sábado, 11 de fevereiro de 2012

Amigo dos excluídos


A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 40-45, que corresponde ao 6º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos do autor.


Jesus era muito sensível ao sofrimento de quem encontrava no Seu caminho, marginalizados pela sociedade, desprezados pela religião ou rejeitados pelos setores que se consideravam superiores moral ou religiosamente.

É algo que Lhe sai de dentro. Sabe que Deus não discrimina ninguém. Não rejeita nem excomunga. Não é só dos bons. A todos acolhe e bendiz. Jesus tinha o hábito de levantar-se de madrugada para orar. Em certa ocasião revela como contempla o amanhecer: "Deus faz sair o Seu sol sobre bons e maus". Assim é Ele.

Por isso, por vezes, reclama com força que cessem todas as condenações: "Não julgueis e não sereis julgados". Outras, narra pequenas parábolas para pedir que ninguém se dedique a "separar o trigo e o joio" como se fosse o juiz supremo de todos.

Mas o mais admirável é a Sua atuação. O rasgo mais original e provocativo de Jesus foi o Seu hábito de comer com pecadores, prostitutas e gente indesejável. O fato é insólito. Nunca se tinha visto, em Israel, alguém com fama de "homem de Deus" comendo e bebendo animadamente com pecadores.

Os dirigentes religiosos mais respeitáveis não o puderam suportar. A sua reação foi agressiva: "Aí tendes a um comilão e bêbado, amigo de pecadores". Jesus não se defendeu. Era certo. No mais íntimo do Seu ser sentia um respeito grande e uma amizade comovedora para com os rejeitados da sociedade ou da religião.

Marcos recolhe no seu relato a cura de um leproso para destacar essa predileção de Jesus pelos excluídos. Jesus atravessa uma região solitária. De repente aproxima-se um leproso. Não vem acompanhado por ninguém. Vive na solidão. Leva na sua pele a marca da sua exclusão. As leis condenam-no a viver afastado de todos. É um ser impuro.

De joelhos, o leproso faz a Jesus uma súplica humilde. Sente-se sujo. Não lhe fala de doenças. Só quer ver-se limpo de todo estigma: «Se queres, podes limpar-me». Jesus comove-se ao ver a Seus pés aquele ser humano desfigurado pela doença e o abandono de todos. Aquele homem representa a solidão e o desespero de tantos estigmatizados. Jesus «estende a Sua mão» procurando o contato com a sua pele, «toca-lhe» e diz-lhe: «Quero. Ficar limpo».

Sempre que discriminamos a partir da nossa suposta superioridade moral a diferentes grupos humanos (vagabundos, prostitutas, toxicómanos, HIV positivos, imigrantes, homossexuais...), ou os excluímos da convivência negando-lhes o nosso acolhimento, estamos a afastar-nos gravemente de Jesus.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Revisite sua infância vendo Tomboy




O poster acima é de um dos mais sensíveis filmes que já vi em minha vida. Já discutimos aqui no blog sob como os pais se sentem em relação a sexualidade das crianças, como os psicólogo e pedagogos e diferentes ciências vêem a criança transexual, mas acho que tô pra ver alguma discussão, ou pelo menos uma exposição, tão honesta quando a do filme acima que trata sob o ponto de vista da criança.

É simplesmente mostrado como a criança se sente, talvez alguém interessado em formar um discurso sobre o assunto possa até querer escrever uma tese depois de assistir. Mas, pra mim o filme me emocionou do começou ao fim. Pude sentir novamente o gostinho do que tive de bom, estranho e inominável na minha infância. Partilhei com o/a protagonista todos os seus sentimentos e a partir deles pude revisitar a minha infância em vários momentos.

TomBoy é simplesmente um filme infantil e leve, mesmo nos momentos mais tensos.

Veja o trailler:



Só pra não perder o fio da meada, também com a mesma leveza, indico um belíssimo curta brasileiro que também trata da inocência juvenil, chamado a “Arte de andar pelas ruas de Brasília”. Não consegui achar o trailler. Mas, há uma sinopse aqui.


Este último, fica como uma homenagem a nossas colaboradoras e queridas amigas Zu e Cris.

:)


Um bom fim de semana!

Tapa na peruca de Higgs e palmada no bumbum do jornalismo


Pela trocentésima vez desde o final do ano passado, tive a oportunidade de me deparar com uma manchete gritando que cientistas chegaram quase-quase na observação do qualquer-coisa do Bóson de Higgs. Esse Bóson de Higgs parece o "pertim" do mineiro; tá sempre quase lá.

Pra quem ainda não entendeu do que eu estou falando, Bóson de Higgs é uma partícula elementar surgida logo após o Big Bang de escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partícula. É a única partícula do modelo padrão que ainda não foi observada, mas representa a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares.

Entendeu? Nem eu. Qual a relevância disso pro católico? Veremos.

No que concerne ao ser humano católico, alguém, um belo dia, resolveu chamar essa questão física de Partícula de Deus. Se o nome de Deus gerasse R$1,00 em prol das pesquisas pelo fim de doenças graves no mundo, a cada vez que fosse usado, a gente nunca mais morreria.

Daí começou a confusão e eu tenho acompanhado essa discussão toda que já chegou ao ponto de alguém dizer que os cientistas estão perto de descobrir Deus. Achei que era hora de parar com isso. Me arrepio toda só de pensar que algum ser humano realmente acredita que o tal Boston de Higgs, somente por ter estado lá no começo de tudo, representa Deus. É como se alguém andasse por aí procurando o próprio umbigo. Ele está lá. Basta se envergar um pouquinho pra ver. E ele sempre esteve lá. Parte do ser humano, igualzinho a Deus. E aí eu me pergunto: Quando observarem o Higgs, seremos todos felizes? Estaremos todos repletos e teremos as respostas para todas as perguntas? Seremos mais irmãos e menos resmunguentos? De onde viemos, saberemos. Mas, e pra onde vamos? E o porquê da gente ter sido criado? Comofaz?

Acredito muito que cada um de nós precise mesmo construir senso crítico frente à imprensa porque a coisa tá ficando cada vez mais feia. Escreve-se qualquer coisa para vender jornal ou aumentar o fluxo de navegação em sites de notícias e a gente não pode cair na tentação de comprar tudo o que se fala por aí porque, do mesmo jeito que algum irresponsável alardeia que a pesquisa científica séria da observação do bóson de Higgs vai nos mostrar Deus, esse mesmo irresponsável espalha outra infinidade de cretinices que só geram mais confusão e gritaria. Todo ser humano carrega, em si, Deus. Todas as pessoas são sacrários do Divino, e à humanidade cabe apenas descobrir como se unir cada vez mais a essa Divindade, independente da religiosidade que a expressa. A ciência corre atrás de seus interesses em prol da evolução da nossa espécie mas daí a algumas mídias transformarem isso na manchete de que Deus está pra ser descoberto, é pura pescaria de leitor. E a gente sabe que a religião de verdade vem para esclarecer, para formar consciência, para fazer de nós, humanos, pessoas mais críticas e menos mera massa de manobra.

Espero que os cientistas evoluam na pesquisa e se sintam felizes e satisfeitos com ela. Espero que o jornalismo pare de tentar transformar pessoas de verdade em Pinocchios e acredito mesmo que a gente consiga ter a temperança de pensar e pesquisar antes de cair na rede de qualquer cretino que se intitula jornalista e faltou à aula de ética.

Com amor,
Zu.

A missão de um bispo: primeiro os pobres, os presos, os doentes, os estrangeiros

Imagem daqui

O perfil do bispo contemporâneo em debate: para o bispo recém-eleito de Novara, na Itália, Franco Giulio Brambilla (foto), o cardeal Carlo Maria Martini delineia a figura pastoral do bispo sobre o pano de fundo dos grandes textos da tradição bíblica, que enfatizam a sua dedicação, amorosidade e o mandato que vem de Cristo.

A opinião – escrita por ocasião do lançamento do novo livro do cardeal Martini, intitulado Il vescovo [O bispo] (Ed. Rosenberg & Sellier, 92 páginas) – foi publicada no jornal Corriere della Sera, 22-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Vou saudar o cardeal Martini. Em poucos dias, farei o ingresso como novo bispo da diocese de Novara. Ele foi o da minha maturidade de padre. Falamos longamente com o olhar no momento presente da Igreja e do mundo. A sua voz imperceptível intervém pouquíssimo, com palavras afiadas e encorajadoras.

