sábado, 30 de abril de 2011

História de um pavão



Porque às vezes há que persistir. :-)

Bom fim de semana a todos! :-)

Contracorrente


Fui preparado para o clássico roteiro de filme gay: Um amor incandescente e proibido entre dois machos, os conflitos, um querendo tornar pública a relação e o outro satisfeito com o armário e, claro, um final trágico. Há coisa mais sofrida que filme de biba?

Confesso que os atores serviram como um chamariz a mais. Dentre as miríades de tipos que me despertam o interesse, há um lugar especial para os barbudos, adoro-os. É o caso dos dois no filme. Um ainda é pescador: aquela wibe rústica, torso bronzeado ao sol, corpo trabalhado nas labutas ao mar... aiai.

Contracorrente fica no limiar entre o óbvio, sem fugir muito do esquema previsto e o surpreendente, porque o faz a partir de elementos inusitados. Confesso que o acontecimento que dá o mote à obra me deixou bem irritado quando o entendi, mas depois ele surge como metáfora maravilhosa para os amores no armário.

É um alívio e uma situação muito confortável para milhares de homens e mulheres que curtem o mesmo sexo, manter um estilo de vida socialmente aprovado e domesticar o desejo, deixando-o escondido ou vivê-lo em escapadelas, em hiatos, em breves momentos nos quais se pensa poder suspender sua inserção social, seu papel, sua identidade conquistada diante dos outros e realizar então o interdito desejo às margens, na penumbra esquizofrênica entre o que arde em nós e quem nos permitimos ser.

Não gosto de moralismos, mas acho mesmo que, de uma forma ou de outra, é assumindo em alguma instância o que se é, discreta ou corajosamente, que vai se naturalizando questões como a da homossexualidade. Às vezes para a nossa realização e para que outros encontrem mais espaço e possam respirar mais livremente sendo quem são é preciso mesmo nadar contracorrente.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Silêncio

GIF animado: Jamie Beck e Kevin Burg
(clique na imagem para melhor visualização)

De noite o silêncio estica os lírios.

- Manoel de Barros

Os caminhos da consciência: um comentário sobre dois casos recentes na Igreja dos EUA

Foto: Nubia Abe

"A consciência, no entanto, não é uma máquina que dá as ordens a um robô. A consciência não precisa ser inflexível. Ela também pode ser exercida com humildade e flexibilidade."

Publicamos aqui, via IHU e com grifos nossos, o editorial da revista dos jesuítas dos EUA, "America", 02-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Desde o dia em que Martinho Lutero se recusou a renegar suas crenças, declarando: "Aqui estou. Não posso fazer outra coisa", a integridade inflexível do herói solitário da consciência tem sido um ícone do imaginário ocidental. Mas a consciência é um poder sutil e às vezes também liga as pessoas de princípio às próprias comunidades contra as quais elas protestam.

Sócrates seguiu o seu "daimon", mas também se submeteu ao veredicto de Atenas, a cidade que tinha dado à luz a sua busca pela virtude. O Concílio Vaticano II foi possível graças à pesquisa de homens como Yves Congar, OP, Henri de Lubac, SJ, e Courtney John Murray, SJ, que haviam sofrido o silenciamento por parte das autoridades da Igreja. O Concílio era sua reivindicação.

A consciência pode aderir a apenas um objetivo, ou pode sustentar uma tensão vivificante entre dois ou mais compromissos. Pode se posicionar desafiadoramente sozinha, ou pode mostrar o cuidado pela humanidade, mesmo por aqueles em posição de autoridade. Para Mohandas Gandhi, por exemplo, a verdade moral não fica em um lado de uma disputa, mas surge a partir do encontro entre os manifestantes e aqueles que se lhes opõem. São Tomás Morus nos ensina que as pessoas de consciência podem até definir estratégias e esquemas para satisfazer as exigências maleáveis da consciência.

Nas últimas semanas, a Igreja dos EUA testemunhou duas polêmicas em que a consciência ou a integridade profissional de um indivíduo entrou em conflito com as autoridades da Igreja.
Em agosto de 2008 o padre maryknoll Roy Bourgeois concelebrou uma cerimônia de ordenação promovida pelo Womenpriests [organização que defende e promove a ordenação sacerdotal feminina], dando legitimidade a um evento proibido pelo Vaticano. E, em fevereiro passado, sem permissão, ele participou de um painel de discussão sobre a ordenação de mulheres. No mês passado, o superior-geral da ordem Maryknoll instruiu-o a "retratar publicamente" o seu apoio à ordenação feminina ou senão seria expulso da ordem Maryknoll e do sacerdócio.

Em uma carta ao seu superior, o Pe. Bourgeois citou um comentário de 1968 do então Pe. Joseph Ratzinger sobre a declaração do Concílio Vaticano II sobre a consciência: mesmo contra a autoridade eclesiástica, a consciência deve ser obedecida antes de tudo. Forçar o padre Bourgeois a se retratar seria pedir que ele mentisse sobre suas crenças. Ele preferiu um caminho de autenticidade.

