sábado, 14 de janeiro de 2012

"O homem é religioso desde o tempo do australopiteco Lucy''


"O homem é desde a sua origem um homem religioso". O sacerdote belga Julien Ries, 92 anos, por muito tempo professor da Universidade Católica de Leuven, é o fundador de um novo campo do saber, a antropologia religiosa fundamental. Proponente do diálogo entre as religiões, Ries será criado cardeal no próximo dia 18 de fevereiro.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 07-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

A sua existência tem sido dedicada aos estudos sobre o sagrado nas diversas culturas: tem uma bibliografia enorme, e sua a opera omnia foi publicada em italiano pela editora Jaca Book.

Eis a entrevista.


O senhor chega à púrpura depois de uma vida de pesquisa: foi um dos primeiros a insistir sobre a dimensão religiosa como originária no ser humano. O sentido religioso é realmente inato?

Estou muito de acordo com o paleontólogo Yves Coppens, o descobridor de Lucy, que há anos repete que o ser humano é desde já um homem religioso.

Como se documenta essa afirmação?

Consideremos esse ser humano religioso como o conhecemos através dos fatos e dos gestos da história: se analisarmos as suas pinturas encontradas em centenas de cavernas, até agora descobertas, suas milhares de gravuras rupestres, se examinarmos o seu comportamento com relação aos falecidos, se tentarmos interpretar os gestos das suas mãos elevadas à cúpula celeste – o "Ka" dos antigos egípcios –, somos obrigados a pensar em uma experiência de relação vivida de forma consciente pelo ser humano arcaico com a realidade misteriosa e ultraterrena.

Qual é o papel dos textos sagrados das várias religiões?

Os livros sagrados da humanidade são um prodigioso patrimônio que historiadores e outros especialistas tentam analisar para compreender o discurso com o qual o ser humano religioso e simbólico traduziu a própria experiência. O conjunto desse discurso é coerente desde o paleolítico até os nossos dias. Isso nos leva a pensar em uma unidade da experiência espiritual da humanidade.

Hoje, certos símbolos religiosos parecem dividir em vez de unir. É possível a convivência entre religiões diferentes nas nossas sociedades?

O cristão é levado a compreender e a se beneficiar da contribuição das outras culturas. Os Padres da Igreja já haviam compreendido isso. Daí a riqueza da época helênica para a cultura cristã dos primeiros séculos e a grande importância do Renascimento. A sua pergunta subentende a objeção de Claude Lévi-Strauss, que tentou determinar o funcionamento do espírito humano, mas rejeitando buscar nos mitos um sentido que seria revelador das aspirações da humanidade. Para ele, os mitos não dizem nada sobre as origens do homem e sobre o seu destino. A sua busca desemboca em uma visão completamente materialista da cultura. Estamos, assim, na presença de um verdadeiro pessimismo.

Que novidade o cristianismo nos trouxe na história religiosa da humanidade?

No seu discurso construído sob a forma de parábolas, Jesus retoma, em parte, o simbolismo cósmico e o põe ao serviço do anúncio do Evangelho. Acrescenta a isso alegorias extraídas da vida cotidiana. É uma teofania no sentido pleno do termo. E essa mesma existência é a maior revolução religiosa da história. Cristo, depois de ter enviado o Espírito sobre os apóstolos, mediante o seu corpo que é a a Igreja, continua presente na história.

Qual o senhor considera como a sua descoberta científica mais importante?

O fato de ter identificado a possibilidade de construir um novo campo do saber, a antropologia religiosa fundamental. A primeira experimentação dessa construção foi organizar, a pedido da minha editora, Jaca Book, o "Tratado de antropologia do sagrado", ao qual colaborou uma centena de estudiosos e no qual se documenta que o conceito de Homo religiosus é operacional e fundamental para a pesquisa sobre as religiões e as culturas. Um trabalho que evidencia o homem religioso e a sua experiência do sagrado, baseando-se nas três constantes da própria experiência: o símbolo, o mito e o rito. A antropologia fundamental aborda tudo isso e nos abre novos horizontes sobre o ser humano, também em tempos de crise como o nosso.

Próxima missa da Pastoral da Diversidade, em São Paulo


Próxima missa da Pastoral da Diversidade em São Paulo: dia 15 de janeiro, às 17h. Divulguem e compareçam!

Mais informações aqui e no www.pastoraldadiversidade.com.br :-)

O espírito de Jesus

Imagem daqui

A leitura que a Igreja propôs para a Celebração do Batismo do Senhor (08-01-2012) é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 7-11. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Jesus apareceu na Galileia quando o povo judeu vivia uma profunda crise religiosa. Levavam muito tempo sentindo a distância de Deus. Os céus estavam “fechados”. Uma espécie de muro invisível parecia impedir a comunicação de Deus com o Seu povo. Ninguém era capaz de escutar a Sua voz. Já não havia profetas. Ninguém falava impulsionado pelo Seu Espírito.

O mais duro era essa sensação de que Deus os tinha esquecido. Já não os preocupava os problemas de Israel. Por que permanecia oculto? Por que estava tão longe? Seguramente muitos recordavam a ardente oração de um antigo profeta que rezava assim a Deus: “Oxalá rasgasses o céu e baixasses”.

Os primeiros que escutaram o evangelho de Marcos tiveram que ficar surpreendidos. Segundo o seu relato, ao sair das águas do Jordão, depois de ser batizado, Jesus “viu rasgar-se o céu” e experimentou que “o Espírito de Deus baixava sobre ele”. Por fim era possível o encontro com Deus. Sobre a terra caminhava um homem cheio do Espírito de Deus. Chamava-se Jesus e vinha de Nazaré.

Esse Espírito que desce sobre Ele é o alento de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os vivos, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus dedica-se a libertar a vida, a curá-la e a fazê-la mais humana. Os primeiros cristãos não quiseram ser confundidos com os discípulos de João Batista. Eles sentiam-se batizados por Jesus com o Seu Espírito.

Sem esse Espírito tudo se apaga no cristianismo. A confiança em Deus desaparece. A fé debilita-se. Jesus fica reduzida a um personagem do passado, o Evangelho converte-se em letra morta. O amor arrefece e a Igreja não passa de ser mais uma instituição religiosa.

Sem o Espírito de Jesus, a liberdade afoga-se, a alegria apaga-se, a celebração converte-se em rotina, a comunhão perde a força. Sem o Espírito a missão fica esquecida, a esperança morre, os medos crescem e o seguir Jesus termina em mediocridade religiosa.

O nosso maior problema é o esquecimento de Jesus e o descuido do Seu Espírito. É um erro pretender conseguir alcançar com organização, trabalho, devoções ou estratégias diversas o que só pode nascer do Espírito. Temos de voltar à raiz, recuperar o Evangelho em toda a sua frescura e verdade, batizar-nos com o Espírito de Jesus:

Não temos de nos enganar. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, não temos nada importante que aportar à sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapacitada para o amor solidário e tão necessitada de esperança.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Gentileza: passe adiante


"Este vídeo é uma bela ilustração do que a gentileza é capaz de produzir no cotidiano das pessoas. Ela é contagiante. O vídeo (que encontrei no Treta) é uma produção do projeto Life Vest Inside ('Salva-Vidas Interno'), que busca promover a gentileza como uma maneira simples, mas poderosa e ativa, de melhorar o mundo. Uma parte da descrição do projeto merece ser traduzida aqui:

"O trabalho de caridade e o serviço comunitário são ferramentas inestimáveis para melhorar o nosso mundo, mas a gentileza é mais do que boas ações ou voluntariado apenas. Gentileza é empatia, compaixão e conexão humana; é um sorriso, um toque ou uma palavra confortante. Mesmo o menor gesto pode clarear um dia escuro ou aliviar um fardo pesado."

- André Rabelo
Fonte: Bule Voador

* * *

Bom fim de semana a cada um de vocês. :-)

Demônios invisíveis: preconceitos e exclusões entre LGBTs e cristãos


Amig@s,

Ontem publicamos uma nota (leia aqui) chamando atenção para o fato de que a notícia de maior repercussão esta semana nos veículos LGBT, de que o papa chamou o casamento gay de "ameaça à humanidade", estava baseada numa distorção, na medida em que Bento XVI em nenhum momento, em seu discurso, faz referência direta aos gays.

Sim, sabemos qual é, historicamente, seu posicionamento. Sim, em outras ocasiões ele se manifestou de maneira desastrosa em relação a nós, e de forma perfeitamente direta. Sim, estamos carecas de saber qual é a postura do Magistério, que justifica tantas intervenções em assuntos civis e de Estado por instâncias diversas do clero em todo o mundo, com consequências funestas para nós, gays, e nossos direitos civis. Sim, sabemos o quanto a Igreja como instituição, historicamente, assumiu posturas nefastas em relação a questões humanas prementes, bem como da sua dificuldade tacanha em lidar com tudo o que diz respeito à sexualidade. Em momento nenhum negamos nada disso. Apenas chamamos a atenção para o fato de que, desta vez, houve uma grave distorção pela Reuters, que fez questão de, de um discurso que abordou pontos importantes de maneira positiva, destacar uma alusão aos gays que seria, no máximo, indireta. Por que essa escolha? Por que, neste como em outros casos, fazer questão de reforçar estigmas, acentuar o mal-estar e intensificar conflitos? Isso não quer dizer que a postura da Igreja católica em relação a nós, na teoria e na prática, seja outra, mas nos sentimos na obrigação de questionar uma certa atitude que parece pretender  simplesmente jogar lenha na fogueira, porque com acirramento do conflito e abertura das feridas também não vamos construir nada de bom nunca.

