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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Primeira vista


O Cristianismo de hoje abraçou um projeto radical: o de recuperar e atualizar a dimensão contemplativa em todos os aspectos de sua vida: dialogando com os mundos científico e secular e, com outras religiões e, também, em sua própria casa, em sua teologia, moralidade, oração, culto e ação social. Caso a Igreja venha a falhar nesse esforço de espiritualização, ou se renda à tentação de regressar a um nostálgico mundo de supostas certezas, tal como algumas pessoas gostariam, lhe será impossível ajustar-se a um mundo secular, de modo a ser aquilo a que se destina. Atualmente, a própria identidade cristã, essa recepção e comunicação daquilo que a humanidade ganhou através de Jesus, está ameaçada. Um corolário dessa identidade está no relacionamento com outras identidades religiosas, e sua necessidade de trabalhar em equipe com outras formas de fé, para responder à crise global.

A menos que seja contemplativa, a igreja fracassa em ser contemporânea. Sua “catolicidade”, ou seja, sua universalidade, se reduz. À medida que se reduz a uma quase extinção, ela murcha na direção de um mero ritual. No entanto, não é o tamanho de suas congregações que importa, mas a qualidade da mente que se desperta naqueles que frequentam a igreja, ou não a frequentam de nenhuma maneira convencional, mas vivem a fé cristã de outras maneiras. Números, sobem e descem. A mente é transnumérica. Ela está aberta, ou está fechada, ou tende para uma dessas direções. O mundo precisa de pessoas contemplativas que tenham mentes corajosamente abertas, qualquer que seja a forma de sua fé, budistas, hindús, judeus ou muçulmanos. Todas as religiões enfrentam seu próprio desafio de recuperar e se reconectar com seu núcleo espiritual.

O Cristianismo necessita cristãos contemplativos, procedentes da experiência desse centro, que tragam consigo a Palavra de um evangelho unificador para um mundo machucado, que se inclina para a autodestruição. A missão, é um dos elementos do discipulado cristão: o de se adiantar e falar da experiência da fé. Onde a fé é forte, o objetivo da missão não é a conversão. Esse é o trabalho do Espírito, não se trata de um projeto humano. Assim, a missão do cristão contemporâneo é essencialmente contemplativa e, conduzirá ao diálogo, em vez do roubo de ovelhas. A experiência é que faz as pessoas contemplativas, uma experiência movida por pura fé. É por isso que precisamos compreender o significado da fé. Para muitos cristãos, isso pode demandar passarem por uma desprogramação do seu treinamento religioso prévio. Eles devem, primeiro, se permitir a conversão.

- Laurence Freeman, OSB

Fonte

sábado, 10 de março de 2012

Maria de Magdala, a grande ''Apóstola dos Apóstolos''


“Não é possível contar a história da Ressurreição sem falar também de ‘Maria, a de Magdala’”. Foi essa mulher que, depois de ir ao túmulo onde Jesus havia sido depositado depois da crucificação, “viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo e saiu correndo”, como relata o Evangelho, para se encontrar os discípulos e lhes contar a grande notícia.

Segundo Chris Schenk, diretora-executiva da FutureChurch - organização norte-americana de renovação da Igreja 
que atua pela plena participação de todos católicos e católicas em todos os aspectos da vida e do ministério da Igreja - essa é a grande importância e o legado de Maria Madalena, uma das primeiras místicas do cristianismo que viveu “a experiência da Ressurreição”.

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Chris busca desmontar por inteiro qualquer referência negativa a Maria Madalena: “Não há nada nas Escrituras que sustente a ideia de que ela era uma prostituta” e, “se Maria de Magdala fosse a esposa de Jesus e a mãe de seu filho, é altamente improvável que esses textos teriam omitido esses fatos importantes”.

Ao contrário, para a religiosa da congregação das Irmãs de São José, Madalena foi a principal testemunha da Ressurreição e “uma líder feminina que entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos homens”. “Curiosamente – afirma –, a Igreja Oriental nunca a identificou como uma prostituta, mas honrou-a ao longo da história como ‘a Apóstola dos Apóstolos’”.

Chris Schenk, CSJ, é religiosa da congregação das Irmãs de São José, mestre em Obstetrícia e Teologia e, com a assistência da equipe da FutureChurch, desenvolve e administra programas nacionais de base, incluindo questões como a mulher na liderança da Igreja e no mundo, o futuro do ministério sacerdotal e a situação das paróquias dos EUA. Durante os últimos 15 anos, a FutureChurch tem trabalhado para restaurar a consciência sobre Santa Maria de Magdala como a primeira testemunha da Ressurreição e uma respeitada líder da Igreja primitiva. Em 2011, mais de 340 celebrações de Santa Maria de Magdala foram realizadas, incluindo 36 celebrações internacionais, inclusive no Brasil. Em 2007 e 2008, Schenk coordenou uma ação internacional para “pôr novamente as mulheres no quadro bíblico” no Sínodo sobre a Palavra. Isso resultou no maior número mulheres da história a participar de um sínodo do Vaticano, em um total de seis, que atuaram como consultoras teológicas para os padres sinodais.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que sabemos sobre a vida de Maria Madalena? Quem foi essa mulher que seguiu Jesus, alcunhada com expressões tão díspares quanto “prostituta e esposa de Jesus” e “discípula amada e apóstola dos apóstolos”?

Chris Schenk – Mesmo que Maria de Magdala seja a segunda mulher mais frequentemente nomeada no Novo Testamento depois de Maria, a mãe de Jesus, o que sabemos sobre ela é bastante limitado, estando confinado aos textos dos Evangelhos canônicos e ao que pode ser deduzido de como ela é retratada em uma série de textos canônicos extras. No entanto, é impressionante o quanto os estudiosos bíblicos podem nos dizer sobre ela, mesmo a partir desses dados esparsos. Por exemplo, todos os quatro Evangelhos retratam-na como líder do grupo de mulheres que testemunhou por primeiro os eventos que cercam a Ressurreição. Todos os quatro descrevem-na exatamente com a mesma frase: “Maria, a de Magdala”. Os estudiosos chamam isso de atestado múltiplo, o que significa que há evidências históricas confiáveis de que ela existiu e que não é possível contar a história da Ressurreição sem falar também de “Maria, a de Magdala”.

Em Lucas 8, 1-3 ficamos sabendo que, com Joana, esposa de um alto funcionário de Herodes, Cuza, e Susana, Maria de Magdala “e muitas outras mulheres” acompanhavam Jesus e os discípulos homens pela Galileia e “os ajudavam com seus bens” . Esse pequeno texto nos diz muito mais do que pode parecer, a princípio, para os nossos ouvidos do século XXI, que não entendem os costumes sociais que cercavam as mulheres no judaísmo palestino do primeiro século.

Para começar, as mulheres muito raramente eram nomeadas em textos antigos. Se elas são nomeadas é porque tinham alguma proeminência social e, mesmo assim, na maioria das situações, elas são nomeadas em relação aos homens presentes em suas vidas, tais como seus maridos, pais ou irmãos. As mulheres eram consideradas como parte da família patriarcal, e era raro para elas ter uma identidade separada da de um parente do sexo masculino. Assim, vemos Joana, a esposa do alto funcionário de Herodes, Cuza. Herodes é o rei. Joana faz parte de uma família rica pertencente a Cuza.

Mas quando Maria de Magdala é identificada, ela é nomeada pelo povoado de onde ela veio, não em relação a um parente do sexo masculino. Os estudiosos bíblicos acreditam que isso significa que Maria de Magdala era uma mulher rica de recursos independentes. E, com Joana e Susana (sobre quem, infelizmente, sabemos muito pouco), essas mulheres eram apoiadoras financeiras proeminentes da missão de Jesus na Galileia.

Assim começou uma longa história de patrocínio das mulheres que ajudou o cristianismo a se espalhar de forma relativamente rápida por todo o mundo mediterrâneo. Por exemplo, sabemos que Paulo tinha muitas benfeitoras ricas, como Lídia e Febe, que apoiavam financeiramente o seu ministério e o apresentaram a uma ampla gama de relações sociais no mundo dos gentios que, de outras formas, ele não teria tido acesso.

Inclusão de mulheres
A inclusão de mulheres por parte de Jesus em seu discipulado itinerante pela Galileia não é nada menos do que notável. No judaísmo palestino, os judeus observantes homens não falavam publicamente com as mulheres de fora do seu círculo de parentesco, e muito menos lhes era permitido viajar com eles em público em uma comitiva de gênero misto. Embora a observância dos costumes judaicos fosse provavelmente menos estrita na Galileia do que em Jerusalém, eu acredito que a paixão de Jesus por proclamar o reino de Deus de justiça e de relações justas era tal que transcendia costumes, e ele sabia que a sua missão dada por Deus estava voltada para as mulheres assim como para os homens.

As discípulas de Jesus muitas vezes ultrapassaram seus irmãos discípulos em termos de fidelidade à sua pessoa, particularmente em eventos em torno da paixão e morte dele. Enquanto os Evangelhos nos dizem que os discípulos homens fugiram para a Galileia, as mulheres ficaram do lado de Jesus ao longo da crucificação, morte, sepultamento e Ressurreição. É por isso que todos os quatro Evangelhos mostram as mulheres como as primeiras testemunhas. Elas sabiam onde Jesus havia sido sepultado. E as mulheres foram, então, incumbidas a “ir e a contar aos seus irmãos” a boa notícia da vitória de Jesus sobre a morte.