A certa altura, ele me pergunta: que programa você tem para Novara? Ele pede que o secretário busque um pequeno livro, ainda quente da imprensa: Il vescovo [O bispo]. Ele me diz: quis escrever de minha mão com dificuldade. Ele será lançado em alguns dias dias. Em casa, leio-o de uma vez só.

É um pequeno livro pensado no rastro da grande tradição do Liber pastoralis, de Gregório Magno a Carlos Borromeu. Ele não frequenta os grandes picos da teologia. Protela-os conscientemente. Devia ser – diz a nota introdutória do editor – a primícia da coleção La cura delle parole. É como o número zero, confiado a "um verdadeiro mestre do cuidado com as palavras". E assim foi escrito. Ele quer falar do bispo para "arrancá-lo do nicho e vê-lo em contato com as pessoas (...) com uma imagem menos vaporosa e hierática, mais viva e sem falsas pretensões".

Martini, mestre da Palavra, é capaz de tecer sobre a trama da linguagem humana uma reflexão sapiencial, tingida de ironia e desencanto, de pontas marcantes e saborosas notações. Ele a entrega a todos aqueles que se perguntam sobre o sentido de autoridade na Igreja e sobre a sua presença na sociedade civil.

As palavras precisam de cuidado, senão se consomem. Ou, melhor, corrompem a nossa relação com o real, porque são a porta para o mistério do ser. A etimologia do termo "bispo" (de epi-skopein: supervisor, guardião, guia, pastor) tende a esmagar a sua figura sobre a questão da autoridade. Essa, na comunicação pública, goza hoje de uma má fama. Martini a remove da sua concentração sobre o poder de governo para colocar o bispo em relação com a Palavra e a sua ação santificadora. Quando estava em Milão, ele dizia frequentemente que sentia o ônus de ser um símbolo também para a cidade.

A figura pastoral do bispo é lida sobre o pano de fundo dos grandes textos da tradição bíblica, que enfatizam a sua dedicação, amorosidade e o mandato que vem de Cristo. Surge daí uma imagem persuasiva que faz do bispo um "servidor da Palavra de Deus". O próprio Martini foi como que o seu ícone: "Ele deve ter o Evangelho dentro de si mesmo e, assim, ser um Evangelho vivo".

Surpreenderá muito, até mesmo aqueles que não frequentam a língua da Igreja, a sua insistente referência ao vínculo do bispo com a Igreja celeste: ele deve "ser homem de oração, sobretudo de oração de intercessão". Para concluir de modo icônico: "Se queremos um bispo profeta, é preciso dar-lhe muito tempo para rezar".

A imagem perfilada por Martini no capítulo crucial do pequeno livro relê radicalmente o tema da autoridade. O seu poder é iluminador e libertador, que participa dos gestos de libertação do mal de Jesus e transmite a força do fermento evangélico. A autoridade na Igreja tem a forma testemunhal, porque coloca em contato vital a consciência com a Palavra. Como disse em um texto fulgurante, o terreno não existe sem a semente: "Terra e semente foram criados um para o outro. Não faz sentido pensar na semente sem uma relação própria com o terreno. E este último sem a semente é deserto inabitável. Fora da metáfora: o homem, assim como nós o conhecemos, se cortar toda a sua relação com a Palavra, torna-se estepe árida, torre de Babel".

A ponta de diamante da figura do bispo, segundo Martini, se desdobra no terceiro capítulo de modo agradável por parte de todos. Passam-se em resenha todos os contatos do bispo: com os não crentes, os pobres, os doentes, os encarcerados, os estrangeiros. Depois, a ampla rosa das relações eclesiais: os fiéis, os colaboradores, os padres e diáconos, os teólogos, o seminário, os religiosos, o mundo missionário. Para terminar com as instituições, os judeus e o mundo da mídia. É o capítulo mais "martiniano", onde se desenha a imagem do bispo que se deixa guiar – na dialética com o mundo – pela pergunta: Quid hoc ad Evangelium?, "o que eu faço e digo, o que tem a ver com o Evangelho?”.

Um texto provocativo que não despreza nem o debate com o peso burocrático da vida da Igreja e a sua relação com as diversas instâncias da Igreja universal.

Enfim, à margem do livro, as características atuais de um bispo: a integridade, a lealdade, a paciência e a misericórdia. Esculpidas com o estilete de um sábio bíblico e entregues idealmente a um jovem bispo. Como a conclusão final do livro: "Um homem humilde, que vence as durezas com a sua doçura, que sabe ser discreto, que sabe rir de si mesmo e das suas fragilidades. Que sabe reconhecer seus próprios erros, sem muitas autojustificações. Portanto, acima de tudo, um homem de verdade".

Um Martini clássico!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Assembleia de ferramentas...

Foto daqui

Em certa ocasião, aconteceu uma assembleia de ferramentas numa carpintaria, para resolver problemas da classe:

O martelo se auto-elegeu como presidente e convocou as ferramentas batendo forte na mesa do carpinteiro. Mas sua presidência durou pouco. Foi acusado de fazer muito barulho e ficar dando golpes o tempo todo. O martelo reconheceu sua culpa e foi substituído pelo parafuso.

O parafuso também não durou muito, pois era muito enrolado e foi acusado de ficar dando muitas voltas para conseguir alguma coisa. O parafuso concordou.

A lixa, então, assumiu seu lugar, mas também por pouco tempo. Ela era muito áspera no tratamento com os demais e criava muitos atritos. Acatou também as reclamações pela sua maneira de agir e foi substituída pelo metro.

O metro no princípio se deu bem, era muito metódico e certinho, mas logo começaram a acusá-lo de que só ele estava certo e media a todos segundo suas próprias medidas, como se fosse o único perfeito.

O serrote o substituiu, quando então o marceneiro entrou.

Todas as ferramentas ficaram quietas...

O marceneiro separou umas tábuas e começou a trabalhar nelas. As ferramentas foram passando por suas mãos: o martelo, o serrote, o parafuso, a lixa, o metro... No final de seu trabalho, aquelas tábuas se tinham convertido num belo armário, elegante e fino.

Quando o marceneiro saiu, as ferramentas continuaram sua assembléia. O serrote disse:

- Senhoras e senhores! Ficou demonstrado que todos temos defeitos e por isso não nos aceitamos uns aos outros. Mas o marceneiro trabalhou com nossas qualidades, com o que temos de valor. Esse armário está em pé, bem equilibrado, preciso e exato, graças ao metro. As tábuas foram encaixadas umas nas outras graças à força do martelo. O parafuso uniu e juntou muito bem as diversas partes do armário. A lixa tirou as asperezas da madeira e deu lisura e brilho ao armário...

Todas as ferramentas sentiram-se valorizadas e animadas ao ver que podiam produzir móveis de qualidade.

Uma pergunta: Qual a “ferramenta” que mais se assemelha com seu modo de agir?

- Pe. J. Ramón F. de la Cigoña sj
Reproduzido via blog do autor

Mundo corporativo, um mundo homofóbico?

Imagem daqui

Recentemente, coloquei um comentário no Facebook apoiando os direitos dos homossexuais na questão de formarem uma família (adoção de crianças, casamento civil, dependência em planos médicos, direito de herança, entre outras) e me surpreendi com alguns comentários que traziam um ranço do século XV. É claro que não sou nenhuma “Alice no país das maravilhas” e sei que a questão é controversa, mas confesso que não esperava ouvir, nos tempos de hoje, argumentos tão rasos e preconceituosos em relação a essas questões. Ou a qualquer outra que diga respeito aos direitos de um cidadão comum, que apenas tem uma opção sexual diferente da que prega o, aqui, maldito senso comum.

Acabei me dando conta de que o processo pelo qual passa hoje essa questão parece ter a mesma dinâmica pela qual passou o preconceito em relação à cor da pele. Ainda me lembro de um tempo no qual parecia divertido fazer piada com a cor da pele de alguém. E que esse tipo de absurdo sequer era questionado pelos demais membros da sociedade, influenciando crianças com o pior sentimento possível: o preconceito. Incrível como o grau de hipocrisia com esse assunto era extremamente elevado. Nos discursos oficiais, todos eram contra o preconceito de cor. Mas, em reuniões menores ou em ocasiões sociais, não faltavam piadas sobre pessoas negras.