A consciência, no entanto, não é uma máquina que dá as ordens a um robô. A consciência não precisa ser inflexível. Ela também pode ser exercida com humildade e flexibilidade. Podemos pensar o que Gandhi ou São Francisco de Assis ou Dorothy Day poderiam ter aconselhado ao Pe. Bourgeois. Será que eles lhe pediram para continuar o seu trabalho contra a guerra e a tortura e deixar a ordenação de mulheres para o Espírito Santo? Silenciar um porta-voz não mata uma ideia. As autoridades da Igreja, se desejam um assentimento religioso do intelecto à proibição contra a ordenação de mulheres, devem fazer um trabalho muito melhor para convencer os fiéis de que a exclusão das mulheres das ordens permanece firmemente na fé da Igreja.

O segundo caso refere-se à acusação da Comissão de Doutrina da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA de que, ao elaborar uma doutrina contemporânea de Deus no livro "The Quest for the Living God", Elizabeth A. Johnson, CSJ, da Fordham University, apresentou "distorções , ambiguidades e erros". Segundo os bispos, a irmã Johnson emprega "critérios externos à fé para criticar de forma radical a concepção de Deus revelada nas Escrituras e ensinada pelo Magistério". Mas, nas palavras da Ir. Johnson, o livro apresenta "novas percepções a respeito de Deus que surgem de pessoas que vivem a sua fé em diferentes culturas ao redor do mundo".

A Catholic Theological Society of America defendeu a Ir. Johnson. A organização alega que os bispos ignoraram os procedimentos adotados em 1989, que exigem uma conversa com o autor como primeiro passo para uma investigação doutrinal. Em um mundo onde os bispos são necessários mais como professores do que como procuradores, teria sido muito mais sensato que aqueles que primeiro se opuseram ao livro convidassem a Ir. Johnson para um diálogo antes de remeter o livro à Comissão de Doutrina e que a comissão contatasse a autora antes de passar para uma crítica pública do seu livro.

Por sua parte, a Ir. Johnson procurou se encontrar com a comissão, emitiu apenas uma breve nota de imprensa e, além disso, manteve um discreto silêncio. Um testemunho intransigente não é a única opção para essa mulher de consciência.

A Igreja e a sociedade se beneficiariam com outros testemunhos de consciência, apreciando as muitas maneiras pelas quais elas podem testemunhar a verdade moral e intelectual. Por seu lado, a Igreja lucraria ao interiorizar a lição da Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Concílio de que "deve-se aderir à verdade com um firme assentimento pessoal", recordando que "Cristo, que é nosso Mestre e Senhor, manso e humilde de coração, atraiu e convidou com muita paciência os seus discípulos".

quinta-feira, 28 de abril de 2011

No sofrimento, Deus luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre


"A morte de Jesus foi uma grande dificuldade para os primeiros cristãos, porque era relativamente fácil falar de Deus Todo Poderoso, de Deus de amor, de Deus de sabedoria. Mas dizer que Deus se revelava e que a revelação última e definitiva estava na morte do Filho era algo inconcebível, inacreditável".

Esse é o mistério que os cristãos celebram da Sexta-Feira Santa até o Domingo da Ressurreição. E, para o teólogo suíço Daniel Marguerat, da Igreja Evangélica Reformada, na cruz, "Deus se manifesta sob uma forma última e definitiva nesse momento em que o Filho está mais frágil, ou seja, no momento em que está abandonado e vai submergir nas águas obscuras da morte". A partir dos textos de Paulo, é possível compreender que a cruz revela "um Deus que manifesta sua força de um modo totalmente oposto ao que se poderia imaginar", afirma.

Nesta entrevista-conversa, concedida pessoalmente pelo teólogo à equipe de Teologia Pública do IHU, Marguerat explica que a fé cristã, no entanto, não acaba no sofrimento e na dor da morte. "Deus, na existência em sofrimento, luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre para que este possa resistir e fazer desse sofrimento um espaço de vida e não de morte", resume.

Daniel Marguerat é professor emérito de Novo Testamento da Universidade de Lausanne, na Suíça. Após ter servido como pastor em algumas Igrejas Evangélicas Reformadas da Suíça nas décadas de 1970 e 1980, foi coordenador da Faculdade de Teologia da mesma universidade e presidente da Studiorum Novi Testamenti Societas e da Federação das Faculdades de Teologia de Genebra-Lausanne-Neuchâtel. De sua obra, foram publicados em português A Primeira História do Cristianismo: Os Atos dos Apóstolos (Paulus/Loyola, 2003), Novo Testamento: História, Escritura e Teologia (Loyola, 2009) e Para Ler as Narrativas Bíblicas: Iniciação à Análise Narrativa (Loyola, 2009), de coautoria de Yvan Bourquin.

Confira a entrevista.