O fato de a mensagem da Ressurreição ter sido confiada por primeiro às mulheres é considerado pelos estudiosos das Escrituras como uma forte prova da historicidade dos relatos da Ressurreição. Se os relatos da Ressurreição de Jesus tivessem sido fabricados, as mulheres nunca teriam sido escolhidas como testemunhas, já que a lei judaica não reconhecia o testemunho de mulheres.

Escritos cristãos extracanônicos antigos mostram comunidades de fé inteiras crescendo em torno do ministério de Maria de Magdala, nos quais ela é retratada como alguém que compreende a mensagem de Jesus melhor do que Pedro e os discípulos homens. Os estudiosos nos dizem que esses escritos não são sobre as pessoas históricas de Maria e de Pedro, mas refletem, sim, tensões sobre os papeis de liderança das mulheres na Igreja primitiva. Líderes proeminentes como Maria e Pedro foram evocados para justificar pontos de vista opostos.

O que não é contestado é a representação de Maria de Magdala como uma importante mulher líder e testemunha das primeiras igrejas cristãs.

IHU On-Line – Em seu artigo Mary of Magdala, Apostle to the Apostles , você diz, entre outras coisas, que Maria Madalena “não era uma prostituta”. Em sua opinião, o que levou a essa confusão em torno da figura de Maria Madalena?

Chris Schenk – Uma explicação é uma leitura errônea comum do Evangelho de Lucas, que nos diz “sete demônios saíram dela” (Lucas 8, 1-3). Para os ouvidos do primeiro século, isso significava apenas que Maria tinha sido curada de uma doença grave, e não que ela era pecadora. Segundo biblistas como a Ir. Mary Thompson, a doença era comumente atribuída ao trabalho dos espíritos maus, e não associada com a pecaminosidade pessoal. O número sete simboliza que a sua doença era crônica ou muito grave.

Além disso, como o conhecimento das muitas discípulas de Jesus desapareceu da memória histórica, suas histórias se misturaram e se borraram. A terna unção de Maria de Betânia antes da paixão de Jesus estava ligada à mulher “conhecida por ser uma pecadora”, cujas lágrimas lavaram e ungiram os pés de Jesus na casa de Simão. Os textos de unção combinaram todas essas mulheres em uma só pecadora público-genérica: “Magdalena”. A identificação equivocada de Maria como uma pecadora pública reformada alcançou um status oficial com uma poderosa homilia sobre o perdão do Papa Gregório Magno (540-604).

Doravante, Maria de Magdala se tornou conhecida no Ocidente não como a forte mulher líder que acompanhou Jesus através de uma morte tortuosa, que testemunhou por primeiro a sua Ressurreição e proclamou o Salvador Ressuscitado à Igreja primitiva, mas como uma mulher devassa com necessidade de arrependimento e de uma vida de penitência escondida (e de preferência em silêncio). Curiosamente, a Igreja Oriental nunca a identificou como uma prostituta, mas honrou-a ao longo da história como “a apóstola dos apóstolos”.

IHU On-Line – Por que podemos falar de Maria Madalena como uma “mística”, com tão poucos elementos bíblicos (pelo menos nos Evangelhos canônicos) sobre essa mulher de Magdala? Qual seria a “mística” de Maria Madalena?

Chris Schenk – Embora não saibamos exatamente como foi a experiência da Ressurreição para Maria de Magdala, sabemos que ela teve uma experiência tão poderosa do Cristo ressuscitado que a levou a correr para contar aos seus discípulos irmãos: “Eu vi o Senhor”. Talvez bastante compreensivelmente, eles não acreditaram nela à primeira vista. Mas, qualquer que tenha sido a experiência de Maria, eu gosto de pensar que ela era uma mulher profundamente mudada, e que a mudança observável provavelmente preparou o caminho para que os outros discípulos se abrissem para receber as suas próprias experiências do Cristo ressuscitado.

Parece claro para mim que, embora os discípulos tenham experimentado uma “corporalidade” de Cristo nessas experiências da Ressurreição, não era a mesma de uma ressuscitação de uma pessoa morta. Jesus estava vivo de fato e se deu a conhecer a eles, mas ele também estava mudado o suficiente, tanto que eles não o reconheceram à primeira vista. O Evangelho de João nos diz que Maria primeiramente o confundiu com o jardineiro e, só depois de ouvir Jesus chamar o seu nome e literalmente “virar-se” [para trás], é que ela o reconheceu. Os discípulos de Emaús (Lucas 24, 13-35) não reconheceram Jesus ao longo de toda aquela longa jornada, somente no partir do pão. Assim, qualquer que tenha sido a experiência da Ressurreição, ela não foi um reconhecimento direto, mas envolveu algum sentido liminar e místico para além das nossas capacidades perceptivas usuais. É dessa forma que eu acredito que Maria de Magdala pode ser considerada uma mística.

IHU On-Line – Nesse sentido, qual é o significado mais profundo desse relato do momento mais memorável da experiência mística de Maria Madalena, ou seja, o fato de ela ter sido a primeira pessoa – e mulher – a testemunhar a Ressurreição?

Chris Schenk – Assim como muitas mulheres antes de mim, eu experimentei uma “noite escura do patriarcado” depois de perceber o quão íntima e profundamente toda a história ocidental (a única história com a qual estou familiarizada) tornou as contribuições das mulheres tudo, menos invisíveis.

O fato de Deus ter confiado por primeiro a proclamação da Ressurreição a uma mulher me diz que, embora os seres humanos discriminem, Deus não discrimina. Eu considero a inclusão das mulheres no discipulado de Jesus na Galileia e o delicado equilíbrio de gêneros por parte de Deus no evento da Ressurreição, que modificou o cosmos, profundamente consoladores, especialmente agora, quando vemos um aparente ressurgimento do medo do feminino entre muitos líderes homens da Igreja institucional.

IHU On-Line – Na história da Igreja, outra Maria, a mãe de Jesus, ocupa um lugar central há séculos – especialmente na América Latina. Que semelhanças e diferenças você vê entre estas duas grandes figuras femininas do cristianismo, Maria, a mãe de Jesus, e Maria Madalena?

Chris Schenk – Nossa... Esse é um assunto que merece uma discussão muito mais longa e estudada do que a breve resposta que eu sou capaz de dar aqui. Basta dizer que – assim como o testemunho das primeiras líderes bíblicas independentes como Maria de Magdala, Febe, Lídia, Ninfa, Prisca e até mesmo a Maria de Nazaré histórica foi ou suprimido ou apagado da memória histórica –, elas foram substituídas por homens líderes da Igreja que levantaram uma reflexão teológica sobre Maria como Virgem Mãe por honra e reconhecimento.

Em "Mary, the feminine face of the Church", Rosemary Ruether compara a Maria bíblica com Maria de Magdala e as outras discípulas que, como vimos, desempenham um papel central e às vezes não convencional nos Evangelhos. Embora haja muitas evidências no Novo Testamento sobre o papel de Maria de Magdala e das outras discípulas, a tradição da Igreja glorificou Maria, a mãe de Jesus, como a mulher fiel que permaneceu lealmente ao seu lado. Muitos estudiosos acreditam que o papel de Maria de Magdala foi suprimido porque ela apresentava um modelo de liderança feminina independente que os posteriores homens líderes da Igreja queriam evitar. Eles queriam evitar esse modelo por causa da tensão na Igreja primitiva em torno do fato de mulheres cristãs exercerem a liderança pública em uma cultura greco-romana que acreditava que a liderança feminina só era apropriada em ambientes privados.

O culto à Virgem Maria
O culto à Virgem Maria ganhou proeminência no século IV, quando o cristianismo estava se tornando a religião obrigatória do Império Romano, cujo povo adorava Deus há muito tempo tanto na metáfora masculina como feminina. Muitos estudiosos encontraram semelhanças entre o culto à Maria e o culto à Grande Deusa Mãe (Ísis, Ártemis), proeminente no mundo mediterrâneo no qual o cristianismo rapidamente se espalhou. A glorificação e a veneração a Maria foram ao encontro de profundas necessidades espirituais e psicológicas para um povo cujos corações estavam acostumados a adorar a Deus com um rosto feminino. Estudiosos identificam muitas formas concretas pelas quais essa adaptação aconteceu. Lagos e nascentes onde as divindades femininas eram honradas passaram a ser associadas a Maria, a Virgem Mãe. Santuários e templos à Deusa foram rededicados a Maria, Mãe de Deus. Finalmente, como a teóloga Elizabeth Johnson observa, “não foi por acidente que a doutrina do século V da Theotokos [Mãe de Deus] foi proclamada em Éfeso, cidade famosa pela sua adoração entusiástica da deusa grega Diana” .

