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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos (4)



Foto: Tony Park

Começamos a publicar há três semanas (primeira parte aqui; segunda parte, aqui; terceira, aqui), em 6 partes (que você acessa na tag "Homossexualidade e evangelização"), o artigo "Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos", do Pe. Luís Correa Lima, SJ, divulgado pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, da PUC-Rio, como uma síntese do curso Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã, realizado em 2010 e 2011. O artigo, que sairá sempre às quintas-feiras pela manhã, tem como objetivo fornecer subsídios a religiosos e leigos, agentes de pastoral e outros para entender melhor e encontrar meios de lidar, dentro do contexto da Igreja Católica, com os desafios pastorais da relação e cuidado da população LGBT, no foco do acolhimento respeitoso e amoroso.

Castidade e lei natural
Convém tratar da castidade, contida nos Dez Mandamentos, e que constitui um importante conceito da moral. Originalmente o preceito é ‘não cometerás adultério’. Jesus, ao responder sobre o que se deve fazer para herdar a vida eterna, menciona não matar, não cometer adultério, não roubar, não levantar falso testemunho, não prejudicar ninguém, e honrar pai e mãe (Mc 10, 17-22). Os quatro primeiros preceitos estão no Decálogo. O preceito seguinte (não prejudicar ninguém) não está, mas ele resume os anteriores e lhes dá o verdadeiro sentido. São Paulo aprofunda e sintetiza esta questão: quem ama o próximo está cumprindo a lei, pois os mandamentos se resumem no amor ao próximo (Rm 13,8-10). Este é o espírito dos mandamentos e a sua chave de compreensão.

A castidade é definida hoje como a integração da sexualidade na pessoa, na sua unidade de corpo e alma (Catecismo da Igreja Católica, §2337). Esta integração é um caminho gradual, um crescimento pessoal em etapas, quepassa por fases marcadas pela imperfeição, e até pelo pecado (ibidem, §2343). Por isso, é preciso levar em conta a situação em que a pessoa se encontra, e os passos que ela pode e deve dar. Só pode haver integração bem sucedida neste campo se a pessoa viver em paz com a sua sexualidade, e amar o seu semelhante.

O teólogo Joseph Ratzinger tem uma importante contribuição para a reflexão sobre a castidade. Ela não é uma virtude fisiológica, mas social. Trata-se de humanizar a sexualidade, não de ‘naturalizá-la’. A sua humanização consiste em considerá-la não como um meio de satisfação privada, uma espécie de entorpecente ao alcance de todos, mas como um convite ao homem para que saia de si mesmo. A realização da sexualidade não adquire um valor ético quando se faz ‘conforme a natureza’, mas quando ocorre de acordo com a responsabilidade que tem o homem diante do homem, diante da comunidade humana e diante do futuro humano. Para avaliar a sexualidade, prossegue Ratzinger, pode-se dizer que ela reflete e concretiza o dilema fundamental do homem. Ela pode representar a total libertação do eu no tu, ou também a total alienação e fechamento no eu [“Hacia una teología del matrimonio”. Selecciones de teologia, nº35, 1970, p. 243].

Sobre a conformidade à natureza, é importante refletir sobre um outro conceito da moral que é a lei natural. O mundo é criação divina, feito segundo a razão do Criador (Logos), de modo a manifestar a Sua sabedoria. Há na criação uma racionalidade que pode ser conhecida pelo ser humano, e orientar a sua ação. Há uma lei inscrita no coração humano que orienta os seus juízos éticos (Rm 2, 12-16). Um recente documento da Igreja, da Comissão Teológica Interncional, trata deste assunto de maneira muito oportuna [Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural. Paulinas, 2009].

