sábado, 7 de abril de 2012

Respirar Deus

Foto via Blue Pueblo

A atenção é o mutismo permanente do coração, onde com Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, e só com Eles, respira e chama por Ele sem interrupção, permanentemente, e com Ele corajosamente luta contra os inimigos, e a Ele, que tem o poder, confessa os seus pecados.

A abstinência é a forte implementação e permanência da mente à porta do coração. Desse modo, ela vê como os pensamentos indesejados se aproximam, ouve o que dizem e fazem estes géneros do mal, qual a imagem que os demónios desenham para melhor a arrebatarem para o sonho e assim seduzi-la. Se agirmos com firmeza, então ela mostrar-nos-á a arte da luta contra esses pensamentos.

Os tipos de abstinência: primeiro - olhar consciente para os sonhos, ou para as propostas; segundo - ter o coração sempre profundamente silencioso, e, em silêncio, afastar-se de qualquer intento, e rezar; terceiro – invocar humildemente a ajuda permanente de Nosso Senhor, Jesus Cristo; quarto - ter na alma a permanente lembrança da morte; quinto, o mais eficiente de todos - olhar para o céu, sem se lamentar na terra. (...)

Como o sal dá bom sabor ao pão e a qualquer outra comida, evita que a carne se deteriore, e mantém-na intacta durante muito tempo, assim se entende a conservação no coração do feliz pensamento e da maravilhosa ação. Estas ações temperam, de uma forma sagrada, o interior e o exterior do homem, afastam a fetidez dos pensamentos maus e mantém-nos permanentemente na bondade.

Quanto mais vigilante a mente estiver, mais ardente será o teu desejo de orar a Jesus, e também, quanto mais negligentemente vigiares a mente, mais dele te afastarás. E, como a vigilância ilumina fortemente o ar da mente, assim a abstinência do doce chamamento de Jesus, normalmente entristece-a.

O permanente chamamento de Jesus, com desejo caloroso, cheio de felicidade e alegria, leva a que o ar do coração, da extrema atenção se encha do delicioso silêncio. Acontece a mesma coisa para que a oração se purifique completamente. Jesus Cristo, Filho de Deus.

A condição sagrada surge da lembrança permanente e do chamamento de Nosso Senhor, Jesus Cristo, em harmonia com Ele, na abstinência e com a oração na mente, como uma ação única e necessária. Em verdade, para que esta ação se realize sempre da mesma maneira devemos invocar o nome de Jesus Cristo. Chamamo-lo com o coração ardente, para que Ele connosco comungue e para que saboreemos o seu nome. A repetição é a mãe dos hábitos, tanto em relação aos bons, como em relação aos vícios, e o hábito acaba por dominar como a natureza. Chegados a uma tal situação, a própria mente procura os seus inimigos, como o cão de caça procura a lebre nos arbustos. Enquanto o cão procura para comer, a mente procura para derrotar e expulsar.

O grande David, o mais experiente nestes assuntos, diz ao Senhor: «Ó minha força, é para ti que eu me volto, pois Tu, ó Deus, és a minha fortaleza» (Sl 59 [58],10). Assim, a guarda da força do silêncio do coração e do pensamento, do qual nascem todas as virtudes, depende da colaboração do Senhor, que nos transmite os ensinamentos quando o chamamos sempre, e afasta-se de nós, quando desnecessariamente o esquecemos, e acaba com o silêncio do coração, tal como a água acaba com o fogo. Por isso, não te entregues à incúria do sono pernicioso e, em nome de Jesus Cristo, flagela os teus inimigos. Este doce Nome agarra-se à tua respiração e reconhecerás o fruto do silêncio.

- Sermões de Santo Isaías, O Presbítero, de Jerusalém
In Relatos de um peregrino russo, ed. Paulinas
Reproduzido via SNPC (Portugal)

O ponto de vista do outro

Pintura: Jim Warren


O futuro parece sombrio. Anuncia-se a decadência de valores éticos e a ‘saída da religião’, fenômeno que distancia o Ocidente cada vez mais de suas raízes judaico-cristãs. Em meio a tantos pensadores contemporâneos que manifestam uma visão catastrófica das transformações que vivemos, o psicanalista e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal [Estadual] do Rio de Janeiro Jurandir Freire Costa desponta como um defensor dos valores tradicionais. Em seu livro "O ponto de vista do outro: figuras na ficção de Graham Grenne e Phillip K. Dick" (Garamond, 2010), ele se serve dos mundos criados por esses dois ficcionistas para demonstrar que, na verdade, não perdemos de vista os valores éticos que sempre regeram, de uma forma ou de outra, a sociedade ocidental. E vai além: devemos recuperar nossa matriz judaico-cristã – em forma laica ou espiritual – para nos apropriarmos com maior veemência e consciência de seus dois elementos básicos: justiça e amor.

A entrevista é de Isabella Fraga e publicada no Suplemento Trimestral da Revista Ciência Hoje, março 2012.

Seguem trechos da entrevista, aqui reproduzidos via IHU (leia na íntegra aqui), com grifos nossos.


Uma linha que pauta muitas obras é a de que o mundo desencantado, no qual vivemos, não perdeu seus parâmetros éticos e morais. Que parâmetros são esses?
Existe, hoje, em boa parte do discurso filosófico e das ciências humanas – inclusive o da psicanálise – uma tendência a não apenas diagnosticar o que acontece, mas também a fazer previsões catastróficas. Essa inclinação tem como base a transformação brutal do mundo institucional, baseado na família, nos ideais políticos e na elaboração dos sentidos de vida por parte dos indivíduos. Um dos suportes do equilíbrio mental é o sentimento de que a vida vale a pena. Mais do que a nossa vida individual, é o que deixamos no mundo que tem valor e acrescenta algo às futuras gerações.

Em "O ponto de vista do outro", argumento que nosso ideário ético fundamental, baseado nos valores judaico-cristãos, não foi perdido. Em nossa constituição como sujeitos estão implícitos os ideais de justiça e de amor que se impõem às mais diversas concepções que temos da realidade e da subjetividade. O ideal de justiça estabelece a equidade no tratamento dado a todos, e o de amor, o respeito e a aceitação da singularidade de cada um.

(...)

Como o senhor vê o impasse contemporâneo entre uma moral universal, válida para todos, e a extrema valorização do indivíduo e de sua liberdade?
Essa é uma questão crucial. A pós-modernidade e as leituras genealógicas feitas nos últimos 60 anos sobre ética afirmam que o universalismo é um cacoete filosófico, ocidental e racionalista, que esconde sua relatividade histórico-cultural. De fato, o universalismo não é defensável se o convertermos em código capaz de definir desde sempre e para sempre o que é o ‘bem’ e o ‘mal’. Na concepção de universal que sustento, no entanto, não existe essa pretensão. Uma tradição reivindica a universalidade até que outra venha substituí-la. Não há como fugir das fronteiras estabelecidas pela história, pela linguagem, pelas visões de mundo possíveis num dado espaço cultural.

Autores como Giorgio Agamben, Slavoj Zizek e Jacques Derrida, nos quais me apoiei, embora não explicitem claramente a ideia, buscam nas fontes judaico-cristãs uma matriz conceitual capaz de fazer face ao desafio ético representado pelo desencantamento do mundo. Para Agamben, o sujeito age eticamente quando toma distância dos modelos de identidade existentes para guardar intacta a potencialidade de ser sempre outro. Derrida, por sua vez, criou o conceito de “justiça por vir” e “democracia por vir” como um tipo-ideal ético que, embora jamais se realize, deve orientar a ética de “responsabilidade para com o outro”. E Zizek defende a noção de ética como ruptura com os hábitos dominantes, renovação nas formas de conceber o mundo que nos leve a respeitar a singularidade de cada um.

Esses autores chamam a atenção para o fato de que a decisão ética é sempre uma decisão de risco. Jamais poderemos ter absoluta certeza de que conhecemos o ser humano a ponto de julgar o que é melhor para nós mesmos e para o outro com a isenção de quem aplica uma lei infalível. Para eles, não existe ética universalista de princípios, uma ética que, de antemão e por inferência lógica, determine o que é certo ou errado. Contamos com as ideias de justiça e de amor para dar passos éticos tateantes, que deverão ser retificados em função do respeito à equidade de à singularidade humanas. Somos seres de experimentação e nossa única salvação é a fidelidade ao credo da justiça e do amor. Esse credo é o que nos permite incluir no convívio humano aqueles que, à primeira vista e num determinado momento da história, parecem ser ‘diferentes’ da ‘maioria’.

No livro, o senhor afirma que a ética é a relação com um outro singular, relação esta que seria sempre mediada por um ‘terceiro’. Qual o papel desse ‘terceiro’?
Meu modelo de relação com o outro vem de Freud. Na mediação da relação do sujeito com o outro está o terceiro da linguagem, dos ideais, da cultura. Ao falarmos, há sempre um outro que fornece o vocabulário sem o qual não poderia haver interlocução. Em nossa conversa, por exemplo, é pelo filtro dos hábitos culturais que escuto o que me é dito e procuro responder. Para que o diálogo seja possível, é necessário que possamos entender a significação dos temas que abordamos e que partilhemos um solo ético razoavelmente consensual.

Essa série de regras e injunções simbólicas é o que chamamos de ‘terceiro’. É o terceiro que me permite saber que você é um outro, é ele que define quem é meu ‘próximo’ e quem é o ‘estranho’, o ‘estrangeiro’. É nele, sobretudo, que aposta, sem poder garantir, na disposição do outro para me entender e vice-versa. Sem essa confiança atribuída gratuitamente ao outro, e que se baseia na experiência cognitivo-afetiva, não haveria convívio humano. Os autores que pronunciam a catástrofe na cultura afirmam que esse terceiro foi riscado do mapa ético. A premissa é de que sem as normas e as leis tradicionais, aplicadas e reguladas pelas instâncias familiares, religiosas, políticas, etc., já não sabemos distinguir entre liberdade e irresponsabilidade, prazer e voracidade, autointeresse e egoísmo, dignidade e rebaixamento dos predicados humanos ao status de mercadoria, sociabilidade e submissão às injunções do mercado. Em grande parte, isso é verdade. Só não concordo que tenhamos jogado fora a balança de julgamento disso tudo. Até o fato de podermos fazer tal diagnóstico indica que dispomos de um metro para medir o descalabro.

(...)

