vivem na medida em que se abrem e trocam) sabe que, se alguém, como eu, não se alinhar totalmente a tal sistema, será vigiado, controlado e eventualmente punido. É semelhante aos regime de segurança nacional que temos conhecido na A.Latina sob os regimes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dentro desta lógica o então Presidente da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Oficio, ex-Inquisição), o Card. J. Ratzinger condenou, silenciou, depôs de cátedra ou transferiu mais de cem teólogos. Do Brasil fomos dois: a teóloga Ivone Gebara e eu. Em razão de entender a referida lógica, e lamentá-la, sei que eles estão condenados fazer o que fazem na maior das boas vontades. Mas como dizia Blaise Pascal:”Nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. Só que esta boa-vontade não é boa, pois cria vítimas. Não guardo nenhuma mágoa ou ressentimento pois exerci compaixão e misericórdia por aqueles que se movem dentro daquela lógica que, a meu ver, está a quilômetros luz da prática de Jesus. Aliás é coisa do século passado, já passado. E evito voltar a isso.
6. Como o Sr. avalia o pontificado de Bento XVI? Soube gerenciar as crises internas e externas da Igreja?
Bento XVI foi um eminente teólogo mas um Papa frustrado. Não tinha o carisma de direção e de animação da comunidade, como tinha João Paulo II. Infelizmente ele será estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde grassaram os pedófilos, onde os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos USA negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero. E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade. Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé, e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar. Entre eles estavam bispos como Dom Angelelli da Argentina e Dom Oscar Romero de El Salvador. Dom Helder foi o mártir que não mataram. Mas a Igreja é maior que seus papas e ela continuará, entre sombras e luzes, a prestar um serviço à humanidade, no sentido de manter viva a memória de Jesus, de oferecer uma fonte possível de sentido de vida que vai para além desta vida. Hoje sabemos pelo Vatileaks que dentro da Cúria romana se trava uma feroz disputa de poder, especialmente entre o atual Secretário de Estado Bertone e o ex-secretário Sodano já emérito. Ambos tem seus aliados. Bertone, aproveitando as limitações do Papa, construiu praticamente um governo paralelo. Os escândalos de vazamento de documentos secretos da mesa do Papa e do Banco do Vaticano, usado pelos milionários italianos,alguns da mafia, para lavar dinheiro e mandá-lo para fora, abalaram muito o Papa. Ele foi se isolando cada vez mais. Sua renúncia se deve aos limites da idade e das enfermidades mas agravadas por estas crises internas que o enfraqueceram e que ele não soube ou não pode atalhar a tempo.
7. O Papa João XXIII disse que a Igreja não pode virar um museu mas uma casa com janelas e portas abertas. O Sr. acha que Bento XVI não tentou transfomar a Igreja novamente em algo como um museu?
Bento XVI é um nostálgico da síntese medieval. Ele reintroduziu o latim na missa, escolheu vestimentas de papas renascentistas e de outros tempos passados, manteve os hábitos e os cerimoniais palacianos; para quem iria comungar, oferecia primeiro o anel papal para ser beijado e depois dava a hóstia, coisa que nunca mais se fazia. Sua visão era restauracionista e saudosista de uma síntese entre cultura e fé que existe muito visível em sua terra natal, a Baviera, coisa que ele explicitamente comentava. Quando na Universidade onde ele estudou e eu também, em Munique, viu um cartaz me anunciando como professor visitante para dar aulas sobre as novas fronteiras da teologia da libertação pediu o reitor que protelasse sine dia o convite já acertado. Seus ídolos teológicos são Santo Agostinho e São Boaventura que mantiveram sempre uma desconfiança de tudo o que vinha do mundo, contaminado pelo pecado e necessitado de ser resgatado pela Igreja. É uma das razões que explicam sua oposição à modernidade que a vê sob a ótica do secularism e do relativismo e for a do campo de influência do cristianismo que ajudou a formar a Europa.
8. A igreja vai mudar, em sua opinião, a doutrina sobre o uso de preservativos e em geral a moral sexual?
A Igreja deverá manter as suas convicções, algumas que estima irrenunciáveis como a questão do aborto e da não manipulação da vida. Mas deveria renunciar ao status de exclusividade, como se fora a única portadora da verdade. Ele deve se entender dentro do espaço democrático, no qual sua voz se faz ouvir junto com outras vozes. E as respeita e até se dispõe a aprender delas. E quando derrotada em seus pontos de vista, deveria oferecer sua experiência e tradição para melhorar onde puder melhorar e tornar mais leve o peso da existência. No fundo ela precisa ser mais humana, humilde e ter mais fé, no sentido de não ter medo. O que se opõe à fé não é o ateismo, mas o medo. O medo paraliza e isola as pessoas das outras pessoas. A Igreja precisa caminhar junto com a humanidade, porque a humanidade é o verdadeiro Povo de Deus. Ela o mostra mais conscientemente mas não se apropria com exclusividade desta realidade.
9. O que um futuro Papa deveria fazer para evitar a emigração de tantos fiéis para outras igrejas, e especialmente pentecostais?
Bento XVI freou a renovação da Igreja incentivada pelo Concílio Vaticano II. Ele não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim que preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que a tradição a partir do seéculo XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos.Ele tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II o cavalo de Tróia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II mas o interpretou à luz do Vaticano I que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível. Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamano da China.Tal opção trouxe grande conflito na Igreja até entre inteiros episcopados como o alemão e frances e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos. O perfil do próximo Papa, no meu entender, não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política. Deveria tomar como lema a frase de Jesus que já citei anteriormente:”Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”, pois acolhia a todos, desde uma prostituta como Madalena até um teólogo como Nicodemos.
Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista. Não deveria ser um homem de certezas mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos. Logicamente se orientaria pelo Evangelho mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vem a este mundo, como diz o evangelista São João. Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus. E por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo. Que nas negociações que os cardeais fazem no conclave e nas tensões das tendências, prevaleça um nome com semelhante perfil. Como age o Espírito Santo ai é mistério.Ele não tem outra voz e outra cabeça do que aquela dos cardeais. Que o Espírito não lhes falte.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Forte candidato a papa defende pena de morte para gays