A expressão ‘lei natural’, segundo a Comissão, atualmente é fonte de numerosos mal-entendidos. Por vezes, ela evoca simplesmente uma submissão resignada e passiva às leis físicas da natureza, quando o ser humano busca, e com razão, dominar e orientar estes determinismos para o seu bem. Por vezes, ela é apresentada com um dom objetivo que se impõe de fora da consciência pessoal, independentemente do que elabora a razão e a subjetividade. Ela é suspeita de introduzir uma forma de heteronomia insuportável à dignidade da pessoa humana livre. Outras vezes também, ao longo de sua história, a teologia cristã justificou muito facilmente com a lei natural posições antropológicas que, em seguida, mostraram-se condicionadas pelo contexto histórico e cultural. Hoje, é importante propor a doutrina da lei natural em termos que manifestem melhor a dimensão pessoal e existencial da vida moral (Em busca..., nº10). Certamente aquela oposição de Ratzinger à ‘naturalização’ da sexualidade se refere a estes mal-entendidos sobre a lei natural.

Considerando uma sociedade pluralista como a nossa, prossegue o documento, a ciência moral não pode fornecer ao sujeito uma norma que se aplique de forma adequada e automática às situações concretas. Só a consciência do sujeito, o juízo de sua razão prática, pode formular a norma imediata da ação. Mas, ao mesmo tempo, não se deve deixar a consciência entregue à pura subjetividade. É preciso fazê-la adquirir as disposições intelectuais e afetivas que lhe abrem à verdade moral, para que seu juízo seja adequado. A lei natural não deve ser apresentada como um uma lista de preceitos definitivos e imutáveis, ou como conjunto de regras já constituído que se impõe previamente ao sujeito. Ela é uma fonte de inspiração objetiva para o seu processo de tomada de decisão, que é eminentemente pessoal. Esta fonte jorra sempre que se busca um fundamento objetivo para uma ética universal (Em busca..., nos59 e 113).

A Comissão reconhece também que a aplicação concreta de preceitos da lei natural adquire diferentes formas nas diversas culturas, ou mesmo em diferentes épocas dentro de uma mesma cultura. A reflexão moral evoluiu em questões como a escravatura, o empréstimo a juros, o duelo e a pena de morte. Coisas que eram permitas passaram a ser proibidas, e vice-versa. Há uma compreensão melhor da interpelação moral. A mudança da situação política ou econômica traz uma reavaliação das normas particulares que foram estabelecidas anteriormente (Em busca..., nº53).

A consciência do sujeito tem um peso decisivo, sobretudo em questões complexas. Este papel não deve ser esquecido ou subestimado. O Concílio Vaticano II afirmou o direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência, e o dever de não agir contra ela. Nela está o ‘sacrário da pessoa’, onde Deus está presente e se manifesta. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos outros homens no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social (Gaudium et spes, nº16). Nenhuma palavra externa substitui o juízo e a reflexão da própria consciência.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos (3)

Foto: Tony Park

Começamos a publicar há duas semanas (veja a primeira parte aqui e a segunda, aqui), em 6 partes (que você acessa na tag "Homossexualidade e evangelização"), o artigo "Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos", do Pe. Luís Correa Lima, SJ, divulgado pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, da PUC-Rio, como uma síntese do curso Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã, realizado em 2010 e 2011. O artigo, que sairá sempre às quintas-feiras pela manhã, tem como objetivo fornecer subsídios a religiosos e leigos, agentes de pastoral e outros para entender melhor e encontrar meios de lidar, dentro do contexto da Igreja Católica, com os desafios pastorais da relação e cuidado da população LGBT, no foco do acolhimento respeitoso e amoroso.

A Sagrada Escritura
Com relação à Sagrada Escritura e a homossexualidade, convém ir além da leitura ao pé da letra. Há novas maneiras de se compreender os textos bíblicos, utilizando o método histórico-crítico que os situa em seus respectivos ambientes sócio-culturais, com seus modos de expressão próprios. A Igreja reconhece esta abordagem desde o tempo do papa Pio XII, e a aprofundou com o Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo em que busca harmonizá-la com os conteúdos da fé.