Como isso se liga ao resgate dos valores modernos?
No universo grego ou romano, as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade seriam vistas como esdrúxulas. Ninguém podia imaginar que a igualdade e a liberdade fossem um bem de todos. Não havia ‘todos’; havia castas, estamentos, estratos incomunicáveis. A ética greco-romana era a de honra, da bravura ou, no máximo, da sabedoria. Poucas coisas eram mais degradantes, naquela cultura, do que se deixar levar pela paixão ou pelo sentimento. Compassividade, cuidado com os mais frágeis, receptividade para o ‘diverso’, o ‘estrangeiro’, eram sinais de fraqueza. O que importava era a estética da vida, o governo de si, a harmonia, a reputação. Ao contrário disso, na matriz judaico-cristã, o deficiente físico ou o escravo é um irmão, um igual diante de Deus. O advento dessa ética foi uma novidade cultural gigantesca. A democracia moderna é herdeira desses ideais. São eles que nos fazem repudiar a corrupção, a violência do poder político ou econômico, a utilização mercantil e oportunista da credulidade religiosa dos mais simples, o preconceito sexual ou de classe etc. São eles que, igualmente, nos permitem criticar a maneira leviana com que se fala de amor e sexualidade, uma maneira que tornou milhões de pessoas algozes de si mesmas, tais são as exigências que fazem para serem felizes e tal a freqüência com que se expõem a sentimentos de perda, desilusão e conflitos sexuais amorosos.

Se, na sociedade atual, os indivíduos antes excluídos são considerados iguais, quem são os novos excluídos?
As pessoas envelhecidas, os viciados, os obesos, os sedentários, os perdedores econômicos. Essas pessoas são olhadas como fracas, como se não tivessem direito à plena cidadania cultural. Há também os excluídos do consumo, os pobres que o capitalismo gera e que, convertidos ao consumismo, não podem adquirir o que cobiçam e se tornam delinquentes. A nossa sociedade também produz o fetiche do vencedor – no sexo, no amor, no esporte, no dinheiro, no poder. Ninguém é bom suficiente para chegar ao pódio do espetáculo e, por isso, muitos recorrem às drogas legais como meio de suportar as ordens dos ideais tirânicos que constroem para si. Esse é outro fetiche que podemos desmascarar com o auxílio da matriz ética judaico-cristã, em sua versão leiga ou espiritual.

A reabilitação de algumas referências judaico-cristãs não traz o risco de se recuperar também características vistas como negativas, como a culpa?
A ideia de culpa é muito forte no cristianismo, mas acho que não se pode viver sem culpa. Uma coisa é criar uma religião do terror, para dominar as massas, dizendo-se uma a criança, por exemplo, que a masturbação é um passaporte para o inferno. Esse é um moralismo típico da burguesia do século XIX e do início do século XX que se associou à religião para defender seus ideais.

Ao defender o restabelecimento leigo ou espiritual do valor da ética judaico-cristã, não me refiro ao aparato religioso comprometido com o poder temporal ou com objetivos político-econômicos escusos, como foi o caso de séculos e séculos de domínio de reinados protestantes ou católicos na Europa. Refiro-me à recuperação dos princípios de justiça e de amor, que tem um elemento ‘indesconstrutível’, para falar com Derrida. Não podemos pensar que qualquer conduta humana é justificável ou passível de aceitação. Ao dizer que “a desconstrução para na justiça”, Derrida afirma que existe um claro limite para o que podemos e o que eu não podemos fazer. Esse limite tem suas balizas na tradição ética do judaísmo e do cristianismo. Bem entendido, me refiro à tradição ocidental, e não a outras culturas, como as regidas pelo islamismo, pelas religiões espiritualistas asiáticas ou quaisquer outros sistemas de preceitos éticos.

Derrida considera que a “justiça por vir” é uma condição de possibilidade do convívio humano. Esse pressuposto é válido apenas para aqueles convertidos ao ideal da justiça, não é universal no sentido de extra-histórico, ou extracultural. Ele se mantém em pé enquanto estivermos convictos de que é preferível a outros candidatos ao posto de fonte de recursos éticos. Caso viéssemos a abrir mão das ideias de justiça e amor, poderíamos tornar-nos absolutamente alheios à miséria, à fome, à humilhação, à tortura, à exploração do outro. No mundo da “justiça por vir”, o poder econômico, político, científico, religioso, artístico e qualquer outro têm limites – os limites do respeito à igualdade de todos e à diferença de cada um, dito de outra maneira, de respeito ao próximo. Gosto muito da resposta de Zygmunt Bauman quando lhe perguntaram como julgava uma sociedade. Ele respondeu mais ou menos assim: “Julgo uma sociedade pelo lugar reservado aos seus pobres e desvalidos”.

Como o saber psicanalítico pode servir de instrumento para a compreensão dos conflitos contemporâneos?
Em primeiro lugar, reafirmando que o sofrimento é parte constitutiva da vida. Em segundo, que se pode lutar contra o sofrimento sem recorrer a procedimentos de evasão como humilhar o outro mais frágil, dominá-lo ou se desonerar da responsabilidade de construir um convívio social mais favorável à expressão do que temos de melhor. Em terceiro, admitindo a ideia de que, como pessoas, não temos um substrato fixo. O sujeito é um nome, um suporte para uma série de experiências vividas ou imaginadas: a realidade biológica mutável do sujeito desde que nasce até o envelhecimento e a morte, a realidade dos percursos profissionais, a situação de classe social, as preferências estéticas, sexuais, morais, espirituais etc. Uma vez que se admite isso, o convívio humano sob a égide da “justiça por vir” tornas-se um pouco mais fácil. Aderir a esse ideal significa não congelar a própria identidade em qualquer etiqueta ideológica que nos obriguem a portar: branco, negro, burguês, pobre, herege, religioso, ateu, conservador, revolucionário etc. O sujeito da “justiça por vir” é aquele que sabe que pode ser muitas coisas e que vai ser, para sempre, um enigma para si próprio: para cada lado claro da existência humana existe outro deixado na obscuridade. O que permanece e incomoda é que sofremos. E se viermos imobilizar o sujeito numa identidade fixa, ele vai perder a plasticidade e tender a usar meios patológicos ou violentos para lidar com sofrimento. Pode recorrer facilmente à rivalidade persecutória, criando inimigos imaginários, bodes expiatórios que ‘expliquem’ a razão de suas perdas, frustrações, irrealizações. A psicanálise pode ajudar-nos a entender melhor esse estado de coisas.

Uma das características da pós-modernidade não é a falta de identidades fixas?
Diz-se que a característica da pós-modernidade é a flexibilidade, a adaptação camaleônica às novas situações. Isso é uma meia-verdade, uma mistificação. A mudança à qual se alude aqui é a que segue a injunção cínica do princípio de "O leopardo", de Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. A abertura para novas formas de subjetivação a que se referem Derrida, Agamben e Zizek não visa renovar permanentemente o fôlego da sociedade do espetáculo e do mercado. Não é a flexibilidade de horizontes estreitos, a flexibilidade exigida pelo próximo movimento da indústria e do comércio da moda. Essa flexibilidade nada tem a ver com abertura para a experimentação, para a reinvenção de formas de convívio mais justas. É uma flexibilidade que fixa os indivíduos em identidades competitivas, voltadas para alcançar os mesmos ideais calcificados nas imagens do sucesso midiático. Em poucas palavras, mude para ser aquilo que lhe ensinaram a desejar ser, mas que você não conseguiu ser sendo assim como é. Nesse caso, o móvel da mudança é a concorrência predatória ou ressentimento. Não é esta visão de mundo da ética judaico-cristã, recobrada em sua vitalidade leiga por Derrida, Agamben e Zizek, entre outros.

A Sexta-feira Boa*


O que há de 'bom' num dia em que um homem inocente e bom é condenado por uma acusação inventada, traído e desertado por seus amigos, rejeitado por aqueles a quem falou a verdade, torturado física e mentalmente, crucificado e morto?

A primeira veia de bondade está em seu caminho de aceitação. Quando coisas ruins acontecem, podemos tentar negá-las ou elas podem nos tornar pessoas amargas e odiosas em busca de vingança. No caso dele isso claramente não aconteceu. Que profundo poço de bondade e amor em si mesmo ele escavou para encontrar-se com seus opressores no perdão e para abraçar o que aconteceu com uma equanimidade de alma que transformou o mal feito a ele em bem para os outros?

"Só Deus é bom", disse ele uma vez ao jovem rico que buscava a vida eterna mas ainda se encontrava preso na armadilha de suas posses.

A outra veia de bondade nos eventos de hoje [ontem] é o efeito transformador que eles têm sobre outros. Isso começou no momento histórico em que esses eventos ocorreram e continua, certamente continua acumulando seu efeito. Através do que aconteceu hoje uma nova consciência adentrou o reino humano e começou a minar as raízes mesmas da escuridão na alma humana, que nos leva a fazer coisas tão desumanas uns com os outros, esquecendo-nos de quem somos e esquecendo que o poço do ser divino tem sua fonte em cada um nós.

No caso de coisas terríveis como essas, damos um suspiro de alívio quando elas passam. Neste caso, porém, vemos que elas têm muito mais a trabalhar para tirar a humanidade do ciclo de violência em que caímos e que é nosso pecado original. Uma violência que nasce do sentimento angustiado e ilusório de Caim de que não somos amados.

(...)

A cruz tem uma energia maior que o ego e contemplá-la em nossa vida, abraçar seu efeito transformador, é que torna esta sexta-feira boa e santa.

- Laurence Freeman OSB
Mensagem para a Sexta-feira Santa (06/04/12) à Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

* Em inglês, A Sexta-feira da Paixão é chamada de Good Friday, "Sexta-feira Boa"

Pesach 5772/2012: Entre a liberdade e a escravidão



No deserto, toda a comunidade de Israel reclamou a Moisés e Arão. Disseram-lhes os israelitas: "Quem dera a mão de Deus não nos tivesse matado no Egito! Lá nos sentávamos ao redor das panelas de carne e comíamos pão à vontade, mas você nos trouxeram a este deserto para fazer morrer de fome toda esta multidão! " (Êxodo 16)

Porque viver é uma luta constante entre liberdade e escravidão, entre a liberdade que nos deixa inseguros, e o desejo de segurança que limita nossa liberdade, Pesach nos lembra de que a vida é uma travessia:

Entre o medo ao desconhecido que pode nos mudar e a curiosidade e a coragem de abrirmos para novos pensamentos e experiências.
Entre as expectativas dos outros e agir de acordo com o que consideramos certo e errado.
Entre a insegurança que não nos permitem reconhecer nossos limitações e a ironia que nos permite rir de nossa forma de ser.
Entre a fixação no trauma e sua superação.
Entre as vitrines externas e a vida interior.
Entre se queixar e agir.
Entre o dogmatismo e a abertura á opinião dos outros.
Entre ter e ser.
Entre contemplar e possuir.
Entre querer tudo e estar satisfeito com o que se tem.
Entre o supérfluo e o essencial.
Entre impor e dialogar.
Entre falar e ouvir.
Entre um passado que nos oprime e um passado que nos ensina.