Essa mesma hipocrisia reina hoje no mundo corporativo, só que com viés muito forte para a homofobia. Ok, ninguém é espancado entre uma reunião e outra por assumir sua homossexualidade, mas não tenho dúvida de que enfrentam hoje o mesmo preconceito velado pelo qual já passaram negros e mulheres (não que esses preconceitos tenham acabado totalmente no mercado, mas, pelo que vejo, estão hoje em menor intensidade). Conversando com alguns amigos (gays ou não), as histórias são sempre as mesmas. Diante do público, o discurso politicamente correto de que as empresas não fazem qualquer tipo de distinção entre raça, sexo ou opção sexual. Mas, nos corredores e nas reuniões privadas, não faltam piadas sobre o tema. Um amigo me confessou que na empresa na qual trabalha até uma “lista dos que são” é feita de maneira informal durante as reuniões.

Isso sem contar o preconceito velado na hora de se discutir a carreira de um homossexual. A pergunta que fica é: se a opção sexual de um cidadão em nada interfere na sua vida profissional, por que deveria interferir na hora de avaliar a sua progressão de carreira? Aqui nesse ponto tenho certeza de que muitos vão colocar o chapéu do “politicamente correto” e dizer que esse tipo de discriminação não existe na hora das promoções. Então proponho um exercício simples: antes de afirmarem categoricamente que não existe qualquer tipo de discriminação (mesmo que inconsciente), olhem por um instante para os cargos mais altos das empresas nas quais trabalham e contem quantos negros, mulheres e homossexuais existem. Garanto que, somados, não chegarão aos cinco dedos de uma só mão. E isso independe do número de cargos de liderança que existam na companhia.

O que me traz uma outra questão: vai ser fácil contar as mulheres e negros, pelo simples fato de que eles não têm como “esconder” a sua situação. Já um homossexual, garanto que não será tão fácil assim identificá-lo em cargos de liderança. Não porque não existam, mas porque, nesse nosso ambiente corporativo dito “liberal”, muitos deles escondem sua opção por não se sentirem confortáveis o suficiente para assumi-la integralmente. São poucos os “corajosos” que o fazem dentro desses ambientes hostis, nos quais impera a hipocrisia do “aceito, mas faço piada”.

As questões que coloco são simples: por que incomoda tanto a um terceiro a opção sexual de alguém se essa opção não interfere em nada na sua vida? Por que se preocupar de o outro gostar de uma coisa ou de outra, se esse gostar diz respeito apenas a ele? Por que fazer piada com um assunto que não lhe diz respeito, mas que desrespeita o outro ao fazê-lo? E por último, mas não menos importante: por que preterir alguém ou negar-lhe algum direito se a sua contribuição para a sociedade, para a empresa e para o entorno é a mesma que a dos demais e que a diferença entre ele e você não passa apenas de uma preferência que não lhe diz respeito?

Conversando com Mata Hari sobre o tema, ela me provocou com um exercício interessante para descobrir se realmente o preconceito sobre essa questão está ou não impregnado dentro da gente. Dizia ela: “imagine se o seu filho, ou sua filha, se declara gay. Qual seria a sua reação? O que você sentiria?”. No primeiro instante confesso que fiquei perplexo diante da pergunta. Por mais que apoie o tema, nunca tinha parado para pensar nessa hipótese. Mas fiquei feliz em seguida ao chegar a conclusão de que o mais importante para mim é que eles (meus filhos) sejam felizes e que vou apoiar qualquer que sejam as suas escolhas. E torcer para que, quando eles chegarem à vida adulta, esse cenário já seja apenas uma má lembrança do passado. Independente de suas escolhas.

Espero que esse respeito seja apenas uma questão de amadurecimento da sociedade, da mesma forma que aprendemos a respeitar indivíduos de outra cor ou sexo. Mas, não tenha dúvida, respeito se ensina em casa, começando com os nossos filhos. Acho que vou guardar esse texto para um futuro próximo.

- André Moragas
Reproduzido do blog "Na hora do cafezinho", do jornal O Globo (aqui)

"Ninguém pode excluí-los da Igreja"


Quando no interior do grupo de homossexuais católicos de Milão denominado “Il Guado” se discutiu em convidar Luigi Bettazzi, bispo emérito de Ivrea, para falar sobre o Concílio Vaticano II, alguns expressaram o medo de que o encontro pudesse colocar na sombra a questão dos homossexuais na Igreja e as dificuldades que estes encontram no confronto com uma hierarquia que parece ser incapaz de acolher e compreender a experiência gay de católicos. Mas, no fim, o encontro com o bispo emérito de Ivrea, no dia 06-02-2010, no salão paroquial de S. Maria Bartrade, superou qualquer temor.

A notícia é da agência italiana Adista, 15-02-2010.

Testemunho privilegiado do evento conciliar (uma “graça” – afirmou – pela qual ainda hoje agradeço a Deus”), uma experiência vivida em estreito contato com um protagonista importante, o cardeal Lercaro (de quem era bispo auxiliar), Bettazzi encarnou a novidade do Concílio Vaticano II na realidade dos grupos eclesiais que buscam, com muito esforço, manter a sua especificidade de gênero com a própria pertença eclesial. Na sua reflexão, o bispo indicou alguns ensinamentos importantes daquela experiência e que podem ser lidos como um paradigma interpretativo da atualidade. Ele os organizou partindo das três grandes Constituições que o Concílio aprovou.

Começou falando da Gaudium et Spes, a constituição com que a Igreja optava, de maneira solene, de não ter mais como únicos interlocutores somente os católicos, mas todos os homens e todas as mulheres “de boa vontade”. Esta opção significou uma escolha definitiva do próprio magistério: não é por acaso que, desde então, nenhuma encíclica é publicada sem que os interlocutores sejam sempre todos os homens.

"Quem crê no Cristo está salvo!", é o título de um livro que o próprio Bettazzi publicou há alguns anos, retomando um versículo do Evangelho de São João (3,15). Durante o encontro o próprio Bettazzi observou como aquele mesmo versículo pode ser lido de muitas maneiras: a primeira, ("Quem crê em Cristo, será salvo") coloca o acento sobre a adesão de fé em Cristo, vê na adesão à Igreja a única estrada para a salvação. A segunda (“Quem crê, em Cristo será salvo”) que coloca o acento sobre a seriedade com que nós respondemos à nossa vocação humana, vivendo-a com a fidelidade de quem “crê”, de quem assume a responsabilidade de ter em conta, nas suas opções, as exigências e as necessidades dos que partilham da sua humanidade.

Lida à luz desta mensagem, Bettazzi recordou com força, que a condição homossexual adquire um significado radicalmente novo que expulsa as polêmicas que, nestes últimos dias, foram protagonizadas por alguns bispos italianos ao fazerem afirmações muito duras em relação aos homossexuais, taxando como “aberrante” a sua condição e pedindo o afastamento da Igreja e dos sacramentos. Somente quem esquece o ensinamento do Vaticano II na Gaudium et Spes, afirmou Bettazzi, pode pensar que a homossexualidade seja em si mesma um motivo que pode afastar as pessoas da Graça e que se possa, de fora, julgar o estado de Graça de uma pessoa que não esconde a sua própria homossexualidade, negando-lhe à priori, o acesso aos sacramentos.

Depois de ter analizado, por meio da Sacrosanctum concilium, a importância da recuperação da centralidade da liturgia na vida, não só da Igreja, mas também dos crentes, para realizar, inclusive, uma relação diferente entre a instituição eclesiástica e a experiência vivida pelos indivíduos, Bettazzi refletiu sobre a Dei Verbum, convidando a não considerar a Palavra de Deus como algo estranho nas nossas vidas, mas na direção de uma escuta atenta e responsável do texto bíblico para chegar àquele discernimento requerido pelas situações específicas. Neste sentido, a história de tantos homossexuais crentes se insere, como a história de todos os homens e como a história de cada um, no percurso, do qual o próprio Concílio foi um capítulo particularmente significativo e particularmente importante: a história de um Deus que se comunica e se narra ao homem e que, usando os instrumentos de que o homem pode entender, chama a humanidade toda à salvação. Uma história em que nenhum de nós deve se sentir como o utilizador final de serviço que outros lhe confeccionaram, mas deve sentir-se como o protagonista da história do amor com o qual o próprio Deus, em Jesus Cristo, de modo admirável o chamou à existência e, de modo ainda mais admirável, o chamou à salvação.