A Revelação divina testemunhada na Bíblia é proposta e expressa de modos diversos, através de ‘gêneros literários’ históricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa que o intérprete busque o sentido que os autores sagrados em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretenderam exprimir servindo-se dos gêneros literários então usados. Para se entender corretamente o que os autores sagrados quiseram afirmar, devem-se levar em conta as maneiras próprias de sentir, dizer ou narrar em uso no tempo deles, como também os modos que se empregavam frequentemente nas relações entre os homens daquela época (Dei verbum, nº12).

No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se unirem e procriarem. Há uma espécie de heterossexualidade universal que está suposta, expressa no imperativo ‘crescei-vos e multiplicai-vos’. O livro que contem este preceito, o Gênesis (1,28), foi escrito no tempo do exílio judaico na Babilônia. Para o povo de Israel, expulso de sua terra e submetido a uma potência estrangeira, crescer era fundamental para a sobrevivência da nação e da religião. O sêmen do homem supostamente continha o ser humano inteiro em miniatura, e deveria ser colocado no ventre da mulher assim como a semente é depositada na terra. Não se conhecia o óvulo. O sêmen jamais deveria ser desperdiçado, como mostra a história de Onã, fulminado por Deus por causa deste tipo de transgressão (Gên 38,1-10).

É neste contexto que a relação sexual entre dois homens era considerada uma abominação. Israel devia se distinguir das outras nações de várias maneiras, pelo seu culto e por uma série de usos e costumes, segundo o código de santidade do livro do Levítico. Aí se inclui a proibição do homoerotismo (Lv 18,22). Proíbe-se também, e com rigor: trabalhar no sábado, comer carne de porco ou frutos do mar (ou qualquer animal marítimo ou fluvial que não tenha barbatanas e escamas), aparar o cabelo e a barba, tocar em mulher mestruada durante sete dias, usar roupa tecida com duas espécies de fio, semear no campo duas espécies de semente e acasalar animais de espécies diferentes. Quando o cristianismo se expandiu entre os povos não judeus, este código deixou de ser normativo, mas a proibição do homoerotismo permaneceu. A Igreja herdou a visão antropológica da heterossexualidade universal, com suas interdições.

O pecado de Sodoma foi recusar hospitalidade, levando à tentativa de estupro feita aos hóspedes do patriarca Ló. Com freqüência, o estupro era uma forma de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos. Originalmente, o delito de Sodoma era visto como “orgulho, alimentação excessiva, tranqüilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente”. Através do Profeta, o Senhor diz: “Tornaram-se arrogantes e cometeram abominações em minha presença” (Ez 16, 49-50). Posteriormente tal pecado foi identificado com o homoerotismo, mas na origem ele nada tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com as relações sexuais livremente consentidas entre pessoas do mesmo sexo.

Há um relato semelhante ao de Sodoma no livro dos Juízes (cap. 19 e 20). Um levita e sua concubina se hospedaram na cidade de Gabaá, da tribo de Benjamin. Os habitantes da cidade hostilizaram os visitantes e estupraram até a morte a concubina do levita. O Senhor suscitou os israelitas contra aquela cidade, e ela foi completamente destruída. Não se deve, a partir deste relato, condenar a heterossexualidade. O que se condena, tanto em Sodoma quanto em Gabaá, é a falta de hospitalidade e a hostilidade violenta para com a pessoa que vem de fora.

No Novo Testamento, a carta de São Paulo aos Romanos contém uma refutação do politeísmo (1,18-32). Os pagãos não adoravam o Deus único, mas as criaturas. E ainda permitiam o homoerotismo, que era abominação para os judeus. Este comportamento era visto como castigo divino pela prática religiosa errada: “Por tudo isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas”. Outros escritos paulinos têm a mesma posição, associando o homoerotismo à idolatria e à irreligião (1 Cor 6, 9-11; 1 Tm 1, 8-11). No contexto judaicocristão da antiguidade, este argumento era compreensível. Não havia o que atualmente se entende por orientação sexual: uma característica constitutiva dos indivíduos que os faz gays ou héteros. É algo que nada a ver com a crença em um ou em vários deuses, ou com qualquer prática religiosa.