Recebemos uma série de críticas por "defendermos o indefensável" - como disse um amigo querido no twitter, a quem agradeço profundamente por manter o bom humor - quando não publicamos essa nota para defender ninguém. O que nos moveu, e que nos move sempre, é o combate às estigmatizações, aos rótulos, aos preconceitos construídos sobre o desconhecimento e ideias preconcebidas, às generalizações que colocam todo um conjunto de pessoas em um mesmo saco de gatos, tira de cada uma delas o direito de ser vista como ser humano único e inigualável que é e a aprisiona num papel fixo e preestabelecido do qual ela não poderá sair jamais; e, sobretudo, às segregações, aos sectarismos, às intolerâncias, às incapacidades de dialogar com quem pensa ou vê diferente de você, ao totalitarismo de ideias que é contrário ao pluralismo e ao diálogo que almejamos. Porque acreditamos que, sem uma legítima superação do ressentimento, sem uma legítima abertura ao diálogo, não poderemos nunca construir uma sociedade mais justa e plural.

Isso significa uma postura acrítica em relação à instituição eclesiástica? De forma nenhuma, e muito pelo contrário. Como cristãos responsáveis que procuramos ser, buscamos sempre estar atentos às injustiças e violências, pequenas e grandes, denunciando-as e fazendo-lhes frente, e damos nosso testemunho da nossa dignidade humana como pessoas cuja dimensão afetivo-sexual é inalienável, ao contrário do que (ainda) diz a doutrina católica - e acreditamos que qualquer mudança, em toda instituição humana, começa por aí: pelas bases. Mas, assim como conhecemos (na pele, e muito bem) a Igreja pecadora, que exclui, ameaça e violenta, quando não falha gravemente por uma escandalosa omissão e se exime, assim, de sua missão de anunciar a Boa Nova de amor de Cristo, conhecemos também a Igreja santa que se insurge contra as injustiças, que defende o fraco, que aceita, acolhe e produz boas obras, neste como em outros momentos da história. Não seria injusto colocar tudo no mesmo balaio?

Ontem o Deputado Federal Jean Wyllys publicou um excepcional comentário na Carta Capital sobre a postura nada evangélica da Igreja a respeito da homossexualidade (não deixe de ler, aqui). Seu texto é eloquente e suas críticas, colocadas com muita clareza, absolutamente pertinentes. (Com uma única falha grave, a nosso ver - o ter adotado como ponto de partida a falácia de que o papa afirmou que os gays representam uma "ameaça ao futuro da humanidade" etc., porque desta vez não foi isso que ele disse, mas paciência.) Foi, claro, bombardeado por "cristãos zelosos" nos comentários do site, ameaçando-o e a todos os gays com a danação eterna - e tome citações bíblicas, e "Deus ama você, mas odeia seu pecado". Ao ataque seguiu-se a resposta, por sua vez, dos "gays zelosos", arrolando todos os erros da Igreja e basicamente demonstrando que, se tem alguém que merece queimar nas profundas do inferno, são os cristãos e, se perigar, religiosos em geral. Ambos os lados - sim, porque são dois partidos diametralmente opostos e em guerra acalorada - tratam-se como incompatíveis, irreconciliáveis e mutuamente excludentes. A sobrevivência de um implica na destruição ou banimento ou, no mínimo, no silenciamento do outro.

É esse o reino de amor anunciado pelos cristãos? Essa é a sociedade plural, a diversidade tolerante ansiada pelos LGBTs?

Quem, como um outro amigo extremamente querido, não gostou de nos ver "defendendo o indefensável" logo encontrou uma explicação para nossa atitude injustificável: claro, é porque nós do Diversidade Católica estamos do "outro" lado, do lado "deles", não passamos de conservadores, mentirosos, hipócritas, charlatães, bajuladores. Porque, evidentemente, num mundo em guerra, polarizado entre dois extremos inconciliáveis, ou você está do meu lado, ou está contra mim. Não existe espaço para as diferenças individuais, não existe espaço para a história, o tempo, o percurso, a bagagem de cada um. Todo mundo, de um lado e de outro, é igual. Quem parece não se enquadrar numa categoria clara cai no terreno pantanoso de uma perigosa e suspeita ambiguidade. O que não é possível - de que lado você está, afinal?

Pessoalmente, sinto essa necessidade de classificar as pessoas em categorias estanques preconcebidas como uma abstração que desumaniza, uma demonização que apaga quem o outro é e o transforma num monstro; esvazia-me de toda a complexidade de sentimentos e história e relações que tecem a pessoa que eu sou e me impinge um rosto coletivo que não é o meu. Sinto que o que está em ação aí é o mesmíssimo mecanismo de invisibilização que leva os doutrinadores e juízes religiosos a afirmar, sem me conhecer, que minha afetividade e sexualidade são desordenadas por princípio. Como alguém pode afirmar qualquer coisa a meu respeito, se não me conhece, se nunca me viu? Por favor, me olhe nos olhos e me enxergue antes de me colocar num lugar que não é o meu. E isso vale tanto para o papa, dos píncaros do seu poder, quanto para quem tiver sido ferido por esse poder, do fundo da sua dor.

Ricardo, espero que algum dia você entenda o que quisemos dizer e possa nos ver de outra forma. Nunca nos conhecemos pessoalmente, mas você conquistou meu respeito, minha admiração e minha afeição mais sinceros, e lamento imensamente pela forma como você está se sentindo.

Um beijo carinhoso a tod@s.

Cristiana

Jesus diria sim ao PLC 122 e ainda faria mais

Ilustração: Thales Lima

Fazendo um pouco da retrospectiva de fim de ano em meio das celebrações do Natal, não dá pra não comentar um dos assuntos mais abordados ao longo de 2011 no Brasil: o crescimento da homofobia, da violência contra homossexuais e do protagonismo pentecostal na luta contra os direitos LGBTT.

Então... neste Natal, convivi com a seguinte pergunta: Qual seria a posição de Jesus perante o PLC 122 e a luta pelos direitos LGBTT no Brasil?

Comparando com outras situações que Jesus enfrentou ao longo de sua vida, narrada nos Evangelhos, me parece claro que ele apoiaria a implementação do PLC 122, em sua integridade, sem mediações com a bancada fundamentalista. Duas são as justificativas:

1) Jesus sempre defendeu o amor acima da lei:
O Antigo Testamento, base da religião judaica, tem nos seus livros iniciais, o Pentateuco, a base das leis que regem a comunidade. Estas leis foram escritas no processo de transição da escravidão egípcia para a terra sagrada (Ex, 34). Era um povo nômade, com muita garra, que enfrentaria diversos outros povos, mas que dependia da vida em comunidade (e da fé em Deus e no Pastor Moisés) para seguir seu caminho. Longo caminho por sinal, durando uma geração até a chegada à terra prometida (Dt, 1).

Neste sentido, as leis do Antigo Testamento mesclavam os princípios de Deus com regras comunitárias que, para serem cumpridas, precisavam ser ditas como sagradas. Estas regras comunitárias eram fundamentais para que o grupo caminhasse firme e unido. Eram, portanto regras que levariam o povo â promessa de Deus, mas obviamente estavam adaptadas ao povo nomade, fugindo da escravidão de alguns milhares de anos atrás.

Passados parte destes milhares de anos, Jesus questiona ao longo de toda a sua vida pública a aplicação literal das leis comunitárias da Bíblia (Mt 12, 1 – 4) no Israel de sua época. Sua mensagem é clara: o projeto de Deus é o projeto da vida no Amor, no respeito, na partilha, na comunhão. “Quero Misericórdia, e não Sacrifício” (Mt 12, 7). Em diversas situações Jesus contrapôs-se a regra literal colocando em primeiro lugar a pessoa, a vida comunitária e a construção do Reino de igualdade e fraternidade (Lc 7, 37-48; Lc 18, 10-14; Mt 5, 1 – 11).

Hoje, boa parte das leis escritas na Bíblia, já não são mais tratadas como verdade absoluta por serem fenômenos biológicos ou da natureza. As mais famosas são a exclusão da mulher durante a menstruação (Lv 15, 19) (uma questão de saúde pública para o povo nômade do Egito) e a condenação de exclusão em virtude da lepra (Lv 13). Afinal, hoje os sacerdotes não precisam ser médicos!!! Ou seja, não é mais necessário a religião para explicar estas questões e orientar o povo. A religião fica mais livre para atingir seu fim: orientar os princípios de uma vida na sua integridade.

Do mesmo modo, se vivesse nos dias de hoje, ao perceber que a sociedade busca excluir pessoas, grupos sociais de seus direitos, se justificando em interpretações literais e pré-conceitos que fogem do projeto de Deus, Jesus não teria dúvidas na defesa do PLC 122 e da condenação da hipocrisia dos principais defensores da homofobia.

Mas, insistem alguns, e as condenações explícitas à homossexualidade escritas na Bíblia? Muitas delas inclusive no Novo Testamento, ou seja, após Jesus Cristo?