Fonte: Boletim eletrônico IHU, 16/2/20210. Reproduzido via site do Diversidade Católica, aqui

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ministério veta vídeo gay na campanha de Carnaval

Já que o Ministério da Saúde vetou o vídeo da Campanha de uso de preservativos no Brasil divulgamos aqui:




Não há uma justificativa plausível a não ser o preconceito.




Fonte:

O Globo



Rodolfo Viana

As surpresas de 2012

Foto via Facebook

Vamos aprendendo a ver a história de uma maneira não linear nem inevitável. Há sempre surpresas pela frente e, parafraseando num outro sentido Borges, descobrimos “caminhos que se bifurcam”. Quem preveria, no começo de 2011, tudo o que foi acontecendo da Tunísia ao Ocupar Wall Street? Mas esses processos não aparecem de repente, eles vão sendo preparados nos subterrâneos da história. O mexicano Pablo Gonzalez Casanova vê as sementes desses movimentos lá atrás, 18 anos antes, no primeiro de janeiro de 1994, na primeira aparição pública do Zapatismo e de seu subcomandante Marcos, com outra maneira de fazer política. Poderíamos também pensar em tudo o que janeiro de 2001 desocultou, no primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre, com tantas práticas plurais que mostraram a falácia de um neoliberalismo estagnado e hoje claramente em crise. Alain Touraine disse que maio de 1968, ainda mais atrás, não tinha tido um dia seguinte, mas teria um amanhã. O ano que termina trouxe à luz do dia um processo que se foi constituindo aos poucos. E assim entramos em 2012 mais preparados para o inesperado que pode surgir à tona. Dizem que o calendário maia previu, para o final de 2012, uma mudança de era. Mas trata-se ali da visão de uma história circular e predeterminada como a dos gregos, movida pelos astros ou por divindades ocultas.

Entretanto, o futuro é mais incerto e frágil do que podemos esperar, num certo sentido mais livre, para bem e para mal. Estando em Madri, quando na Puerta del Sol surgiu o M-15, senti que virtualidades profundas emergiam. Estas e outras continuam ou surgem em 2012. No ano que passou se falava de primavera árabe e de inverno europeu. A primavera, grito de liberdade, pode ser capturada por grupos fundamentalistas, como há temores da Tunísia e no Egito. Mas também, à sombra meio incerta da Turquia, podemos pensar na coexistência de uma sociedade secular com uma forte presença religiosa. Tudo vai depender das propostas e articulações das forças presentes na sociedade. Nos Estados Unidos, há um espectro amplíssimo, que vai do libertário Ocupar ao troglodita Tea Party. E um meio de caminho imobilizado pela decepção da esperança em Obama.

No Brasil, há um dinamismo que se desenvolve em sentido diferente de outras crises. Com isso não parece haver lugar para sair às praças no protesto, como certa imprensa e uma oposição raivosas gostariam. Temos uma política que, de 2003 para cá, vem trazendo autoconfiança nacional e apoio social a mudanças reais. País emergente, ator relevante no plano internacional, tenta superar aos poucos suas desigualdades históricas, seu clientelismo enraizado e uma corrupção instalada desde muitas décadas.

Mas não podemos ficar olhando o 2012 que surge como meros espectadores. A dinâmica da cultura digital e de suas redes sociais permite construir, em ações propositivas, novas pistas e então evitar recaídas autoritárias. Tudo depende da mobilização social e de vários atores. Não se trata de um voluntarismo ingênuo, mas da somatória de articulações e de decisões vindas de muitos lados, dos movimentos culturais, ecológicos, de gênero, de inserção no mundo produtivo e principalmente, como em 1968, da rebeldia dos jovens. E aí está também o desafio para as religiões, chamadas a rever-se nos novos cenários. No caso da Igreja Católica, na cúpula, ela parece imobilizada na rigidez e fixada em receitas tradicionais. Mas na base do “povo de Deus”, alguma coisa fervilha, contaminada pelo dinamismo social e influenciando sobre este último.

Não façamos previsões deterministas ou apenas fruto de intenções, mas exerçamos nosso direito de propor e de criar. Temos diante de nós muitos cenários possíveis. Ao final deste ano poderemos ver crescer de um lado, a sombra de incertezas de um mundo que morre nos estertores da reação e do medo. Aliás, é curioso constatar como boa parte dos pensadores em moda é pessimista quanto ao futuro. Eles se fixam em pensamentos obscuros e negativos, com suas análises abstratas descoladas do real e do cotidiano.

Mas por outro lado, e aí vão nossas apostas e propostas, poderão surgir realidades e práticas surpreendentes, uma “inesperada primavera”, como disse João XXIII nos anos sessenta, no sentido contrário dos “mestres do pessimismo”. Deveríamos saber descobrir como utopias já vão brotando no meio de nós, colaborando com elas e inaugurando insuspeitados caminhos de libertação.

- Luiz Alberto Gómez de Souza
Sociólogo, diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes.
Reproduzido via Amai-vos

Homossexualidade: por uma antropologia inclusiva

Imagem daqui

"Com o tema da identidade, dois destaques do pensamento moderno, a saber, a subjetividade e a historicidade ingressaram na questão antropológica. As homossexualidades, no modo como são experimentadas e pensadas hoje, se colocam no coração desta virada, enquanto percursos existenciais pessoais de descoberta da própria identidade, da qual constituem parte integrante e imprescindível", escreve Christian Albini, é graduado em Ciências Políticas pela Università degli studi di Milano. Participa ativamente da paróquia de San Giacomo em Crema e faz parte do Conselho Pastoral da Diocese de Crema. É casado, pai de dois filhos. È professor de Ciências Religiosas na escola superior. Fez parte da redação da revista jesuíta Aggiornamenti Sociali de Milão. Entre outros livros de Christian Albini, citamos, Quale cristianesimo in una società globalizzata? Milão: Edizione Paoline.

O artigo foi publicado na revista Mosaico di Pace, de maio de 2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo.


A posição do magistério católico sobre a homossexualidade deriva de uma antropologia teológica apresentada pela Carta Homossexualitatis problema da Congregação para a Doutrina da Fé (1º de outubro de 1986). Já que Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, como homem e mulher, as criaturas são chamadas a respeitar, na complementaridade dos sexos, a unidade interior do Criador. Marido e mulher cooperam com ele na transmissão da vida mediante a doação conjugal recíproca (n. 6).

Com base na Palavra de Deus, a teologia cristã atribui ao matrimônio entre homem e mulher e à geração dos filhos um significado altíssimo: mediante o dom do Espírito, o ágape divino penetra na história do Eros humano suscitando o mesmo dinamismo amoroso pelo qual vive a Trindade. O Espírito plasma a relação conjugal tornando possível o dom do eu, o acolhimento do tu e a comunhão do nós. A aproximação magisterial à teologia bíblica ressente-se, todavia, de uma corrente do pensamento grego baseada na finalidade das funções biológicas que as “fixa” num sistema sociocultural, deduzindo uma norma comum e perene. É uma espécie de “bioteologia” que investe, direta e pesadamente, de significado religioso a realidade biológica do sexo aberto à procriação. Nesta perspectiva, existe uma ordem universal e imutável da criação racionalmente reconhecível, inscrita por Deus na natureza, a qual determina a concepção da pessoa humana. Trata-se de uma concepção estática por natureza.

Que acolhimento?

O horizonte interpretativo bioteológico produz uma antropologia exclusiva ante a homossexualidade. O valor do matrimônio é afirmado criando uma espécie de dicotomia heterossexual/homossexual que pode ser reconduzida aos pares positivo/negativo, bem/mal. Não há uma boa relação afetivo-sexual abençoada por Deus fora do casal heterossexual desposado. As homossexualidades são, por isso, patológicas, são desvios com pesadas conseqüências em termos de desvalorização da pessoa e de violência psicológica. A pessoa homossexual deveria aceitar-se a si mesma como carente de algo.