Qual o significado da teologia da cruz, como o senhor a define, especialmente neste período da Páscoa? Como ela nos ajuda a refletir sobre o sentido da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo?

De início, é preciso dizer que a morte de Jesus foi uma grande dificuldade para os primeiros cristãos, porque era relativamente fácil falar de Deus Todo Poderoso, de Deus de amor, de Deus de sabedoria. Mas dizer que Deus se revelava e que a revelação última e definitiva estava na morte do Filho era algo inconcebível, inacreditável, que chocou muito os ouvintes da pregação cristã originariamente.

Aliás, a prova dessa dificuldade foi o fato de que os primeiros cristãos levaram muito tempo para ousar representar a cruz na pintura ou na escultura. Essa representação tornou-se tão banal hoje para nós que esquecemos o fato de que, na verdade, a cruz era não somente o símbolo de uma morte, mas, sobretudo, o símbolo de uma execução extremamente cruel, sendo que a mais antiga representação da cruz é o portal de madeira da Basílica de Santa Sabina, em Roma, datando do século V. Os cristãos levaram então quatro séculos e meio para ousar representar a morte de seu Senhor. Isso mostra a sua extrema dificuldade.

Por quê? Porque todos nós trazemos conosco a esperança, e esta esperança nos faz imaginar um Deus forte, um Deus que nos livra de nossas dificuldades, que nos salva de nossos sofrimentos, que nos protege das doenças, e é a este Deus poderoso que muitas vezes pedimos, em nossas preces, para ser o Pai protetor e a Mãe afetuosa ao mesmo tempo.

Ora, o Deus que se manifesta na cruz descortina-se na fragilidade da morte, na fragilidade do Filho que desejou viver sua fidelidade e suas convicções ao extremo. Na verdade, isso vem abalar nossa imagem de Deus Todo Poderoso. Ao mesmo tempo em que desejamos que Deus nos poupe das dificuldades extremas, também preferiríamos, como certos curiosos ao pé da cruz, tal como nos conta o Evangelho, que Deus retirasse magicamente seu Filho dali e O salvasse da morte.

No entanto, acontece o inverso: Deus se manifesta sob uma forma última e definitiva nesse momento em que o Filho está mais frágil, ou seja, no momento em que está abandonado e vai submergir nas águas obscuras da morte. A revelação de Deus nesse momento, diz Paulo, é a revelação de um Deus que manifesta sua força de um modo totalmente oposto ao que se poderia imaginar.

Isso pode ser percebido hoje pelo fato de que a força é geralmente empregada no mundo para oprimir os outros e afirmar a autoridade daquele que detém o poder. Mas sabemos que existe também outra potência, outra força – talvez convenha empregar aqui o termo força e não potência –, que é a da resistência, a força daquele que enfrenta a doença, sem ser destruído por esta. É a força daquele que se reergue após um fracasso na vida, que sobrevive a um divórcio, que sobrevive ao seu câncer, a um fracasso profissional. Esta força é interior e não menos admirável ou, ao contrário, conviria dizer, esta força é realmente admirável ante o poder esmagador, hediondo e desumano.

Então, deveríamos celebrar a Sexta-Feira Santa como uma surpresa intensa. É a intensa surpresa de um Deus que se distingue do uso da violência, um Deus que nunca poderá ser invocado como cúmplice da violência. Este Deus, ao contrário, coloca-se ao lado do frágil e do fraco para ajudá-lo a sobreviver à violência, para vencer as forças da morte. No fundo, pode-se dizer que Deus não é aquele que vem apoiar o forte que oprime o fraco, mas, sim, a partir da Sexta-Feira Santa, um Deus que luta com o frágil e o fraco para que a vida, a esperança e o amor possam triunfar àquilo que contraria sua humanidade. É o Deus que ajuda o ser humano a permanecer humano no momento em que sua vida desfigura sua humanidade.

Você comentou durante o curso que “a cruz se torna o princípio de leitura de uma realidade sociológica”, a partir de sua leitura de Paulo, na carta aos Coríntios. Como a cruz nos ajuda a ler a realidade e os desafios da sociedade de hoje?

O apóstolo Paulo, a partir da cruz, lê a realidade sociológica da Igreja que ele fundou em Corinto mostrando que aqueles que aceitam a imagem desse Deus que se expressa na cruz não são os que pensamos. A saber, são aqueles que a sociedade desqualifica, degrada e aos quais ela não atribui nenhum valor.

Então, a partir da cruz, eu diria que a imagem de Deus assume duas características: por um lado, como eu disse antes, a partir da Sexta-Feira Santa, não deveria ser tolerada nenhuma justificação teológica da violência. Quando se contempla a história do Cristianismo, é preciso admitir também que, em certos momentos, acontece o inverso e que a referência ao Evangelho foi utilizada para oprimir, esmagar ou matar. Devemos ter a coragem de reconhecer que essa justificação divina, evangélica, da violência foi um erro, e que hoje temos consciência disso. O Cristianismo deve fazer essa leitura crítica de si mesmo, que não o condena, mas sabe que sua história tem páginas negras.