Não é possível entrar em muitos detalhes da exegese bíblica neste momento. Porém de forma resumida, podemos dizer que:

a) O povo de Deus do Antigo Testamento (aquele povo nomade de milhares de anos atrás) ainda convivia com regras comunitárias bem distintas das de hoje: aceitava a escravidão (Ex 20, 17; Dt 5, 21), a mulher deveria ser submissa ao homem, a poligamia masculina era aceitável (Dt 21, 15 - 17), mas a feminina não (Dt 22, 16), etc. Se hoje negamos a muitas destas "leis", porque não negar também a homofobia? Onde há conflito com a Lei e o amor de Deus aí ao defender a criminalização da homofobia?

b) No Novo Testamento, as passagens estão restritas às cartas de São Paulo, sendo a única inferência direta o texto aos Romanos (Rm 1, 18-32), o mesmo que mostrou a Pedro e outros discípulos que a mensagem cristã não deveria ficar restrita aos judeus, mas a todos os povos. Ao sair para evangelizar especialmente nos territórios dominados por Roma, Paulo buscou dialogar com os trabalhadores e o povo pobre escravizado. As condenações morais que faziam, diziam respeito à prática da elite grega e romana. E sabemos que o homossexualismo era até mais que aceito na Roma dos patrícios. Assim, ao condenar o homossexualismo, Paulo condenava na verdade a vida opressora dos patrícios e líderes romanos, que largavam seu povo. É uma condenação semelhante a que fazemos hoje ao consumismo, ao hedonismo e a concentração de riqueza.

Se boa parte das religiões superou o atrito com as ciências biológicas e os fenômenos da natureza, muitas delas ainda precisam se livrar dos dogmas morais, escritos em outras época, para entender o importante significado da mensagem cristã na atualidade.

2) Jesus sempre esteve ao lado dos oprimidos pelo sistema:
Assim como condenava as leituras literais da Bíblia que justificavam a opressão e o ódio, Jesus também sempre tomou partido quanto as situações de Morte provocadas pelo contexto social, político e econômico que vivia seu povo (Mc 11, 15; Mc 12, 14-17). Não era a toa que procuravam matá-lo. E Jesus, ao tomar partido desta situação, colocava-se ao lado daqueles que sempre eram os oprimidos do sistema. (Lc 5, 27-31; Jo 8, 1- 9). Não existia, por parte de Jesus, nenhuma condenação moral, mas sim um trabalho para promover a vida, a dignidade e a luta conjunta.

Neste ano de 2011, vimos o crescimento da violência fruto do ódio, do pré-conceito e da ganância humana. Indígenas e homossexuais foram vítimas crescentes do processo de arrogância e ódio ao diferente. Os fatos, há muito, já deixaram de ser isolados e tornaram-se um problema social. Neste sentido, assim como com todos os(as) excluídos(as) de sua época Jesus se colocaria ao lado da luta indígena e LGBTT, por entender que é assim que mudamos a face e o mundo onde vivemos. Jesus entenderia que demarcar as terras indígenas, e aprovar o PLC 122 são elementos fundamentais para combater o pré-conceito, as situações de morte, de ódio e de ganância e, assim, promover a vida.

3) Outras ações:
Porém, com mais certeza ainda, Jesus não limitaria sua atuação a uma simples mudança nas leis. Ele, mais que ninguém, sabe como é necessário valorizar cada ser humano em especial. Assim, sua atuação iria para além do PLC 122. Destaco ao menos duas ações que imagino que Ele nos desafia:

a) Respeito com todas as crenças e formas de diálogo com Deus: Deus não está inscrito em uma religião. Ele dialogo com cada povo conforme sua cultura e cada ser conforme sua própria individualidade. O sentido deste diálogo não é outro senão a promoção da vida, em sua integralidade, individual, comunitária, coletiva e social (Jo 10, 10). Assim, o respeito às diversas manifestações culturais e religiosas de promoção da vida, é fundamental numa sociedade laica e que preza pela diversidade, igualdade e respeito.

Nesta mesma linha, Jesus jamais alcunharia com termos excludentes os fiéis pentecostais. Ele sabe que, assim como nos terreiros do Camdoblé e da Ubanda, onde se utiliza da tradições afros para dialogar com seu povo, Deus também promove a vida e resgata a dignidade de milhares de pessoas nos cultos e missas pentecostais.

Mas, Jesus com certeza condenaria padres, bispos, pastores, líderes de qualquer religião que, ao usar o nome de Deus, pregue o ódio, a exclusão e a ausência de amor. Se Jesus fez isto em seu tempo (Mt 23), também faria hoje. Mas sempre respeitando a religiosidade e a cultura popular. Assim, Jesus defenderia que o PLC 122 tem que valer também para dentro das Igrejas, pois a homofobia em nada tem a ver com a religião e, quanto mais elas se afastarem, melhor será para a própria religião.

b) Relações humanas e de amor, ao invés de pré-conceitos: Jesus inovou e quebrou os pré-conceitos de sua época ao expressar seu amor e afeto às pessoas que o cercam. Tirou a mulher de sua condição submissa e não se intimidou inclusive em demonstrar maior ligação e afeto a um discípulo que a outro (Jo 21, 20). Ao condenar os líderes religiosos e políticos da época, Jesus voltou-se para o povo, buscou entender a vida e os sentimentos de cada um(a). Era assim, ao promover o amor e misericórdia, que realizava seus milagres. Quando ele mesmo errava, reconhecia o erro e aprendia com o povo (Mt 15, 22 –28)

Jesus sempre soube que de nada adianta leis sem a prática e a vivência cotidiana. Foi um dos primeiros educadores populares da história. Como educador popular sabe que a verdade não se encontra nos livros estancados para interpretação de poucos, mas sim, e ainda que orientado pelos livros, na vivência cotidiana e comunitária para a promoção da vida, da justiça e da igualdade.

Na época de Jesus não existia a escola formal de hoje. Em vivendo hoje, por ser um educador, Jesus com certeza entenderia o papel da Escola como educadora e produtora da vida. Saberia da importância da educação na transmissão de valores e princípios. Assim, ao defender que as relações humanas se prezem pelo amor, e não pelo pré-conceitos, Jesus defenderia sem sombra de dúvidas o desenvolvimento de diversas iniciativas visando o respeito às diferenças ao invés de se impor uma verdade absoluta, a busca de relações afetivas livres ao invés das relações que prezam pelo ódio, pelo orgulho e sentimento de posse. É com leis e com a prática que se combate a homofobia e o conjunto de pré-conceitoe e formas de opressão. Esta prática tem que ser vivenciada nas escolas, nas igrejas, em cada espaço de nossa sociedade. Uns chamam isto de Kit-anti homofobia. Mas, com certeza, Jesus, nos dia de hoje, iria além.

Que o Grande Espírito, o Deus da Vida ilumine os povos em luta por justiça, respeito e igualdade neste ano de 2012. Amém, Axé, Awiri. Aleluia!

- Francisco Carneiro De Filippo (Chico)
Cristão, economista e militante do PSOL.
Reproduzido via O Miraculoso

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

LGBTs e envelhecimento: planejamento e prevenção x descaso

Foto: Isa Leshko

É notório o nosso traço cultural de não sermos afeitos a postura preventiva; ao planejamento do futuro; à cultura da poupança... Por igual a ausência do hábito de nos envolvermos de forma ativa, pragmática, com as questões coletivas.

Não faz parte de nossa "marca" enquanto povo o hábito de construção e/ou manutenção coletiva de instituições sociais - escolas, creches, abrigos, hospitais, clubes de lazer, fundos de ensino e pesquisa etc.

Estes foram traços que estiveram presentes até aproximadamente os anos 20 do século passado, época em que vigoraram as Sociedades de Socorro Mútuo, as Caixas de Assistência e Pecúlio, as Associações Beneficentes, de Amparo etc., instituídas seja por grupos nacionais (portugueses, italianos, espanhóis); irmandades religiosas e filosóficas (católicas, protestantes, espíritas, maçônicas etc.); ou por corporações de ofícios - legais ou não (Ourives, Prostitutas judias, marítimos, músicos, operários etc.).

Com o advento da previdência estatal e o crescente individualismo, perdeu-se, entre nós, a cultura de construção coletiva de respostas aos desafios sociais, numa perspectiva mutualista. Sobretudo pela dificuldade na permanência de características como cooperação e lealdade enquanto valores a serem cultivados.

Tornados cada vez mais estranhos à essa nova conjuntura, mas também sob a influência da característica jovem de sua população, iniciativas desses tipos de sociedades foram se tornando cada vez mais escassas.

Hoje, com o acelerado envelhecimento da população, observa-se igualmente o envelhecimento do segmento mais atomizado dentre ela: os indivíduos homossexuais, travestis e transexuais, cujos vínculos familiares foram costumeiramente rompidos, por conta do preconceito e estigmatização de que ainda tem sido objetos.

Pior do que a violência, que graças à iniciativa precurssora do Grupo Gay da Bahia, se dispõe desde os anos 80 do século passado de alguma estimativa, nem o Estado, nem os movimentos LGBTTs dispõem de qualquer mensuração sobre as características do envelhecimento desse grupo populacional - número de indivíduos, níveis de renda, redes de apoio, graus de escolarização etc.

O grupo "homossexual" mais antigo que se tem notícia - A Turma OK, no Rio de Janeiro -, na atualidade enfrenta uma situação bizarra que espelha a situação social desse coletivo. Devido à ausência de condições de acessibilidade (o imóvel onde a TOK encontra-se instalada não dispõe de elevador), seus sócios fundadores e de maior faixa etária encontram-se impossibilitados de continuar frequentando o espaço que ajudaram a criar; de desfrutar do convívio social com seus pares - seja da mesma seja de outras gerações, o que seria fundamental para a manutenção de sua saúde biopsíquica.

Assim, verifica-se o mais absoluto processo de invizibilização de idosos e idosas LGBTTs. Ninguém sabe onde estão, quantos são, como vivem.

Tenho procurado sensibilizar este segmento, com os recursos de que disponho - a rede mundial de computadores; a participação na I Conferência Nacional de Políticas Públicas para LGBT.

Entretanto, dado que a imensa maioria dos atores engajados no ativismo pertencem a gerações marcadamente mais jovens e/ou desfrutam de redes de proteção familiar, torna-se difícil conseguir obter a sensibilização necessária à construção - por estes sujeitos, em um movimento mutualista, cooperativo - de quaisquer mecanismos de proteção social para essa faixa etária - espaços de convivência, grupos de apoio, casas-lares etc.