Muitas vezes estes textos bíblicos são usados sem a devida contextualização de sua época, sociedade e cultura; e sem a devida compreensão da situação presente, em um forte assédio moral contra pessoas homossexuais. Os norte-americanos chamam isto bible bullets, balas bíblicas. Elas são impiedosamente disparadas e ferem a autoestima das pessoas de modo devastador. A Palavra de Deus, fonte de vida em plenitude, acaba por gerar uma chaga profunda de sofrimento intenso, depressão e morte. É um terrorismo espiritual, face perversa do fundamentalismo religioso.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos (2)

Foto: Tony Park

Começamos a publicar na quinta-feira passada, em 6 partes (que você acessa na tag "Homossexualidade e evangelização"), o artigo "Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos", do Pe. Luís Correa Lima, SJ, divulgado pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, da PUC-Rio, como uma síntese do curso Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã, realizado em 2010 e 2011. O artigo, que sairá sempre às quintas-feiras pela manhã, tem como objetivo fornecer subsídios a religiosos e leigos, agentes de pastoral e outros para entender melhor e encontrar meios de lidar, dentro do contexto da Igreja Católica, com os desafios pastorais da relação e cuidado da população LGBT, no foco do acolhimento respeitoso e amoroso.

Evangelizar neste contexto
Para a Igreja, a lei de toda a evangelização é pregar a Palavra de Deus de maneira adaptada à realidade dos povos, como lembra o Concílio Vaticano II. Deve haver um intercâmbio vivo e permanente entre a Igreja e as diversas culturas dos diferentes povos. Para viabilizar este intercâmbio – sobretudo hoje, em que tudo muda tão rapidamente, e os modos de pensar variam tanto – ela necessita da ajuda dos que conhecem bem a realidade atual, sejam eles crentes ou não. O laicato, a hierarquia e os teólogos precisam saber ouvir e interpretar as várias linguagens ou sinais do nosso tempo, para avaliá-los adequadamente à luz da Palavra de Deus, de modo que a Revelação divina seja melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente (Gaudium et spes, nº44).

A correta evangelização, portanto, é uma estrada de duas mãos, do intercâmbio entre a Igreja e as culturas contemporâneas. Só se pode saber o que a Palavra de Deus significa hoje, e que implicações ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade atual, que inclui a visibilização da população LGBT e os seus direitos humanos.

Certa vez o papa Bento XVI afirmou que o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente [Entrevista, Agência Zenit, 16 ago. 2006]. É muito bom que um Papa tenha reconhecido isto. Há no cristianismo uma tradição multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na condenação e no medo. O historiador Jean Delumeau fala de uma ‘pastoral do medo’, que com veemência culpabiliza e ameaça de condenação eterna para obter a conversão. Isto não se deu somente no passado. Também hoje, em diversas igrejas e ambientes cristãos, muitos interpretam a doutrina de maneira extremamente restritiva e condenatória, com obsessão pelo pecado, sobretudo ligado a sexo.

Sem obsessão pelo pecado, o caminho do diálogo se abre. É preciso também respeitar a autonomia das ciências e da sociedade, como determina o Concílio (Gaudium et spes, nº36). Não cabe hoje encaminhar os gays a terapias de reversão ou a ‘orações de cura e libertação’, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. No diálogo ecumênico e inter-religioso da Igreja, recomenda-se conhecer o outro como ele quer ser conhecido, e estimá-lo como ele quer ser estimado. O conhecimento e a estima recíprocos são também o melhor caminho para o diálogo entre a Igreja e o mundo gay.