Do Advivo - Assim que Joseph Ratzinger renunciou ao posto de papa, surgiram nomes que podem sucedê-lo. Um dos mais fortes é o de Peter Turkson, Cardeal de Gana, que poderia se tornar o primeiro papa negro e africano da história. Mas cuidado: ele parece ser ainda pior que Bento XVI.
Homofóbico, Turkson defende a pena de morte para homossexuais em Uganda, um projeto de lei infame que tramita no Poder Legislativo do país. Ao site “National Catholic Register”, ele tentou justificar, no ano passado, o porquê da vontade de prender e matar gays e lésbicas na África seria compreensível (!): “A intensidade da reação (à homossexualidade) é provavelmente compatível com a tradição”.

O cardeal ainda criticou a atitude do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, quando este pediu que o continente africano acabasse com a criminalização da homossexualidade. Para Turkson, defender os LGBT não é questão de direitos humanos. “Quando você está falando sobre o que é chamado de ‘estilo de vida alternativa’, são estes os direitos humanos? Ele [Ban Ki-moon] precisa reconhecer que há uma sutil distinção entre moralidade e direitos humanos, e é isso que precisa ser esclarecido.”

Quando se pensa que o ódio e a falta de respeito ao humano poderiam conhecer limites…

Fonte

Imagem: Francis Bacon

A Igreja muda ou acaba



‘A Igreja muda ou acaba’, diz teólogo brasileiro
Mário França crê que o modelo atual da Santa Sé trai a origem da fé católica

HELENA CELESTINO

Por onze anos, Mário França, 76, fez parte da Comissão Teológica do Vaticano, onde conquistou o respeito do então cardeal Joseph Ratzinger. Hoje, professor da PUC-Rio e autor de obras sobre a teologia, defende uma nova Igreja, longe da hierarquia e das ortodoxias de Roma, e com espaço para gays e padres casados.