Não consegui saber de nenhum ativista LGBTT que tivesse participado da Conferência Nacional da Pessoa Idosa, realizada em 2011, como igualmente não soube de nenhuma deliberaração voltada a este segmento geracional, na II Conferência Nacional de Políticas Públicas para LGBT.

Diante dessa aparente desmobilização, vejo que os movimentos LGBTTs não demandaram nenhuma cota para a população LGBTT no Programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, como existe para idoso em geral e para o deficiente físico.

Perdeu-se e perde-se, por exemplo, uma excepcional conjuntura favorável existente tanto no governo federal, comm a destinação de linha de financiamento específica, quanto no Estado do Rio de Janeiro, que dispõe de organismos de defesa LGBT estadual e municipal, já tendo inclusive o Estado do Rio inaugurado um projeto de condomínio geriátrico assemelhado ao que venho daqui defendendo, lamentavelmente sem que contasse com nenhuma cota para o segmento LGBT - os beneficiários, inclusive, segundo noticiado, seriam escolhidos por sorteio, o que a mim me afigura enorme perversidade.

Teria sido, de meu ponto de vista, uma importante conquista social para gays, travestis, transexuais e lésbicas em condições de vulnerabilidade social.

Na única reunião a que fui convidada a participar junto à CEDS-Rio abordei este tema. Foi dito que os órgãos de assistência social juntamente com a Coordenadoria tentariam dimensionar o público-alvo.

Como nenhum informe é repassado aos membros do Conselho - nem mesmo os seus nomes figuram na página da Coordenadoria -, tampouco se verificou a convocação a qualquer outra reunião, fica-se sem saber a quantas anda a questão no nível de governo municipal. - A se examinar a página oficial da CEDS-Rio, fica-se com a impressão que a Coordenadoria apenas tem se dedicado à promoção de festas e algumas campanhas publicitárias contra a homofobia, o que é lamentável.

No governo estadual, levou-se seis anos para a inauguração do Disque-Denúncia e dos Centros de Referência (três, se não me engano).

Este ano de 2012 teremos eleições municipais. É provável que o atual prefeito se candidate à reeleição... Bem que o segmento LGBTT do Rio poderia inserir esta reivindicação - o compromisso com a criação de espaço de socialização e moradia que contemple a população LGBT - a ser apresentada a todos os candidatos, não?

- Rita Colaço
Reproduzido via Boteco Comer de Matula

(Dica do amigo Ricardo Rocha Aguieiras)

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Referências:


 COLAÇO, Rita. Os efeitos da estigmatização e a importância estratégica de incentivo à formação de grupos de convivialidade como geradores de proteção social e valores comunitários, a partir do depoimento de uma ex-fundadora do GAAG. II Encontro Nacional Universitário sobre Diversidade Sexual (ENUDS), UFPE, 03 a 07 de setembro de 2004.


_________. Poder, Gênero, Resistência, Proteção Social e Memória: aspectos da socialização de “lésbicas” e “gays” em torno de um reservado em São João de Meriti, no início da década de 1980 [dissertação de mestrado]. Niterói: UFF/ESS–PPGPS, 2006. Disponível em: http://www.bdtd.ndc.uff.br/;


SILVA JR., Adhemar Lourenço da. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas (estudo centrado no Rio Grande do Sul–Brasil, 1854-1940). Tese [Doutorado em História]. PUC-RS, FFCH Disponível aqui.

O Papa e o Casamento Gay

Foto: Rodney Smith

O discurso anual do papa Bento XVI aos diplomatas no Vaticano (1) recebeu uma dura manchete de uma agência internacional de notícias: "Casamento homossexual é 'ameaça' à humanidade, diz papa". E ainda: "Declarações são as mais fortes proferidas por Bento XVI contra união gay" (2).

Quem se der ao trabalho de ler o pronunciamento do papa (aqui) vai encontrar uma gama de questões internacionais sob a ótica de um humanismo de inspiração cristã. São temas como a crise econômica mundial e sua incidência sobre as nações e sobre a juventude, os conflitos do Oriente Médio e da África, as manifestações em favor da democracia, as migrações, o acesso universal à educação, a liberdade religiosa, os desastres ecológicos, e a luta contra as alterações climáticas e contra a pobreza extrema. Há até uma menção à “Rio+20”, a próxima Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável.

O que supostamente disse o papa sobre a ameaça do casamento gay à humanidade? Eis o trecho:
"[...] a educação tem necessidade de lugares. Dentre estes, conta-se em primeiro lugar a família, fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher; não se trata duma simples convenção social, mas antes da célula fundamental de toda a sociedade. Por conseguinte, as políticas que atentam contra a família ameaçam a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade."
A alusão ao casamento homossexual é no máximo indireta, e mesmo assim questionável. Por que esta união atentaria contra a família tradicional? Os gays não têm obrigação de se tornarem héteros e de se casarem com pessoas de outro sexo. Até porque, para o direito eclesiástico, um matrimônio assim é nulo. Além do mais, as terapias de reversão são proibidas, pois a homossexualidade não é doença. Os héteros, por sua vez, não são gays enrustidos prestes a debandarem diante da possibilidade de união homo. Portanto, casamento homo e casamento hétero são de naturezas distintas e não concorrem entre si. Não há ameaça.

De qualquer maneira, o papa não disse aos diplomatas que o casamento gay é uma ameaça à humanidade, ainda que outras vezes tenha se manifestado contra esta forma de união. Há, no entanto, um ranço moralista que só enxerga proibição e condenação no ensinamento da Igreja, sobretudo a respeito de sexo. E todo o resto é irrelevante. Este ranço não está somente nos segmentos ultraconservadores da Igreja, mas também em certa imprensa facciosa que só quer fazer alarde para vender notícia.

Quantas questões de suma importância não foram levantadas pelo papa? Quantos desses assuntos não merecem séria reflexão e engajamento das nações, da opinião pública e dos organismos internacionais? Mas tudo isso é omitido pelo ranço moralista, que embolora as mentes e aliena as pessoas. Que Deus nos livre deste triste empobrecimento humano.

Equipe do Diversidade Católica

Notas:
(1) Leia o discurso do papa na íntegra aqui
(2) Notícia no G1 aqui. Fonte: Reuters.

* * *

Atualização em 16/01/12:

  • Uma das colaboradoras do blog publicou uma reflexão pessoal acerca da repercussão desta nossa nota (veja os comentários deste post), aqui.
  • Em 14 de janeiro, mais ou menos na mesma linha do texto acima, um jornalista do The Guardian denunciou que a agência Reuters atribuiu ao Papa Bento XVI uma frase sobre o "matrimônio homossexual" que ele nunca pronunciou. Leia aqui. (Note que esse link é para um site católico, mas, até onde temos conhecimento, foi o único veículo em português que noticiou a denúncia. Caso prefira, leia a nota original, em inglês, aqui.)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Neutralidade?

Foto daqui

Se você escolher a neutralidade em situações de injustiça, ficará do lado do opressor.

- Desmond Tutu

Vídeo com lamentável retrospectiva de 2011

Cenas de homofobia noticiadas por emissoras, falas da presidenta Dilma, da coordenadora da ONU e muito mais em um "Manifesto aos LGBTs".





:(

Não há muito o que falar, né...

Rodolfo Viana

Da condenação à conversão

Grafite: Bansky

Uma noite, ao tentar fugir da polícia, um jovem de 19 anos perdeu o controle de um Cadillac roubado, bateu contra um ponto de ônibus e matou quatro pessoas. Foi preso e condenado por quase-delito de homicídio e outros delitos, tendo sido condenado a 47 anos de presídio. Este incidente não foi a única tragédia que presenciara em sua relativamente curta existência. Abandonado por seu pai e criado por uma mãe alcoólica, o jovem nunca teve infância. Durante a adolescência, seus amigos usavam e traficavam drogas em carros roubados. Agora, aos 30 anos, sairá finalmente da prisão. Embora seja tarde demais para consertar o dano causado por seus atos, o tipo de pessoa que será quando estiver novamente nas ruas de Wisconsin ainda é uma pergunta sem resolver.

Atualmente há 2,3 milhões de homens e mulheres nas prisões americanas, a proporção de encarceramento mais alta do mundo. Três de cada 100 adultos americanos estão em liberdade condicional, em prisão ou em liberdade sob palavra. Segundo o Ministério da Justiça dos EUA, a cada ano quase 650.000 pessoas saem das prisões estatais ou federais, e muitas mais dos cárceres locais. A reinserção com freqüência falha; a metade dos presos em cárceres estatais voltarão à prisão dentro dos três anos seguintes a sua libertação.

Os cidadãos querem que os culpados de crimes graves sejam castigados para manter o estado de direito, como método de dissuasão para cometer mais delitos e para assegurar-se de que os criminosos “paguem sua dívida com a sociedade”. Estigmatizar a criminosos e exigir condenações mais severas rende bons dividendos eleitorais. Mas, como as taxas de reincidência demonstram, as políticas resultantes não propiciam a reabilitação.

Há uma afirmação fundamental do cristianismo, é que Deus ama todos os seres humanos. A forte defesa que o cristianismo faz da pessoa, fundamentado na crença de que todo ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, abrange homens e mulheres em nossos cárceres da mesma maneira que aqueles que estão por nascer e os idosos. Isso nós encontramos nas Escrituras, onde visitar os que estão na prisão é uma das demonstrações físicas de compaixão e caridade que se equiparam com o amor a Cristo. Um dos últimos atos de Jesus, antes de sua morte no Calvário, foi a de estender sua misericórdia ao criminoso arrependido (e a seus próprios verdugos impenitentes). A mensagem de Cristo se expressa poderosamente em suas próprias palavras: ”Os sãos não necessitam de médico, mas sim os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Mc 2,17).