Por outro lado, um segundo aspecto, a partir da cruz, é que Deus solidariza-se precisamente com aqueles que não têm valor na sociedade. Isso deveria justamente evitar que nos deslumbremos com as imagens de êxito, com os apelos ao desempenho, com a ideia de que a existência humana só se valoriza, só se realiza pelo dinheiro ganho de maneira rápida e fácil. Na verdade, é o modelo de êxito do homem que se critica aqui, porque a realização da vida humana não depende daquilo que a sociedade estabelece como critério de êxito econômico, mas depende, sim, do valor atribuído a cada existência, da importância da compaixão, da atenção dispensada a cada ser humano. Portanto, o Cristianismo deveria expressar mais enfaticamente o que, para ele, é critério de êxito e que muitas vezes é extremamente alheio ao que a sociedade veicula hoje como modelo de sucesso.

Em nossa realidade latino-americana, a fé na cruz de Jesus foi muito criticada, porque, ao celebrar a Semana Santa, diz-se que a sociedade latino-americana, especialmente a brasileira, valoriza muito a Sexta-Feira Santa e se esquece do Domingo de Páscoa. Por isso, diz-se que a espiritualidade é muito marcada pelo dolorismo. Porém, quem entra mais na religiosidade popular diz que a essa mística da cruz gera a capacidade de resistência perante o sofrimento, fortalecendo o povo para carregar sua própria cruz. A partir de sua leitura, como se dá essa relação entre cruz e esperança, cruz e vida?

Eu penso que isso está ligado ao fato de que, na cruz, Deus solidariza-se com todo o sofrimento humano, de modo algum porque o sofrimento leva ao nada, mas, justamente, porque esse sofrimento humano torna-se suportável, torna-se espaço de resistência, como você disse, e não um espaço em que o ser humano sacrifica e perde sua vida. Acredito que devemos desconfiar muito da ética sacrificial. O Novo Testamento nunca valoriza o sofrimento como tal. O Martírio não é tido como heróico. Ele é um drama.

Diz-se que Cristo, no entanto, não morreu à toa, porque foi fiel a Deus e Deus lhe é fiel, mas o sofrimento em si não é momento de redenção. Isso é uma perversão medieval. O sofrimento não é um momento de redenção. A cruz não expressa o valor redentor do sofrimento. Ela afirma, ao contrário, que Deus, na existência em sofrimento, luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre para que este possa resistir e fazer desse sofrimento um espaço de vida e não de morte.

Falamos aqui da teologia da cruz, da kenosis, do esvaziamento de Deus. O que a teologia da cruz tem hoje a dizer à Igreja, para fomentar um rosto mais humano, uma Igreja comprometida com o mundo atual?

Penso que a Igreja deveria questionar-se, a partir da cruz, sobre sua política de poder, de potência. A cruz não é compatível com a busca de poder. A Igreja, que se concebe sob o signo da cruz, deveria entender que precisa solidarizar-se com os frágeis e os desvalidos, que a fragilidade humana não deve ser a negação da humanidade, mas deve ser habitada pela compaixão de Deus. A Igreja pode dificilmente afirmar isso e ao mesmo tempo fugir dessa fragilidade.

Então, é a Igreja a serviço dos pobres, a serviço do mundo, que pode tornar crível seu discurso. Não pode haver contradição na mensagem da cruz, que é uma mensagem divina de desapossamento, emitida por uma instituição que, por sua vez, busca a posse, ou seja, o poder. A meu ver, tanto no Brasil como na Europa, as pessoas, o mundo, não podem suportar a contradição flagrante entre a busca de poder de uma instituição e a mensagem que essa instituição transmite: a mensagem da cruz. Devemos refletir muito sobre isso.

O senhor também aborda o Evangelho de Marcos e as cartas de Paulo como textos “gêmeos”, principalmente em relação à cruz. Em que sentido?

No Novo Testamento, dois autores afirmam a teologia enfocada na cruz: de um lado, o evangelista Marcos e, do outro, Paulo. Paulo expressa pela argumentação, através de um discurso argumentativo, o que Marcos, por sua vez, interpreta em uma narrativa, isto é, utilizando o modo narrativo. O que os reúne é o fato de que, tanto para um como para outro, a verdade de Cristo, e bem mais a verdade do Cristianismo, só se expressa na cruz.

Se tomarmos, por exemplo, o Evangelho de Marcos, veremos, nos primeiros capítulos, Jesus curador, um Jesus que se põe diante do desamparo humano, que cura ou expulsa demônios. Mas o evangelista Marcos mostra constantemente que, na verdade, não se pode compreender Jesus se somente sua capacidade de curar for considerada, porque isso faz dele um curador de sucesso, um homem dotado de poderes de cura que responde assim a todos os pedidos para se desvencilhar das dificuldades da vida que a multidão lhe dirige.

