sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Para uma maior justiça: a bondade


Cristo nos convida a superar a justiça do cálculo, da negociação e do mérito, para aplicar a justiça da gratuidade e da bondade. Todas e todos são chamados, independentemente da hora do dia, e não cabe a nós decidir o salário a ser dado a cada um/a. A retribuição torna-se distribuição; à justiça, se sobrepõe a bondade, e é isso que faz a riqueza da Igreja.

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Les Reflexions de Raymond Gravel, 14-09-2011, comentando a leitura do Evangelho do último domingo, XXV Domingo do Tempo Comum. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Neste domingo, nós reencontramos Jesus e os Doze a caminho rumo a Jerusalém. Para aqueles que o escutam, Jesus diz e repete que somos membros do Reino se buscamos a Deus, como sugere o profeta Isaías, na primeira leitura de hoje: "Buscai o Senhor, já que ele se deixa encontrar; invocai-o, já que está perto" (Isaías 55,6), e se aceitamos que ele é o "Totalmente Outro" : "Pois meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor" (Is 55,6).

No Evangelho, Jesus nos lembra que a justiça de Deus é diferente da nossa: "Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20,16a). Essa frase é a última palavra de Jesus antes da sua partida para Jerusalém, onde a morte o espera. O evangelista Mateus é o único que nos conta essa parábola dos operários da undécima hora. Que mensagens ele quis dar à sua comunidade? Quais mensagens nós podemos reter hoje?

1. A justiça retributiva
Esse episódio do Evangelho de Mateus dá um golpe mortal à teologia da retribuição. Nesse relato, Cristo nos convida a superar a justiça do cálculo, da negociação e do mérito, para aplicar a justiça da gratuidade e da bondade. De fato, Mateus quer ilustrar que a bondade não ofende a justiça de forma alguma; ao contrário, ela permite uma maior justiça, e não há porque nos sentirmos ofendidos quando ela é aplicada.

A comunidade cristã de Mateus é muito diversificada; ela é composta por judeus convertidos desde a primeira hora e por pagãos que chegaram mais tarde. Não foi fácil levar em consideração estes últimos, os pagãos, como cristãos por inteiro, da mesma forma que os primeiros, os judeus convertidos ao cristianismo. Na Igreja de Mateus, havia, sem dúvida, alguns desses "supercristãos", provenientes do judaísmo e do farisaísmo, que se acreditavam superiores aos outros, aos inumeráveis pagãos que se uniram à comunidade cristã. Como dizer-lhes que não são mais importantes ou melhores do que os outros? Essa parábola quer endireitar as coisas.

Todo trabalhador merece o seu salário: é uma questão de justiça. O acordo que o mestre faz com os seus operários é de lhes dar uma moeda de prata, que corresponde ao salário normal de um dia de trabalho. Todos aqueles que se engajavam na vinha estão de acordo sobre o combinado. É a justiça retributiva. O evangelista nos diz que é "no romper da manhã" que os operários, na praça, são chamados a trabalhar na vinha (Mt 20, 1). Mas, como se trata da Igreja, o mestre apela sem cessar: "Cerca da terceira hora, saiu ainda e viu alguns que estavam na praça sem fazer nada" (Mt 20, 3). A estes, ele diz simplesmente: "Ide também vós para minha vinha e vos darei o justo salário" (Mt 20, 4). Ainda se trata de justiça retributiva. O mesmo vale para aqueles que foram contratados ao meio-dia e às três da tarde (Mt 20, 5).

Além disso, não há um tempo limite para os apelos do mestre para trabalhar na sua vinha, para fazer parte da Igreja: "Pela undécima hora, encontrou ainda outros na praça e perguntou-lhes: Por que estais todo o dia sem fazer nada?" (Mt 20,6). E o mestre não acrescentou nada sobre o salário.

Mas como estão as coisas hoje? Ainda não há, talvez, na Igreja, esses supercristãos que se consideram mais importantes e melhores do que os outros? Não há, talvez, cristãos que trabalham desde o nascer do sol e outros que exercem funções importantes na Igreja, que acreditam merecer mais do que os outros que chegaram à tarde ou que não correspondem às regras que a Igreja estebeleceu?

A questão que devemos fazer é a seguinte: por que há aqueles que se engajam no último minuto? É por preguiça? Por ignorância? Por indiferença? Não! Segundo o evangelista Mateus, as razões, sem dúvida, são múltiplas. Mateus indica uma: "Eles responderam: É porque ninguém nos contratou" (Mt 20, 7). No tempo de Mateus, os retardatários podiam ser leprosos, enfermos, pobres, publicanos, prostitutas, excluídos, marcados ou feridos pela vida, que estavam lá, mas que ninguém queria ter ao seu lado. Nada lhes é dito nada sobre o salário justo; isso não lhes impede de ir trabalhar na vinha quando são chamados.