Privar de liberdade às vezes é necessário para proteger a sociedade dos criminosos perigosos. Mas tornar um infrator responsável não é o mesmo que defini-lo pelo pior que tiver feito. Da mesma maneira, a privação de liberdade não precisa equiparar-se com o desterro moral entre os homens. Recordar a dignidade humana básica do infrator pode reforçar as esperanças de reabilitação. Isto muda o foco desde a condenação para a conversão, brindando a possibilidade de reconciliação na comunidade de vítimas e condenados.

Um tipo diferente de justiça
Uma iniciativa da qual participei pode servir de exemplo já que envolve homens e mulheres em todo o país que trabalharam a favor da justiça restaurativa.

Janine Geske, anteriormente juíza da Suprema Corte de Justiça de Wisconsin, é diretora de Restorative Justice Initiative da Escola de Direito de Marquette University. Parte de seu trabalho consiste em estabelecer oficinas de justiça restaurativa em prisões de máxima segurança duas vezes por ano. Ao ter realizado investigação sobre a justiça restaurativa e ter trabalhado como voluntário no sistema carcerário de Massachusetts, fui convidado a participar numa destas oficinas de três dias em Green Bay Correctional Institution, em abril passado.

O processo da juíza Geske está centrado na reflexão circular, uma adaptação de uma prática dos nativos americanos que procura provocar uma compreensão transformadora, através da conversa entre os participantes, conversa honrada e livre de julgamentos. Nesta oficina participaram 25 presos, várias mulheres cujas vidas mudaram irrevogavelmente por causa de um crime e de alguns estudantes de direito de Marquette.

No primeiro dia, os líderes da oficina definiram e explicaram o conceito de justiça restaurativa; depois grupos menores discutiram a onda de efeitos daninhos que um ato criminoso provoca. O foco não estava só nas conseqüências negativas de nossos atos, mas também na responsabilidade que nos cabe por eles. Os participantes ouviram três vítimas: uma mãe cujo filho foi morto por um motorista que manejava ébrio; a viúva de um oficial da polícia assassinado em ato de serviço, e uma esposa e mãe que foi raptada e violada a ponta de navalha. Estas participantes preferiram chamar-se vítimas sobreviventes, para deixar estabelecido que não se limitaram ao papel passivo de serem ‘só’ vítimas. Através de seus relatos estas mulheres expressaram algo do dano que elas e seus seres queridos tinham sofrido na mão de outros. Enquanto os presos escutavam completamente concentrados, alguns se emocionaram até as lágrimas, horrorizados com o que estavam escutando. Suas emoções variavam da fúria contra os culpados até a culpa e profundo arrependimento pelos efeitos que seus próprios crimes tiveram sobre pessoas inocentes.

O dia final abriu com uma mesa redonda de discussão sobre as revelações que os reclusos ouviram no dia anterior. As revelações foram depois expressas através da arte, da música e da narração. Os participantes fizeram representações em grupos, com retratos imaginativos (às vezes humorísticos) de como indivíduos encerrados em modelos de conduta destrutiva podem contribuir com formas de vida mais construtiva. Apesar de os reclusos terem lutado com a culpa e o perdão, expressaram esperança futura e fizeram compromissos práticos tendo em vista mudanças comportamentais. Inclusive aqueles que não tinham esperança de sair “sob palavra” estiveram de acordo em fazer mudanças positivas em sua relação com os outros presos, pessoal administrativo e suas famílias, e da maneira como viam a si mesmos.

Após as oficinas
As oficinas de justiça restaurativa podem conseguir várias coisas. Primeiro, são atividades importantes para as vítimas sobrevivientes. Falar para a uma sala cheia de perpetradores com frequência abre as avenidas da cura, tanto para eles como para os reclusos presentes. As três oradoras na oficina de Green Bay disseram que é vivificante não estar reduzidas ao silêncio ou se retorcer em seu sofrimento e ressentimento. A cura funciona em ambos sentidos: “quero que saibam que há pessoas lá fora, na comunidade, que se preocupam por vocês” —disse uma oradora aos reclusos—. Sua maneira respeitosa, por outro lado, foi importante para as vítimas sobreviventes, que manifestaram esperança de que os presos pudessem ver o profundo efeito de seus crimes e portanto que fosse menos provável que os repetissem a futuro. “Se o que eu falo impede que no futuro uma pessoa se transforme na vítima de um crime violento, meu esforço terá valido a pena”, disse uma das vítimas sobreviventes.

Em segundo lugar, para a maioria dos detentos este oficina foi a primeira que escutaram sobre a atual cifra de crimes de boca de uma vítima real falando em primeira pessoa. Pedir aos delinquentes, homens defendendo-se de qualquer demonstração de vulnerabilidade ou falta de confiança em si mesmos, que refletissem sobre seus atos e que compartilhassem seus pensamentos com os demais também produziu uma mudança significativa. Para eles, a parte mais difícil foi prestar atenção nos relatos sobre o sofrimento dos inocentes.

Dado que o processo da justiça criminosa se enfoca muito especialmente no crime como a violação da lei, é fácil que se perca perspectiva da vítima. A natureza contenciosa do processo legal também diminui as probabilidades de que os delinquentes percebam o que suas vítimas tiveram que suportar e o que deverão continuar sofrendo. Inclusive quando as vítimas falam numa vista de sentença, seu depoimento com frequência é usado para justificar o castigo ao delinquente, não para reparar o dano causado à vítima.

Em contraste, os depoimentos das vítimas sobrevivientes ajudam os detentos a verem os efeitos em cascata que têm seus atos. No decorrer da oficina, muitos delinquentes admitiram que nunca tinham considerado seriamente os impactos humanos de seus crimes. Isto pode parecer esquisito, mas devemos perguntar-nos com que frequência a maioria de nós sabe (ou quer saber) sobre o impacto negativo de nossos erros? O mesmo é certo para aqueles que são condenados por roubo à mão armada, violação ou homicídio.

Terceiro; a oficina ofereceu um fórum para que os presos pudessem falar de suas próprias origens problemáticas. A dor das vítimas dos crimes trouxe de volta suas próprias dores: um jovem adolescente severamente golpeado por membros de uma liga que controlava seu bairro; um menino de 5 anos que via como sua mãe era agredida e estuprada; um homem que aos 9 anos de idade foi estuprado com a ponta de navalha por seu professor favorito e depois ameaçado de morte para que guardasse silêncio; um menino de 13 anos cuja irmã se prostituiu para poder pagar o craque que consumia, morrendo assassinada na rua.

É inegável que os que causam dano a outros com freqüência eles próprios também foram punidos. Isto provocou compaixão tanto nos presos como também nas vítimas sobreviventes. No entanto, nem um dos dos detentos invocou traumas da infância para exonerar-se ou para mitigar sua responsabilidade. O relato destas histórias também não se transformou numa ocasião para comparar sofrimentos; foi mais uma libertação catártica de energia emocional provocada por presos internalizando-se, ainda que brevemente, no sofrimento do outro. O compartilhar mudou a maneira como estes ofensores viram a si mesmos e os demais. “Você me permitiu enfrentar meus demônios”, disse um dos presos a uma vítima. “Agradeço-lhe por ter-me devolvido minha humanidade”, disse outro. O depoimento dos sobreviventes liberaram os homens para que pudessem reconhecer suas próprias ondas de frustração e repugnância, seu agastamento e ira, sua culpa e vergonha. A compaixão que sentiram pelas vítimas sobreviventes e por seus companheiros, além da pena para uma nova determinação e responsabilidade.

Para mim, o comentário que definiu a oficina foi feito no último dia: “o que aprendi nesta semana” disse um deles, “é que estamos todos quebrantados, mas não estamos sozinhos”. Este homem, aos trinta e poucos anos, está enrolado numa cultura carcerária que vê a vulnerabilidade como uma debilidade e um convite aos problemas. Entretanto, ele percebe que foi debilitado por sua educação e por suas próprias más decisões, não precisando fazer crer que é diferente. Percebeu que o fato de se encontrar debilitado é condição humana comum. Suas palavras expressaram o que muitos tinham descoberto: um novo sentido de solidariedade entre aqueles marcados pela vida e uma nova capacidade de amizade para com os demais.

A dimensão da redenção
A oficina da justiça reparadora não foi uma atividade religiosa em si. Porém, muitos dos detentos expressaram sua fé em Deus e o desejo de viver corretamente. Longe de procurar um “perdão barato”, confessaram que merecem estar encarcerados, e uns poucos inclusive declararam que “não merecem ser perdoados”. Além disso, outros expressaram a esperança que algum dia sejam considerados pelo divino médico que veio curar os doentes, não os sãos. Nas palavras de um detento: “Quando não nos resta nada mais, Deus está fazendo alguma coisa”.

A oficina ajudou os presos a reconhecer que estão quebrantados para poder começar a viver vidas regidas pelo amor, em vez do medo e da vergonha. Nas palavras de Jean Vanier e Stanley Hauerwas em Living Gently in a Violent Word, “não podemos estabelecer uma relação com pessoas que estão fraturadas a não ser que de alguma maneira nós nos encarreguemos de nossas próprias transgressões”. Ao enfrentar suas trnasgressões, os reclusos entram em contato com seu desejo de cura, não só para suas vítimas, mas também para si mesmos.