Marcos quer mostrar que Jesus é, de fato, curador, mas que esta libertação da humanidade custará o preço de sua própria vida. Então é a coerência entre o fazer e o viver, entre o dizer e o viver que Marcos mostra no fato de que, no Evangelho, cada vez que alguém ou algum discípulo, como Pedro, diz que Jesus é filho de Deus, Jesus lhe pede para se calar. Se Jesus ordena que se calem é porque se faz necessário esperar a morte de Jesus para que, ao pé da cruz – Marcos 15, 39 – um centurião diga: “Este era realmente o filho de Deus”. É o percurso de Jesus e a manutenção de sua fidelidade alcançando esse ponto de extrema fragilidade que validam, que legitimam sua palavra e seu agir. Portanto, é realmente uma validação do agir de Jesus por uma fidelidade divina. Trata-se novamente da coerência necessária entre o viver e o agir.

Paulo, por sua vez, de outra maneira, pela argumentação, afirma que tudo o que podemos dizer a respeito de Deus, do Deus do Evangelho, deve ser dito a partir da cruz, ou seja, a cruz torna-se o critério de verdade de qualquer afirmação sobre Deus. Na verdade, esta é a medida, o padrão, que serve para medir toda e qualquer afirmação cristã sobre Deus. É aí que Ele se dá a conhecer, e não como em nosso imaginário, que não cessa de produzir imagens de Deus poderoso. O seu poder é manifestado dessa forma.

Como retomar o sentido da cruz no anúncio do Evangelho em uma sociedade como a de hoje, que se diz pós-moderna e não admite o sofrimento?

Se o sofrimento for proposto como ideal de vida, somente os masoquistas vão aderir a tal programa e, neste caso, precisam ser tratados. Mas o Evangelho não é isso. O dolorismo é que faz do sofrimento um ideal de vida. Jamais o Evangelho.

Em contrapartida, apesar do que possa ser dito a respeito da descristianização, esta não faz desaparecer a necessidade de espiritualidade. E a necessidade de espiritualidade manifesta-se especialmente no momento em que o ser humano encontra-se desamparado. Em que momento ele está desamparado? Quando deve enfrentar um câncer, quando se defronta com um fracasso, quando é expulso de sua comunidade... É justamente nessas situações de dificuldade em que a sociedade não o ajuda – porque esta veicula modelos de desempenho de vida –, quando o ser humano não tem bom desempenho, nem é vitorioso, nem ganhador, não é nada... A sociedade nada tem a propor para que ele possa enfrentar a extrema dificuldade que está atravessando.

É nesse momento, então, que se manifesta a necessidade de espiritualidade. É preciso que os cristãos tenham nesse momento uma linguagem verdadeira, e esta linguagem verdadeira é a de um Cristianismo voltado não para uma cruz dolorista, mas para uma cruz – insisto – como promessa de vida ligada àquele que vive seu sofrimento com a convicção de que Deus o impulsiona para a vida. Portanto, existe uma necessidade de espiritualidade evidente que não é menor do que a de antes, com a diferença de que o público desconfia de fórmulas prontas, o que eu chamo de fórmulas do catecismo, fórmulas doutrinárias que não se orientam para a existência.

E para isso, de fato, é preciso voltar à Escritura, porque é assim que aprendemos a despojar nossa linguagem das fórmulas calcadas, dos slogans, para seguirmos o percurso de vida de pessoas que podem atestar a presença de Deus que as acompanha.

Por Moisés Sbardelotto
Tradução: Vanise Dresch
Reproduzido via IHU. Grifos nossos.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Jesus tinha razão


O que sentimos os seguidores de Jesus quando ousamos acreditar verdadeiramente que Deus ressuscitou Jesus? O que vivemos enquanto continuamos a andar atrás dos seus passos? Como nos comunicamos com ele quando o experimentamos cheio de vida?

Jesus ressuscitado, tinhas razão. É verdade aquilo que dissestes de Deus. Agora sabemos que é um Pai fiel, digno de confiança. Um Deus que nos ama além da morte. Continuaremos a lhe chamar de "Pai", com mais fé do que nunca, como Tu nos ensinastes. Sabemos que não irás nos decepcionar.

Jesus ressuscitado, tinhas razão. Agora nós sabemos que Deus é amigo da vida. Agora começamos a compreender melhor a tua paixão por uma vida mais sã, justa e feliz para todos. Agora compreendemos por que valorizavas a saúde dos doentes mais do que de qualquer norma ou tradição religiosa. Seguindo os teus passos, viveremos a curar a vida e a aliviar o sofrimento. Colocaremos sempre a religião ao serviço das pessoas.

Jesus ressuscitado, tinhas razão. Agora nós sabemos que Deus faz justiça às vítimas inocentes: Ele faz triunfar a vida sobre a morte, o bem sobre o mal, a verdade sobre a mentira, o amor sobre o ódio. Nós continuaremos a lutar contra o mal, a mentira e o ódio. Sempre procuraremos o reino desse Deus e a Sua justiça. Sabemos que é a primeira coisa que o Pai quer de nós.