Neste diálogo, os ensinamentos da Igreja devem ser vistos não a partir da proibição, mas a partir da opção positiva contida na mensagem cristã, como sublinhou o papa. Uma carta da Cúria Romana aos bispos, de 1986, afirma: nenhum ser humano é um mero homossexual ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna. E acrescenta que toda violência física ou verbal contra pessoas homossexuais é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifiquem (Homosexualitatis problema, nos16 e 10). A oposição doutrinária às práticas homoeróticas não elimina esta dignidade fundamental do ser humano. Deus criou a todos. O Cristo veio para todos, e oferece o seu jugo leve e o seu fardo suave. Cabe a nós, com fidelidade criativa, conhecermos e darmos a conhecer estes dons divinos.

A posição da moral católica, segundo a carta, baseia-se na razão humana iluminada pela fé, e guiada conscientemente pela intenção de fazer a vontade de Deus, nosso Pai. Esta posição encontra apoio também nos resultados seguros das ciências humanas, que possuem objeto e método próprios e gozam de legítima autonomia. São dignas de admiração a particular solicitude e a boa vontade demonstradas por muitos sacerdotes e religiosos, no atendimento espiritual às pessoas homossexuais. A Congregação para a Doutrina da Fé deseja que tal solicitude e boa vontade não diminuam. Um programa espiritual amplo ajudará as pessoas homossexuais em todos os níveis da sua vida de fé, mediante os sacramentos, incluindo o da penitência, como também através da oração, do testemunho, do aconselhamento e da atenção individual. Desta forma, a comunidade cristã na sua totalidade pode reconhecer sua vocação de assistir estes seus irmãos e irmãs, evitando que se produza neles tanto a desilusão como o isolamento (Homosexualitatis problema, nos2, 13 e 15).

Sobre a condição e as relações homossexuais, um documento anterior da Igreja (Persona humana, de 1975) é frequentemente reiterado. Algumas pessoas são homossexuais por uma espécie de instinto inato ou uma constituição própria incurável, de modo que a sua condição é definitiva. As relações homossexuais, porém, contrariam a ordem moral objetiva [são contrárias à lei natural, como dirá depois o Catecismo da Igreja Católica (§2357)]. Elas são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações, e apresentadas como uma triste conseqüência da rejeição de Deus. Os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados e não podem receber qualquer aprovação. Porém, na atividade pastoral as pessoas homossexuais hão de ser acolhidas com compreensão e apoiadas na esperança de superar as suas próprias dificuldades. A sua culpabilidade deve ser julgada com prudência (Persona humana, nº8).

Sobre a culpabilidade, reconhecem-se certos casos em que a tendência homossexual não é fruto de opção deliberada da pessoa, e que esta não tem outra alternativa, mas é compelida a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, em tal situação ela agiria sem culpa. Sobre isto, a tradição moral da Igreja alerta para o risco de generalizações a partir do julgamento de casos individuais. Mas, de fato, em uma determinada situação podem existir circunstâncias que reduzem ou até mesmo eliminam a culpa da pessoa (Homosexualitatis problema, nº11). Portanto, não se pode afirmar que todos os que praticam atos homossexuais estão em pecado mortal, e devem se afastar dos sacramentos.

Além dos ensinamentos do papa e da Cúria Romana, há interessantes iniciativas e proposições feitas pelos bispos em suas igrejas locais, ou mesmo através de conferências episcopais. Nos Estados Unidos, por exemplo, os bispos escreveram em 1997 uma bela carta aos pais de pessoas homossexuais. O título dela é oportuno e profético: Sempre Nossos Filhos [Always our children, USCCB, 10 set. 1997]. Eles afirmam que Deus não ama menos uma pessoa por ela ser gay ou lésbica. A aids pode não ser castigo divino. Deus é muito mais poderoso, mais compassivo e, se for preciso, mais capaz de perdoar do que qualquer pessoa neste mundo. Os bispos exortam os pais a amarem a si mesmos e a não se culparem pela orientação sexual de seus filhos, nem por suas escolhas. Os pais não são obrigados a encaminhar seus filhos a terapias de reversão para torná-los héteros. Os pais são encorajados, sim, a lhes demonstrar amor incondicional. E dependendo da situação dos filhos, observam os bispos, o apoio da família é ainda mais necessário.