Em Pesach aprendemos que o opressor tem delírios de onipotência, e para impor sua vontade quer dominar e controlar os outros para que se ajustem a seu desejo. Mas os seres humanos somos finitos e mortais.

E porque somos finitos e mortais, não controlamos o mundo.
E porque somos finitos e mortais, vivemos na incerteza.
E porque somos finitos e mortais, temos medos, inseguranças e carências afetivas.
E porque somos finitos e mortais, o outro é uma fonte de aprendizagem, apoio e alteridade.

E, como judeus, devemos sempre lembrar que Pesach nos ensina:
Que fomos perseguidos e nunca devemos perseguir.
Que fomos humilhados e não devemos humilhar.
Que fomos estigmatizados e não devemos estigmatizar.
Que fomos oprimidos e não devemos oprimir.
Que fomos confinados em guetos e ninguém deve viver em favelas.
Que toda escravidão termina em luta pela liberdade.

Por isso, em Pesach festejamos nossa disposição a sermos livres sem ocultar nem negar nossos medos, inseguranças e carências, e afirmamos nossa vontade de amar e aprender, e os valores da liberdade e da justiça.

Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuianu lazman haze.
Que vivemos, que existimos, que chegamos, a este momento.

Bernardo Sorj
Reproduzido via Amai-vos

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A meditação de Haydn sobre As sete últimas palavras de Cristo


Anno Domini 1786. Sexta-feira Santa. A catedral de Cádiz, sob a cúpula resplandecente de telhas douradas, cala. Até mesmo o ardente sol de Andaluzia parece empalidecer ante o madeiro da Cruz. Tudo são trevas: Cristo está morrendo. Sofrimento. Poucas palavras. Só sede.

Um solícito canônico da catolicíssima província espanhola necessita exaltar este momento de fúnebre piedade com uma pompa a mais. O estuque ainda precisa de dourado.

Falta um artista. A pessoa adequada é o devoto mestre Franz Joseph Haydn – que a
costumava escrever seus manuscritos com a locução Laus Deo, ao qual o canônico encarrega uma “música instrumental” que tivesse o poder de encher de sonoridade o cenário preparado na catedral.

É o mesmo Haydn que envia a partitura à Breitkopf & Härtel para a publicação que relata o acontecimento: “Os muros, as janelas, os pilares da Igreja estavam cobertos de panos pretos e somente a lâmpada pendurada no centro do teto rompia aquela solene escuridão. Ao meio-dia, as portas se fechavam e começava a cerimônia. Depois de uma breve função, o bispo subia ao púlpito e pronunciava a primeira das sete palavras (ou frases) fazendo um discurso sobre ela. Depois do qual descia do púlpito e se prostrava ante o altar. Este intervalo de tempo se enchia com a música”.

Do encontro entre a barroca vontade de um sacerdote de província e o gênio musical de Haydn nasce a “Música instrumental sobre as sete últimas palavras do nosso Redentor na cruz – ou Sete Sonatas com uma introdução e ao final um terremoto”, na versão original para orquestra, à qual seguem, em 1787, uma transcrição para quarteto de arcos e uma redução para piano e, em 1796, uma versão em forma de oratório, para coro e orquestra, com texto de um canônico de Passau.

Uma introdução, Adágio e majestoso, e uma conclusão, Presto e com toda força  –  o terremoto que emocionou o Calvário, segundo o relato do Evangelho de Mateus –, marcam as sete palavras:

Pater, dimitte illis, quia nesciunt quid faciunt [“Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”; Lc 23:34], Hodie mecum eris in Paradiso [“Hoje estarás comigo no paraíso”; Lc 23:43], Mulier, ecce filius tuus [“Mulher, eis aí o teu filho”; Jo 19:26], Deus meus, Deus meus, utquid derilinquisti me? [“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”; Mt 27:46], Sitio, Consummatum est ["Tudo está consumado"; Jo 19:30], In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum [“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”; Lc 23:46]. Palavras dolorosas, pronunciadas pelo Filho de Deus que sacrifica de modo cruento a vida para a salvação do homem; palavras íntimas e comoventes, que Haydn transfigura em música, até o ponto de querer que fossem escritas debaixo da parte do primeiro violino, para que os executores pudessem viver mais intensamente as notas que estavam tocando. Notas que não terminam com a morte, mas que continuam em vórtice até um final luminoso, prefiguração da vitória de Cristo sobre a morte, na Ressurreição.

Não por acaso Haydn começa o Terremoto em Dó menor e o termina com tonalidade maior, marcando assim a relação íntima com o texto evangélico. Vencendo a morte, Cristo derrotou definitivamente as trevas: a música consegue captar plenamente a transcendência deste mistério, procedendo lentamente, dolorosamente, para a luz. Se é verdade que esta composição é um “equivalente sonoro das pinturas e das esculturas das Igrejas rococó da Europa Católica, cuja finalidade era a de induzir igualmente ao arrependimento e à paz do espírito” (David Wyn Jones), é também verdade que consegue olhar além da esfera sensível, além da perspectiva do visível. Embora consiga mostrar com comoção todas as chagas do Crucifixo, até mesmo a garganta seca, Haydn não pinta um quadro da Paixão.

Através da força das palavras, não pronunciadas porém ouvidas, contempla o inefável mistério do amor e o traduz em notas. Que a paixão e morte de Cristo não são mais do que um ato de amor. Por amor, o mais belo dos filhos do homem se faz Aquele que não tem nem aparência nem beleza. Amor, sinfonia de luz. Amor, música que desperta da sonolência da noite. Amor, harmonia entre o céu e a terra. Amor, ato de toda a criação. Laus Deo.

- Francesco d’Alfonso, para o ZENIT
(Tradução: Thácio Siqueira)

* * *

Atualização em 10/04/12:

(...) "As últimas sete palavras" constituem uma meditação sobre a morte de Jesus. Num texto que escreveu sobre a sequência da Páscoa (e que intitulou - justamente! -, “Uma das mais belas histórias do mundo”), a romancista Marguerite Yourcenar diz que o estatuto destas derradeiras palavras nos obriga, talvez, a aproximá-las das breves recomendações, comovedoras mas afinal muito frequentes, que, por exemplo, jovens soldados trocam entre si diante do perigo ou murmuram a um companheiro antes de fechar os olhos para sempre: um pedido para que se cuide da mãe ou se faça chegar a notícia a um irmão querido; uma palavra de encorajamento dirigida aos que restam, um ténue gesto de afecto, quase invisível já de tão extremo. O texto de Yourcenar sublinha, assim, como a morte de Jesus, na sua singularidade, se torna ícone do incontável sofrimento do mundo.

Mas o que as "Sete palavras" declinam não é simplesmente a monodia do drama humano. Há um segredo entre estas palavras. O dispositivo narrativo criado pela colagem dos textos salta de evangelho para evangelho, mas começa e acaba com Lucas («Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» - Lc 23,24, ao princípio, e, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» - Lc 23, 46, ao concluir). No desenho inclusivo que os dois momentos estabelecem, percebe-se que o destinatário das palavras de Jesus não é um confidente qualquer: é o próprio Deus. E o modo como Jesus o evoca, chamando-o Pai, confere ao diálogo uma densíssima intimidade, tanto mais paradoxal quanto ele é se encontra na situação de um anátema, prestes a padecer uma morte reservada aos infiéis, e afronta o aparente e inexpugnável silêncio da parte de Deus.

Mas há um segredo. É o da expressão derradeira, já depois de proferidas todas as palavras, e que apenas Marcos e Mateus nos transmitem. Entre as “Sete palavras” inseria-se já um grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (ou «Meu Deus, Meu Deus a que me abandonaste?», segundo algumas traduções contemporâneas). Mas depois desse, Jesus soltou ainda um outro grito, e então expirou. Perante este último, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. Isto é, o sagrado perde a sua reserva e desloca-se para o profano mais escandaloso: na carne daquele inocente, no corpo torturado, no lancinante silêncio que sucedeu ao seu grito reside agora a revelação de Deus.

Percebe-se, então, que todas as palavras anteriores se ligam misteriosamente a esta oitava palavra, e todas juntas se elevam diante de nós como uma aporia intransigente e intemporal. Contemplamos o mistério de Deus e o do Homem no mais devastador silêncio que o mundo conheceu. Mas desse, precisamente, partirá o “grande levantamento”, a “radical insurreição”.

- José Tolentino Mendonça
Via SNPC (Portugal)

Os sons da vida e da morte


Por que um Deus, a quem Jesus de Nazaré chamava de Pai, deixaria seu próprio filho morrer daquele jeito? Por que Deus – a quem Jesus apresentou à humanidade como sendo todo amor, todo-poderoso – não fez nada? Não teria sido simples para Ele, fazer alguma coisa, já que era Deus? Por quê?

Se tentarmos enquadrar o amor de Deus na dimensão do nosso amor humano, nunca conseguiremos responder a essas perguntas, nunca daremos vazão às dúvidas que nos assolam quando nos deparamos com o sofrimento de um inocente – como Jesus o foi.

Antes de tudo há uma questão de coerência: se Deus é um Deus de Amor Absoluto, se Ele deu ao homem o dom da liberdade e do livre-arbítrio, ele não pode interferir nisso. Deus não enviou Jesus ao mundo para morrer na cruz; ao contrário, Jesus veio para revelar ao homem a face paterna de Deus e seu imenso amor. Quem decidiu pela cruz foi a humanidade, insatisfeita de ter que deixar seu caminho de perdição para, só assim, conseguir aceitar a mensagem salvífica de Jesus e o amor de Deus. E descobrimos que Ele não é todo-poderoso, pois não pode fazer o mal, não pode interferir cinematograficamente na escolha de seus filhos.