Jesus ressuscitado, tinhas razão. Agora nós sabemos que Deus se identifica com os crucificados, nunca com os algozes. Começamos a compreender por que defendias tanto os pobres, os famintos e desprezados. Defenderemos os mais fracos e vulneráveis, os maltratados pela sociedade e os negligenciados pela religião. A partir de agora, iremos ouvir melhor a tua chamada para ser compassivos como o Pai do céu.

Jesus ressuscitado, tinhas razão. Agora começamos a entender um pouco as tuas palavras mais duras e estranhas. Começamos a perceber que aquele que perder a sua vida por Ti e teu Evangelho, irá salvá-la. Agora compreendemos por que nos convidas a Te seguir até o final a carregar a cada dia a cruz. Continuaremos a sofrer um pouco por Ti e pelo Teu Evangelho, mas em breve iremos compartilhar o abraço do Pai.

Jesus ressuscitado, tinhas razão. Agora estás vivo para sempre e Te fazes presente no meio de nós quando nos reunimos dois ou três em teu nome. Agora sabemos que não estamos sozinhos, que tu nos acompanhas enquanto caminhamos para o Pai. Escutaremos a tua voz quando lermos o teu Evangelho. Iremos nos alimentar de Ti ao comemorar a tua Ceia. Estarás conosco até o final dos tempos.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos. Grifos nossos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Páscoa: do rumor ao testemunho


Diz o conhecido teólogo francês Joseph Moingt que o cristianismo começou com um rumor. Jesus havia morrido na cruz e seus discípulos, escondidos, o choravam. As mulheres, enquanto isso, preparavam-se para, após o sábado, ir ao túmulo onde estava enterrado e ungir seu corpo com aromas. O silêncio pesava sobre Jerusalém, grávido de tristeza com a morte do profeta que amou os pobres e os pequenos e falou de Deus como nunca ninguém o tinha feito.

E de repente o rumor rompeu o silêncio e o mal-estar, falando não de morte mas de vida. "O túmulo está vazio e aquele que procurávamos não está ali." "A pedra estava rolada e nos foi dito que ele não estava ali, mas que nos esperava em Jerusalém." "Aquele que morreu está vivo." "Ele está vivo, nós vimos." "Jesus de Nazaré está vivo e nós o reconhecemos no partir do pão." "Eu chorava no jardim sem encontrá-lo e de repente ouvi meu nome e reconheci que era ele."

O rumor vai se produzindo na medida em que aqueles e aquelas que choravam uma dolorosa perda para a qual acreditavam não haver consolo ou remédio sentem-se cheios de uma alegria que não sabem explicar de onde vem. E experimentam que essa alegria tem sua raiz no fato de que aquele que morreu não foi retido pela morte em seu poder. Está vivo e aparece consolando, animando, dando seu Espírito e enviando em missão.

Rapidamente, o rumor cresce e ganha força e consistência. Já não são mulheres assustadas e tristes que afirmam havê-lo visto e ouvido em plenitude de vida. Apesar de haverem sido as primeiras a viver a impressionante experiência pascal, souberam transmiti-la aos companheiros que, embora descrentes em um primeiro momento, logo se sentiram contagiados por seu testemunho. E dentro em pouco serão vários os que antes tinham medo e se escondiam, e que agora se mostram e fazem ver, declarando havê-lo visto, ouvido e tocado com suas mãos.

O grupo disperso torna-se coeso e unido. O medo é banido dos corações e em seu lugar brota uma força que enfrenta os poderes políticos e religiosos com desassombro e intrepidez. Uma comunidade se forma em torno da pessoa daquele que os reuniu e que partiu. Agora ele os conforta na certeza de que a morte não teve a última palavra sobre sua vida santa e fecunda. O amor que ele espalhou pelo mundo foi mais forte e venceu a morte pelo poder de Deus.

Jesus ressuscitou. O profeta assassinado pelo poder das trevas vive para sempre à direita de seu Abba (papaizinho) que sempre o escutou e agora confirma seu caminho como vida que não morre e não termina. A testemunha fiel que sempre foi o profeta de Nazaré agora é confirmado como vivente e é o próprio Deus Pai e Senhor da vida que sobre ele dá testemunho, pronunciando a palavra interpretativa da ressurreição sobre sua pessoa e seu caminho.

A comunidade cresce na fé e na esperança que a presença do Ressuscitado suscita em seu meio. Unida, reparte seus bens; é fiel ao ensinamento dos apóstolos, testemunhas autorizadas do Ressuscitado; reza; reparte o pão pelas casas, comungando o corpo daquele que por ela se entregou até a morte e agora vive e a envia em missão anunciando pelo mundo a Boa Notícia da vida que não morre.