Esse fenômeno foi visto mais recentemente, quando consideramos como a veneração de Nossa Senhora de Guadalupe se espalhou rapidamente por todo o México, cujos povos nativos haviam sido devastados muito recentemente pela conquista e pelas doenças dos invasores espanhóis do século XVII. A compreensão indígena do sagrado não tinha nenhuma categoria para qualquer ser divino que não incluísse também o feminino. Tepeyec, o local da revelação guadalupana, era o antigo lugar da grande deusa da terra Tonanzin. Tonanzin significa “mãe” na história nativa Nahuatl. Finalmente, os povos nativos encontraram um ser divino com o qual eles poderiam se relacionar. O Pe. Virgilio Elizondo fez esta tradução da mensagem de Nossa Senhora de Guadalupe por meio de Juan Diego para o povo recentemente derrotado: “Saibas e entendas tu, o menor dos meus filhos, que eu sou sempre Virgem Maria, Mãe do verdadeiro Deus por quem se vive. Desejo vivamente que me seja erguido aqui uma casita, para nele mostrar e dar todo o meu amor, compaixão, auxílio e defesa a ti, a todos vós, a todos os moradores desta terra e aos demais que me amam, que me invocam e em mim confiam. Ouvirei ali os seus lamentos e remediarei todas as suas misérias, penas e dores” .

Elizabeth Johnson, CSJ, fala de forma muito bela ao observar que uma das razões pelas quais Maria tem sido tão importante na história da Igreja é que: “Maria tem sido um ícone de Deus. Para inúmeros fiéis, ela tem funcionado no sentido de revelar o amor divino como misericordioso, próximo, interessado, sempre pronto a ouvir e a responder às necessidades humanas, confiável e profundamente atrativo, e tem feito isso em um grau impossível quando se pensa em Deus simplesmente como um homem ou homens de poder. Consequentemente, em devoção a ela como uma mãe compassiva que não vai deixar que um de seus filhos se perca, o que realmente está sendo mediado é uma experiência mais atraente de Deus?”

Então, embora seja uma tragédia da história que, pelo menos até recentemente, as discípulas de Jesus e de São Paulo ou foram apagadas da memória histórica ou degradadas a prostitutas em favor do modelo totalmente puro e, no fim das contas, inacessível de Maria, a virgem-mãe, o outro lado da moeda é que, de alguma maneira, Deus encontrou uma forma de preservar o acesso humano ao divino feminino na experiência cristã. É claro que o ensino oficial da Igreja nunca afirmou que Maria é divina, mas as reflexões de muitos teólogos e as experiências de oração dos fiéis muitas vezes sugerem que outra coisa está em ação.

De fato, Johnson encontra na tradição mariana um “filão de ouro que pode ser ‘explorado’, a fim de recuperar o imaginário e a linguagem femininas sobre o santo mistério de Deus”. Na tradição mariana, sugere ela, “onde quer que a ultimidade do divino seja evocada nas Escrituras, na doutrina ou na liturgia ou onde quer que a ultimidade da confiança do fiel seja convocada, podemos supor que a realidade de Deus está sendo nomeada em metáforas femininas” .

IHU On-Line – Como Maria Madalena nos ajuda a pensar a liderança das mulheres na Igreja e na sociedade de hoje? É possível chegar à igualdade de gênero na Igreja Católica?

Chris Schenk – Talvez o aspecto mais importante da recuperação da memória histórica da liderança de Santa Maria de Magdala é que as fiéis contemporâneas podem, pela primeira vez, se ver nas histórias do Evangelho e na história da Igreja primitiva.

Quando eu era criança, eu tinha a impressão, assim como quase todo mundo que eu conhecia, que era Jesus e os 12 homens que viajavam ao redor da Galileia fazendo o bem. Eu nunca via ninguém que se parecesse comigo nos Evangelhos. As mulheres pareciam ser todas as prostitutas, pecadoras, habitadas por demônios ou uma Mãe virgem. Nenhum desses modelos a serem seguidos era muito atraente. Fiquei escandalizada quando eu descobri, por meio dos meus estudos bíblicos, que Maria de Magdala foi a primeira testemunha da Ressurreição e que não há nada nas Escrituras que sustente a ideia de que ela era uma prostituta. Parecia uma grande injustiça o fato de ser assim que uma grande mulher de fé como ela era lembrada na história da Igreja, pelo menos na Igreja latina. E eu resolvi fazer algo a respeito.

Então, se nós, como Igreja, podemos começar a ver que Jesus (e mais tarde São Paulo) incluiu mulheres que eram líderes no seu discipulado mais próximo, isso leva à pergunta: “Bem, por que a Igreja não pode incluir mulheres como líderes hoje?”. Atualmente, a Igreja ensina que as mulheres são iguais. No entanto, nenhuma estrutura da Igreja lhes permite exercer essa igualdade de forma alguma. Só homens podem eleger o Papa, liderar dioceses, pastorear paróquias e pregar na Missa. Isso é uma grande perda para a comunidade de fiéis, já que necessariamente sempre ouvimos o Evangelho através da lente da experiência masculina. Estamos perdendo a oportunidade de ouvir as grandes verdades da nossa fé através das lentes da experiência feminina.

Todas as decisões na governança da Igreja exigem a ordenação, e a Igreja ensina que as mulheres não podem ser ordenadas. Portanto, temos ensinamentos conflitantes aqui. Eles não podem estar ambos certos. É por isso que eu acredito que, no fim, teremos a igualdade feminina na Igreja. Mas será uma longa luta e ela só virá através da graça de Deus em ação, convertendo os homens tomadores de decisão (lembre-se, até São Paulo se converteu) e sustentando as dezenas de milhares de mulheres e homens que trabalham para essa igualdade de muitas e variadas formas nos nossos dias.

IHU On-Line – Como vimos, é impossível entender Maria Madalena sem levar em conta sua relação com Jesus. O que sabemos sobre a relação de Jesus com as mulheres em geral? Que sementes de “mística feminina” já estão presentes na vida de Jesus ou na vida das mulheres que o seguiram?

Chris Schenk – Isso é algo interessante para se refletir. A partir dos Evangelhos, vemos que Jesus tinha muitas amizades com mulheres, e não apenas com Maria de Magdala. Certamente, Maria e Marta de Betânia eram amigas queridas, semelhante a uma família para ele. Maria de Betânia assumiu o papel de estudante rabínico (tradicionalmente reservado aos homens), sentando-se aos pés de Jesus para ouvir e aprender. Ele se recusou a mandá-la embora, não obstante Marta tenha protestado. “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”, diz Jesus (Lucas 10, 38-42). O Evangelho de João mostra Marta fazendo uma profissão de fé semelhante à de Pedro quando Jesus a ordena a acreditar que seu irmão vai ressuscitar: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo” (João 11, 27).

O autor joanino também mostra que Jesus se alimentou com a conversa teológica e a subsequente conversão da mulher samaritana: “Eu tenho um alimento para comer, que vós não conheceis” (João 4, 32).

A mulher da unção – seja ela Maria de Betânia, no Evangelho de João, ou a discípula anônima vista em Mateus e Marcos – certamente entendeu a missão messiânica de Jesus melhor do que os discípulos homens que a criticaram. A fé da mulher de que Jesus estava de fato entrando em seu reino se mostrou pelo fato de ela ungir a cabeça de Jesus, um ato semelhante à unção realizada pelo profeta Samuel, significando a realeza de Davi. O gesto profético e amoroso dessa mulher deve ter sido muito reconfortante para Jesus enquanto ele enfrentava a sua paixão e morte.

Não me sinto confortável com a frase “mística feminina” neste contexto, já que a mística é mística e, em si mesma, não tem gênero. Dito isso, o encontro humano com o divino provavelmente pode ser influenciado pelo gênero do ser humano que só pode expressar tal encontro por meio do veículo da sua humanidade masculina ou feminina. Por exemplo, a mística São João da Cruz é expressa de forma diferente do que a de Santa Teresa de Ávila. Ambos têm encontros místicos com o divino que expressam em uma linguagem única, influenciada pela totalidade da sua humanidade, o que inclui o seu gênero.

Nos Evangelhos, vemos muitos exemplos de encontros de Jesus com o Divino. O Evangelho de Lucas (Lucas 4, 18-19) revela que Jesus modelou a sua missão a partir dos escritos dos profetas. Primeiro, ele anuncia a sua missão de Deus na sinagoga da sua cidade natal de Nazaré, citando Isaías 61, 1,2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos (…) para dar liberdade aos oprimidos”. Isso nos diz que Jesus foi profundamente influenciado pelos ensinamentos religiosos da sua própria tradição e encontrou a sua verdadeira identidade por meio do que poderia ser chamado de um encontro místico com a Justiça Divina, mediada pelos escritos de Isaías. Jesus passou o resto de sua vida pública sendo fiel ao seu chamado a proclamar o reino de Deus onde a justiça e a relação justa prevalecem, por fim, entre pobres e ricos, homens e mulheres, soberano e sujeito, forte e fraco.

IHU On-Line – Outra figura de destaque na história do cristianismo é Paulo de Tarso. Em sua opinião, quais as semelhanças ou diferenças entre esse grande apóstolo da Igreja primitiva e a “apóstola dos apóstolos”, Maria Madalena?

Chris Schenk – Tanto Maria de Magdala quanto Paulo tiveram experiências do Cristo Ressuscitado que mudaram as suas vidas. Essa é a grande semelhança.

A diferença é que as viagens e as cartas missionárias de Paulo às primeiras comunidades em todo o mundo mediterrâneo foram preservadas e fornecem um excelente retrato dos desafios reais enfrentados pelos primeiros cristãos. Eles são os primeiros escritos cristãos que temos.

Infelizmente, não temos nenhum registro direto semelhante do que aconteceu na vida e no testemunho subsequentes de Santa Maria de Magdala. Só podemos deduzir de fontes extracanônicas que ela era lembrada em algumas comunidades primitivas como uma proeminente líder mulher e discípula que compreendeu a missão de Jesus melhor do que os seus irmãos.