Quando amamos, temos que fazer concessões. A concessão humana para encontrar o amor infinito de Deus, é Sua aceitação, é o afastamento do pecado, ainda que este seja muitas vezes tão camuflado por situações cotidianas, que já não nos damos conta. Por isso, Jesus de Nazaré incomodou seus contemporâneos.

O Deus pregado por Ele é um Deus de vida, e não da morte. Não se trata, portanto, de impingir a Deus a culpa por não ter salvado Seu único filho; mas de tomarmos consciência de que continuamos a contribuir para que outras tantas cruzes sejam suspensas a cada dia.

Naquela distante sexta-feira um inocente perambulou pela madrugada, jogado e julgado injustamente. A cruz Lhe foi imposta pela inveja e pelo orgulho humanos. Porém, ainda hoje é possível ouvir os sons daquela noite: sons que atemorizaram, vozes que subjugaram, chicotes que soaram alto. É possível ouvir o som do arrastar da cruz até o Calvário, o choro das mulheres que acompanharam o cortejo, o espanto do Cirineu... É possível ouvir as marteladas dos carrascos, as vestes se rasgando, as palavras na Cruz, a entrega do espírito ao Pai... São sons que teimamos em abafar e passar ao largo. Mas, é preciso ouvi-los, para que possamos abafá-los definitivamente.

Deus-Pai sofreu com seu filho, como sofre com cada um de nós, em nossas menores dores. Muitas vezes, diante do sofrimento, não há palavra, não há gesto: é preciso apenas estar junto. E Deus nos é fiel, absolutamente fiel!

Compreender, portanto, o silêncio do Calvário, é entender o comportamento de um Pai que ama tanto a humanidade que não interfere em sua liberdade, ainda que esta a conduza pelo caminho da negação desse amor.

Assim, rememorar a Paixão de Cristo nos oferece a oportunidade de encontro com um Deus-Vivo, presente na história humana. Não o Deus do Calvário, mas aquele que chega como a brisa suave, que soprou na manhã do domingo da Ressurreição.

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos

Sobe a Jerusalém a Virgem Maria


Na ocasião da festa da Páscoa, era costume dos judeus peregrinar até Jerusalém, a cidade santa. Maria fizera o percurso entre Nazaré e Jerusalém inúmeras vezes em sua vida, mas um, em especial, a marcará para sempre: aquele em que verá seu filho ser morto e, dos mortos, ressuscitar.

Maria conhecia seu filho e seu povo. Por isso, certamente já devia perceber que algo não ia bem e que se tentava prender Jesus. Era mais uma vez o mistério de Deus invadindo sua vida: por que? Por que matar aquele que só faz o bem? Por que prender aquele que só tem palavras de verdade e de vida? Por que...?

Imagino-a caminhando pelas estradas em silêncio. O mesmo silêncio que calou seu coração na gruta em Belém. O silêncio daqueles que estão prestes a presenciar acontecimentos que não se explicam senão pela fé. E é lá, na cidade santa, que fará sua oferta. Desta vez, não mais pombas e rolas, mas o próprio filho!

Talvez Maria não imaginasse que a morte de Jesus fosse acontecer tão abrupta e brutalmente. Talvez não imaginasse que fosse acontecer naquele momento. Mas sabia que algo aconteceria naquela Páscoa. E, assim, com o coração silenciado pela dor assistiu uma vez mais ao mistério de um Deus que se curva à humanidade e se entrega a ela para, assim, salvá-la.

O coração da Maria que celebra a Páscoa em Jerusalém é um coração que é todo oferta. Ali, Ela devolve a Deus o menino que carregou em seus braços, a quem educou, a quem deu de comer, a quem viu crescer, tornar-se homem e transformar a vida de tantos outros homens e mulheres pelo simples poder de amá-los incondicionalmente. Ali, após sentir a dor maior que uma mãe pode sentir – a da perda de seu filho amado – será contemplada com a experiência da vitória da vida sobre a morte.

A celebração da Páscoa para Maria nunca mais será a mesma. Para que possamos também viver a Páscoa de uma maneira nova, aproximemo-nos dos mistérios que brevemente iremos recordar com o mesmo coração que Maria levou à Jerusalém: um coração de silêncio e escuta, para que, assim, possamos tirar melhor proveito do que Deus quer renovar em nossa Páscoa hoje.

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos

Sobe a Jerusalém, Virgem Oferente sem igual
Vai, apresenta ao Pai seu Menino-Luz que chegou no Natal
E, junto à sua Cruz, quando Deus morrer fica de pé
Sim, Ele te salvou, mas o ofereceste por nós com toda a fé.

Nós vamos recordar esse sacrifício de Jesus
Morte e ressurreição, vida que brotou de sua oferta na Cruz
Mãe, vem nos ensinar a fazer da vida uma oração
Culto agradável a Deus
É fazer a oferta do próprio coração.

Tudo está consumado

Foto daqui

A Sexta-feira Santa é um dia de jejum de alimentos, de palavras e de tudo que nos distraia da contemplação da paixão e morte de Jesus. Vamos percorrer alguns pontos da Paixão segundo o Evangelho de João (Jo 18, 1 – 19,42), proposto pela liturgia deste dia.

O Evangelho de João narra a Paixão com características que o distinguem dos sinóticos (os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas) e coloca em evidência a soberania de Jesus. (...) João dá um destaque especial à liberdade com que Jesus aceita o sofrimento pela salvação da humanidade, diante da liberdade de quem o entrega a Pilatos e a do próprio procurador romano, fraca e covarde. “Como poderia salvar os pecadores, se tivesse resistido aos perseguidores?”, indaga S. Leão Magno.

Eis o homem
No processo que se desenrola diante de Pilatos, Jesus é rejeitado quer como Filho de Deus, quer como rei messiânico, quer como homem. Tanto é verdade que não encontra compaixão nem mesmo depois da flagelação. Ao ser apresentado à multidão por Pilatos com o “eis o homem”, é rejeitado pelo povo com o “crucifica-o, crucifica-o!”. A cena da flagelação, situada no vaivém de Pilatos entre Jesus e os judeus, dá a medida da dramática injustiça do processo, da dolorosa humilhação a que chega o caminho da Encarnação e torna-se o símbolo da violência do ser humano sobre o ser humano.

Minha participação no drama
[Na contemplação e oração,] com minhas atitudes, posso tomar parte nas diversas cenas: na traição de Judas, nas negações de Pedro, no zelo hipócrita dos sacerdotes; na volubilidade da multidão; na fraqueza de Pilatos; na crueldade gratuita dos soldados etc... Contemplando a Paixão, procuro em imaginação entrar dentro das cenas evangélicas e fazer um discernimento sobre minhas atitudes e comportamentos.

“Eis sua Mãe, eis seu filho”
Ao ver aos pés da cruz sua Mãe e o discípulo amado, Jesus revela seu coração, sempre orientado pelo bem do próximo. São as pessoas que ele mais ama e as confia uma à outra. A Virgem Maria, enquanto perde seu Unigênito, nos acolhe como filhos. Com João acolho Maria em minha casa, em minha vida. A Mãe de Deus se torna também Mãe da Igreja.

Tudo está consumado
O “tudo” não se refere só à Paixão, mas alarga-se ao plano de Deus na história. A chave de leitura da História da Salvação está na Cruz, onde a realização coincide com o fracasso. Mas esta palavra de Jesus se completa com outras, em que a Cruz se liga paradoxalmente à glória [escândalo e loucura]: a glorificação do Pai, de quem o Filho completou a obra, e a exaltação do Filho, que do alto atrai todos a si.

- Pe. José Marcos de Faria, SJ
Retiro Quaresmal 2012 (CEI-Itaici)

* * *

A injustiça e a violência se instalam no coração do Homem que se fecha e recusa a presença Deus, e sua brutalidade reside justamente na total ausência de sentido. A morte de Cristo reveste-se de significado não pela morte em si; seu sofrimento brutal ganha razão de ser não pelo sofrimento em si – mas pela atitude com que Ele, em seu profundo amor por nós, se esvazia de si mesmo, se humilha e se entrega nas mãos de seus algozes – que somos todos nós – em profundo respeito pela nossa liberdade. E, no entanto, que contraste entre o vazio absoluto que nos invade quando escolhemos nos apartarmos da nossa fonte de vida, e o esvaziamento amoroso com que Ele se apequena e entrega às mãos com que o trucidamos!

Paradoxalmente, é no momento do “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” – no momento em que, no silêncio do Pai, as trevas invadem o coração do Filho – que o Filho ultrapassa a experiência da Fé e da Esperança, e vive o Amor em sua plenitude. Porque não se trata mais de certezas ou da confiança no Pai, cuja presença o Filho já não sente; trata-se de amar inteiramente o Pai e se entregar a seu serviço, mesmo que Ele não esteja lá. Mesmo não se sentindo amado de volta. Mesmo sem retribuição. Nesse momento de escuridão, Cristo é pura gratuidade, é a plenitude do amor de Deus que se realiza em seu corpo agonizante de homem. Nesse momento, o Filho e o Pai são um só, um só corpo, uma só carne, porque só o Pai pode amar no Filho tão gratuita e intensamente – e nesse amor incompreensível está o seu Espírito, que nos será legado e nos acompanhará na construção do Reino. Quando Jesus ama mais plenamente, aí se efetiva a sua redenção, e a nossa n’Ele. Aí a Trindade transcende a Cruz para nos salvar, e somos resgatados para a eternidade.

- Equipe Diversidade Católica

* * *

Derrame, Senhor, a sua bênção sobre este povo
Que celebrou a morte de seu Filho na esperança de sua Ressurreição;
Concede-lhe o perdão e o conforto, aumente a sua fé
E confirme-o na esperança da salvação eterna.
Amém.

(Oração sobre o povo da Celebração da Paixão)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Em memória de mim

Foto via Blue Pueblo

"O dom de si nunca morre. Ele está sempre presente e pode ser chamado à mente a qualquer momento, a fim de renovar e tranquilizar-nos que a vida, por todas as suas fatalidades, não é apenas a sobrevivência. Trata-se de florescimento, plenitude.

É isto que a Eucaristia é. Apesar do fato de que ela foi cercada em volta por regras e regulamentos e as políticas da religião, a sua energia de melhorar a vida nunca deixa de surpreender. É um canal da generosidade infinita de quem não se esquece de nós."