Se não fosse o testemunho fiel desta comunidade, o rumor que começou a circular pelas ruas de Jerusalém poderia ter sido abafado e sufocado pelos poderes que haviam matado a Jesus e a quem não interessava nada sabê-lo vivo. Poderia também ter se diluído em meio às agruras e dificuldades da vida cotidiana e breve tornar-se apenas uma vaga lembrança. Porém a experiência era forte demais para que isso acontecesse. E o rumor se tornou testemunho corajoso e destemido que enfrentou todas as vicissitudes e adversidades, perseguições e tribulações e ganhou mundo e se multiplicou em meio a todas as tentativas para silenciá-lo.

Na medida em que meditava e interpretava o testemunho de Jesus a comunidade ia compreendendo que por haver entregado sua vida até o fim ele vencera. Semeou-se como grão de trigo na terra fecunda, e dali emergiu florescido, frutificado e vivo para alimentar os que amava. Confiantes no Deus que não permitira que o Justo ficasse retido nas garras da morte, a comunidade dava testemunho incessantemente e por onde passava.

Assim, o que era um rumor se fortaleceu e consolidou. Transformou-se em uma Boa Notícia que dá sentido à condição humana. Todo homem e toda mulher que vem a este mundo pode experimentar que não é um “ser para a morte” como dizem algumas correntes de pensamento. Pode sentir que a vida não é absurda e sem sentido. Pois existe uma maneira concreta de ser humano que é o caminho para a comunhão com o verdadeiro Deus e para a vitória sobre a morte: a pessoa de Jesus de Nazaré que se fez caminho para que pudéssemos nele caminhar na alegria da convicção em que Deus é amor.

- Maria Clara Bingemer
Reproduzido via Amai-vos. Grifos nossos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Coerente consigo mesmo e com Deus


A autenticidade é a primeira qualidade da pessoa. Autêntico equivale a verdadeiro.

A reflexão é de Arturo Paoli, padre e missionário italiano da Congregação dos Pequenos Irmãos de Jesus, em entrevista a Silvia Pettiti, publicada no sítio da Fraternità di Romena, 11-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A jornalista publicou recentemente uma bela biografia de Arturo Paoli contando os seus 98 anos de vida gastos pelos outros, especialmente pelos pobres das favelas da América do Sul. O livro intitula-se "Ne valeva la pena" (Ed. Paoline).

Eis a entrevista, publicada originalmente no IHU e aqui reproduzida em parte, com grifos nossos.

O que significa ser autêntico?
A autenticidade é a primeira qualidade da pessoa. Autêntico equivale a verdadeiro. Desde a infância, a realidade nos inclina a adaptações: a mãe é uma mulher frágil e, portanto, quando quero obter alguma coisa dela, eu sei como fazer para que o "não" torne-se "sim". O pai é um homem que se enraivece e chega a me bater. Assim, aprendo a lhe esconder o que eu penso, digo e faço. Crescendo, dou-me conta de que essa é a lei do viver social. Aproximo-me da autenticidade quando um grande ideal dirige as minhas energias interiores e as concentra em um ponto. Não conheço uma definição da pessoa autêntica melhor do que a que foi dada por Paulo na carta aos Efésios (4, 15): fazer a verdade no amor.

Como se educa para a autenticidade?
Educa-se por meio da fidelidade. Eu acredito que a autenticidade é um valor religioso no sentido de que devemos ter a primeira coerência com Deus, que não se pode enganar. Isso não quer dizer não cometer pecados, porque devemos sempre reconhecer a nossa fragilidade e a nossa fraqueza, mas quando não há coerência entre o que somos e o que aparece de nós é a prova de que não amamos seriamente as pessoas que nos circundam. É o fracasso da vida, e, infelizmente, isso acontece frequentemente.

Mas existe a possibilidade de mudar?
Penso que a Igreja afasta as pessoas pela sua excessiva intransigência com relação a certos princípios que a pessoa não está em condições de seguir. Não significa deixar que as coisas continuem como estão, mas sim aceitar a fraqueza da pessoa humana, ao invés de recusá-la por meio da afirmação intransigente dos princípios cristãos. O nosso irmão Giorgio Gonella, no seu livro sobre o deserto, escreveu um belíssimo capítulo sobre a misericórdia de Deus: Deus não diz "está tudo bem", mas a sua atitude é manifestada perfeitamente no episódio de Jesus na casa do fariseu, quando entra a mulher pecadora. O fariseu se escandaliza e lhe diz: "Se tu conhecesses essa mulher...". Jesus, com efeito, a conhece, mas conhece também a sua dor, o seu sofrimento, o seu pranto que tem uma força de conversão e de transformação da sua vida que ela mesma não esperava. Certamente, há ambientes em que facilmente somos arrastados pelo negativo, mas sempre há a possibilidade do retorno que apaga o passado, uma possibilidade de mudança.

Ele está vivo!