O GLOBO: Como a Igreja vai sobreviver ?
Mário França: Chegou um momento em que a Igreja, só com os oficiais, padres, bispos e Papa, não aguenta mais. Esta estrutura foi uma traição à Igreja primitiva, em que todo mundo participava e tinha direitos iguais de participação. Todos são iguais, não tem homem, mulher, judeu, gentio ou escravo e senhor. Depois a Igreja erigiu uma estrutura monárquica, um pouco copiada de Roma. Foi consequência da chegada dos príncipes, que começaram a nomear parentes para tomar conta das muitas propriedades da Igreja. Era preciso estruturar ou tudo ia ficar na mão de famílias poderosas, nobres. Para evitar isso, o laicado foi afastado do poder da Igreja - o laicado não era o povão, eram estes príncipes que estavam cada vez incomodando mais. Passou o tempo e a Igreja ficou identificada por seus bispos, padres etc. É errado, né? Todo cristão, todo católico, tem o direito de formar um grupo, com o qual a hierarquia não pode se meter. A Igreja do futuro vai ser predominantemente leiga ou então não vai aguentar.
O Grupo de diversidade católica, que reúne gays, é um exemplo do que o senhor está dizendo?
Mário França: Exatamente. É um grupo de pessoas que são assim. A Igreja não pode excluir, tem de atender todo mundo. É uma maneira de a Igreja mostrar sua abertura. A consciência histórica é lenta. Teve um tempo que os missionários se perguntavam se tinham que batizar ou não os negros da África, por que não sabiam se eram animais ou gente. Muita coisa que achamos normal hoje, daqui a 50 anos será considerada intolerável. Os laicos vão obrigar a Igreja a criar um espaço de debate público, que não existe. A qualquer problema, corre-se para o bispo.
Mas as mudanças têm sido lentíssimas.
Mário França: Não se mexe da noite para o dia com 1,2 bilhão de pessoas. Não se podem criar traumas, as pessoas têm mentalidades muito diversas e, como diz o Rubens César Fernandes, do Viva Rio, o importante é que a gente mantenha todo esse pessoal dentro da Arca de Noé. Os sociólogos dizem que tudo pode mudar, menos o religioso, porque o ser humano tem necessidade de segurar alguma coisa. A gente percebe que isto não tem sentido. O sagrado também é construído através de uma linguagem e de práticas.
Esta posição está afastando muita gente.
Mário França: É, há paróquias que viraram agências de fornecer sacramento, isto está condenado. Tem de ter o sentido missionário. É o que se está tentando fazer agora. Mas é lento. Quando eu fui da Comissão Teológica do Vaticano, não tinha nenhuma mulher, agora já tem quatro. Não há dúvidas de que o fim do celibato já deveria ter acontecido, Paulo VI era a favor disso - mas uma coisa destas vai mudar a estrutura.
A questão da contracepção também está mais do que na hora de ser enfrentada.
Mário França: São questões morais que têm se ser mudadas, mas é uma coisa lenta. No papado de João Paulo VI, o cardeal de Bruxelas disse: na minha arquidiocese é permitido camisinha - ele estava com um problema seríssimo de explosão de Aids entre trabalhadores imigrados. Resolveu assumir e disse: aqui é preciso usar camisinha. O Vaticano não disse uma palavra.
A Igreja não vem conseguindo acompanhar as mudanças sociais?
Mário França: São rapidíssimas. Na PUC, a mudança de uma geração para a outra se dava em 20 anos, depois passou para 10, agora com dois ou três anos, você já vê aluno do quarto ano que não consegue entender o calouro. É uma sucessão vertiginosa que não conseguimos mais acompanhar, que provoca um curto-circuito na cultura.
Quem é o mais progressista entre os candidatos a Papa?
Mário França: Os cardeais terão de fazer um perfil de uma pessoa que entenda o mundo e saiba enfrentar esses desafios todos. Tem de ter boa formação pastoral e intelectual, capaz de se cercar de pessoas competentes. Tem um candidato de Honduras, Luis Alfonso Santos, que é uma pessoa muito possível de dar um bom Papa. Sabe línguas, é sensível, mora no país mais pobre da América Central: é uma pessoa que marca pela inteligência. Tem Luiz Antonio Tagle, um filipino progressista também, mas ele é muito novo. Tem 55 anos. Mas eu duvido que queiram colocar um cardeal de 50 anos, pois ele ficaria 30 anos. A turma não quer isso não. Cardeal Ravasi, encarregado da Cultura, também é muito aberto.
Resumindo: o senhor diz que a Igreja tem de mudar?
Mário França: Já está mudando. Ou muda ou acaba. É um momento sério da sociedade, faltam líderes. Onde estão os Churchill, De Gaulle, Adenauer? Não tem mais, está faltando líder. Na Igreja também, e os problemas são muito grandes. As religiões têm um papel muito forte no mundo de hoje, e a Igreja tem de ser uma reserva ética, apesar dos mal feitos da cúpula.




Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/a-igreja-muda-ou-acaba-diz-teologo-brasileiro-7596687#ixzz2LH4p0Ogh
© 1996 - 2013. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.


Imagem: São Estevão

A Igreja e a descriminalização da homossexualidade



A Igreja e a descriminalização da homossexualidade (1)


No final de 2008, uma proposta encabeçada pela França nas Nações Unidas gerou um debate acalorado: a descriminalização da homossexualidade em todo o mundo. Segundo grupos de direitos humanos, o homoerotismo ainda é punível em mais de 85 países e pode levar à pena de morte em outros, como o Afeganistão, o Irã, a Arábia Saudita, o Sudão e o Iêmen. A proposta francesa teve a adesão de 66 países e a rejeição de 62 países. Estes, liderados pelo Egito, apresentaram uma declaração de oposição.
O Vaticano se posicionou oficialmente. O seu porta-voz, o padre Frederico Lombardi, emitiu um comunicado em que afirma: “Os conhecidos princípios do respeito dos direitos fundamentais da pessoa e da rejeição de toda injusta discriminação – reconhecidos claramente pelo próprio Catecismo da Igreja Católica – excluem evidentemente não só a pena de morte, mas todas as legislações penais violentas ou discriminatórias em relação aos homossexuais”(2). Nas Nações Unidas, a delegação da Santa Sé manifestou apreço pela proposta francesa de condenar todas as formas de violência contra pessoas homossexuais, e exortou os Estados a tomarem as medidas necessárias para pôr fim a todas as penas criminais contra elas (3). Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil (4).
Há também divergências. O Vaticano faz ressalvas à proposta francesa por considerar que há risco para quem não colocar exatamente no mesmo nível toda orientação sexual. Haveria um instrumento de pressão, por exemplo, contra legislações que privilegiam o matrimônio entre um homem e uma mulher (5).
Esta posição da cúpula da hierarquia católica não teve muita repercussão na mídia. Segmentos da imprensa ligados ao mundo gay fizeram o seguinte comentário sobre a Igreja: ‘amiga, pero no mucha’. No entanto, considerando o horizonte da história, trata-se de um fato absolutamente novo que convém analisar.
No Ocidente, o homoerotismo era relativamente tolerado na civilização greco-romana. Mas na tradição judaico-cristã esta prática é identificada com o pecado de Sodoma, isto é, a tentativa de estupro feita aos hóspedes do patriarca Ló, que resultou no castigo divino destruidor (Gênesis, cap. 19). Sodoma se torna o ápice do castigo de Deus para os ‘crimes da carne'. Com a ascensão do cristianismo e a união entre Igreja e Estado na cristandade, o homoerotismo é intitulado ‘sodomia’ e criminalizado. O seu agente é o ‘sodomita’, um indivíduo de alta periculosidade que atrai desgraças e infortúnios para a coletividade. Julgar e executar sodomitas tornou-se moral e legal.
Na Brasil do século 18, por exemplo, que então era colônia de Portugal, as Constituições do Arcebispado da Bahia consideravam a sodomia ‘tão péssimo e horrendo crime’ que “provoca tanto a ira de Deus, que por ele vêm tempestades, terremotos, pestes e fomes, e se abrasaram e subverteram cinco cidades, duas delas somente por serem vizinhas de outras onde ele se cometia” (6). Era um pecado indigno de ser nomeado, por isso chamava-se ‘pecado nefando’, do qual não se pode falar, muito menos se cometer. Tribunais eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados de sodomia e entregavam os culpados ao poder civil para serem punidos, até mesmo à morte.
Esta aversão ao homoerotismo é mantida no Brasil independente. O seu primeiro código penal, de 1823, determinava que “toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado, e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa de nosso Reino, posto que tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inábeis e infames, assim como os daqueles que cometeram crime de Lesa Majestade”(7).
O advento do Iluminismo trouxe importantes mudanças. A razão autônoma, independente da Revelação e do ensinamento da Igreja, deve governar a sociedade e conduzir seus dirigentes. Para os iluministas a prática sexual, se exercida sem violência ou indecência pública, não devia absolutamente cair sob o domínio da lei. Por isso julgavam uma atrocidade punir a sodomia com a morte. O código napoleônico em 1810 retirou o delito de sodomia da legislação penal. Por sua influência, muitos países latinos fizeram o mesmo décadas depois, inclusive o Brasil.
A secularização impulsionada pelo Iluminismo vai modificar a própria compreensão do homoerotismo. Em 1869, o escritor austro-húngaro Karol Maria Benkert criou o termo ‘homossexualidade’, um neologismo greco-latino que formou um conceito de diversidade psico-física para substituir a sodomia. Este termo teve ampla difusão, e o homoerotismo se deslocou do âmbito religioso e moral para o âmbito biológico. Mas houve também uma patologização, que permaneceu até o final do século 20.