As cartas de Paulo também fornecem informações valiosas sobre a liderança coigual nas comunidades cristãs primitivas. Romanos 16 nos fala sobre os “colaboradores em Cristo” de Paulo, o casal Prisca e Áquila. O fato de Prisca ser nomeada primeira em quatro das seis vezes em que o casal é citado no Novo Testamento nos diz que ela provavelmente era a mais proeminente da dupla. Prisca e Áquila fundaram comunidades em Corinto, Éfeso e Roma que serviram como base de evangelização em cada uma dessas grandes cidades. Com Paulo, eles podem ser legitimamente chamados de “apóstolos aos gentios”, porque, como o próprio Paulo diz: “Eu lhes sou agradecido, e não somente eu, mas também todas as Igrejas fundadas entre os gentios” (Romanos 16, 04). Paulo louva outro casal de missionários, Júnias e seu marido Andrônico, como “apóstolos notáveis” (Romanos 16, 7). Júnia é a única mulher no Novo Testamento a quem é dado o título de “apóstola”.

IHU On-Line – Maria Madalena e Jesus coexistem no imaginário coletivo como um exemplo de um “amor proibido”, especialmente devido ao “beijo na boca” narrado nos Evangelhos apócrifos ou à dúvida sobre quem é a mulher que derrama “um perfume de nardo puro” nos pés de Jesus. Como você analisa, inspirada em Madalena, a conexão entre erotismo, sensualidade e mística?

Chris Schenk – Como disse anteriormente, a minha interpretação dos textos sobre a unção não se baseia em um erotismo místico, mas no significado profético da unção sobre a cabeça, como Samuel fez quando ungiu o rei Davi.

Todos os quatro Evangelhos falam sobre uma mulher que unge Jesus com um caro unguento perfumado. Em Mateus e Marcos, a mulher unge a cabeça de Jesus, evocando o profeta Samuel. Quando ela é criticada, Jesus a defende: “Onde for anunciado o Evangelho, no mundo inteiro, será mencionado também, em sua memória, o que ela fez” [Marcos 14, 9]. Infelizmente, essa mulher jamais é lembrada, já que, nas leituras do Domingo de Ramos, onde esse texto se encontra, ele é ou omitido ou tornado opcional.

Lucas retrata a mulher como uma pecadora pública, cuja unção dos pés de Jesus significa a sua grande fé e perdão. João mostra Maria ungindo os pés de Jesus no ambiente íntimo de Betânia. Como o lava-pés era um ritual devocional central na comunidade joanina, não é de se estranhar que João combina a história de Lucas da unção dos pés de Jesus com antigas tradições de unção da sua cabeça. Em Mateus, Marcos e João, a unção acontece pouco antes da prisão e paixão de Jesus.

Mas o que a unção significa? A tradição mais antiga, que evoca a unção profética de Samuel, é a pista. Essa discípula fiel entendeu a passagem de Jesus pela paixão e morte como a sua entrada real ao reino messiânico onde a liderança servidora reinará para sempre. O ato dela deve ter sido profundamente consolador para Jesus, enquanto ele enfrentava a efusão final para a vida do mundo.

Nas palavras de Isaías: “Eis o meu servo, dou-lhe o meu apoio. É o meu escolhido, alegria do meu coração. Pus nele o meu espírito, ele vai levar o direito às nações”. Para os seguidores de Jesus, a lavagem e a unção dos pés é uma estrada real que leva à vitória da Justiça.

A publicação em 2002 de O Código Da Vinci inflamou uma ampla polêmica em torno do verdadeiro papel de Maria de Magdala. Infelizmente, o livro de Dan Brown, embora sendo uma narrativa ficcional envolvente, fez um desserviço à Maria de Magdala histórica e a outras líderes mulheres da Igreja primitiva. Apesar de O Código Da Vinci transmitir um belo ideal da unidade essencial do masculino e feminino, ele é, em última análise, subversivo à liderança plena e igualitária das mulheres na Igreja, porque se centra na ficção do estado marital de Maria, em vez de se centrar no fato da sua liderança em proclamar a Ressurreição de Jesus.

Não há dados históricos ou bíblicos para sustentar a especulação de que Maria de Magdala era casada com Jesus. A controvérsia de que os escritores antigos não mencionam o seu casamento e sua prole por medo da perseguição judaica realmente não se sustenta, porque o Evangelho de João e grande parte da literatura apócrifa foram escritos depois da queda de Jerusalém, quando não haveria nada a temer das autoridades judaicas. Se Maria de Magdala fosse a esposa de Jesus e a mãe de seu filho, é altamente improvável que esses textos teriam omitido esses fatos importantes, especialmente porque ela é retratada proeminentemente tanto como a principal testemunha da Ressurreição quanto uma líder feminina que, de muitas formas, entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos homens.

Se Jesus foi casado, não foi com Maria de Magdala, porque então ela teria sido conhecida como “Maria, a esposa de Jesus”, e não Maria de Magdala. Como vimos, convenções literárias e sociais na Antiguidade ditavam que, quando as mulheres eram mencionados (uma ocorrência muito rara), elas eram quase sempre nomeadas pela sua relação com a família patriarcal, por exemplo: “Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes” (Lucas 8, 1-3). De forma atípica, Maria de Magdala foi nomeada de acordo com a cidade da qual ela provinha (não pela sua relação com um homem).

Mística, erotismo e sensualidade
Minha opinião sobre a conexão entre erotismo e mística não se inspira naquilo que se pode saber da relação de Maria de Magdala com Jesus, já que os dados históricos sobre um relacionamento romântico é, no máximo, tênue.

Dito isso, eu acredito que há, de fato, uma conexão entre erotismo e mística, e essa conexão pode ser facilmente vista em muitos dos escritos e das experiências dos grandes místicos, como João da Cruz e Teresa de Ávila.

A experiência do mistério do amor de Deus é uma experiência profundamente humana. Somos Espíritos encarnados. Outra forma de dizer isso, como um fisioterapeuta amigo meu disse uma vez, é perceber que “nossos corpos são a parte mais densa do nosso Espírito”. Disso segue-se que, em qualquer encontro com o divino, nossos corpos vão refletir isso de alguma forma.

Para aqueles abençoados com experiências consoladoras do amor de Deus, pode não ser incomum encontrar nossos sentidos corporais tão cheios e consumados quanto depois de uma expressão amorosa do amor sexual íntimo. Isso não quer dizer que a experiência mística é o mesmo que o orgasmo sexual, mas sim que há uma satisfação na totalidade do nosso eu que se parece com o grande mistério e prazer da satisfação sexual humana. Alguns acham que essa satisfação divina é ainda mais profundamente satisfatória.

As escrituras geralmente usam metáforas esponsais para descrever o amor de Deus pelo seu povo. Certamente, esse amor mais poderoso dos amores humanos é uma metáfora apropriada para descrever o amor insuperável de Deus por cada pessoa e pelo mundo.

IHU On-Line – Você é diretora-executiva da FutureChurch, com sede em Cleveland, que iniciou em 1997 uma celebração especial da festa de Maria de Magdala, no dia 22 de julho. Por que essa data? Como é essa celebração e quais são seu significado e seu propósito mais profundos?

Chris Schenk – Nós escolhemos o dia 22 de julho porque é o dia da festa de Santa Maria de Magdala, celebrada pela Igreja universal. As celebrações surgiram por causa da minha paixão por esclarecer de uma vez por todas que Maria de Magdala não foi uma prostituta, mas sim a primeira testemunha da Ressurreição.

As celebrações são organizadas para apresentar aos católicos comuns o estudo bíblico contemporâneo sobre Santa Maria de Magdala e de outras mulheres nas Escrituras. As definições da cerimônia de oração também proporcionam um lugar em que mulheres competentes podem pregar e presidir em funções litúrgicas visíveis.

O significado e propósito mais profundos dessas celebrações é que tanto homens como mulheres aprendam sobre a liderança das mulheres nos Evangelhos e experimentem o fato de mulheres servirem em papéis de liderança sagrada, alguns pela primeira vez. Quando começamos essas celebrações em Cleveland, Ohio, uma amiga trouxe o seu grupo de mulheres das Alcoólicas Anônimas. Algumas dessas mulheres estavam em lágrimas durante toda a celebração, porque era a primeira vez que se experimentavam como igualmente santas e amadas por Deus em comparação com seus irmãos.
Foi assim que eu soube que estávamos tocando algo muito profundo na psique feminina e, por extensão, na psique masculina. Como nós, mulheres, raramente nos vemos nas Escrituras e quase nunca vemos mulheres servindo em papéis sagrados no altar, nós muitas vezes inconscientemente interiorizamos que temos menos valor e somos menos amadas por Deus do que os nossos irmãos.

Eu acho que a Igreja Católica jamais será curada do sexismo e da misoginia enquanto tanto as mulheres como os homens experimentem o ministério a partir de mulheres e de homens. Todos nós precisamos do ministério de ambos os gêneros.

IHU On-Line – Que outras mulheres místicas você destacaria a partir das Escrituras ou da história do cristianismo? Como essas mulheres nos ajudam a pensar a mística feminina na contemporaneidade?

Chris Schenk – Esse é um assunto muito extenso para abordar em profundidade aqui. Mas basta dizer que, ao longo da história, as mulheres muitas vezes exerceram a liderança espiritual que lhes era negada na Igreja institucional escrevendo sobre seus encontros místicos com um Deus amoroso que conforta, consola e traz justiça.