Ninguém imaginava o que estava para acontecer no silêncio daquela manhã de domingo. A cidade dormia ainda inebriada pelo fim dos festejos da Páscoa e um pequeno grupo de mulheres se movimentava para ir ao túmulo de Jesus. O Nazareno havia sido morto na véspera da Páscoa e tão rápido fora seu sepultamento que mal dera tempo de preparar devidamente o corpo.

As mulheres, então, iriam ao túmulo para arrumar o corpo de Jesus conforme os preceitos judeus. Caminhavam ora em silêncio, ora falando entre si, tentando entender o que acontecera ou consolar umas às outras. Ao chegar, viram a porta aberta, o túmulo vazio, os lençóis dobrados. Não viram Jesus, nem o Seu corpo. E correram a contar a notícia: o Senhor não estava em seu túmulo!

Só depois da chegada de João e Pedro, só depois do encontro de Maria Madalena e Jesus no jardim, só depois de verem o próprio Jesus no Cenáculo foi que aqueles homens e mulheres começaram a entender o que estava acontecendo: o Senhor estava vivo! Ressuscitara dos mortos!

A narrativa evangélica sobre a morte de Jesus atesta que houve escuridão sobre a terra, tremores de terra, véu do Templo se rasgando e mortos ressuscitados. É, pois, uma narrativa que remete ao cinematográfico, talvez em uma alusão à dor dilacerante que o próprio Deus sentia naquele momento. A ressurreição, por sua vez, acontece no silêncio da manhã. Sem espetáculo, sem barulho, sem espectadores. Jesus aparece a uns e a outros, silenciosamente. Não há estardalhaço, sinos ou barulho de festa. A percepção da ressurreição é silenciosa, é no interior de cada coração, é matéria de fé. É o silêncio que transforma a história da humanidade: desde aquele domingo, a humanidade nunca mais foi a mesma – dali em diante, a última verdade passa a ser a esperança, a eternidade. A morte perdeu a última palavra.

O Senhor está vivo! Este é um fato; fato somente entendido por aqueles que têm fé e que são capazes de ver sinais de vida onde a morte insiste em existir. A ressurreição de Jesus ecoa até hoje, acontece a cada minuto onde a vida é resgatada, onde a vida abunda.

A ressurreição de Cristo acontece na esfera da certeza daqueles que tem a fé no Senhor vivo do domingo e não no Senhor morto da sexta. O Deus do cristão é um Deus vivo e da vida e não um Deus de morte ou castigo. Jesus não precisava morrer para nos salvar. Apenas aconteceu assim. Mas ele precisava, sim, ressuscitar para nos fazer crer que maior que tudo o que possa existir, até que a morte – temor humano maior – é o amor de Deus por cada criatura humana e que esse Deus de amor só pode ser fonte de bondade e vida.

Texto para reflexão: Jo 20, 1-9


- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos. Grifos nossos.

domingo, 24 de abril de 2011

Escândalo e loucura


Os primeiros cristãos sabiam-no. A sua fé num Deus crucificado só podia ser considerada como um escândalo e uma loucura. Quem tinha pensado em dizer algo de tão absurdo e horrendo de Deus? Nunca religião alguma se atreveu a confessar algo semelhante.

Certamente, o primeiro que todos descobrimos no crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelas autoridades religiosas e pelo poder político, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Mas aí precisamente, nessa vítima inocente, os seguidores de Jesus veem Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos.

Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo sucesso político e toda aura religiosa, Deus revela-se, no mais puro e insondável do Seu mistério, como amor e só amor. Não existe nem existirá nunca um Deus frio, apático e indiferente. Só um Deus que padece conosco, sofre os nossos sofrimentos e morre a nossa morte.

Este Deus crucificado não é um Deus poderoso e controlador, que trata de submeter os Seus filhos e filhas procurando sempre a Sua glória e honra. É um Deus humilde e paciente, que respeita até ao final a liberdade do ser humano, mesmo que nós abusemos uma e outra vez do Seu amor. Prefere ser vítima das Suas criaturas do que o seu algoz.

Este Deus crucificado não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo que ainda continua a perturbar a consciência de não poucos crentes. Desde a cruz, Deus não responde ao mal com o mal. "Em Cristo está Deus, não tomando em conta as transgressões dos homens, mas reconciliando o mundo consigo" (2 Coríntios 5,19). Enquanto nós falamos de méritos, culpas ou direitos adquiridos, Deus acolhe-nos todos com o Seu amor insondável e o Seu perdão.

Este Deus crucificado revela-se hoje em todas as vítimas inocentes. Está na cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes: as crianças famintas e as mulheres maltratadas, os torturados pelos algozes do poder, os explorados pelo nosso bem-estar, os esquecidos pela nossa religião.

Os cristãos continuamos a celebrar o Deus crucificado, para não esquecer nunca o "amor louco" de Deus pela humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados. É um escândalo e uma loucura. No entanto, para quem segue Jesus e acredita no mistério redentor que se encerra na Sua morte, é a força que sustenta a nossa esperança e a nossa luta por um mundo mais humano.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos. Grifos nossos.
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