2. A justiça distributiva
Nessa parábola, o Cristo de Mateus nos convida a distinguir a bondade da justiça, não as comparando, mas sim sobrepondo-as. O que é justo é o acordo feito entre o mestre e os operários. O que é bom é a gratuidade com a qual são remunerados aqueles que são chamados no último minuto. O salário dado aos operários da vinha não leva em conta o tempo de trabalho de cada um. Muito mais: o mestre paga aos últimos antes que os primeiros. Deve-se falar de injustiça para com os primeiros operários que suportaram o peso da jornada e do calor? (Mt 20, 12). Não! Porque o acordo com eles foi respeitado: "Meu amigo, não te faço injustiça. Não contrataste comigo um denário?" (Mt 20, 13). O salário dado aos últimos transforma a justiça retributiva em justiça distributiva, e esta última é feita de bondade e de gratuidade por parte do mestre da vinha.

Surge uma outra questão: no fim da jornada, quando chega o momento de distribuir os salários, por que o mestre começa pelos últimos? Se ele tivesse pago antes aos primeiros o salário combinado, eles jamais saberiam quanto os outros haviam recebido. Além disso, já que haviam trabalhado todo o dia todo no calor, por que eles também têm que fazer fila agora para serem pagos?

Mateus, sem dúvida, quer fazer com que os os cristãos da sua comunidade compreendam que a justiça é um valor essencial na Igreja, mas que não é um absoluto. A bondade a supera, sem ofendê-la, e é por isso que, dando o mesmo salário tanto aos últimos quanto aos primeiros, o mestre não viola a regra da justiça, mas aplica aos últimos a bondade, para que se faça justiça aos menores, aos mais pobres e aos mais fragilizados. Estes não podem obtê-la de outro modo: "Não me é permitido fazer dos meus bens o que me apraz? Porventura vês com maus olhos que eu seja bom?" (Mt 20, 15).

No entanto, para o evangelista Mateus, há também outra coisa: "Assim, pois, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20, 16). Esse versículo, que é um acréscimo ao relato original, quer mostrar que, na Igreja de Mateus, os judeus, os primeiros chamados por Cristo, rejeitaram o salário combinado, enquanto os pagãos, ao contrário, chamados mais tarde, sem nem mesmo conhecer o salário, responderam afirmativamente ao chamado do Senhor. Para Mateus, estes últimos têm direito ao salário combinado e recusado pelos primeiros.

As comunidades cristãs de hoje são muito diversificadas, assim como no tempo de Mateus. Elas são compostas de mulheres e de homens que vêm de todas as partes, que participam da vida da Igreja, cada um/a da sua própria maneira. Há os praticantes, liturgicamente falando, há aqueles e aquelas que se engajam, em nome da sua fé cristã, em favor dos pobres e dos despojados, há aqueles e aquelas que se afastaram da Igreja porque se sentem julgados, condenados e excluídos pela instituição.

Porém, todas e todos são chamados, independentemente da hora do dia, e não cabe a nós decidir o salário a ser dado a cada um/a. A retribuição torna-se distribuição; à justiça, se sobrepõe a bondade, e é isso que faz a riqueza da Igreja.

O exegeta francês Jean Debruynne escreveu: "Nunca é muito tarde para se deixar contratar pela amizade, para se deixar contratar pelos projetos, para se deixar contratar pela fome e pela sede dos outros, pela oração, pela esperança, pela justiça, pela fé, pelo perdão, pela paz... Nunca é muito tarde, porque Deus é bom! Há pessoas que começam a sua vida aos 70 anos. Que descobrem Deus aos 65 anos. Há aquelas que se acreditavam últimas, ninguém, abaixo de tudo, e que se descobrem queridas por Deus em primeiro lugar. Eu sei que alguns pensam que isso não é certo, mas então criticaremos Deus por ser bom?".

E terminarei dizendo: quem pode pretender conhecer a justiça de Deus e definir os limites da sua bondade e da sua gratuidade? Como bem dizia Santo Afonso de Ligório: "Se tivéssemos que nos enganar sobre Deus, seria melhor fazê-lo exagerando a sua bondade do que endurecendo a sua justiça".

Leituras:
Is 55,6-9
Sl 145 (144)
Fl 1,20c-24.27a
Mt 20,1-16a

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