Vemos isso nos escritos do século XII de Hildegard de Bingen, que era uma visionária, vidente e curadora. Ela ficava assombrada com a corrupção do seu próprio tempo: “Este tempo é um tempo afeminado, porque a revelação da justiça de Deus é fraca. Mas a força da justiça de Deus está se manifestando, uma guerreira lutando contra a injustiça, para que esta possa cair derrotada” (Carta 23). Hildegard entendeu-se como essa guerreira feminina, a personificação da justiça de Deus.

Teresa de Ávila foi uma proeminente mística espanhola do século XVI que foi ameaçada pela Inquisição por três vezes. Quando as pessoas citavam a prescrição paulina de que as mulheres devem ficar em silêncio e nunca ter a pretensão de ensinar na Igreja (1 Tim 2, 11-14), ela contestava com palavras que ela havia recebido de Jesus em oração: “Diga-lhes que não sigam apenas uma parte da Escritura sozinha (…) e pergunte-lhes se poderão, por ventura, atar minhas mãos” (Testemunhos Espirituais, 15).

No final do século XIV, em um tempo em que a guerra e a peste assolavam toda a Europa, Julian de Norwich trouxe uma mensagem reconfortante para as pessoas aterrorizadas pela morte súbita: Deus não odeia os pecadores, mas só tem amor e compaixão por eles. Julian foi uma mística que experimentou uma cura milagrosa e teve visões que lhe deram intuições sobre o amor de Jesus. Ela escreveu sobre isso em um livro chamado Showings. Era um risco escrever sobre o amor de Deus em vez dos pecados das pessoas, porque, naqueles dias, a Igreja considerava a minimização do pecado uma heresia punível com a morte. Grande estudiosa e teóloga, Julian também foi uma mulher corajosa e criativa que confiava completamente em um Deus amoroso.

As mulheres de hoje têm acesso à mesma formação teológica e bíblica que os homens. Isso permite que os fiéis dos nossos dias apreendam o Deus-mistério através das lentes da experiência feminina em uma linguagem que possa ser entendida tanto por homens como por mulheres. Esse é um grande dom para a Igreja e está, de fato, abrindo novas formas de compreensão e de apreciação do Mistério divino que, afinal de contas, sempre será um mistério. Essa é para mim uma das coisas favoritas sobre Deus... Sempre haverá mais para aprender, explorar e amar.

IHU On-Line – Em sua opinião, considerando a atual situação social, socioeconômica e política, qual é o papel da mística e da espiritualidade, especialmente feminina?

Chris Schenk – Eu acredito que, como as mulheres muitas vezes têm experiência pessoal do que significa ser suprimidas, oprimidas e deprimidas (para citar uma amiga minha), elas entendem muito bem a importância de testemunhar o Deus de justiça e Jesus, que veio para exaltar os humildes e libertar os oprimidos.

Se alguma vez for dada às mulheres a oportunidade de pregar regularmente, eu suspeito que poderemos ouvir muito mais sobre a paixão de Jesus pelo reino justo de Deus do que nós atualmente ouvimos a partir da maioria dos púlpitos, em que os homilistas muitas vezes pregam chavões piedosos, em vez de proclamar boas novas aos pobres.

A mística feminina, como qualquer mística (e a mística é a experiência da maioria dos cristãos mais comprometidos, embora eles nunca a nomeiem dessa forma), é chamada a ajudar a trazer o reino justo de Deus aqui na terra, como no céu. Se você não acredita em mim, apenas reveja a própria oração de Jesus, o Pai Nosso, que diz isso de forma mais eloquente do que eu jamais poderia dizer.

A mística, então, também é chamada a ser profeta. E o profeta não pode sobreviver sem uma comunicação mística regular com Aquele que nos ama para além de toda a nossa compreensão e que nos fortalece para além de todas as nossas fraquezas.

(Por Moisés Sbardelotto)

sábado, 3 de março de 2012

Poesia e mística: o silêncio como origem e destino

Imagem: Chris Buzelli

“O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção”.

O convite a essa “profunda disposição para o silêncio” nos é feito pela poeta paulista Mariana Ianelli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Esse silêncio, derivado de “um estado concentrado de atenção” ao qual somos levados pela poesia e também pela mística, torna-se, assim, “uma abertura, como que uma chave de acesso, para essa via secreta do Mistério, que de outro modo não seria percebida”.

“O que acontece dentro desse espaço de atenção – afirma Mariana –, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura”. A partir daí, “pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor”.

Mariana Ianelli é poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, autora dos livros "Trajetória de antes" (1999), "Duas Chagas" (2001), "Passagens" (2003), "Fazer silêncio" (2005), "Almádena" (2007), "Treva Alvorada" (2010). Colabora para os jornais O Globo, caderno Prosa & Verso (RJ) e Rascunho (PR). Sua página na internet é www.uol.com.br/marianaianelli.

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU.


IHU On-Line – Em sua opinião, como a poesia e a mística colaboram para aguçar a percepção sobre o Mistério? Que vínculos você percebe entre poesia e mística?

Mariana Ianelli – O que as torna tão próximas, a poesia e a mística, é uma profunda disposição para o silêncio, o silêncio de um estado concentrado de atenção que, justamente por estar preservado do ruído, encontra uma abertura, como que uma chave de acesso para essa via secreta do Mistério que, de outro modo, não seria percebida. E porque a palavra que vem dessa mirada, tanto poética como mística, não pretende, como faria a ciência, submeter ou reter nela mesma essa realidade mais profunda, sua expressão se dá musicalmente, na forma do canto e da prece, que são formas aladas, por assim dizer, também vinculadas entre si, que têm como origem e destino o silêncio, e são inapreensíveis no registro de uma linguagem instrumental.

O que acontece dentro desse espaço de atenção, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura. Os símbolos a que recorrem os poetas e os místicos são uma espécie de receptáculo dessa verdade que, se antes pediu um estado profundo de atenção para ser percebida, agora pedirá a atenção e o coração aberto de um outro que procure ver além da figura.

IHU On-Line – Um de seus ensaios está intitulado "Por uma Poética do feminino", em que você afirma que “mito, história e corpo cantam quando canta uma mulher”. Como se dá a relação entre poesia e feminilidade?

Mariana Ianelli – Penso nos mistérios de Elêusis, nos séculos e séculos em que a mulher esteve obrigada à reclusão doméstica e ao mutismo, e em seu próprio corpo, em sua potência de gerar vida dentro de si, como diferentes marcas do feminino que convergem para essa intimidade com o oculto, com o que se elabora em segredo e tem por metáfora o duplo trabalho de Penélope , que é também sua arte e seu destino, de fiar e desfiar indefinidamente num exercício de esperança e sacrifício.

Aí estão as figuras emblemáticas de Marta e Maria em uma só mulher, aquela que ao mesmo tempo comparece em um gesto eficaz diante do mundo, e esta que se guarda no seu olhar contemplativo. Isso, levado para a poesia, encarna a paciente gestação interna de um poema face o ímpeto da escrita, os maravilhosos encadeamentos de um processo intuitivo, às escuras, e a trama que daí se vai constituindo à luz do dia.

São as duas respirações de que falava María Zambrano, a da vida e a do ser, esta, oculta no silêncio, que orienta o sentido do poema, engendra musicalidade e é “o hálito do ser depositado sobre as águas primeiras da Vida”, e aquela outra, que está justamente na superfície do viver e que sofre a ameaça de interromper-se não apenas por alguma razão fisiológica, mas sobretudo se falta a respiração do ser, que sustenta em silêncio a respiração da vida.

IHU On-Line – Amor, erotismo, segredo, ventre, criação... São diversos os símbolos relacionados ao feminino que fluem entre poesia e mística. A partir de um olhar poético-místico, o que é o feminino?

Mariana Ianelli – Vejo o feminino, sob essa perspectiva poética e mística, representado magnificamente na personagem bíblica de Judite. Uma mulher que, diante do cerco à cidade de Betúlia pelo exército de Nabucodonosor, quando os anciãos da cidade se reúnem para estabelecer um prazo para a manifestação de Deus, como se isso fosse possível, coberta de cinzas, faz sua oração mais fervorosa e pede a Deus para ser habitada por três forças: palavra, astúcia e ímpeto. Nessa prece, ela diz: “Tu é que fizeste o passado, / o que acontece agora e o que acontecerá depois. / O presente e o futuro foram estabelecidos por ti, / e o que pensaste aconteceu”.

E então ela roga: “dá-me o ímpeto que pensei”, rogando, assim, pelo pensamento divino dentro dela, por um impulso em conformidade com uma vontade superior. Depois da oração, Judite se despoja do seu luto, põe seu vestido de festa, perfuma-se e se adorna com todas as suas joias, enche um odre de vinho, uma bilha de água, um alforje de farinha e com sua serva atravessa os portões da cidade para ir ao encontro de Holofernes, chefe do exército inimigo. Já pelo caminho, Judite vai seduzindo pela sua beleza os soldados que encontra e, ao ter com Holofernes, Judite o seduz também por sua palavra, uma palavra ambígua e profética, que fala de Deus enquanto Holofernes julga que ela fala de Nabucodonosor.