- Laurence Freeman OSB
Mensagem para a Quinta-feira da Semana Santa (05/04/12) à Comunidade Mundial de Medicação Cristã no Brasil

O seu lugar à mesa de Cristo

Imagem via Facebook. Autor desconhecido

"Na mesa de Cristo há lugar para todos, inclusive para Judas, que o traiu, e Pedro, que o negou três vezes. E, se há lugar para um traidor e um negador, claro que haverá sempre lugar para você e para mim."

- Rev. Marcio Retamero, Comunidade Betel/ICM

* * *

Última Ceia... Jesus, desde o início, quis resgatar a vida humana fazendo-se gente, acolhimento, fome e alimento... Sua proposta? A vida a partir da mesa, do pão e da partilha com todo tipo de pessoas.

Jesus participou de muitas refeições, quase sempre com “excluídos” (Zaqueu, Simão o leproso...), até se deixar fazer pão na grande mesa da Ceia Pascal. Por isso, cada vez que nos reunimos em torno da mesa, fazemos memória das refeições escandalosas de Jesus com os pecadores, pobres, doentes e marginalizados...

Se toda mesa já era bendita, depois de Cristo ela se tornou um lugar de encontro no pão partilhado. Comer e beber juntos sempre foi uma forma de expressar “aliança”, amizade, união... Os laços humanos reforçam-se com a participação à mesma mesa. A traição do amigo é impensável!

Na mesa nos alimentamos e humanizamos: alegrias partilhadas, tristeza compartidas, segredos confiados... Na Última Ceia Jesus se coloca no lugar não dos comensais, mas dos que não estão sentados à mesa, dos excluídos. Seu gesto nos convida, pois, a deslocar-nos e fazer sentar todos, sem exclusões, como irmãos e irmãs na mesma mesa do Senhor...

Sacrifício não significa apenas imolação, penitência, mas “tornar santo” (do latim sacrum facere). E a melhor coisa que podemos transformar em “sacrifício” é a própria vida, sendo fraternos. Jesus é o sacrifício, o irmão de todos, por sua fidelidade em fazer a vontade do Pai.

Enquanto houver excluídos, o banquete de Jesus está incompleto. Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade, na sua imensa diversidade. As refeições de Jesus eram escandalosas por que não excluíam ninguém!

Se olhamos o passado, sabemos o que Deus fez por nós... Vendo o presente, sentimos o que Ele faz gratuitamente conosco, sentando-nos à sua mesa... E o futuro? Ah! O futuro é um desafio... O que eu vou fazer pelos outros depende só do meu amor!

Uma pergunta: Você exclui alguém da sua mesa?

- Pe. J. Ramón F. de la Cigoña SJ, em seu blog

República Cristã do Brasil

Foto: daqui

Recentemente assisti a um filme que está disponível para exibição na internet e que deveria ser transmitido em cadeia nacional no horário nobre: Persépolis. É uma animação francesa em preto e branco que relata o processo de transformação da república iraniana para um estado religioso. Acho que a presidenta Dilma também deve tê-lo assistido, daí as lágrimas durante a posse do religioso Marcelo Crivella como ministro de seu governo. Um indivíduo que abertamente rejeita os consensos científicos, avanços sociais e que representa toda uma legião de lideranças religiosas a destilar ódio contra homossexuais, a inferiorizar a mulher e a demonizar outras religiões e culturas através de concessões públicas de TV e rádio. Não é o primeiro sinal de que a democracia e as liberdades individuais no Brasil correm o sério risco de serem banidas pelo pior tipo de ditador que existe: aquele que diz representar a Deus.

Voltando a Persépolis (capital da antiga Pérsia, atual Irã), Marjane é uma menina de classe média que acompanha, em 1979, a insatisfação de comunistas e liberais com o regime corrupto do Xá Reza Pahlevi. Porém, esses segmentos progressistas sozinhos não seriam capazes de mudar o sistema o que os levou a formar alianças com religiosos, pois que a religião era a única unanimidade em uma região diversificada em etnias. E deu certo, o povo atendeu ao chamado e derrubou um regime que se perpetuava de pai para filho que, como dito, era corrupto e representava as ameaças ocidentais à cultura local.

O que a classe média e a esquerda não contavam é que, ao tomarem o poder, os representantes de Deus na Terra iriam se sentir o próprio Deus e, com o apoio do povo, estabeleceram uma república islâmica liderada por aiatolás, radicalmente rígida nas leituras do Islã, onde liberdades individuais são muito limitadas. Que ao destilar ódio contra homossexuais, a inferiorizar a mulher e a demonizar outras religiões e culturas transformaram uma nação desenvolvida, apesar de corrupta, em uma ditadura retrógrada econômica e socialmente, sempre envolta em conflitos.

Como perguntaria nosso novo Ministro da Pesca, o que a minhoca tem a ver com o anzol? Tem tudo. O processo de aproximação entre a esquerda e as religiões cristãs no Brasil, em nome da governabilidade, foi ratificado na aliança para eleição da presidenta Dilma. Líderes evangélicos, em especial, passaram a ter trânsito em todas as esferas governamentais e a ocupar cargos majoritários no poder, muitas vezes sem nenhuma afinidade com a pasta. Como Crivella, que sequer sabe colocar minhoca em anzol e que colocará em risco uma série de pesquisas, uma vez que evolução não existe, tudo era como está e sempre o será. Só falta o sucessor de Mercadante ser analfabeto funcional. Esse trânsito facilitado fortaleceu o lobby religioso ao ponto de unir duas vertentes do cristianismo, evangélicos e católicos, tradicionalmente adversárias na luta pelos direitos autorais de Cristo. E com resultados surpreendentes, dentre eles a censura ao vídeo de prevenção à AIDS no carnaval deste ano voltado ao público homossexual jovem, vídeo esse motivado por dados epidemiológicos.

Acredito que da parte do governo nada será feito para inverter ou, ao menos, estancar essa chaga que se espalha pelos bastidores e no palco do poder brasileiro. Somente a sociedade civil organizada em todos seus segmentos terá condições de empunhar a defesa do Estado Laico no Brasil como principal bandeira de luta, pautando esse tema como prioridade na luta pelos direitos humanos. Sob pena de vermos nossos direitos sendo desrespeitados em nome da Fé.

A Fé tem o poder de ampliar o espectro de visão de qualquer pessoa, mas a fé deturpada pode cegá-la. Quantas e quantas famílias de cidadãos honestos e solidários discriminam seus filhos e filhas homossexuais e travestis por conta de sucessivas traduções, versões e leituras propositadamente errôneas da Bíblia Sagrada? Quantas e quantas pessoas de bem asseguram sua permanência ao lado do Divino pela eternidade através da quitação de um carnê, como se Deus fosse Samuel Klein e o Paraíso uma super loja das Casas Bahia? Quantas e quantas grandes mulheres são oprimidas e brutalizadas em seus lares e comunidades por estar escrito que seu lugar é atrás do grande homem? Quantos e quantos políticos bem intencionados são envolvidos em um projeto de governabilidade que sabemos ser necessário, mas a que preço e risco?

Imagino, pelas incontidas lágrimas, as noites de insônia que Dilma deve estar atravessando e se questionando se estaria realmente transformando o país para melhor ou colocando em risco tudo pelo qual lutara por toda sua vida. Será que, em seus poucos momentos de sono, não estaria a presidenta tendo pesadelos envolvendo queimas de livros científicos, doutrina religiosa nas escolas, perseguições sanitárias a terreiros e centros espíritas, o aumento da AIDS pelo fim das ações de prevenção e a conversão do São João e Carnaval em grandes retiros espirituais? Ou a volta da censura e de aparelhos de repressão na República Cristã do Brasil, reativando endereços e métodos que ela um dia pensou fazer parte de seu passado, tudo conduzido pelo DOPS – Doutrina da Ordem pela Palavra do Senhor – e seu comandante e líder espiritual Jair Bolsonaro, Ministro da Cidadania. Myriam Rios, Sylas Malaraya, companheira Dilma, companheira Dilma…

COMPANHEIRA DILMA, ACORDA! VOCÊ NÃO ESTÁ TENDO UM PESADELO! ESTADO LAICO, JÁ!

- Beto Volpe
Reproduzido do blog Imprença

"Não podemos perder o bonde da contemporaneidade. Se toca, Brasil!"


Lindo e contundente depoimento de Luiz Carlos Lacerda, cineasta, mais conhecido como "Bigode", em apoio ao Casamento Civil Igualitário.

No site da campanha há ainda muitos vídeos bacanas para serem divulgados - e, no dia 12/04, assista em primeira mão os vídeos oficiais com todos os participantes. Faça sua parte: compartilhe com a família, amigos, colegas de escola, faculdade e do trabalho. Vamos espalhar essa mensagem de igualdade para o maior número de pessoas.

www.casamentociviligualitario.com.br

Reaprender a arte da procura

Escultura: Dominic Wilcox

«Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? E, ao encontrá-la, convoca as amigas e vizinhas e diz: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.” Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte.» (Lucas 15, 8-10)

Varrer
Varrer é um verbo ativo. Não fico apenas a lamentar o sucedido. Aceito «varrer», limpar, transformar, aclarar. Amontoam-se poeiras e desordens de todo o tipo. Penso, muitas vezes, no minúsculo planeta do Principezinho, a personagem criada por Saint-Exupéry.

«Como em todos os planetas, no planeta do Principezinho havia ervas boas e ervas daninhas e, logo, sementes boas de ervas boas e sementes daninhas de ervas daninhas. Mas as sementes são invisíveis. Dormem no segredo da terra até que a uma lhe dê para acordar... Então, espreguiça-se e começa a lançar timidamente um pequeno rebento inofensivo e encantador em direção ao Sol. Se é um rebento de rabanete ou de roseira, pode crescer à vontade. Mas mal se perceba que é de uma planta daninha, é preciso arrancá-lo imediatamente. No planeta do Principezinho havia umas sementes terríveis... eram as sementes de baobá. O solo estava infestado delas. Ora, se só se reparar num baobá quando este já for bastante grande, nunca mais ninguém se vê livre dele. Atravanca o planeta todo. Esburaca-o com as raízes. E um planeta muito pequeno, com muitos baobás, acaba fatalmente por explodir. "É uma questão de disciplina", dizia-me, dias depois, o Principezinho. "De manhã, quando nos levantamos, lavamo-nos e arranjamo-nos, não é? Pois lá também é preciso ir limpar e arranjar o planeta"... Às vezes, não faz mal nenhum deixar um trabalho para depois. Mas com os baobás, é sempre uma catástrofe. Uma vez fui a um planeta habitado por um preguiçoso. Não esteve para se ralar com três arbustos...»