A crença cristã sustenta que inclusive os erros do passado não podem ser refugos ou esquecidos, podem ser redimidos. Tal redenção, se for verdadeira, tem que começar aqui e agora, num contexto de comunidade. Tal como observou Thomas Merton, O.C.S.O., “Nenhum homem vai sozinho para o céu”. Reconhecer que “estamos todos fraturados, mas não estamos sozinhos” está a tom com a Eucaristia na qual se parte Cristo e é repartido num grande ato de redenção. Esta verdade se aplica não só aos reclusos dos cárceres de alta segurança, mas a cada um de nós: quebrantados e pecadores, no entanto, amados e chamados por Deus a um futuro de esperança, promessa e reconciliação.

- Stephen J. Pope
Reproduzido via Amai-vos

Bíblia e Homossexualidade


O texto abaixo foi escrito para a Revista Um Outro Olhar, n. 38 (fev. 2003), porém permanece mais atual do que nunca, nesse momento em que os Malafaias da vida e seu séquito vivem pregando contra os direitos homossexuais em nome de Deus (um deus chifrudo e de rabo, pelo visto).

Acompanha o documentário Por que assim me diz a Bíblia (For the Bible Tells Me So, 2007, aqui), do diretor Daniel Karslake, que mostra histórias de cinco famílias cristãs em conflito com filhas e filhos homossexuais em função de uma formação religiosa baseada na interpretação literal de textos bíblicos. O filme disseca essa interpretação, com o qual os religiosos conservadores tentam convencer os fiéis a acreditarem que a bíblia condena a homossexualidade, e a compara com o que a bíblia de fato diz, considerando o contexto do mundo atual.

Ambos, texto e vídeo, são fundamentais, para todas as pessoas que buscam criar um mundo mais democrático e inclusivo, a fim de fazer frente ao discurso fundamentalista em plena ascensão em nosso país.

- Míriam Martinho

* * *

Poucos livros há que tenham sido usados para defender tantas idéias diametralmente opostas e conflitantes entre si como a Bíblia, a campeã do uso indevido de texto. Observe-se que cada igreja tem sua própria versão deste livro, desautorizando com um fulminante anathema sit, a excomunhão, as versões propostas por outras igrejas.

Assim, para aquelas que acreditamos em Deus e para quem a Bíblia tem um peso de revelação do divino, a manipulação do Livro Sagrado para combater a homossexualidade pode ser algo que nos enche de aflição e angústia.

Por isso, não hesitei em participar do curso sobre a Bíblia e a homossexualidade, organizado pela igreja de Saint Bartholomeu, de orientação anglicana, quando estive em maio deste ano em Nova York. Aproveito, pois para apresentar aqui um outro enfoque sobre a Bíblia, aquele que ministros e ministras anglicanos discutiram conosco nos idos da primavera nova-iorquina.

A primeira coisa que os tradicionalistas dizem para condenar a homossexualidade é que Deus nos criou homem e mulher para que, pelo sacramento do matrimônio, tivéssemos filhos. Há entre estes tradicionalistas quem diga que as Escrituras, clara e inequivocamente, declaram que a homossexualidade é um pecado contra Deus. Na verdade, a Bíblia não é tão clara nem tão inequívoca a este respeito.

Veja-se Gênesis 1:27: “e Deus os criou homem e mulher”, que tem sido usado para afirmar o princípio da heterossexualidade. Deus nos fez homem e mulher, mas a Bíblia em momento algum diz qual é a norma que deve pautar o relacionamento afetivo/sexual entre estas criaturas: se deve ser entre homem e mulher ou entre dois homens ou duas mulheres. Nada há ali prescrito, tão somente uma afirmação de que Deus nos fez homem e mulher. Há que se levar em conta também que as idéias e entendimentos sobre a sexualidade têm se alterado ao longo dos séculos. Nos tempos bíblicos, as pessoas não compartilhavam de nosso conhecimento e costumes sexuais, assim como nós não temos como conhecer a experiência sexual dessas pessoas que viveram em tempos ancestrais. Não há, pois, como comparar vivências e costumes tão diversos. Basta citar, como exemplo, o amor romântico. Este amor não aparece na Bíblia, que nem sequer suspeita de sua existência. O amor romântico é invenção recente: originou-se na Provence (França), no século 10, tendo sido divulgado inicialmente pelos trovadores, de feudo em feudo, depois pelos românticos no século 19 e por Hollywood no século 20. Esta concepção de amor não existe na Bíblia, assim como não existe nela a atual concepção de relacionamento gay ou lésbico.

Outra passagem usada pelos tradicionalistas para combater a homossexualidade é a de Sodoma. Esta passagem lança uma condenação, não à homossexualidade, mas à falta de hospitalidade (vide Gênesis, 19:1-9) e à opressão sobre os fracos e desamparados (vide Ezequiel, 16:48-49). Sodoma é um termo usado em uma dúzia de passagens bíblicas como sinônimo do mal, mas em momento algum é utilizado como sinônimo de homossexualidade. Os homens de Sodoma tentaram dominar os estrangeiros hospedados na casa de Lot, subjugando-os pela agressão e abuso sexual. Tal atentado em grupo tem a ver com estupro coletivo, humilhação e violência e não com homossexualidade. Os tradicionalistas manipulam o texto, porque Lot oferece as filhas para o estupro coletivo, dizendo aos habitantes de Sodoma que podem fazer o que quiserem com elas, mas que poupem seus hóspedes, os dois estrangeiros. Os habitantes querem os estrangeiros, não por sensualidade, mas por xenofobia, para humilhá-los.

Outra coisa a se considerar é que há passagens na Bíblia que defendem, expressamente, comportamentos e regimes que hoje em dia são inaceitáveis, tais como, a escravidão. Há mais de uma centena de anos que ninguém mais se atreve a lembrar essas passagens para defender a escravatura. Mas está lá em São Paulo, que manda aos escravos serem obedientes e servis aos seus senhores terrenos como o são a Cristo... Também o anti-semitismo está justificado em passagens de São Paulo (vide I Tessalonicenses 2:14-15): “pois também vós sofrestes dos vossos compatriotas o que eles sofreram por parte dos judeus; eles que mataram o Senhor Jesus e os profetas, também nos perseguiram, não agradam a Deus e são inimigos de todos os homens”. A subjugação das mulheres é igualmente advogada por São Paulo (vide I Timóteo, 2:11-12): “a mulher deve guardar silêncio, com toda submissão. Não permito à mulher que ensine”.

Por outro lado, quando a Bíblia afirma em Levíticos 18:22 que a homossexualidade é uma abominação, ela a julga tão abominável como o o comer moluscos, Levíticos 11:10. Assim, são hoje inúmeros os teólogos que afirmam não haver na Bíblia texto expresso sobre a homossexualidade, tal como é entendida hoje. A Bíblia é, pois, um closet vazio, não há nada de específico sobre homossexualidade, nada nos diz sobre ela, tal como é entendida hoje. Mas tem muito a dizer sobre a graça de Deus, sua justiça e misericórdia. Jesus resumiu a lei de Deus mais importante contida na Bíblia: “Ame a Deus com todo seu coração, corpo e alma e ao seu próximo como a si mesmo”. Este é o melhor mandamento divino. E intolerância, com certeza, está fora disto.

- Stella C. Ferraz
Autora dos romances lésbicos "Preciso te ver", "A Vila das Meninas" e "Pássaro Rebelde", publicados pela ed. Brasiliense. Texto originalmente publicado em revista Um Outro Olhar, n. 38, ano 16, Fev.2003.
Reproduzido via Um outro olhar e X1

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Valores familiares na política

Charge daqui

"Será que a imprensa pode parar de se referir a políticos como Santorum [católico ultraconservador que é pré-candidato republicano à presidência dos EUA - mais aqui] como tendo uma plataforma de "valores familiares"? O que pode haver de "valores familiares" em recusar aos LGBTs o direito de constituir família? Que apresentem sua plataforma tal como é: homofobia pura. Não engulam os rótulos que esse fanáticos querem nos impingir."

- Jen McCreight, via lgbtSr

Direitos humanos e diversidade religiosa

Imagem daqui

(A propósito da iniciativa do governo federal de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O Comitê foi instalado com um seminário em 30 de novembro de 2011)

O Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega, por exemplo, a existência de Deus, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão.

Na democracia não há crime de heresia. O Estado laico assegura que cada cidadão possa viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido por seu pertencimento religioso. Na Constituição Federal (1988), este direito está previsto no artigo 5º, inciso VI, o qual assegura liberdade de consciência e de crença a todos cidadãos, bem como no artigo 19, título I, que veda a aliança entre o Estado e as instituições religiosas. O ambiente democrático fomenta a diversidade, na medida em que todos ficam livres para acreditar (ou não) na existência de Deus.

No Brasil, durante a monarquia, experimentamos outro modo de tratamento para o fenômeno religioso. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), por exemplo, não se cogitava de liberdade para o indivíduo escolher sua religião. O Livro Primeiro, título II, dispunha "como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos", enquanto o Livro Quinto, título I, estabelecia "Que se denunciem ao Santo Oficio os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo". Assim, privilegiando-se uma religião e perseguindo-se as demais, forjou-se a maioria católica no Brasil.

A memória de um Estado brasileiro confessional e intolerante deve ser preservada, para assegurar que as novas gerações saibam que os valores democráticos, que asseguram o respeito à crença do outro, são conquistas do Estado laico, proclamado por meio do Decreto 119-A, em 07 de janeiro de 1890. A laicidade, definida como o regime de convivência no qual o Estado se legitima pela soberania popular e não mais por algum poder divino, não é contra as religiões. Ao contrário, o Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega, por exemplo, a existência de Deus, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão. A laicidade fomenta, pois, a diversidade religiosa, como inerente a uma sociedade livre e plural.