Pode-se pensar numa antropologia cristã inclusiva que, sem tirar nada ao bem do matrimônio, também reconheça um bem nas relações homossexuais?

A resposta depende do confronto com a antropologia moderna, baseada na busca e definição da própria identidade, ou seja, no processo subjetivo de reconhecimento e realização de si. Com o tema da identidade, dois destaques do pensamento moderno, a saber, a subjetividade e a historicidade ingressaram na questão antropológica.

As homossexualidades, no modo como são experimentadas e pensadas hoje, se colocam no coração desta virada, enquanto percursos existenciais pessoais de descoberta da própria identidade, da qual constituem parte integrante e imprescindível.
Pode-se chegar a uma antropologia inclusiva através de um conceito de natureza humana menos estático, não redutível a uma essência bioteológica, mas da qual também faça parte a descoberta da própria identidade. Uma reflexão do gênero pode permitir, com as palavras de Bonhoeffer na "Ética", “recuperar o conceito de natural à luz do Evangelho”.

No debate teológico, uma revisão do conceito de natureza é requerida por mais vozes nos termos de uma mediação cultural: o modelo “naturalista”, que deduz a ética de uma ordem intrínseca ao organismo humano, é reconhecido como insuficiente ante a hodierna condição humana. É necessário superar o esquema ingênuo que opõe natureza e cultura. A cultura é a via obrigatória de acesso à natureza. A pura razão não basta para se chegar a um sistema de todo objetivo, absoluto, universal e imutável.

É necessária uma reflexão antropológica que integre a dimensão subjetiva como constitutiva e não como acessória e, de outro lado, tome em justa consideração o papel da experiência e do tecido relacional no qual a mesma se realiza. A subjetividade é um horizonte do saber além do qual não se pode ir. Não se pode dizer “o que são” o homem e a realidade, a não ser passando através da mediação originária da prática. Somente partindo de uma exploração fenomenológica, isto é, de uma acurada descrição dos múltiplos modos pelos quais se apresentam a vida, as inclinações sensíveis e sua relação com a vontade, se pode colocar a questão fundamental de “o que é”, aquela que os filósofos chamam de ontologia.

Nesta ótica, Jesus não é aquele que prescreveu um uso do corpo segundo critérios de funcionalismo biológico, mas aquele que no dom do Espírito vivifica as nossas relações inserindo-as na comunhão trinitária: o homem e a mulher conformados a Cristo (nexo entre antropologia e cristologia). “O homem “à imagem” de Deus – escreve Franco Giulio Brambilla – não indica tanto uma “natureza” criada (alma, espiritualidade), ou alguma “característica” presente no homem (as faculdades da alma), como o disse com frequência a tradição, mas, acima de tudo, a identidade sintética do homem enquanto ela se recebe dentro das relações que a constituem e se autodetermina através de seu livre agir. O homem como liberdade criada é relação, no duplo sentido que ele é constituído na relação ao outro e se autodetermina querendo aquele sentido que lhe vem ao encontro como digno de ser escolhido e pelo qual esforçar-se” O Espírito habita no coração da liberdade como relação, para que se torne história da comunhão.

Para Brambilla, a reflexão teológica sobre a identidade é parte de uma antropologia fundamental referida a uma fenomenologia da experiência humana, entendida como um saber da consciência através das formas práticas do agir (em sua validade ética e religiosa). A liberdade se dá num drama, ou seja, numa ação na qual também vai sempre algo da própria identidade. Esta distensão “dramática” da liberdade pertence à sua constituição originária, porque ela só pode chegar à própria realização na distensão do tempo. Brambilla se fundamenta na pesquisa de Paul Ricoeur, para quem a identidade do eu é instituída na circularidade entre a ação e a consciência (volitiva e cognoscitiva) do sujeito. O nexo entre estes dois pólos reside na noção de identidade narrativa: a narração constitui o momento de síntese das experiências vividas e das atribuições de sentido com as quais as interpretamos. Descubro minha identidade na narração de mim mesmo e de minha história.

O ponto emergente é mostrar que as homossexualidades entram nesta história da liberdade habitada pelo Espírito como possíveis variantes e não como desvios, porém como modos de exprimir a comunhão trinitária. Trata-se de narrar o vivido homossexual não enquanto uso “de-gênere” do corpo, como um ato separável da pessoa, como elemento estranho e acidental, mas enquanto entrelaçamento de corporeidade, de significados simbólicos, de dinamismos afetivos e espirituais. “Em toda reflexão teológica sobre a identidade humana é necessário manter conectados o biológico, o simbólico e o social como interpretativos do historicamente colocado. Mas, esta primeira tese não pode ser desligada da segunda tese, inevitável para uma reflexão que queira ser teológica: a relação com Deus confirma nossa identidade e vice-versa” (Stella Morra). As homossexualidades podem ser vistas, assim, como manifestações da interioridade autêntica que, numa experiência cristã, se dispõe a ser habitada pelo Espírito.

Fonte: IHU - 29/5/2009; via site do Diversidade Católica, aqui

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Os novos malditos e as novas segregações: da lepra ao crack

Imagem daqui

Uma gravura que reproduz um ser humano, na IDADE MÉDIA, com o rosto marcado por feridas, que representariam seu contágio pelo Bacilo de Hansen, e que as tornava portadores de um estigma: eram os "leprosos". Esta vestido com uma túnica vermelha que cobre todo o seu corpo, assim com um chapéu que o caracteriza como portador de um mal. Nessa gravura reproduzida em uma parede está um sino que era obrigatório portarem os ditos leprosos para que todos fossem avisados, nas cidades, de sua chegada. Em seguida, geralmente eram expulsos e segregados para além dos limites da cidade. Na foto aparece um desses sinos que esperamos nunca mais tenhamos de ouvir em nossas mentes, ou seja que possamos vencer e inverter o temor de sermos tocados por outros seres humanos, principalmente os que denominarmos de "malditos".

LEPRA, a palavra foi banida. O preconceito ainda nos habita e se reorganiza. O contágio torna o Brasil o segundo do Mundo globalizado e hipercapitalista, em suas múltiplas convulsões sócio-econômicas. Somos quem sabe também os campeões nos neo-preconceitos?

Houve um tempo em que estar "leproso" nos levava para fora dos muros das cidades. Estivemos recentemente relembrando estas formas instituídas de segregação sanitária e biopolítica.

No dia 29 de janeiro foi comemorado o Dia internacional de Combate à Hanseníase. Nome em homenagem ao descobridor do bacilo: Hansen. Eis o novo termo que devemos utilizar. Embora ao pesquisar em língua espanhola o termo Lepra e Leprosos ainda persista. Minimamente nas notícias e na mídia. Bem como ainda habita e prolifera no âmago de muitos inconscientes.

Ao ser afetado pelas inúmeras matérias que difundi pelo Twitter e pelo Facebook, principalmente por uma, me lembrei de como eram tratados estes sujeitos hansenianos lá em MG. Na cidade próxima a minha, Três Corações, fora de sua periferia, existiu um "leprosário". Um asilo. Era de lá que chegavam as minhas primeiras memórias sobre a hanseníase.

De lá vinham as cartas, de lá vinham essas missivas que deveriam ser queimadas após sua leitura. Eram contagiosas. Elas traziam os relatos breves de pessoas lá internadas, com letra de forma batida a máquina, e que pediam (ou melhor, suplicavam) a ajuda financeira e outras caridades para os que lá "apodreciam". Esta é a imagem que nos ensinavam à época, quiçá uns 40, 50 ou mais anos atrás.

Estes velhos, amedrontadores, contagiantes e, segregadamente, miseráveis retornam hoje à minha mente. O que me trouxe essa memória? Trouxe-me o quanto, apesar dos muitos anos, ainda temos um modelo de medo e repulsa associado às doenças consideradas "malditas". O temor que se projete em um corpo anômalo, anormal, marginalizado e doentio. Uma vida nua.