Mesmo se a nossa vida se parece a um ínfimo planeta, os trabalhos são inúmeros e diários. No fundo, trata-se de aceitar que a vida reclama de mim, nesta hora, um enérgico sim. Tenho de lutar para ser eu. Se não varrer a minha casa, ela deixa de ser habitável, deixa de ser minha...

No diário de Paul Claudel há uma frase curiosa: «A vida espiritual não é uma questão de portas, mas de janelas.» De facto, não se trata de sair do que sou ou de buscar na exterioridade a solução, mas de abrir as jane­las e deixar o ar de Deus entrar, deixar circular o vento do Espírito.

Procurar cuidadosamente
A nossa procura de conversão não é exterior. Não pretendemos chegar a fazer uma tabela ou uma lista onde amontoamos as nossas imperfeições, como se entre elas não existisse um nexo... e nesse nexo não estivesse, de facto, o que eu sou. Há razões de fundo e obstáculos interiores em nós que é necessário identificar. «Procurar cuidadosamente», ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que nos desvitaliza espiritualmente. Talvez seja um enorme, um terrível medo... Talvez seja uma insegurança fundamental no amor de Deus... Talvez me falte a confiança e também, por isso, a minha coragem é incipiente... Talvez tudo nasça de uma incapacidade de perdoar, isto é, de sobrepor às feridas e humilhações sofridas a certeza de que o amor é o único bem... Eu procuro cuidadosamente. Pudéssemos nós dizer com Santa Teresa Benedita da Cruz: «A minha procura da verdade foi autenticamente uma oração.»

Alegrai-vos comigo
A reconciliação ficaria inacabada se ela não desembocasse num reencontro com a alegria. Muitas vezes, a alegria é circunstancial: contamos ou ouvimos uma história engraçada, há uma situação divertida que se cria, etc. Mas a mulher alude a uma coisa diferente quando diz: «Alegrai-vos comigo.» Há uma genuína e transbordante alegria por aquilo que Deus faz acontecer em nós: a revitalização surpreendente e pascal da nossa vida. A alegria não é, então, um aparato exterior, mas nós próprios nos tornamos motivo de alegria uns para os outros, uma alegria sentida não apenas na terra, mas que invade os próprios céus.

- José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas
Reproduzido via SNPC (Portugal)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Se eu me esquecer, Senhor

Foto via Blue Pueblo

Senhor,
ajuda-me a dizer a verdade diante dos fortes
e a não dizer mentiras para ganhar o aplauso dos fracos.
Se me dás fortuna, não me tires a razão.
Se me dás sucesso, não me tires a humildade.
Se me dás humildade, não me tires a dignidade.
Ajuda-me a enxergar o outro lado da moeda.
Não me deixes acusar o outro por traição aos demais,
apenas por não pensar igual a mim.
Ensina-me a amar os outros como a mim mesmo.
Não deixes que me torne orgulhoso, se triunfo;
nem cair em desespero se fracasso.
Mas recorda-me que o fracasso é a experiência que precede o triunfo.
Ensina-me que perdoar é um sinal de grandeza
e que a vingança é um sinal de baixeza.
Se não me deres o êxito, dá-me forças para aprender com o fracasso.
Se eu ofender as pessoas, dá-me coragem para desculpar-me.
E se as pessoas me ofenderem, dá-me grandeza para perdoar-lhes.
Senhor, se eu me esquecer de Ti, nunca Te esqueças de mim.

- Mahatma Gandhi

Vida em plenitude


Se a secularização da sociedade descarta cada vez mais a ideia de pecado, urge introduzir a da ética

Sumak kawsay é uma expressão dos índios aymaras, dos Andes; significa “bem viver” ou “vida em plenitude”. “Vim para que todos tenham vida e vida em plenitude”, disse Jesus (João 10, 10). Nos conceitos cristão e indígena, essa vida plena nada tem a ver com riqueza e acúmulo de bens materiais. Antes, encerra uma proposta de felicidade, de um bem-estar espiritual respaldado por condições dignas de existência.

Participei, em Quito, de seminário em torno do tema Sumak kawsay. Em seguida, fui a Cochabamba para um evento internacional sobre ecologia, que retomou o paradigma de uma vida que considera necessário o suficiente. E em Havana, no colóquio internacional “José Martí: por uma cultura da natureza”, tive oportunidade de reaprofundar o tema.

Nosso atual modelo hegemônico de sociedade, baseado no consumismo e na acumulação do lucro, encontra-se em crise. De cada três habitantes do planeta, dois vivem entre a pobreza e a miséria. Todas as formas de vida estão ameaçadas pela degradação ambiental. Apesar disso, mais de 6 mil culturas e 500 milhões de pessoas resistem à modernidade neocolonialista que o paradigma anglo-saxônico insiste em nos impor.

O Fórum Social Mundial cunhou a utopia de “um outro mundo possível”. Ora, melhor falar em “outros mundos possíveis”, abertos à pluralidade de etnias e culturas. O que nos exige uma atitude iconoclasta, de derrubar os mitos da modernidade capitalista, como mercado, desenvolvimento e Estado uninacional, fundados na razão instrumental.

Ao questionar as lógicas mercantilistas, desenvolvimentistas e consumistas, contribuímos para desmercantilizar a vida. Sabemos todos que, em nome do deus mercado, água, florestas, mares e demais bens da Terra deixam de ter valor de uso para ter apenas valor de troca. Até as relações pessoais são sempre mais mercantilizadas.

“Vida em plenitude” nos exige resgatar a sabedoria dos povos originários, numa atitude relacional e dialógica com a natureza e os semelhantes. Abaixo a cultura do shopping, do consumismo desenfreado! Agora, trata-se de viver bem, e não de viver melhor que o vizinho ou de acordo com as imposições do grande oráculo do deus mercado: a publicidade. “Viver bem” é poder pensar, discernir e decidir com autonomia; promover a interculturalidade e a diversidade linguística; admitir a variedade de formas de democracia; favorecer os autogovernos comunitários; socializar o poder.

Os povos originários, como as nações indígenas que se espalham Brasil afora, sempre foram encarados, por nosso citadino preconceito, como inimigos do desenvolvimento. Conheço sumidades acadêmicas que não se envergonham de defender a integração dos índios ao nosso modelo de sociedade urbana.

Ora, este nosso modelo é o grande inimigo daqueles povos. Sequer somos capazes de nos perguntar como podem ser felizes se não possuem a parafernália de produtos e as condições de conforto que a publicidade apregoa como necessárias a uma vida feliz.
Frente à crise da civilização hegemonizada pelo capitalismo, é hora de se construírem novos paradigmas. Isso implica valorizar outras formas de conhecimento; integrar o humano ao natural; respeitar a diversidade de cosmovisões; desmercantilizar e socializar os meios de comunicação; e opor a ética da solidariedade à competitividade.

Se a secularização da sociedade descarta cada vez mais a ideia de pecado, urge introduzir a da ética, a fim de ultrapassar esse limbo de relativização dos valores que tanto favorece a corrupção, a ridicularização do humano, a prepotência de quem se julga único portador da verdade e não se abre ao direito do outro, à diversidade e ao diferente.

Uma revista inglesa propôs a um grupo de leitores verificar, durante três meses, quais os produtos estritamente necessários para que cada um se sentisse feliz. Todos, sem exceção, concluíram que se ampliou o orçamento familiar ao constatar o alto índice de supérfluos até então consumidos como necessários.

“Vida em plenitude” significa estar aberto e relacionar-se com o transcendente, a natureza e o próximo. Não basta, porém, abraçar essa atitude como mera receita de autoajuda. É preciso transformá-la em projeto político, de modo a reduzir a desigualdade social e universalizar o acesso de todos à alimentação, à saúde, à educação e aos demais direitos básicos. Ao contrário do que pregava o teólogo Adam Smith, é fora do mercado que reside a salvação.

- Frei Betto
Reproduzido via Conteúdo Livre

Novas famílias homoafetivas




Enquanto isso, no GNT, a série Novas Famílias já incluiu dois programas sobre famílias homoafetivas - e mostrando os casais LGBT exatamente como são: iguais aos outros. :-)

Os vídeos acima contêm apenas trechos dos programas. Se alguém souber de um link para os programas na íntegra e puder nos informar, agradecemos! :-)

(Vimos no Um Outro Olhar.)

CNBB critica pai-nosso obrigatório em escola

Foto daqui

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) afirmou ontem ser contra "discriminação por motivos religiosos" e que a Igreja Católica entende que o "respeito às crenças ou descrenças deve ser cultivado".

Foi uma referência ao fato de Ciel Vieira, 17, aluno de uma escola estadual de Miraí, em Minas, ter dito que uma professora o hostilizou por ele não rezar o pai-nosso na classe. O estudante é ateu e a professora, Lila Jane de Paula, católica.

"A oração é um diálogo livre e amoroso da pessoa ou da comunidade com Deus. Não faz sentido obrigar uma pessoa a rezar, como também proibi-la", afirmou dom Tarcísio Scaramussa, bispo do setor de universidades e ensino religioso da CNBB.

A Secretaria de Estado de Educação de Minas apura se houve infração de Lila. Ela foi "advertida" e instada a não rezar mais dentro da sala. O Estado brasileiro é laico.

Fonte: IHU, com grifos nossos.


* * *

Atualização em 06/04/12:

Helio Schwartsman, na Folha de S. Paulo (aqui):

"Concordo em gênero, número e caso com dom Tarcísio Scaramussa, da CNBB, quando ele afirma que não faz sentido nem obrigar uma pessoa a rezar nem proibi-la de fazê-lo. (...)

É uma boa ocasião para discutir o ensino religioso na rede pública, do qual a CNBB é entusiasta. Como ateu, não abraço nenhuma religião, mas, como liberal, não pretendo que todos pensem do mesmo modo.

Admitamos, para efeitos de argumentação, que seja do interesse do Estado que os jovens sejam desde cedo expostos ao ensino religioso. Deve-se então perguntar se essa é uma tarefa que cabe à escola pública ou se as próprias organizações são capazes de supri-la, com seus programas de catequese, escolas dominicais etc.

A minha impressão é a de que não faltam oportunidades para conhecer as mais diversas mensagens religiosas, onipresentes em rádios, TVs e também nas ruas. Na cidade de São Paulo, por exemplo, existem mais templos (algo em torno de 4.000) do que escolas públicas (cerca de 1.700). Creio que vale aqui a regra econômica, segundo a qual o Estado deve ficar fora das atividades de que o setor privado já dá conta.