Importante destacar que o Estado laico serve aos religiosos, pois lhes garante a liberdade para vivenciarem sua fé, inclusive discordando da hierarquia de sua própria Igreja. Assim, por exemplo, as mulheres católicas que desejam usar a pílula, ou os jovens católicos que desejem usar o preservativo, podem fazê-lo graças à laicidade, que lhes garante a liberdade de decidir livremente se vão ou não se submeter aos dogmas de sua própria Igreja.

Contudo, a transição de um monopólio religioso para um regime de liberdades lança desafios à democracia. A ONU (Organização das Nações Unidas), desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) pauta a liberdade religiosa. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando: "Tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro". Em 2011, a ONU volta ao tema, aprovando a Resolução 16-18, cujo conteúdo reforça a necessidade de os Estados membros enfrentarem a intolerância religiosa.

Portanto, a iniciativa do governo federal de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, merece ser festejada por todos que acreditam na democracia, pois demonstra a necessária disposição para o diálogo com os mais variados segmentos da sociedade, visando reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a diversidade, à luz dos Direitos Humanos.

- Roberto Arriada Lorea
Juiz de Direito e Membro do Comitê de Diversidade Religiosa (SEDH)
Reproduzido via Amai-vos

Discurso do Papa e o Discurso do Jornalismo Ctrl+C



Os ânimos hoje estão aflorados devido umas declarações do Papa.

Porém, alguns veículos de comunicação fazem um extrato dos fatos pra extrair mais acessos as suas páginas e levantarem sua audiência. Para o leitor mais atento todos sabem que não é uma novidade que o Magistério da Igreja ainda ratifique o casamento heterossexual.

Falo isto, porque este tipo de mídia não está interessada em fomentar dialogo, em abrir frentes de tolerância e sim fazer o circo pegar fogo, afinal mirar o canhão da divergência pra LGBTs e Igreja ainda dá muita audiência.

Então, leitor amig@, peço sua leitura do discurso do Papa na integra no próprio site da Santa Sé:

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI AO CORPO DIPLOMÁTICO ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ PARA A TROCA DE BONS VOTOS DE INÍCIO DE ANO

Depois, volta aqui e lê o G1:

Casamento homossexual é 'ameaça' à humanidade, diz papa

Assim você pode formar sua opinião. Afinal, a vantagem do conceito de Web Dois Ponto Zero é exatamente este, descentralizar os pólos de emissão de informação dos veículos de massa.

Boa leitura!

Rodolfo Viana

Cinco palavras e um deserto‏


Na preparação para o Natal de 2011, publicamos aqui um lindo texto sobre o Evangelho do 2º domingo do Advento em que o autor refletia o significado do deserto nas Escrituras como lugar de conversão e reencontro do Deus nos seguintes termos:

No Evangelho, a palavra pecado não tem a conotação moral que se lhe damos hoje. A palavra pecado traduz a condição humana em sua fragilidade… condição que faz que nos afastemos do Deus da Aliança e que tenhamos necessidade de conversão para retornar a ele. E isso acontece no deserto, porque o deserto é o lugar do vazio, do silêncio, da paz e serenidade que permite todos os inícios. É ali que tudo começa: a tomada de consciência do que somos, a nossa necessidade de conversão, o nosso desejo de mudar a realidade e a necessidade de participar. É lá, no deserto, que podem renascer todas as esperanças. É também lá que João Batista faz o batismo de água para significar a conversão do coração, e este batismo se dirige a todo o mundo sem exceção (...). 
O deserto é também a experiência do povo de Deus no Exílio na Babilônia (...). Para voltar de Babilônia a Jerusalém, devem-se inventar caminhos de liberdade: “Uma voz grita: abram no deserto um caminho para Javé; na terra seca, aplainem uma estrada para o nosso Deus” (Is 40,3). Não há, por conseguinte, nenhuma pista já traçada. Deus não utiliza nunca os itinerários já trilhados. E por quê? Porque a vida não volta nunca sobre os seus passos; ela a cada vez se inventa incessantemente. Além disso, apesar da insegurança da estrada a pegar: “Que todo vale seja aterrado e todo monte se transforme em planície, e as elevações em lugar plano” (Is 40,4). Deus promete acompanhar os desbravadores e os caminhantes (Is 40,11). 
Em seu Evangelho, São Marcos recupera o batismo de João Batista para anunciar outro batismo: o batismo cristão, o batismo no Espírito Santo, que nos faz tornar filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs de Cristo da Páscoa: “Eu batizei vocês com água; mas ele batizará vocês com o Espírito Santo” (Mc 1,8). Em sua aventura cristã, a Igreja também não pode tomar caminhos traçados de antemão. A estrada deve também inventar-se. Apesar da insegurança que nos ronda, devemos abrir novos caminhos, e, não tenhamos medo, Cristo nos acompanha.
Por isso, ao nos depararmos, há alguns dias, com este texto de Marina Colsanti, achamos que valia aproveitar as imagens que ela evoca para retomar, neste início de ano, a ideia de um deserto onde todos os caminhos são novos, e onde a cada passo podemos contar com a mão amorosa e protetora do Pai que nos conduz. :-)

Havia um bilhete debaixo do meu prato quando sentei à mesa para a ceia de Natal: “Vale uma viagem ao Deserto de Atacama”. E agora aqui estou, diante do cume nevado de quatro vulcões, enquanto a luz cambiante deste fim da tarde tinge de suavidade as montanhas que os antecedem, e lambe o deserto que antecede as montanhas. O que vejo me enche de devoção e maravilhamento.

Quero falar do deserto com palavras simples, porque o deserto é de uma simplicidade comovente, mais do que isso, é essencial. E ao mesmo tempo quero falar do deserto com grandeza, porque tudo nele nos supera. Mas de uma forma ou de outra estaria sempre aquém. Tento, então, encontrar outros caminhos.

Duas são as cores do deserto: rosa e cinza. Tudo é de uma cor ou da outra, ou das duas. Rosa são as pedras vulcânicas que, brancas quando expelidas há séculos, foram sendo lentamente oxidadas, até adquirir essa tonalidade de carne. Rosa é a argila com que tudo se constrói, casas, muros, telhados. Rosa ou cinza são as grandes planícies daquilo que chamamos deserto, mas onde a vida teima em resistir. Rosa, decididamente rosa, são os flamingos que vêm se reproduzir e se alimentar nas lagoas. E o rosa e o cinza intercambiam seus tons quando colhidos pela luz.

Duas são as palavras que se impõe diante do deserto: imensidão e força. Tudo é imenso, a cadeia de vulcões, as formações rochosas, as extensões desérticas, as salinas, as “quebradas”, que é como se chamam os canyons locais. E o que não é imenso, o que por vezes parece pequeno – como o pássaro do altiplano que só se alimenta da rãzinha preta, que só se alimenta de um minúsculo inseto aquático –, traz em si clara mensagem de força, aquela força de que se necessita para sobreviver em ambiente tão áspero.

Só uma medida serve para o deserto: tempo. Aqui tudo se mede em milhões de anos. Trezentos milhões de anos para que os deslocamentos geológicos enxugassem o mar, erguessem as cordilheiras, trocassem água por areia, peixes por lhamas. Dezoito milhões de anos para que chuva e fusão de neve escorrendo sobre as pedras vulcânicas extraíssem seu sal, fluíssem para a planície, indo formar a enorme salina de Atacama. Quantos milhões de anos, para que um rio misturasse sua água doce em uma parte da salina, dando origem à lagoa em que os flamingos se alimentam? Contar o tempo em milhões de anos não nos apequena, ao contrário, nos diz que mesmo nosso humano, modestíssimo prazo de vida é importante, porque tudo constrói e tudo se acrescenta.

E uma particularidade nos surpreende neste deserto: a diversidade. Tento imaginar os invasores espanhóis que vindo lentamente, a pé ou a cavalo, deparavam com paisagens sempre diferentes, e em cada paisagem um novo universo a decifrar. Mesmo hoje, quando tudo ou quase tudo está decifrado, quando nos deslocamos de carro e o calor do deserto ou o frio nevado do vulcão estão retidos para lá dos vidros, o inesperado nos convoca e não se esgota.

Na ceia de Natal, encontrei um bilhete no meu prato. Ainda não sabia que em vez de cinco palavras havia ali areia e sal e lava e neve e vento, ainda não podia ver alçando voo de dentro do meu prato uma revoada de flamingos cor de rosa. Mas afinal, cinco palavras foram suficientes para me dar isso tudo.

- Marina Colasanti
Reproduzido via Conteúdo Livre

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Por outros olhos - Curta sobre Homofobia nas Escolas


Parceria entre o Grupo Arco-Íris e a UFRJ. Em um mundo onde todo mundo é homossexual, um menino e uma menina se apaixonam. Nessa realidade trocada, estes dois héteros têm de enfrentar os preconceitos e discriminações que LGBTs enfrentam no nosso mundo real.



Muito feliz em ver a Escola que fiz o Segundo Grau sendo cenário pra este tipo de iniciativa.

#AdolphoBlochForever

Rodolfo Viana

Não me ''re-Concílio''. Uma viagem entre os católicos tradicionalistas

Concílio Vaticano II, setembro de 1962 (daqui)

"Fundamentalismo" – uma cunhagem do início do século XX do cristianismo batista do Sul dos EUA, que reivindicava a defesa dos seus próprios fundamentals. Na linguagem comum do século XXI, é considerado como um risco, um desvio ou uma natureza do Islã: mas que, na realidade, se reverbera sobre todos os universos religiosos – inclusive no católico – e que merece ao menos um rápido panorama.