É assim que essa mulher permanece infiltrada entre 140 mil homens, durante quatro dias, nos quais, durante a madrugada, dirige-se ao pé da fonte da sua cidade para orar, para beber espiritualmente à fonte do pensamento divino. No quarto dia, quando Holofernes, em um banquete, pretende dormir com Judite, finalmente ela desempenha o gesto, aquele gesto preciso, movido por um ímpeto transcendente, por isso violento, de decapitá-lo com dois golpes de alfanje.

Acredito que essa narrativa, de uma mulher que afugenta um exército de milhares com a sedução da sua palavra ambígua, com a astúcia de um caminho que vai sendo urdido subterraneamente, sob o véu da beleza, e com o fervor, um fervor que se nutre da fé, e que transborda para a realidade num golpe mortal, acredito que esse episódio bíblico concentra de maneira emblemática, espiritual e poeticamente, em uma tríade perfeita, toda a potência que existe e está guardada sob a aparente delicadeza do feminino.

IHU On-Line – Por outro lado, em sua opinião, podemos também falar de uma “mística feminina” ou de uma “mística do feminino”? Quais seriam as contribuições do olhar feminino à percepção do âmbito místico da existência?

Mariana Ianelli – Creio que sim, que podemos pensar em uma mística do feminino sob muitos aspectos, um deles, a partir da visão para qual Maria Madalena é a escolhida, por amor, entre todos os discípulos, tornando-se ela a portadora de uma revelação secreta. Se lembramos das "Moradas" de Santa Teresa e das "Visões" de Hadewijch de Antuérpia, vemos o percurso de uma viagem interior, pródiga em figuras, que se vai delineando à vista dessas mulheres místicas e que nos remete ao relato visionário, de Maria Madalena em seu Evangelho, da ascensão da alma através dos céus até o silêncio e o repouso.

Não desconsidero com isso os místicos e poetas que também figuraram à sua maneira as jornadas da alma em suas etapas de purificação; apenas destaco a relevância desse vínculo intrínseco entre as viagens espirituais descritas por mulheres místicas e a visão de Maria Madalena, que provém de um conhecimento oculto cuja revelação ela, Maria, por ter sido a escolhida, tem o privilégio de transmitir aos outros homens.

A partir daí, pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor. Quanto à importância da figura, é inevitável sua relação com a poesia, e aqui vale mencionar a poeta Cristina Campo, que se dedicou a refletir intensamente sobre o valor de uma poesia hieroglífica, que sintetizaria de forma cifrada, na beleza da figura, a exemplo da sarça ardente, não a arbitrariedade da imaginação fantástica mas a verdade do real.

IHU On-Line – Na literatura ou na história, quais mulheres mais encarnam essa abertura místico-poética ao Mistério e à Realidade Última, em sua opinião? Por quê?

Mariana Ianelli – Cito mulheres que fazem parte do meu cotidiano de leitura, com as quais me identifico, e que transitam por esse espaço de poesia e mística. Cristina Campo, por ter se dedicado a pensar uma poesia que é refúgio do esplendor e que, semelhantemente aos ritos litúrgicos, celebra os mistérios divinos. Cristina Campo escreveu pouco mais de 30 de poemas, e dizia que gostaria de ter escrito menos, tal era o valor da paciência e do segredo que a palavra lhe impunha. No cenário dessacralizado do pós-guerra, Cristina teve a coragem de defender, em seus ensaios e poemas, a beleza, que ela considerava uma secreta virtude teologal e que parecia inadmissível em sua época porque aceitar a beleza, segunda ela, “é sempre aceitar a morte, o fim do velho homem e uma difícil vida nova”.

Outra figura marcante é Simone Weil, cuja obra, aliás, Cristina Campo foi uma das primeiras a estudar na Itália, em meados dos anos 1950, e com a qual dialoga em seus escritos. Simone Weil e Cristina Campo compartilham valores fundamentais: a atenção elevada ao grau de prece, a importância de um estado de vigília e a necessidade de amar aquele que está ausente, considerando aí toda a responsabilidade e o sofrimento que uma dedicação como essa implica, além da disciplina para compreender os símbolos através do olhar, uma disciplina que deveria levar a inteligência a se tornar contemplação.

Uma poeta cujos textos me deslumbram, justamente porque transcendem os limites do literário, é Alda Merini, com os poemas de "A Terra Santa" e de "Magnificat: Um encontro com Maria". Entre o seu livro de estreia, "A presença de Orfeu", e "A Terra Santa", Alda Merini passou cerca de vinte anos sem publicar, sete deles internada num hospital psiquiátrico. O que surge depois desse silêncio é uma transubstanciação da poesia em mística, especialmente no caso de "Magnificat", um livro em que a autora dá voz à mãe de Cristo como aquela que se torna, ela mesma, a morada da Palavra, simbolizando aí a poesia quando se funde à mística: Maria como aquela que traz a boca unida à boca de Deus e o pensamento criador feito carne. Nesse longo poema que é o "Magnificat", Maria é aquela que morre crucificada e ressuscita com o seu filho num “duro grão de amor”. O que alimenta a poesia de Alda Merini é a ancestralidade de um canto originário, que vem da natureza, e o que funda sua poética é o amor.

Outra poeta que passou um longo período em silêncio desde a publicação dos seus primeiros textos, e que mais tarde escreve sobre situações marianas, é María Victoria Atencia. Sua relação com a poesia envolve uma inspiração que independe da vontade e o momento subsequente da criação, que exige trabalho, esforço e técnica. María Victoria regressa à poesia depois de quinze anos com o livro Marta e Maria e, dez anos mais tarde, publica Transes de Nossa Senhora, poemas que vão pela mesma via do Mistério que Alda Merini percorreu, que falam do Verbo encarnado, da “prenhez gloriosa” de Maria, a que foi a escolhida e que por isso tem os seus sentidos incendiados.

Uma escritora, filósofa e também poeta com quem María Victoria Atencia dialoga e que encarna perfeitamente essa abertura místico-poética é María Zambrano, por tratar dessa aventura iniciática de descida ao fundo do coração, de onde se pode emergir com uma prece ou com um poema que espelha, como obra de criação, o próprio poeta na sua dimensão de criatura. Dos escritos de María Zambrano, as ruínas como lugares simbólicos de ressurreição e esperança, a morte como promessa de amor, a existência de uma palavra que nunca é pronunciada nem humanamente concebida, que permanece oculta e por isso inviolada, abrindo o espaço do silêncio da revelação, são algumas dessas passagens para o Mistério e para o desvelamento do real.

Em seu texto sobre São João da Cruz, que é belíssimo, María Zambrano se pergunta que religião é essa, do Monte Carmelo, que honra a Virgem Maria e faz dos seus santos poetas, a exemplo de São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Essa pergunta nos leva a pensar em uma mística do feminino sob a perspectiva de Maria como a portadora da palavra encarnada e da sua relação com a poesia, uma relação que justamente inspira os livros de María Victoria Atencia e Alda Merini.

Ainda pensando na Ordem do Carmo, temos esta outra mística, Edith Stein, que foi leitora fervorosa de Santa Teresa e uma figura emblemática da história, por ter sido conduzida, na trajetória da sua vida e da sua obra, ao extremo do silêncio interior, do amor e da expiação. Podemos dizer sem erro que Edith Stein encarnou o sentido espiritual do nome de Cristina Campo (cujo verdadeiro nome era Vittoria Guerrini): “a portadora de Cristo nos campos do III Reich”.

IHU On-Line – Em um de seus recentes poemas, "Pietà", você diz: Por delicadeza / Devia cada um resolver seu vestígio, / Não deixar o corpo a esmo, / Atravessado na passagem, / Sem desejo, sem enigma. Como podemos compreender a relação entre o corpo, a nossa materialidade, e a expressão místico-poética pessoal?

Mariana Ianelli – Pensando na natureza como uma “metáfora do sobrenatural”, como diz Cristina Campo, o corpo é esse casulo que guarda a alma até ela estar pronta para o voo. É também uma espécie de receptáculo semelhante à palavra. Se há espaço nesse corpo para o que não é vontade própria nem vontade imposta por um outro, se há espaço para uma inexplicável intuição encher esse vaso até o limite, e mais: se pode essa intuição transbordar para a vida, acontece uma inversão na ordem das coisas. Passamos a atuar como que na voz passiva, em vez de mover sentimos como se fôssemos movidos. Essa é uma maneira de realizar que o corpo que dizemos nosso na verdade nos é dado, é a nossa casa e, como toda casa, um dia será abandonado.

O fato de irmos perdendo o controle sobre ele, de sermos traídos pela falta de vigor e de memória, por exemplo, isso também é uma lição que a vida impõe, em geral, para nós, a contragosto: de que esse corpo tão íntimo, tão pessoal, não é tudo ao que nos resumimos nem é sempre imediatamente reconhecível como nosso. Temos, materialmente falando, o mesmo destino da Abadia de Tintern que tanto encantou Wordsworth. E deixar esse vestígio para ser recolhido pelos outros é ainda uma lição.

O poema continua: “Mas se me fica o teu corpo / Eu te arrepanho nos braços / Com a maternidade do ofício / E lavo os teus ombros / De quanto pesou sobre eles, / O teu sexo, que a nenhum afago responde, / Lavo os teus pés, o ato mais santo. / Eu te arremato, eu te limpo da vida, / Faço com que desapareças, / Que o teu equívoco me abasteça / Da razão dos humildes. / Fardo ensoalhado esse, / De amparar o meu próprio destino”.