Uma vida nua que foi aplicada, por exemplo, à existência de um homem no Mato Grosso. O idoso José Garcia da Cruz, de 106 anos, viveu essa realidade. “Temos registros da chegada dele no São Julião em 1941, poucos dias depois da inauguração do local. Ele foi o 6º paciente a ser internado e vive aqui há pouco mais de 70 anos”, confirma o diretor do Hospital São Julião. Setenta anos de reclusão e isolamento para o “bem” da sociedade. Seria ele um Lázaro que resiste à Vida?

Ele me lembrou, também, das cartas contagiantes de MG: “Quando eu ia ao mercado era um problema, principalmente na hora de pagar, porque as pessoas não queriam pegar o dinheiro porque tinham medo de encostar em mim. Elas tinham medo de pegar a doença”, contou ele. A reportagem finaliza com um alívio para as boas consciências: “Em 2007, Cruz passou a receber uma pensão especial vitalícia do governo federal. Ele foi o primeiro brasileiro a receber o benefício”.

Por isso temos de nos indagar com mais seriedade ética e responsabilidade bioética das novas práticas de internamento e reclusão. Voltamos aos séculos anteriores, ou pior regredimos à época da Nau dos Insesatos? Que tempo e era é essa que estamos imersos até o pescoço?

Estamos no tempo dos que biopoliticamente se tornaram motivo de "internações compulsórias e involuntárias". O leprosários estão sendo protagonizados hoje, institucionalmente, pelos asilos, pelas comunidades de tratamento ou pelos hospitais que deverão internar e re-internar a nova epidemia: o Crack.

Tomando como plataforma política o Estado e a cidade de São Paulo resolveram tratar uma de suas muitas ‘’chagas’’ sociais: a Cracolândia. Esqueceram, porém, que, como no Pinheirinho, apesar da miséria ou da pobreza, estavam lá e ali aglutinados muitos corpos humanos contagiantes. Para além de suas desfiliações sociais eram e são apenas seres humanos...

Estes corpos e vidas nuas não transmitem hoje apenas doenças infectocontagiosas. Eles transmitem ao nosso povo, dito maioria, e seus governantes um sentimento profundo de repulsa misturado com medo. E nessa hora o melhor é expulsá-los do coração da cidade...

São os excluídos a serem incluídos pelo seu abrigamento, isolamento e ‘’tratamento humanizado’’. Mesmo que precisemos usar nossas forças policiais e a velha repressão dos tempos da Ditadura...

Quantas vezes pensamos que estas ações repressivas são a melhor forma de lidar e resolver estas chagas que nós próprios alimentamos? A aprovação de uma internação compulsória tornou-se estatisticamente um desejo, com toda certeza, de uma maioria, diz o DataFolha de mais de 54%. Mas anunciaram como uma maioria que: “No Brasil, 90% aprovam internação involuntária de viciados...”.

Isso mesmo: viciados. Era assim também que lá nos anos 60 estereotipavam quem usasse cabelos compridos, falasse em paz, rock ou fumasse maconha, caminhando e cantando dentro de alguma calça jeans. Devem ser agora estes o motivo de algum saudosismo ou desejo de torná-los os ‘’bichos de sete cabeças’’, como o foi o jovem Carrano. E a Rita Lee tem de se despedir deles rumo a uma nova ‘’acareação’’ com as novas formas de reprimir.

Nem mesmo atualizam o termo para dependências químicas ou a drogadição. São os perniciosos fumantes de crack ou de outras rocks (sem roll) que classificamos higienisticamente, são os neo-portadores de um velho estigma: são os novos malditos, os novos leprosos...

Vamos então aplaudir as iniciativas governamentais de erradicação das drogas. Mas, por favor, não tomemos a máxima popular de "cortar o mal pela raiz". Assim pensavam os velhos fascistas e alguns nacional socialistas. A erradicação dessa nova "epidemia" não é a eliminação dos corpos contagiados por ela. Muito menos a criação de novos mini-cômios.

Levamos alguns séculos para compreender o quanto estigmatizamos os que foram chamados de leprosos. Quantos séculos serão necessários para entender que os "viciados" são uma questão da saúde, das políticas públicas, dos direitos humanos e, principalmente, hoje, das indústrias farmacêuticas e das biotecnologias. Podemos dizer que a verdadeira maioria dos dependentes é sim uma questão da Bioética.

Ao buscarmos “curas" radicais, negando a autonomia e os direitos fundamentais do sujeito, nos mostra a História que criamos quase sempre os Estados de Exceção, os Campos de concentração ou extermínio, os Manicômios, os Leprosários, os Asilos e todas as outras formas institucionalizadas de disciplina ou controle dos corpos humanos.

Os discursos competentes que elaboramos datam de muito tempo atrás. Algumas pessoas colocam ainda estes "viciados" como perturbação da tranquilidade comercial e econômica das cidades. Estes ‘’desocupados’’ devem desocupar os territórios produtivos hipercapitalizados. E, se possível devem ir para campo dos refugiados, afinal eles são uma "mancha" improdutiva para a Sociedade do consumo na Idade Mídia.

Vamos, então, como na época dos tratamentos "morais" e "asilares", tão bem dissecados e estudados em sua genealogia por Foucault, providenciar novos ‘’panópticos’’ que possam abrigar essa gente, ou essa ralé (segundo a visão do programa Mulheres Ricas). E, talvez, isolando-os também nos livramos de suas incomodas presenças em nossas cidades, ou será que apenas em nossos “ castelos”?

EM TEMPO, lhes anuncio que o meu corpo, aparentemente não contagiante, foi submetido recentemente a uma biópsia, em meu braço esquerdo, no trajeto do nervo cubital, para um possível diagnóstico diferencial com a hanseníase (uma lembrança/estigma da Saúde Mental).

Se me for dado o positivo serei eu também mais um proscrito? Em qual asilo encontrarei, longe de todos vocês, a proteção para o meu maior risco: ser tão mortal, tão carnal, tão vivo, tão frágil, tão desassossegado e tão humanamente contagiante como todos nós?

E nossos prédios ou nossos Titanics modernos também caem ou afundam... Os muros invisíveis é que se reconstroem e reinstitucionalizam, incessantemente.

- Jorge Márcio Pereira de Andrade
Médico Psiquiatra; formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, exercendo atividades no campo da Saúde Mental, em Psicanálise e Psicoterapia, tendo como parte de sua formação a Análise Institucional. Site, blog, contato

Publicado originalmente aqui (aproveite para ver referências bibliográficas e indicações de leitura)

Vamos a outros lugares

Foto daqui

Em seus escritos evangélicos, São Marcos nos apresenta a figura de Jesus como alguém constantemente em movimento e em ação. Denotativo disto é que bem no início de seus relatos está o Batismo de Jesus por João e, logo em seguida, o chamado aos primeiros discípulos e, daí para adiante, o trabalho do Mestre em Missão.

É interessante perceber em sua "movimentação" que Jesus atendia a todos, sem distinções. Um dos primeiros relatos de Marcos nos conta que estava o Mestre em casa de André e Simão Pedro, onde havia curado a sogra do último, vítima de uma febre. Imediatamente, a cidade se reúne à porta da casa e ali, Ele cura e atende a todos. Depois, já entrada a noite, retira-Se para outro local a fim de rezar. E, já ao amanhecer, convida os discípulos para seguir com Ele a outras cidades e lugares, ampliando sua ação.

Não temos relatos de descanso do Mestre. Sempre o encontraremos em ação, em Missão. Suas noites são dedicadas à oração, encontrando-Se com o Pai e alimentando-Se espiritualmente. Como imitá-Lo? Como viver como Ele viveu em nossos dias? É possível isso?

Talvez hoje o que mais nos faça falta é termos reservado em nosso dia um momento de oração, de encontro a sós com o Senhor. Corremos daqui para ali, trabalhamos intensamente e, muitas vezes, dedicamo-nos incansavelmente a ações nobres e de cuidado com os outros. Mas, esquecemo-nos de rezar, de colocar diante do Pai tudo aquilo que recolhemos ao longo do dia, de entregar a Ele nossos caminhos e sentimentos. Este encontro tem que ser a fonte de toda a nossa ação, pois sem a presença de Deus, ela será sempre vã. E, com certeza, se temos 24 horas do dia para nos dedicar a tanta coisa, conseguiremos ter 5, 10 minutos para encontro com Deus. Muito já se falou sobre isso e ainda assim, continuamos a não ter tempo para o essencial...