A Igreja Católica atualmente considera os atos de homossexualidade intrinsecamente desordenados, contrários à lei natural e sempre reprováveis. No entanto reconhece haver pessoas com tendências homossexuais profundamente enraizadas, que devem ser acolhidas com respeito e delicadeza, evitando-se para com elas todo sinal de ‘discriminação injusta’(8). Isto inclui toda violência física ou verbal, que é deplorável e merece a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifiquem (9). As pessoas homossexuais são chamadas à castidade, que neste caso corresponde à abstinência sexual permanente. Basicamente, o pecado deve ser condenado, mas o pecador deve ser acolhido e ajudado a se converter.
No pontificado de João Paulo 2º, onde estas posições foram bem evidenciadas, colocaram-se também questões como a possível ‘discriminação justa’ contra os gays e a legalização das uniões homoafetivas. A Cúria Romana afirmou que a orientação sexual não constitui uma característica comparável a raça ou a tradições étnicas no que diz respeito a não discriminação. A orientação homossexual é uma desordem objetiva. É justo levá-la em conta na adoção e guarda de crianças, na admissão de professores ou técnicos esportivos, e no recrutamento militar. Os direitos humanos não são absolutos. Eles podem legitimamente ser limitados devido à ‘desordem objetiva de conduta externa’. Isto é lícito e às vezes necessário não apenas no caso de comportamentos voluntários, mas também nos casos de doença física ou mental. O Estado pode restringir direitos, por exemplo, no caso de doença mental ou contagiosa para proteger o bem comum (10).
Para a Cúria Romana ‘não há direitos à homossexualidade’. A não discriminação de gays só constitui um direito na medida em que não haja condutas homoeróticas. Caso contrário, a discriminação pode ser legítima para a proteção do bem comum. As uniões homossexuais, por sua vez, são ‘nocivas’ a um reto progresso da sociedade humana; deve haver oposição clara e incisiva ao seu reconhecimento legal, sobretudo dos políticos católicos (11).
O pontificado de Bento 16 trouxe continuidades e mudanças. Ele defende com veemência a união heterossexual como um bem insubstituível para a sociedade, e o termo ‘matrimônio’ reservado a esta forma de união. Mas quanto à união civil homoafetiva, o papa não faz restrições taxativas sobre ao seu reconhecimento legal, ao contrário de seu antecessor. Ratzinger emprega os termos ‘parece perigoso e contraproducente’(12). Ora, ‘parece’ não quer dizer necessariamente que seja; e ‘perigoso' não significa abominável ou inadmissível.
Neste pontificado, o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Robert Zollitsch, declarou-se a favor da união civil de homossexuais (13). Aliás, esta união já está legalizada no país do papa desde 2002. Convém notar que dificilmente um presidente de uma conferência episcopal faria uma declaração dessas sem o respaldo interno dos outros bispos, e sem um amplo consenso da Igreja local. Há mudanças em curso que se fazem notar.
A posição da Santa Sé em favor da descriminalização da homossexualidade em todo mundo significa, no horizonte histórico, uma enorme mudança. A Igreja que no passado julgou e condenou à morte os homossexuais, agora exorta todas as nações, mesmo as muçulmanas, a eliminarem todas as medidas penais contra eles. E defende que os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil. Esta posição destoa inclusive do pontificado de Wojtyla. O argumento de que não há direitos à homossexualidade, e que os direitos humanos podem ser restringidos pelo Estado em caso de desordem objetiva de conduta externa, poderia justificar a criminalização da homossexualidade, ainda mais ao se considerar as uniões homossexuais como nocivas à sociedade. Mesmo que aqueles documentos da Cúria tenham a assinatura do então cardeal Ratzinger, ele como papa não está mais sob as ordens do seu antecessor, e tem mais liberdade de ação.
Há também outra mudança importante ocorrida no século passado que é pouco considerada. A Igreja Católica não usa mais o termo ‘sodomia’, mas sim homossexualidade, incorporando de certa forma a secularização do homoerotismo. A modernidade penetra na Igreja de muitas maneiras: com o reconhecimento da autonomia da ciência, da autonomia do Estado, da liberdade de consciência; com uma nova visão das Sagradas Escrituras para além da leitura literal, e aos poucos com uma nova compreensão do homoerotismo, chegando até mesmo a certo reconhecimento do direito homoafetivo.
Este processo não é tão evidente no cotidiano, onde o que chama a atenção são as posições contrárias e conservadoras. Olhando para o passado, muitas mudanças ocorridas eram inimagináveis. Mas a história é aberta e surpreendente. Se tantas mudanças aconteceram, outras mais não poderão acontecer, ainda que inverossímeis? A sociedade e a Igreja são dinâmicas, e, aos que crêem, o Espírito de Deus está vivo e atua na história.