Porque o vestígio de alguém nos dá a ver a nossa própria morte e saber que vamos nos recolhendo uns aos outros ensina uma certa humildade e também um sentido maior de esperança. Ensina que, depois de um desastre, não importa o quão devastador ele seja, se depois a vida ressurge, então isso é a misericórdia. A observação dessas coisas passa pela vivência, pelo olhar e pela intuição, e a poesia, servindo-se disso, paralelamente à mística, encontra à sua maneira uma via de acesso para leituras da realidade em um nível além imediato, do visível e do material.

IHU On-Line – A linguagem mística muitas vezes se manifesta de forma ousada e radical. Como essa gramática e semântica se relaciona com a gramática e a semântica poética? Que relações ou distanciamentos você constata entre essas duas linguagens?

Mariana Ianelli – Não existe pudor quando se trata de ir ao mais íntimo da palavra, quando a linguagem ronda o indizível chegando ao extremo de circundar aquilo que já não é palavra. Esse mais além do verbo é o que se guarda e permanece cifrado sob a figura em uma representação simbólica. A forma ousada com que a linguagem mística se expressa se dá pelo arrojo de uma voracidade amorosa, e não somente os símbolos aos quais essa linguagem recorre, mas sobretudo uma unidade na aproximação dos contrários, se relacionam com uma lógica poética, como quando Santa Teresa diz: “Vivo sem viver em mim / E de tão alta vida espero, / Que morro porque não morro”. Desse paradoxo aparente, de um intermédio entre dois mundos, de uma palavra repleta de silêncio e um “contentamento descontente” também se faz a poesia.

O enleio de perseguir e ao mesmo tempo ser perseguido é o que alimenta o fogo da linguagem mística numa espécie de rito entre amantes que se aproximam se afastando, num jogo análogo à natureza insaciável desse amor que só se pode consumar em uma outra vida. Aqui, a relação entre corpo e alma se manifesta num elo dos sentidos físicos com os sentidos sobrenaturais e, ao mesmo tempo, em uma tensão da matéria como uma espécie de cárcere que impede a plena conciliação amorosa.

Esse fogo, esse hálito primeiro que impulsiona a criação, na linguagem poética, supõe um ponto de partida que é um estado de caos, de matéria informe anterior ao fiat lux da palavra. Nesse lugar intermediário entre o deserto e a vida, nesse espaço genesíaco entre noite e aurora, que remete à pré-história da poesia no seu parentesco com a palavra sagrada, o ato de criar materializa no poema aquela mariposa que devora a prisão do seu casulo para sobrevoar os vales e as montanhas com as asas de um canto.

Os distanciamentos que vejo em relação às duas linguagens, tal como os opostos de que ambas se alimentam para consagrar a beleza da unidade, são direções complementares de uma mesma seta, que tanto se lança para o alto como se crava no fundo do coração: a mística se servindo da figura para simbolizar o reino da outra vida neste mundo, ou relatar um itinerário espiritual, e a poesia estabelecendo, a partir da realidade sensível, uma senha mágica para ingressar nessa realidade sobrenatural, nesse instante do inefável.

IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, Faustino Teixeira afirma que você, em sua poesia, manifesta “a presença de um ‘céu absoluto’ que inspira os mais profundos enigmas. E também a busca de um Deus palpável”. Como você percebe a sua mística pessoal em sua vivência cotidiana e em sua obra de poetisa?

Mariana Ianelli – Desde os primeiros poemas já me atraía intuitivamente uma presença do sagrado. Em pelo menos dois poemas do primeiro livro ("Trajetória de antes", 1999) posso reconhecer o começo dessa busca, "Acalanto para Cassiana" e "Três vezes Cristo". Cassiana foi uma colega de escola, uma menina linda, que um dia fui obrigada a ver no meio de uma sala, deitada sobre um monte de flores. A morte dessa menina, que tinha a minha idade, me despertou para o sentido de muitas coisas, inclusive da poesia.

Nos poemas de "Passagens", que vieram quatro anos depois, uma releitura poética das "Lamentações" bíblicas e do "Livro de Jó" me pôs em contato com esse conflito da fé que se ressente de uma sensação de injustiça diante de uma calamidade. Há também nesse livro um poema que surgiu de um caso particular, quando meu avô sofreu um AVC e durante algum tempo ficou sem identidade. O poema diz assim: “Para honrar tua vontade, festejamos. / Esse amor rente à boca nos ensina / A crer no tempo da eternidade, / Num espaço em que a matéria é luz, enfim, / E onde o temor da morte se destrói. / Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, / Uma serpente se levanta entre os cascalhos / E se põe contra quem vem pelo caminho. / Mas somos muitos, somos teus, e aguardamos. / Se coragem há que torne as horas mais tranquilas, / Nós não sabemos, / Apenas contamos com o retorno dos teus olhos / E ao poder da natureza suplicamos / Que recuperes a mesma identidade / Pela qual te reconhecíamos diariamente / Como o soberano autor de tua vida / E não este ser convulso que de nós se afasta / Para vagar numa esfera invernal / De mudez, alienação e indiferença. / Estamos em ti sempre que te ausentas”.

O livro que veio a seguir foi "Fazer silêncio" (2005), e nele o que existe é “uma paragem para ir à fonte”, como diz María Zambrano. E depois de um conflito pessoal inspirado pelo "Livro de Jó", depois de realmente perceber a paciência que um poema exige, o que me aconteceu foi uma gratidão, um olhar para esse triunfo da vida, apesar dos desastres. Essa gratidão está em "Almádena", um livro que foi escrito com o pensamento no "Sermão de Quarta-Feira de Cinzas", de Antônio Vieira.

Além de um canto de ofício, ter visto a casa dos meus avós se transformar em uma ruína, ter passado pelo fim de uma geração da minha família, e perceber que a vida continua existindo, absoluta, agora acrescida de todos esses que vão conosco, apesar de já não estarem vivos, isso me impôs uma das tarefas mais difíceis, a tarefa de encontrar vida onde parece não haver mais nada, e de entender que essa vida que surge depois de uma casa arruinada é a própria misericórdia. Simone Weil fala a esse respeito, mas para compreender o significado disso, o livro que precisei ler foi o da vida, e o sentimento de esperança que veio dessa leitura, eu o reconheço agora nos poemas de "Treva Alvorada" (2010).

IHU On-Line – Como mulher e poetisa, em nossa situação contemporânea, qual o papel e o valor da poesia e da mística? Quem seriam as principais místicas-poetisas (ou poetisas-místicas) de hoje, em sua opinião?

Mariana Ianelli – Vivemos em uma época de tirania da produtividade, de apologia do que é novo e eficaz e de um aparente benefício de tudo o que nos abrevia o sofrimento, o esforço e uma aprendizagem demorada. As coisas não amadurecem mais no seu próprio tempo, amadurecem à força, como uma planta de estufa. Vejo isso atingir as relações humanas e mesmo certa dimensão da criação literária que se ancora na linguagem, nos pressupostos do método e da técnica, e pouco abre espaço para uma inspiração que não pode ser instrumentalizada.

O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção. E, como diz Cristina Campo, “pedir a um homem que nunca se distraia”, que não ceda “à preguiça do hábito, à hipnose do costume (...) é pedir-lhe uma coisa muito próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção”.

Pensando nesse outro tempo, não no presente imediato, as “poetisas-místicas” que eu mencionaria são duas: Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol. A leitura da obra de Hilda Hilst, sob a perspectiva da mística associada ao lirismo, revela uma jornada interior real, profunda, extraliterária, para a qual temos como chave de acesso a beleza, no caso da sua poesia, a extravagância no caso da sua prosa. Sobre a tua grande face é um dos muitos livros de poesia de Hilda Hilst em que o “exercício da procura”, como ela mesma diz, se reveste de um esplendor de imagem e de musicalidade para invocar o “Obscuro”, o “Sem Nome”, o “Desejado”. Na sua prosa acontece a mesma procura. Em "Qadós" (“Kadosh”), o “Pacto que há de vir” com que Hilda inicia o texto é também onde começa “o delírio de perseguição” de que fala María Zambrano no livro "O homem e o divino": o delírio de quem não sabe se persegue ou é perseguido até verbalizar esse conflito poeticamente e sair do delírio para o pacto.

Quanto à Maria Gabriela Llansol, sua poética talvez esteja bem mais próxima da mística do que da literatura porque passa ao largo da intenção de um construto e deseja “entrar no real” através do texto, abrindo aí uma espécie de clareira onde um “mundo novo e fulgurante” pode ser sentido. Para Llansol, não existe o “como se”; para ela, “uma coisa é ou não é”, o que no texto se manifesta em um lugar de envolvimento afetivo com a beleza, a vida e o pensamento, um lugar que Llansol chama de “espaço edênico”. Nesse espaço, o que importa é a misericórdia, o princípio de bondade e a vontade de conhecer.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Mariana Ianelli – Já que o nosso ponto de chegada foi Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol, aproveito para transcrever um poema chamado "Neste lugar", que foi escrito depois de uma visita que fiz à Casa do Sol, que é também o lugar de uma passagem, um portal, um espaço edênico onde “a coisa é”, por isso não se conforma a analogias ou comparações. O poema diz: “Nenhum traço de delicadeza / Só palavras ávidas / E o tempo, / A devoração do tempo. / Um jardim entregue / Às chuvas e aos ventos. / O que para os cães / É febre de matança / E para um deus / Um dos seus inúmeros / Prazeres. / Caminho de sangue / Onde reina o amor primeiro. / Morada de súbita / Ausência do medo. / Um despenhadeiro, o céu / E uma queda / Sem alívio de esquecimento”.