Por outro lado, aquele que tem uma vida de oração e discernimento, consegue ao longo do dia estar atento à necessidade alheia. É como se mantivesse um canal aberto entre si mesmo e o Senhor, estando, assim, com o olhar desperto para ver além das aparências e atuar para além daquelas. Isso nos permite a seguir com o Mestre para outras cidades e outros lugares, tal qual o convite que Ele fez aos seus primeiros seguidores, ainda que não saiamos de nossas casas e não deixemos de lado nossas vidas. O olhar moldado pela oração vê além e levam nossos passos para adiante.

Possamos, então, imitar Jesus em seu equilíbrio de serviço e oração, pois assim estaremos sendo efetivamente testemunhas Dele e faremos diferença em nossos cotidianos.

Texto para reflexão: Mc 1, 29-39

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Milagres


Quero fazer os poemas das coisas materiais,
pois imagino que esses hão de ser
os poemas mais espirituais.
E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade.
E à raça humana eu digo:
-Não seja curiosa a respeito de Deus,
pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso a respeito de Deus.
Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho...
Ora, quem acha um milagre alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres...
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- existirão milagres mais estranhos?

Walt Whitmann

(Via Tiago Medeiros)

Vozes homofóbicas, calem-se!

Flores de origami: James Roper

O Evangelho de Marcos (1,21-28), proclamado na Igreja há poucos dias, narra uma cena impressionante. Jesus, ensinando na sinagoga com autoridade, encontra-se com um homem possuído por um espírito mau. Este gritou: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir?” E Jesus o intimou: “Cala-te e sai dele!”

Como bem observou o teólogo Pagola (aqui), Jesus anuncia com liberdade e sem medo um Deus bom. Ao escutar a sua mensagem, o homem com o espírito mau se sentiu ameaçado. O seu mundo religioso derruba-se. Que forças estranhas o impedem de continuar escutando Jesus? Que experiências más e perversas lhe bloqueiam o caminho até o Deus bom que lhe anunciam? Jesus ordena que se calem as vozes malignas que não o deixam se encontrar com Deus, nem consigo mesmo. Que ele recupere o silêncio que cura o mais profundo do ser humano, libertando-se da sua violência interior. Jesus pôs fim às trevas e ao medo de Deus. Daí em diante aquele homem podia escutar a Boa Nova.

Não são poucas as pessoas hoje que vivem com imagens falsas de Deus, que lhes fazem viver sem dignidade e sem verdade. Elas não sentem Deus como uma presença amiga que convida a viver criativamente, mas como uma sombra ameaçadora que controla a sua existência. Jesus sempre começa a curar libertando de um Deus opressor.

As vozes malignas, que bloqueiam o encontro com Deus e consigo mesmo, incluem a aversão a pessoas homossexuais. A homofobia desencadeia diversas formas de violência física, verbal e simbólica contra estas pessoas. Uma violência tanto externa quanto interna. Dentre os palavrões mais ofensivos que existem, estão os que se referem à condição homossexual e às relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Há pais que já disseram: “prefiro um filho morto num acidente a um filho gay”. São freqüentes os homicídios, sobretudo de travestis. Não são raros os suicídios de adolescentes que se descobrem gays, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por pressentirem a hostilidade terrível da própria família e da sociedade. Tamanha aversão, gerando inúmeras formas de discriminação, mesmo que não leve à morte, frequentemente traz tristeza profunda ou depressão.

O discurso religioso às vezes engrossa o coro de vozes homofóbicas, mesmo que ele explicitamente se oponha à violência. Na Igreja Católica, a doutrina contrária à homoafetividade foi abertamente contestada pelo clero de Chicago, em 2003, após um pronunciamento da alta hierarquia eclesiástica contrário às uniões homossexuais. Em nome da dignidade da pessoa humana e do respeito que lhe é devido, aqueles sacerdotes criticaram o tom de tamanha violência e abuso contra gays e lésbicas, que são filhos e filhas da Igreja. Ninguém mais do que eles têm sido massacrados por uma linguagem tão vil, que os demoniza. Termos como atos “intrinsecamente desordenados”, uniões “nocivas” e “graves depravações”, são um bombardeio que em muitos arrasa o respeito próprio e a auto-estima. Em lugar dessa linguagem asquerosa e tóxica, eles propõem uma abertura de diálogo que inclua a experiência vivida dos fiéis. Os sacerdotes reconhecem a bênção divina na vida de inúmeros homossexuais em seus relacionamentos. E defendem que suas vivências sejam ouvidas com respeito (aqui).

Não há como impedir que pessoas e instituições expressem convicções homofóbicas, mas se pode enfrentar estas convicções com a luz da ciência, que não considera mais a homossexualidade como doença; e com a luz da fé no Deus bom, anunciado por Jesus. Ele ensina que a lei foi feita para o homem, e não o homem para a lei, e nos oferece o Seu jugo leve e o Seu fardo suave. Assim as vozes homofóbicas podem se calar dentro das pessoas feridas e devastadas. As trevas da ignorância podem ser dissipadas; o medo, afastado, para que nelas se restaure a autoestima e a confiança.

- Equipe Diversidade Católica

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Família ou famílias?

Foto daqui

Hoje ninguém mais tem dúvida de que família é mesmo um conceito plural.

As fotografias antigas mostravam um casal sentado ao centro e rodeado de filhos, todos muito sérios. Hoje, não só as fotos adquiriram colorido. A família também. As imagens atuais estampam manifestações de afeto e sorrisos de felicidade.

A formatação da família não decorre exclusivamente dos sagrados laços do matrimônio. Pode surgir do vínculo de convívio e não ter conotação de ordem sexual entre seus integrantes. Tanto é assim que a Constituição Federal esgarçou o conceito de entidade familiar para albergar não só o casamento, mas também a união estável e a que se passou a ser chamada de família monoparental: um dos pais com a sua prole.

Desta verdadeira revolução provocada no sistema jurídico não se apercebeu o legislador ao, apressadamente, aprovar o Código Civil. Apesar de ter sido editado no ano de 2002, o projeto original datava do ano de 1958, antes mesmo da Lei do Divórcio, outro paradigma que rompeu o modelo da família indissolúvel, patriarcal e verticalizada.

Assim, a lei que rege as relações familiares do século 21 é da metade do século passado e isso no que não reproduziu o código anterior que era do ano de 1916. Muitos institutos simplesmente foram copiados. Basta lembrar a mantença da presunção da paternidade em plena era do DNA.

Porém, a todas estas mudanças é sensível a Justiça que não pode deixar sem resposta quem lhe bate às portas e nem consegue aplicar leis velhas a situações novas. Afinal, ausência de lei não significa ausência de direitos.

Foi atentando a esta realidade que, a muitas mãos, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM elaborou o Estatuto das Famílias, que se transformou no Projeto de Lei nº 2.285/2007, de relatoria do Deputado Sérgio Barradas.

Fazendo uso das modernas técnicas legiferantes de construir microssistemas para regrar situações que merecem tratamento integrado, o Estatuto das Famílias traz regras não só de direito material, mas também processual para imprimir às demandas a agilidade que é tão indispensável quando se trata de direitos que dizem de modo tão significativo com a vida das pessoas. Também o Estatuto veio albergar no âmbito de proteção todas as estruturas familiares presentes na sociedade. Com esta concepção claro que não poderia continuar condenada à invisibilidade as uniões de pessoas do mesmo sexo. Com o nome de união homoafetiva foram inseridas no conceito de entidade familiar sendo-lhes assegurados os mesmos direitos de todas as famílias, inclusive o direito à adoção.

Apesar de parecer uma novidade, estes avanços de há muito estão sendo reconhecidos pela jurisprudência de todas as instâncias e tribunais. De enorme repercussão duas recentes decisões do STJ. Há cerca de um mês assegurou benefício previdenciário ao parceiro sobrevivente. E, em decisão histórica, invocando o princípio da proteção integral, concedeu a um casal de
lésbicas a adoção de duas crianças.