Há muitas famílias que têm filhos gays e sofrem imensamente com isto. Os pais frequentemente culpam a si mesmos e não sabem o que fazer. Esta mensagem é muito oportuna também em nossa realidade social e eclesial. Um novo pronunciamento dos bispos norte-americanos foi feito em 2006, sobre o ministério junto a pessoas com inclinação homossexual. Neste trabalho, os ministros religiosos são convidados a ouvir as experiências, as necessidades e as esperanças das pessoas homossexuais. Assim se manifesta o respeito à dignidade inata e à consciência do outro. Gays e lésbicas podem, dependendo das circunstâncias, revelar a sua condição a familiares e amigos e crescer na vida cristã [Ministry to persons with a homosexual inclination: guidelines for pastoral care. Washington, DC, 2006].

A atitude de humildade e de escuta do ministro religioso é muito importante. Gays e lésbicas são filhos de Deus, e o Espírito divino também age neles. Não se deve jamais desqualificar previamente suas vivências, necessidades e esperanças simplesmente por causa de sua orientação sexual. O fiel homossexual pode ‘sair do armário' sem sair da Igreja. Isto só é possível fomentando nas comunidades cristãs um ambiente que não seja homofóbico e nem hostil.

Continua na próxima quinta-feira, 31/5/12

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos (1)

Foto: Tony Park

Publicamos a partir de hoje, em 6 partes, sempre às quintas-feiras pela manhã, o artigo "Homossexualidade e evangelização: desafios contemporâneos", do Pe. Luís Correa Lima, SJ, divulgado pelo Centro Loyola de Fé e Cultura, da PUC-Rio, como uma síntese do curso Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã, realizado em 2010 e 2011. O artigo tem como objetivo fornecer subsídios a religiosos e leigos, agentes de pastoral e outros para entender melhor e encontrar meios de lidar, dentro do contexto da Igreja Católica, com os desafios pastorais da relação e cuidado da população LGBT, no foco do acolhimento respeitoso e amoroso.

Um novo quadro e sua história
Um importante sinal dos tempos atuais é a visibilização da população homossexual. No passado, gays, lésbicas e bissexuais viviam no anonimato ou à margem da sociedade. Escondiam-se em casamentos tradicionais e, quando muito, formavam guetos, que são espaços de convivência bem isolados. Hoje, fazem imensas paradas, junto com travestis e transexuais, estão presentes nas telenovelas, exigem respeito e reconhecimento, e reivindicam direitos. Esta população está em toda parte. Quem não é gay, tem parentes próximos ou distantes que são, bem como vizinhos ou colegas de trabalho que também são, velada ou manifestamente. Eles compõem a sociedade, visibilizam-se cada vez mais, e querem ser cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres dos demais.

A visibilização desta população também manifesta os problemas que a afligem. Há uma aversão a pessoas homossexuais, chamada homofobia, que produz diversas formas de violência física, verbal e simbólica contra estas pessoas. No Brasil são freqüentes os homicídios, sobretudo de travestis. Há também o suicídio de muitos adolescentes que se descobrem gays, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por pressentirem a rejeição hostil da própria família e da sociedade. Há pais que já disseram: ‘prefiro um filho morto que um filho gay’. Esta hostilidade gera inúmeras formas de discriminação, e, mesmo que não leve à morte, traz freqüentemente tristeza profunda ou depressão.