Outro ponto importante é o dos custos. Não me parece que faça muito sentido gastar recursos com professores de religião quando faltam os de matemática, português etc. Ao contrário do que se dá com a religião, é difícil aprender física na esquina.

Até 1997, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação acertadamente estabelecia que o ensino religioso nas escolas oficiais não poderia representar ônus para os cofres públicos. A bancada religiosa emendou a lei para empurrar essa conta para o Estado. Não deixa de ser um caso de esmola com o chapéu alheio."

Morrer para viver

Gravura daqui

Estamos diante de “paradoxos” do evangelho? “Perder” a vida por amor é a forma de “ganhá-la” para a vida eterna (ou seja, ir de encontro aos valores definitivos do evangelho de Jesus, aplicando-os). Morrer para si mesmo é a verdadeira maneira de viver; entregar a vida é a melhor forma de retê-la; oferecer a vida (à causa de Jesus) é a melhor forma de receber a vida eterna, hoje e sempre (P.Tillich, A vida eterna é agora!). Paradoxo é uma contradição aparente, como perder ou ganhar, morrer ou viver, entregar ou reter, dar ou receber, desabrochar ou murchar, amadurecer ou apodrecer. Parecem dimensões ou realidades contraditórias. Mas não são.

Descobrir o evangelho, para João, é alcançar novas sensibilidades. O húmus da terra encarrega-se de dar vida à semente que morre e forma novas raízes. Saberes, conhecimentos, símbolos, significados, valores, sentimentos, emoções, sensibilidades, são eixos de orientação que precisamos aprender (C.R.Brandão), quando buscamos o sentido do evangelho de Jesus sobre a semente que morre para que ressuscitar a vida.

Físico de renome fala com muita delicadeza sobre este assunto: “Tudo que vive é dissipativo, se desmancha, se dissolve para alimentar outras coisas, outras vidas” (Yilia Prigonine). A morte alimenta a vida, quis João dizer? Pergunta que faço para mim mesmo, bom aprendizado para a vida de fé. Como a roseira na minha varanda, cujos galhos já não florescem precisando ser podados, para que brotem novos galhos do tronco que lhes dá a vida; para que novos botões aflorem, novas cores seduzam o observador; novos perfumes se lancem no ar úmido, em sensações deliciosas que anunciem o renovo, a ressurreição da vida. Permanecerá, sempre, a vida em renovo. Se os galhos improdutivos forem podados.

Uma águia real pode viver 70 anos, se aos 40 assumir o que deve ser feito. O bico enfraqueceu com a idade e se curvou, impedindo que a águia continue sua caça normalmente. As unhas estão gastas e enfraquecidas, a penas estão murchas, o corpo pesado desliza com dificuldade nas correntes de ar. A águia, então, toma a decisão necessária, sobe ao ninho na alta montanha para reorganizar suas forças e potenciais. O processo se completará em cinco meses. A águia começa por bater insistentemente o bico na pedra até arrancá-lo completamente. Depois, aguarda nascer o novo bico. Após semanas, com o bico renovado, arranca as unhas gastas, uma por uma. Em seguida, retira uma a uma as velhas penas e aguarda o renovo das duas. A partir daí viverá mais 30 anos.

O ser humano também se caracteriza por ser capaz de amar, de sair de si mesmo, e entregar sua vida ou entregar-se a si mesmo por amor. A humanização seria a “descentralização” de si mesmo, que é sair de si mesmo e encontrar-nos com os demais no amor… A parábola que estamos refletindo expressa um ponto alto desse amadurecimento, tanto que pode ser considerada uma expressão acima do amor. No fundo, esta parábola equivale ao mandamento novo: “Este é o meu mandamento, que se amem uns aos outros ‘como eu’ vos tenho amado; não há maior amor que ‘dar a vida’” (Jo 15,12-13). As palavras de Jesus têm ai a pretensão de síntese. Aí se encerra toda a sua mensagem. Amor para Jesus se traduz em misericórdia, compaixão, cuidado, solidariedade, partilha. Amor concreto, sem abstrações filosóficas. É preciso sacrificar as velhas convicções, os equívocos religiosos ou filosóficos, e ingressar no renovo que sustenta a vida.

No evangelho de João (12, 20-33) vemos judeus gentílicos que vêm a Jerusalém. Convertidos ao judaísmo no mundo greco-romano mediterrânico, comemorarão a Páscoa. Buscam a Jesus. Mais um gesto do evangelho ecumênico de João, ou pleno, total, universal (katholicos), pois este lhes informa: “inclusive os pagãos buscam a Jesus”. A ocasião é aproveitada para se anunciar que o tempo das palavras e sinais está chegando ao seu fim, pois se aproxima a “hora” do “sinal” maior: a paixão e morte na cruz, para a redenção do mundo. O testemunho da Ressurreição universal está na pauta do evangelho joanino.

Devemos perguntar se a mensagem da pequena parábola do grão de trigo é uma “uma revelação única”, particular, para eleitos, ou foi revelada para todos os homens e mulheres desta terra. As pessoas podem descobri-la, sem a interpretar? A mensagem que Jesus propõe, é uma “revelação” vinda do alto, à qual nunca poderíamos chegar se ele não nos tivesse manifestado aos crentes? Se o grão de trigo não cai na terra morre, não fecunda. O grão de trigo entrega-se à morte, enterra-se, perde-se, ou “ressuscita” para ser fecundo? A condição da fecundidade é saber morrer para muitas coisas e ressuscitar para outras, como nos lembrará, também, Paulo, o apóstolo e mártir do evangelho de Jesus Cristo.

Tratamos aqui das sementes e das raízes do evangelho de Jesus sobre a ressurreição. O Evangelho fala de gestos fundadores da vida humana na partilha do amor (Roland Barthes). Penso eu, você concorda?, Jesus recorre à parábola, “só o grão de trigo que morre dá muito fruto” como lição fundamental do Evangelho inteiro. O ponto máximo da mensagem de Jesus é o amor concreto, solidário, cooperativo; amor que reforça o primado da pessoa e da vida; amor que se dá a si mesmo em renúncia, e “perder-se a si mesmo” em entrega sem medo; amor que, por esse perder-se, morrendo para si mesmo, enquanto se gesta a vida nova em ressurreição do ser inteiro; amor sem fronteiras, como um poço profundo ao qual nenhuma sonda encontra o fundo.

Discordará dele o evangelho dopado pela religiosidade emocional (...) que evita sistematicamente a cruz, o sofrimento e as provações de quem ousa contestar, indignar-se contra a injustiça, desejando a felicidade “química” comprada com dinheiro e sustentada pelo evangelical show business que tomou as igrejas cristãs.

- Derval Dasílio, em Teologia & Liturgia e Culto Cristão
Mensagem para o 5º. Domingo da Quaresma – Ano B
Jeremias 31,34 – A Lei de Deus não nunca estará num livro de papel…
Salmo 107,1-3;17-22 – Salvos porque bradaram contra o sofrimento de todos
Hebreus 5,5-10 – Foi Cristo que orou pela salvação de todos
Evangelho: João 12, 20-33 – Se o grão de trigo morrer, produzirá muito fruto

terça-feira, 3 de abril de 2012

Qual é o Deus que você segue?


Foto: heart

"Um deus que é capaz de realizar o mal para demonstrar logo em seguida sua bondade carece de acompanhamento psiquiátrico. Um deus que é capaz de fazer alguém cair em desgraça só para ensinar lições aos seus filhos queridos não merece o respeito. (...)

Um deus que precisa de atos de crueldade para demonstrar o seu “grande amor” e a sua “imensa graça” nunca, jamais, terá dos meus lábios a confissão de que “Vive e Reina para Sempre”.

Ando de braços dados com um Deus que se revela todo em amor e graça. Descubro-O nos lugares e nas pessoas mais inesperadas (até mesmo ateus e “não-cristãos). Contemplo sua beleza nos versos dos poetas e menestréis que habitam o meu silenciar. Devoro sua carta de amor, que muitos querem como manual, como criança que consegue juntar palavras pela primeira vez."

- José Barbosa Junior, em seu blog

Bento XVI critica, ainda que suavemente, o clericalismo na América Latina

Foto: JF Diorio/AE

O ato diplomátio de alta tensão do Papa Bento XVI em Havana, pressionando pela liberdade religiosa, mas evitando o confronto direto com o regime de Castro, foi o principal flash noticioso da sua viagem ao México e Cuba entre os dias 23 a 28 de março. No entanto, havia outro leitmotiv para a viagem, mais sutil, mas sem dúvida mais decisivo para a Igreja na América Latina.

Não me levem a mal, mas o papa ofereceu uma ridicularização gentil, embora inconfundível, do clericalismo. Seu foco pareceu ser a gradual reformulação da cultura eclesial, não as manchetes sensuais de curto prazo, o que a coloca diretamente na sala de controle de Bento XVI.

O catolicismo na América Latina é extremamente diversificado, desde o catolicismo popular emocional das diversas devoções marianas, até as "comunidades de base" que foram a espinha dorsal da teologia da libertação. Uma corrente importante, no entanto, tem sido uma forma extraordinariamente forte de clericalismo, talvez o inevitável resultado do fato de a fé ser efetivamente um monopólio até muito recentemente.

Expressões típicas desse clericalismo incluem:

  • O clero se vê como lobbista político, desempenhando um papel direto nos assuntos de Estado;
  • A Igreja projeta uma imagem de poder e de privilégio com seu imaginário espiritual preferido enfatizando Deus como um monarca cósmico;
  • O papel dos leigos é concebido em termos largamente passivos – "pague, reze e obedeça";
  • Pouco valor é dado à evangelização ou à formação na fé, com o cuidado pastoral sendo entendido principalmente em termos de administração de sacramentos.

As consequências pastorais negativas desse tipo de clericalismo são agora incrivelmente claras. Enfrentando o duplo ataque violento do secularismo em alguns círculos e do pentecostalismo praticamente em todos os demais lugares, a Igreja Católica na América Latina manteve perdas enormes em porcentagem durante o fim do século XX. (Os números católicos brutos aumentaram como resultado do crescimento da população em geral, mas a parcela católica do continente diminuiu, em parte devido ao astronômico crescimento do cristianismo pentecostal e evangélico).