A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado na revista dos jesuítas italianos, Popoli, 02-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Para quem olha de fora, poderia parecer um fenômeno novo. Certamente, é uma moda, mas de raízes antigas. O desprezo pela escuta do outro, o antagonismo para com o diálogo, a recusa da mediação em favor de uma identidade proclamada com a aspereza de quem não tem um centro de gravidade, o martelante elogio de si mesmo, a evocação de desígnios tenebrosos contra privilégios e arrogâncias, e, no fim, a pretensão de que tudo, até mesmo a violência, seja cumprida em nome de Deus.

Um fenômeno definido muitas vezes com o termo "fundamentalismo" – uma cunhagem do início do século XX do cristianismo batista do Sul dos EUA, que reivindicava a defesa dos seus próprios fundamentals – e considerado na linguagem comum do século XXI como um risco, um desvio ou uma natureza do Islã: mas que, na realidade, se reverbera sobre todos os universos religiosos e que merece ao menos um rápido panorama.

Quando o outro é uma ameaça
Em todos os lugares, de fato, a reivindicação de identidade e de exclusividade de um direito projeta uma ambígua fronteira com a violência. Quando ela aparece dentro do contexto cristão, como aconteceu neste verão [europeu], quando uma multidão fundamentalista massacrou jovens na ilha de Utoya, na Noruega, em nome de um "suprematismo" que se opõe à multiculturalidade, o Ocidente é quase unânime em observar – e não uma invenção – que o componente de delírio psicopatológico é claramente dominante.

Ao contrário, quando o criminoso psicopata é um muçulmano, essa mesma cultura e informação tende com gosto a generalizar, quase como se o Alcorão tivesse com a violência uma relação qualitativamente diferente da que está escrita nos livros e nas tradições das outras fés.

Ainda diferente é o caso do judaísmo, em que o nascimento do Estado de Israel e a transformação da utopia sionista em um sistema político permite que o nunca dormente antissemitismo europeu e o árabe de feitio mais jovem identifiquem neste ou naquele ato de guerra daquele país uma espécie de "prova" de uma inclinação bélica, denunciada com uma prontidão que as dezenas de milhares de mortes da recente guerra na Líbia não souberam merecer. E os cruzamentos entre autoabsolvição e acusação poderiam se multiplicar invertendo partes e quadrantes.

O fundamentalismo, de fato, é assim, em todos os lugares: cuida do seu próprio direito, apresentando-o como ameaçado pelo outro. Ou, melhor: fala de si mesmo – o religioso, cultural, étnico – como a vítima predestinada de um outro que deve ser neutralizado antes que seja tarde demais.

Sobre essa base, que – como nos ensinou o historiador e cientista político francês Jacques Sémelin – é o prenúncio de todos os grandes genocídios do século XX, nos predispomos a um choque que não prevê prisioneiros ou perdão. Foi assim no desesperado delírio de quem, como Oriana Fallaci, leu no próprio choque do 11 de setembro o emblema da transformação da Europa em uma Eurábia, que devia impedida, negando aquela visão do homem e de Deus que compõe a fé do Profeta. Foi assim, com efeitos muito mais sanguinários, naquelas mesquitas onde se temia a destruição e a profanação do Islã como programa do Grande Satã.

O Vaticano II como inimigo
Ao lado desses extremos que já aproaram em um identitarismo violento ou disponível a distinguir discriminando de acordo com as situações ("propter qualitatem personarum", diria o direito antigo) a titularidade dos direitos do homem, há outros fundamentalismos: prenúncios para alguns, contíguos para outros àqueles grupos. Fundamentalismos que se reconhecem na defesa intransigente do literalismo bíblico como explicação do mundo e instrumento de educação; ou que reivindicam a transformação em lei de normas da disciplina religiosa, seja porque são identificadas com a lei/direito da natureza, seja porque são consideradas parte da identidade cultural/nacional. Ou que conduzem uma batalha muito viva não contra quem é outro, mas contra quem não se identifica com essa batalha e, na sua qualidade de inimigo interno, é considerado o pior dos piores.

Esse tipo de fundamentalismo tem variações nada banais até no mundo cristão e no católico, onde habita assim como habita em toda parte. No seio católico romano, ele se torna hoje mais visível e pronunciado por um conjunto de fatores, que não seria difícil dividir em pensamentos, palavras e omissões. O fundamentalismo católico – usarei essa generalização para indicar o integrismo, o clericofascismo, o antissemitismo islamofóbico e o islamófilo, o tradicionalismo temperado, o tradicionalismo cismático, e assim por diante – não tem como inimigo uma corrente, um grupo, uma espiritualidade, uma encíclica, um livro, uma pessoa, mas nada menos do que um concílio, o Concílio Vaticano II.

Portanto, aquele órgão sobre o qual redunda o pleno e supremo poder sobre a Igreja, dizia o Código de Direito Canônico Pio-Beneditino de 1917: aquele que, em matéria de fé, expressa a infalibilidade da Igreja toda no crer e que, "Spiritu sancto legitime congregata", representa o encontro vivo da Igreja com o Vivente.

O Vaticano pertence, sem dúvida, ao conjunto dos grandes concílios: e, por isso, é normal que, a quase meio século da sua abertura, a sua recepção ainda esteja em curso, marcada por tensões e vitalidades que levaram tempo para se expressar e agiram em níveis diversos.

De baixo, como no caso da reforma litúrgica que recentrou sobre a Eucaristia a vida das Igrejas, o ministério e o próprio sacramento do episcopado, de um modo que pode ser contestado, mas não invertido: a esse respeito, é significativo que, no momento em que a suprema autoridade decide não só perdoar os cismáticos lefebvrianos, mas também comprazer com soberana indulgência as suas nostalgias por ritos que não conhecem, as comunidades da grande Igreja não sofrem nenhum contragolpe e continuam a sua vida litúrgica de antes.

Do lato, como no caso do diálogo inter-religioso: já que, quando o Concílio aceitou falar não só dos judeus, mas também fazer uma declaração sobre as religiões, pensava ter evitado com um subterfúgio a indisponibilidade dos bispos árabes a um documento que podia parecer favorável ao Estado de Israel (na época, ainda não reconhecidos pela Santa Sé). Na realidade, aparecendo a relação de intrínseca e assimétrica dependência do cristianismo pelo judaísmo à relação com as outras religiões, acabou fazendo de Israel o paradigma de toda alteridade, ou, melhor, o sacramento de toda alteridade. Assim, nos anos seguintes, pudemos assistir a eventos como a oração comum de Assis em 1986 – uma das pérolas pontificado de Wojtyla –, que explicitava com um convite a "necessidade" do outro do qual o cristianismo se sente portador. Ou ler palavras como as do irmão Christian de Chergé, prior do mosteiro de Tibihrine, na Argélia, assassinado como centenas de milhares de argelinos (sobretudo muçulmanos) na guerra civil: no testamento – escrito quando já estava claro que permanecer fiel à vocação implicava o martírio –, ele reconhecia ao seu futuro assassino que a morte lhe permitiria ver os muçulmanos com os olhos com os quais Deus os vê.

Uma leitura ideológica
É igualmente normal que, contra esse Concílio e a sua riqueza teológica, mobilizem-se grupos "reacionários" em sentido estrito: e que, por razões propagandísticas, sejam obrigados a ideologizar a realidade. Devem, portanto, acreditar ideologicamente que o Vaticano II – ao qual se deve a reabertura do contato com a grande tradição do Oriente e da Igreja do primeiro milênio – tenha posto em desuso uma "tradição" que muitas vezes nada mais é do que uma série de hábitos ou costumes. Ou devem defender que o Concílio Vaticano II é um concílio "modernizador" ("modernista", para os piores), que rebaixou a qualidade da disciplina do clero e do povo para comprazer uma cultura alheia como a da sociedade secular, quando está bem claro que a intenção conciliar é a de restaurar ao Evangelho a eloquência que tinha e não pode não ter.

Os mais refinados, ao contrário, agiram e agem em outros planos: a definição de que o Vaticano II se apresenta como como um concílio "pastoral" – uma qualificação tão complexa a ponto de ser impérvio à má-fé – é apresentada, por exemplo, como uma espécie de autocastração de uma cúpula que teria tido como alvo questões doutrinais. Ou ainda, a complexa hendíade de Bento XVI sobre a hermenêutica da reforma e da continuidade – reforma da vida, continuidade ontológica do sujeito Igreja, no discurso do papa – é mutilada em um elogio da continuidade sem bases históricas nem teológicas, mas que serve para vaticinar uma contraofensiva do catolicismo contra os seus inimigos de sempre, contra as outras confissões e as outras fés, contra tudo e contra todos.

Poder e tradição
A moda descrita sumariamente tem um destino que não depende só da sua consistência, embora modesta; e nem da tentativa (talvez não eficazmente monitorada) de anexar a ela as sutis distinções pontifícias e de arrancar de Ratzinger a sua biografia. Há, me parece, uma razão política mais profunda que está em ação. No mundo globalizado, onde as fisionomias se misturam e as paisagens mudam, todo poder busca se apresentar como guardião de uma tradição e paladino de um nacionalismo cultural em que possam ser aproveitados pertencimentos reais e conexões históricas efetivas, em um espírito de vingança a ser ativado quando necessário.

É uma moda que, em muitos países, é fácil sentir e pressentir, mas não é uma novidade. Quando Benito Mussolini se definia como "católico e anticristão", ele já se colocava na linha de uma mentalidade que chegaria, por essa via, ao colonialismo, à guerra, ao Holocausto: coisas, estas, que estavam à frente do Vaticano II e contra as quais o Concílio tinha tentado encontrar uma resposta na fidelidade ao Evangelho no tempo.
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