Tamanha repulsa tem raízes históricas. Por muitos séculos, as relações entre pessoas do mesmo sexo foram consideradas como o pecado de Sodoma, que resultou no castigo divino destruidor (Gên 19). Este pecado foi a tentativa de estupro feita aos hóspedes do patriarca Ló. No Brasil do século 18, por exemplo, então colônia de Portugal, as leis eclesiásticas consideravam a sodomia ‘tão péssimo e horrendo crime’ que “provoca tanto a ira de Deus, que por ele vêm tempestades, terremotos, pestes e fomes, e se abrasaram e subverteram cinco cidades, duas delas somente por serem vizinhas de outras onde ele se cometia”. Era um pecado indigno de ser nomeado, por isso chamava-se ‘pecado nefando’, do qual não se pode falar, muito menos se cometer [VIDE, D. Sebastião Monteiro. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Brasília: Senado Federal, 2007, p. 331-332]. Tribunais eclesiásticos, como a inquisição, julgavam os acusados de sodomia e entregavam os culpados ao poder civil para serem punidos, até mesmo com a morte.

Esta aversão ao homoerotismo é mantida no Brasil independente. O seu primeiro Código Penal, de 1823, determinava que “toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado, e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa de nosso Reino, posto que tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inábeis e infames, assim como os daqueles que cometeram crime de Lesa Majestade (traição) [TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.164].

O advento do Iluminismo trouxe importantes mudanças. A razão autônoma, independente da Revelação e do ensinamento da Igreja, deve governar a sociedade e conduzir seus dirigentes. Para os iluministas a prática sexual, se exercida sem violência ou indecência pública, não devia absolutamente cair sob o domínio da lei. Por isso julgavam uma atrocidade punir a sodomia com a morte. O código napoleônico em 1810 retirou o delito de sodomia da legislação penal. Por sua influência, muitos países latinos fizeram o mesmo décadas depois, inclusive o Brasil.

A secularização impulsionada pelo Iluminismo vai modificar a própria compreensão do homoerotismo. Em 1869, o escritor austro-húngaro Karol Maria Benkert criou o termo ‘homossexualidade’, um neologismo greco-latino que formou um conceito de diversidade psicofísica para substituir a sodomia. Este termo teve ampla difusão, e o homoerotismo se deslocou do âmbito religioso e moral para o âmbito biológico. Não era mais uma abominação, mas se tornou uma doença. Houve uma patologização, que permaneceu por muitas décadas. Na primeira metade do século 20, foram feitas no Brasil internações de pessoas por homossexualidade. Alguns médicos chegaram até a sugerir o tratamento com choque elétrico.

A partir do anos 1970, houve uma crescente despatologização da homossexualidade. O movimento político-social da população LGBT [Sigla que significa: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Também se usa o termo gay de modo genérico, para as diversas formas de homossexualidade] trouxe uma sensilibidade maior à sua realidade. A Associação Psiquiátrica Americana retirou a homossexualidade da lista de doenças mentais. Na década seguinte, no Brasil, o Conselho Federal de Medicina retirou a homossexualidade da lista de desvios e transtornos sexuais. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças. Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia afirmou que a homossexualidade não é doença, nem distúrbio, nem perversão; e proibiu os psicólogos de colaborarem em serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. Isto significa que, definitivamente, algumas pessoas são homossexuais e o serão por toda a vida. De maneira alguma se trata opção, mas de condição ou orientação.

A homossexualidade também se encontra entre os animais. Desde o início do século 20, ela é descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos. O comportamento homoerótico foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo coelhos, cães, gatos, antílopes, carneiros e leões. A homossexualidade entre primatas não humanos já está amplamente documentada na literatura científica, incluindo macacos bonobos e chimpanzés, os parentes mais próximos do homem na cadeia evolutiva [VARELLA, Dráuzio. “Violência contra homossexuais”, 4 dez. 2010]. Não se pode de modo algum atribuir a sua causa ao pecado original.

Continua na próxima quinta-feira, 24/5/12
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