Pode parecer irônico que uma viagem papal, com todo o seu imaginário clerical resultante, tenha sido o veículo para uma crítica do clericalismo. Também pode parecer irônico, ao menos para alguns, que Bento XVI tenha sido o papa a fazer isso, dado que os críticos ao longo dos anos o acusaram de defender uma espécie de eclesiologia da "alta Igreja" contra um catolicismo popular "de baixo".

O tecido da história, no entanto, muitas vezes é costurado com ironia, e essa viagem parece ser um caso exemplar a respeito.

A Igreja e a política
Em primeiro lugar, Bento XVI reafirmou que a Igreja Católica não é um partido político, e que a sua contribuição mais importante para a vida política é a formação das consciências individuais – valorizando o papel do clero como pastores, não como especialistas ou ativistas.

Bento XVI fez isso antes mesmo de chegar à América Latina, no avião papal, pouco depois de decolar de Roma. Em resposta a uma pergunta sobre o papel político da Igreja, ele ressaltou que é preciso ter clareza sobre "o que a Igreja pode e deve fazer, e o que não pode e não deve fazer" – uma referência ao perigo das plataformas diretamente partidárias.

No Parque Bicentenário de León, Bento XVI ofereceu uma meditação sobre "Cristo Rey", que era o grito de guerra dos cristeros durante a Revolução Mexicana e ainda é invocado hoje por membros da Igreja mexicana como uma espécie de cartaz político.

"O seu reino não consiste no poder dos seus exércitos submeterem os outros pela força ou pela violência", disse o papa. "Funda-se em um poder maior, que conquista os corações: o amor de Deus".

Nesse espírito, Bento XVI exortou os católicos a serem "corajosos na humildade".

Bento XVI continuou seu discurso evitando qualquer coisa que pudesse ser interpretada como um comentário político direto na corrida às eleições do México em julho. As lideranças católicas do México são frequentemente percebidas como alinhadas em favor do partido conservador Ação Nacional, e alguns temiam que a viagem papal equivaleria a um comício de campanha.

No entanto, Bento XVI nunca disse nada sobre as eleições vindouras, nem mesmo algo anódino como um chamado genérico à responsabilidade eleitoral. Surpreendentemente, ele evitou amplamente as questões polêmicas do aborto e do casamento gay, que estão em jogo no México e em outras partes da América Latina (durante a sua intervenção no Ângelus de domingo, Bento XVI se referiu à importância da "defesa e do respeito pela vida humana").

Com relação às lealdades políticas da Igreja Católica, Bento XVI enfatizou que a Igreja deve "estar do lado de quem é marginalizado pela violência, pelo poder ou por uma riqueza que ignora quem carece de quase tudo".

O papa disse que a fé deve ter consequências para a vida pública, rejeitando uma "esquizofrenia" que tenta separar a ética privada e a moralidade pública. No entanto, mesmo aqui, o papa sublinhou que o papel da Igreja é a "educação das consciências", ao invés de oferecer soluções legislativas diretas.

Em geral, Bento XVI parecia determinado a oferecer à América Latina um exemplo de como um clérigo católico sênior poderia passar vários dias sob um intenso foco midiático sem resultar em um político de batina.

Um Deus "pequeno e próximo"
Durante suas considerações a bordo do avião papal, Bento XVI fez uma meditação sobre o que ele chamou em italiano de um "cristianismo essencializado", ou seja, um cristianismo focado no "núcleo fundamental para se viver hoje com todos os problemas do nosso tempo".

No centro desse cristianismo essencial, defendeu o papa, está a ideia de um Deus que é pequeno e próximo de cada pessoa humana – para além do Deus "grande e majestoso", o tipo de imaginário espiritual h[a muito tempo associado com uma Igreja clericalista.

"Nós vemos a racionalidade do cosmos, vemos que há algo por trás disso, mas não vemos como esse Deus está próximo, como ele concerne a mim", disse o papa.

"Essa síntese do Deus grande e majestoso e do Deus pequeno que está perto de mim, que me orienta, que me mostra os valores da minha vida é o núcleo de evangelização", afirmou Bento XVI.

Em seu discurso para os bispos latino-americanos, Bento XVI afirmou que essa noção de um Deus pequeno e próximo flui naturalmente em um espírito de serviço.

"A Igreja não pode separar o louvor de Deus do serviço aos seres humanos", disse ele.

"O único Deus Pai e Criador é que nos constituiu irmãos: ser homem é ser irmão e guardião do próximo", disse o papa. "Nesse caminho, com toda a humanidade, a Igreja deve reviver e atualizar o que Jesus foi: o Bom Samaritano que, vindo de longe, se integrou na história dos homens, nos levantou e se prodigalizou pela nossa cura".

Os leigos não são pessoas que contam pouco
O golpe mais direto de Bento XVI contra o clericalismo surgiu em uma discussão sobre o papel dos leigos na Igreja.

Não por coincidência, o papa escolheu um discurso para os bispos da América Latina e do Caribe na catedral de León para apresentar esse ponto, enfatizando que ele estava falando não apenas para o México, mas para todo o continente.

"Uma atenção cada vez mais especial é devida aos leigos mais comprometidos na catequese, na animação litúrgica, na ação caritativa e no compromisso social", disse o papa. "A sua formação na fé é crucial para tornar presente e fecundo o Evangelho na sociedade atual".

Só isso já seria suficiente para puxar o tapete de uma psicologia überclericalista, em que a aplicação da fé à sociedade contemporânea é tratada como território exclusivo da casta clerical.

Para ter certeza de que ninguém perdeu o ponto, porém, Bento XVI acrescentou uma injunção ainda mais direta sobre os leigos.

"E não é justo que se sintam tratados como quem pouco conta na Igreja", disse ele, "apesar do entusiasmo que sentem em trabalhar nela segundo a sua vocação própria, e o grande sacrifício que às vezes lhes requer esta dedicação".

O papa também pediu que "um espírito de comunhão" prevaleça entre sacerdotes, religiosos e os fiéis leigos, afirmando que "divisões estéreis, críticas e suspeitas nocivas" devem ser evitadas.

"Missão Continental"
Finalmente, Bento XVI endossou repetidamente o pedido feito por uma grande "Missão Continental", que resultou da última assembleia geral dos bispos latino-americanos em Aparecida, Brasil, em 2007, da qual o papa participou.

Os pilares dessa "Missão Continental", tal como foi concebida há cinco anos, são:

  • Um forte papel para os leigos como evangelizadores de vanguarda;
  • Uma sólida formação na fé para toda a população católica da América Latina, não apenas para as elites clericais (ou mesmo leigas).

Uma e outra vez, Bento XVI voltou a essa ideia, salientando que a evangelização e a formação na fé são uma preocupação de todos.

"A Missão Continental, que agora está sendo realizada de diocese em diocese neste continente, tem precisamente como objetivo fazer chegar essa convicção a todos os cristãos e às comunidades eclesiais", disse o papa, "para que resistam à tentação de uma fé superficial e rotineira, por vezes fragmentária e incoerente".

Esse trecho sobre uma fé "superficial" é, indiretamente ao menos, um golpe contra uma das mais notórias patologias do clericalismo, em que a maioria dos leigos são batizados, confirmados e casados na Igreja, mas, por outro lado, são deixados se virando sozinhos.

A consequencia evidente dessa a abordagem pastoral laissez-faire foi capturada em um ditado espanhol: "Católico ignorante, seguro Protestante": ou seja, um católico ignorante certamente irá se tornar um protestante, A ideia é que alguém que não sabe por que é católico, em primeiro lugar, é um bom candidato para resolver seu negócio religioso em outro lugar quando uma oferta atraente surgir.

Bento XVI pediu que essa Missão Continental esteja no centro do "Ano da Fé" que ele proclamou recentemente.

Uma nota de rodapé sobre os cartéis e Maciel
Em declarações no sábado durante uma celebração das Vésperas, antes de um encontro de bispos latino-americanos ao qual um jornalista italiano se referiu como um "conclave latino", Bento XVI se referiu às "nossas fraquezas e faltas" e à realidade da "maldade e a ignorância dos homens", mesmo dentro da Igreja.

Os comentários foram interpretados como uma referência indireta a dois capítulos da história mexicana recente que mancharam a imagem do clero católico: a íntima relação que alguns membros do clero parecem ter com os cartéis de drogas e seus senhores – que às vezes vão à missa e até mesmo dão dinheiro à Igreja para demonstrar suas bona fides católica – e o caso do falecido Pe. Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, que cometeu várias formas de abuso sexual e de más condutas.

Bento XVI nunca mencionou diretamente o caso Maciel e recusou um pedido de se encontrar com as vítimas de Maciel. Em uma sessão com os jovens, no entanto, o papa convidou "todos a protegerem e cuidarem das crianças, para que nunca se apague o seu sorriso, podendo viver em paz e olhar o futuro com confiança".

Será que vai funcionar?
Mudar a cultura eclesial de todo um continente não é fácil, e a maioria dos observadores irá lhe dizer que a desconstrução do clericalismo na América Latina é ainda um trabalho em progresso. Além disso, não está claro se o novo abraço por parte dos bispos de um robusto espírito missionário com liderança leiga é verdadeiramente uma questão de “metanoia”, de uma mudança duradoura de coração e de mente, ou simplesmente uma resposta pragmática para não serem derrotados pelos pentecostais.

Mas há sinais de que o catolicismo na América Latina, aos trancos e barrancos, está fazendo a transição do clericalismo para um espírito mais dinâmico (e, é claro, portanto, mais fissíparo e frenético) de energia empreendedora.

Em seu livro de 2008, Conversion of a Continent, o padre dominicano Edward Cleary argumenta que a América Latina está nas garras de uma turbulência religiosa, com o pentecostalismo como sua ponta de lança. No entanto, Cleary argumenta que o catolicismo também está se tornando mais dinâmico, gerando altos níveis de compromisso entre aqueles que ficam. Cleary acredita que esse despertar católico teve suas raízes nos movimentos leigos que remontam aos anos 1930 e 1940, mas teve seu início com a saudável concorrência dos pentecostais.

Se a transição para longe do clericalismo insalubre for levado a uma conclusão bem-sucedida, a viagem de março de 2012 de Bento XVI pode ser lembrada como um ponto de virada – não tanto em termos de provocar a mudança, talvez, mas ao menos por dar a ela o apoio papal.

- John L. Allen Jr., para o sítio do jornal National Catholic Reporter, 30-03-2012. Tradução de Moisés Sbardelotto, reproduzida aqui via IHU.
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