A partir dessas decisões não há como manter-se o substitutivo apresentado e que simplesmente exclui do Estatuto das Famílias os direitos assegurados às famílias homoafetivas, bem como proíbe, expressamente, o direto à adoção. Também não há como continuarem tramitando dois projetos de lei com a mesma finalidade.

O surpreendente é que, ao invés de assegurar direitos, criminalizar a homofobia, acanha-se o legislador. Comprometido com um fundamentalismo religioso e conservador, afronta um punhado de princípios constitucionais.

Ainda bem que a Justiça arrancou a venda dos olhos e assume o seu papel mais significativo: fazer justiça!

- Maria Berenice Dias, advogada
Recebido via Facebook. Site da autora aqui

Por que devemos voltar para Jesus

Ilustração: Vinicius Kram (daqui), 
concurso #jesussorriamais

"Só seguindo o Messias, pode-se agir, sofrer e morrer de modo humano".

A opinião é do teólogo suíço-alemão Hans Küng, em artigo para o jornal "Corriere della Sera", 20-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Mediante o livro "Ser cristão" (Ed. Imago, 1976), inúmeras pessoas encontraram a coragem para serem cristãs. O autor sabe isso por causa das inúmeras resenhas, cartas e colóquios. Muitas pessoas, de fato, afastadas da prática e da pregação de alguma grande Igreja cristã, buscam caminhos para continuarem sendo cristãos confiáveis, buscam uma teologia que não seja abstrata para eles e alheia ao mundo, mas explique de modo concreto e próximo da vida em que consiste ser cristão.

"Ser cristão" não pretendia "seduzir" as pessoas com a retórica ou agredi-las com um tom de pregação. Nem queria simplesmente fazer proclamações, declamações ou declarações em sentido teológico. Pretendia motivar, explicando que, por que e como uma pessoa crítica também pode ser responsavelmente cristã perante a sua razão e o seu ambiente social.

Não se tratava de uma simples adaptação ao espírito do tempo. Certamente, sobre questão discutíveis como os milagres, o nascimento virginal e o túmulo vazio, a ascensão ao céu e a descida aos infernos, sobre a práxis eclesial e o papado também era preciso assumir posições críticas. Isso, porém, não para seguir uma fácil tendência inclinada à hostilidade contra a Igreja ou ao pancriticismo, mas sim para purificar, a partir do próprio Novo Testamento como critério, a causa do ser cristão de todas as ideologias religiosas e para apresentá-la de maneira credível.

A originalidade do livro não está, portanto, nas passagens críticas; está em outro lugar, no fato de ter fixado critérios que, para muitos, representam desafios em teologia. Em "Ser cristão", de fato, eu tentei: apresentar toda a mensagem cristã no horizonte das ideologias e religiões contemporâneas; dizer a verdade sem resguardos de natureza político-eclesiástica e sem me preocupar com inclinações teológicas e tendências da moda; não partir, por isso, de problemáticas teológicas do passado, mas sim das questões do ser humano de hoje e, a partir daí, apontar para o centro da fé cristã; falar na língua do ser humano de hoje, sem arcaísmos bíblicos, mas também sem recorrer ao jargão teológico da moda; destacar o que é comum às confissões cristãs, como o renovado apelo ao entendimento no plano prático-organizativo; dar expressão à unidade da teologia de modo que não possa mais ser negligenciado o nexo inabalável entre teoria confiável e práxis vivível, entre religiosidade pessoal e reforma das instituições.

A esse livro não faltaram reconhecimentos públicos. Além disso, também foi uma oportunidade para as Igrejas e, nesse nível, ele encontrou um amplo consenso igualmente. No entanto, não pode ser silenciado o fato de que os membros da hierarquia alemã e romana fizeram de tudo para esvaziar essa oportunidade. Não se envergonharam – diante do sucesso do livro até mesmo entre o clero – de pôr publicamente em dúvida ou, melhor, de difamar a ortodoxia do autor. De nada serviu ao autor o fato de ter declarado amplamente, mais uma vez, a sua fé em Cristo no livro "Deus existe?" (1978), que apareceu quatro anos depois de "Ser cristão". A hierarquia romana e alemã tomaram a cristologia aqui exposta como pretexto para retirar do autor a “missio canonica” para o ensino da teologia, pouco antes do Natal de 1979, embora jamais tenha sido realizado um processo magisterial contra "Ser cristão" e "Deus existe?". Dessa forma, buscou-se desviar a discussão da embaraçosa questão da infalibilidade à questão cristológica, não por último para envolver os cristãos evangélicos. Além disso, para os expoentes da hierarquia contrários às reformas eram indigestas as exigências de reforma na Igreja que eram propostas nesse livro.

Assim, a hierarquia alemã apoiou o percurso de restauração do papa polonês que estava então se impondo e teve que pagar um alto preço por isso: a perda de credibilidade e uma difundida hostilidade contra a Igreja na opinião pública.

Com toda a modéstia: algumas coisas na pregação e na pastoral cristã seguramente teriam sido diferentes e não tivesse sido recusada a oferta de "Ser cristão". Mas, como sempre acontece: para mim, "Ser cristão" tornou-se ponto de partida para um novo desenvolvimento teológico e para uma espiritualidade à qual, apesar de todas as dificuldades do presente, o futuro devia pertencer.

Como inúmeros outros católicos antes do Concílio Vaticano II, eu também cresci com a imagem tradicional de Cristo da profissão da fé, dos concílios helênicos e dos mosaicos bizantinos: Jesus Cristo, "Filho de Deus", sentado em um trono, um "Salvador" amigo dos seres humanos e, ainda antes, para a juventude, o "Cristo Rei". Sobre isso, eu depois acompanhei, em Roma, um curso de um semestre inteiro sobre "cristologia". Certamente, eu passei sem problemas por todos os exames em latim, não exatamente simples – mas a minha espiritualidade? Isso era outra coisa totalmente diferente, permanecia insatisfeita. A figura de Cristo só se tornou decisivamente interessante para mim quando eu pude conhecê-la, com base na moderna ciência bíblica, como real figura da história.

A essência do cristianismo, de fato, não é nada de abstratamente dogmático, não é uma doutrina geral, mas sim, desde sempre, é uma figura histórica viva: Jesus de Nazaré. Ao longo dos anos, elaborei o perfil singular do Nazareno com base na riquíssima pesquisa bíblica dos últimos dois séculos, refleti sobre tudo com apaixonada participação.

De "Ser cristão" em diante, sei do que estou falando quando, de modo totalmente elementar, eu digo: o “modelo de vida cristã” é simplesmente esse Jesus de Nazaré enquanto messias, christós, ungido e enviado. Jesus Cristo é o fundamento da autêntica espiritualidade cristã. Um exigente modelo de vida para a nossa relação com o próximo, assim como com o próprio Deus, que, para milhões de seres humanos em todo o mundo, tornou-se critério de orientação e de vida.

Quem é, portanto, um cristão? Não é aquele que diz apenas "Senhor, Senhor" e apoia um "fundamentalismo" – seja ele de tipo bíblico-protestante, ou autoritário-romano-católico ou tradicionalista oriental-ortodoxo. Ao contrário, cristão é aquele que, em todo o caminho pessoal de vida, se esforça para se orientar praticamente para esse Cristo Jesus. Não se exige nada mais.

A minha vida pessoal e, assim, qualquer outra vida, com seus altos e baixos, e também a minha lealdade à Igreja e a minha crítica à Igreja só podem ser compreendidas a partir dessa referência. A minha crítica à Igreja, assim como a de muitos cristãos, brota justamente do sofrimento pela discrepância entre o que esse Jesus histórico foi, pregou, viveu, lutou, sofreu, e o que hoje a Igreja institucional, com a sua hierarquia, representa. Essa discrepância tornou-se muitas vezes insuportavelmente grande. Jesus, nas cerimônias pontifícias da basílica papal de São Pedro? Ou na oração com o presidente George W. Bush e o papa na Casa Branca? Inconcebível!

O mais urgente e mais libertador para a nossa espiritualidade cristã, consequentemente, é nos orientar pelo nosso ser cristão, tanto em nível teológico quanto prático, não tanto segundo as formulações dogmáticas tradicionais e os regulamentos eclesiásticos, mas sim de novo e cada vez mais segundo a singular figura que deu nome ao cristianismo.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...