Pe. Luís Corrêa Lima, S.J
Depto. de Teologia da PUC-Rio.
Rua Marquês de São Vicente, 225.
22451-900 Rio de Janeiro, RJ.
E-mail: lclima@puc-rio.br

------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Notas:

1 - Texto apresentado no Congresso Internacional de Ética Teológica Católica (Trento, Itália, 27 jul. 2010), e publicado na Revista eclesiástica brasileira, nº282, 2011, p. 468-472.
2 - “Santa Sé contra a discriminação injusta a homossexuais”, Zenit, 2 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
3 - Intervenção do representante da Santa Sé. 18 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2010.
4 - “Difesa dei diritti e ideologia”, L'Osservatore Romano, 20 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
5 - “Santa Sé contra a discriminação injusta...”, obra citada.
6 - VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Brasília: Senado Federal, 2007, p. 331-332.
7 - PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil. Bauru: Javoli, 1980, p. 26. In: TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.164.
8 - Catecismo da Igreja Católica. 1992, nº2357-2359. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
9 - CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ. Carta sobre a cura (cuidado) pastoral das pessoas homossexuais – Homosexualitatis problema. Roma, 1986, nº10. Texto em inglês disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
10 - ____. Some considerations concerning the response to legislative proposals on the non-discrimination of homosexual persons. 1992. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
11 - ____. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. 2003. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
12 - Discorso di sua santità Benedetto XVI agli amministratori della regione Lazio del comune e della provincia di Roma. Roma, 11 jan. 2007. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.

Imagem: El Greco (Museu de Artes Decorativas de Buenos Aires)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...