(Por Moisés Sbardelotto)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A unidade e a pluralidade de caminhos

Foto: Royce Bair

Para muitas abordagens cristãs teológicas, o nome atribuído ao fluxo que dá a todos uma possibilidade de vida não encerrada no horizonte de uma existência puramente terrena assume o nome de Espírito. Poder-se-ia afirmar que o Espírito é o itinerário com o qual o Pai do "nosso Senhor Jesus Cristo" se faz presente até lá onde o Deus trinitário não é abertamente conhecido.

A reflexão é do filósofo italiano Piero Stefani, grande conhecedor do judaísmo e diretor-científico da Fundação do Museu Nacional do Judaísmo Italiano e do Holocausto (MEIS, na sigla em italiano), com sede em Ferrara. O texto foi publicado no seu blog de reflexões bíblicas, Il Pensiero della Settimana, 19-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Às vezes, nos perguntamos se a mística pode ser uma via de encontro entre as religiões. A resposta é certamente negativa se se trata de "religiões". O discurso muda se, conformando-se a uma terminologia consolidada, falamos de diálogo entre experiências religiosas. No caso da mística, o núcleo do problema parece, porém, se articular de uma forma ainda diferente. Nessa área, embora sendo verdade que nos encontremos diante de uma experiência impossível de separar de alguma filiação religiosa, situamo-nos, de fato, em um céu colocado além das barreiras conectadas com uma determinada identidade. É isso mesmo?

A experiência cognoscitiva mística não tem nada a ver com o empirismo, não é um saber controlável e verificável. Ela, porém, não tem nada a ver com a dimensão prática de um pedido dirigido a Deus para obter qualquer benefício, nem se nos relacionamos com Ele na perspectiva de obter um prêmio ou de evitar um castigo. O Mestre Eckhart, para ridicularizar esta última hipótese, usava a comparação de uma pessoa que embarcava em uma viagem de milhares de léguas para ir a Roma a fim de ver o papa e, uma vez admitido à sua presença, pedia-lhe um feijão. Quando a presença de Deus – ou a sua ausência noturna – preenchem todo o horizonte, não é possível pedir nada mais do que Ele.

Quando se insiste no termo conhecimento, escancara-se o tema crucial do sujeito que deve estar diante de Deus sem se perder completamente n’Ele. Justamente por essa razão, há aqueles que defenderam que não pode haver nenhuma mística autêntica sem uma mediação capaz de permitir uma relação mais intensa sem que ela envolva a fusão com Deus, que resultaria na dissolução do sujeito na infinidade do divino.

O grande místico muçulmano al-Hallaj (século X) escreveu expressões tão audazes que teve que pagar com o preço da vida. Entre elas, estão aquelas que falam a linguagem da identificação: "Eu sou Aquele que eu amo, e Aquele que eu amo sou eu; somos dois espíritos, que habitam um só corpo. Se tu me vês, vês a Ele: se vês a Ele, me vês (...) O teu espírito se misturou ao meu como o vinho com a água pura". Aqui, a fusão parece ser completa. É realmente assim? Al-Hallaj também nos transmitiu uma abissal reflexão sobre a manutenção e a transcendência contemporâneas da própria filiação religiosa.

Refleti sobre religiões,
tentando compreendê-las;
descobri que são ramos diferentes
de um só tronco.
Não peças a ninguém
que abrace uma determinada religião,
assim o afastarias
do seu Princípio.
Ele, o Princípio
está na busca dele
n’Ele ficam claros
todos os símbolos e os sentidos:
ele então compreenderá. [1]

O discurso do grande místico não é "relativista". Só quem é prisioneiro de rígidos preconceitos dogmáticos poderia, de fato, tomá-lo como tal. Certamente, é verdade que podemos chegar ao único tronco partindo de mais ramos. No entanto, não é menos certo que isso acontece por causa do fato de que é o próprio Princípio que vai à tua busca, alcançando-te lá onde tu estás. Tal linguagem pressupõe, em termos doutrinais, como nos acostumamos a denominar uma concepção pessoal de Deus.

O léxico de al-Hallaj é tendencioso. Em muitas tradições religiosas, não se compreenderia o que significa afirmar que o Princípio está à tua busca. O abismo divino sem forma nem rosto não vai à procura das suas próprias criaturas. Para as fés que têm a certeza no Deus criador, o problema da pluralidade de vias não deve ser articulado perguntando-se se há muitos itinerários através dos quais os seres humanos possam chegar a Deus. O discurso, de fato, deve ser proposto partindo do outro extremo. Portanto, é preciso tentar compreender de que modos Deus vai em busca das suas próprias criaturas, fazendo com que a seiva do único tronco alimente os mais diversos ramos.

Para muitas abordagens cristãs teológicas, o nome atribuído ao fluxo que dá a todos uma possibilidade de vida não encerrada no horizonte de uma existência puramente terrena assume o nome de Espírito. Poder-se-ia afirmar que o Espírito é o itinerário com o qual o Pai do "nosso Senhor Jesus Cristo" se faz presente até lá onde o Deus trinitário não é abertamente conhecido. Transcritos em termos cristãos, os versos de al-Hallaj se tornariam uma celebração da ação do Espírito. A maneira suprema com a qual o Princípio vai em busca das suas próprias criaturas assume agora este rosto. Pode-se falar de modo autêntico só apegando-se à linguagem específica do próprio ramo. Porém, a partir dele, é dado, de modo assimétrico e, por isso, não diretamente dialógico, ampliar o olhar a outros ramos alimentados pelo mesmo tronco. "Então compreenderás" que muitas são as vias por meio das quais Deus alcança as suas próprias criaturas, e múltiplos são, portanto, os itinerários com os quais os homens fazem experiência de Deus.

Notas:
[1] Citado em G. Scattolin. Esperienze mistiche nell’islam. I primi tre secoli, EMI, Bologna 1994, 128-129.

sábado, 31 de dezembro de 2011

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”

"O êxtase de Santa Teresa", Gian Lorenzo Bernini (1645-1652)

Para se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “experiência, experiência do espírito”, como “uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em ‘eventos’ particulares”.

Por isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa, embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem”, no que concerne ao espírito, não há diferença de sexo, “como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina”.

Contudo, explica, “devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Vannini comenta as experiências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete, cujas palavras, afirma, “falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade”.

Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Editou as obras de grandes místicos: Eckhart, Angelus Silesius, Sebastian Frank, Valentin Weigel, Marguerite Porete, Jean Gerson, François de Fénelon etc. Publicou inúmeros estudos, tais como: La morte dell’anima. Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outras. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


IHU On-Line – “Êxtase, evento, experiência”: o que é mística para o senhor?

Marco Vannini – Sobretudo experiência, experiência do espírito. Não se entende o que é a mística se não se tem bem clara a antropologia clássica e cristã – não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito. Enquanto o elemento psíquico está todo submetido ao determinismo espaço-temporal e não conhece liberdade nem beatitude, onde está o espírito, ali há liberdade, como diz o Apóstolo (ubi spiritus domini, ibi libertas), e ali também há beatitude. Sob esse perfil, portanto, também se pode falar de “êxtase” na e para a mística, onde êxtase não significa, de fato, presença de visões extraordinárias ou de fenômenos excepcionais, mas sim, etimologicamente, a “saída” da condição do psiquismo, ou seja, do particular do pequeno eu, com todos os seus laços, e o abrir-se à dimensão do universal, onde não há mais oposição entre eu e o mundo, e nem entre eu e Deus.

O fato é que hoje, com frequência, não se sabe mais o que significa concreta e realmente espírito, enquanto profunda unidade de inteligência plenamente desenvolvida e de amor igual e plenamente estendido, sem objeto, “sem porquê” – os dois olhos da alma que, juntos, fazem o olhar “simples”, para seguir precisamente a linguagem de Marguerite Porete.

A palavra “evento” me convence menos, porque faz pensar em algo raro, casual e não comum, enquanto me parece que, ao invés, mística deva significar uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em “eventos” particulares.

IHU On-Line – Podemos falar de uma “mística feminina”? Quais seriam as suas contribuições à experiência mística em geral?

Marco Vannini – A meu ver, pode-se falar de mística feminina somente em um sentido redutivo, não essencial. Explico: enquanto corpo e psique da mulher são diversos – pelo menos em parte – dos do homem, é evidente que há modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem. Mas, no que concerne ao espírito, ele não tem sexo – em Cristo, não há homem nem mulher, escreve o Apóstolo em Gálatas 3, 28 –, como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: isso é universal. Falar de mística feminina é, portanto, um fruto do nosso tempo, no qual a emancipação feminina, o feminismo, a historiografia de “gênero”, de um campo no qual é legítima, transbordou para fora dos limites. Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina. Por isso a mística de todos os tempos e de todas as culturas – de Plotino aos nossos dias, de Eckhart a Sankara etc. – é quase idêntica e, por isso, as obras das grandes mulheres místicas não têm características “femininas”. Precisamente o caso do Espelho das almas simples, de Marguerite Porete, é emblemático: antes que Romana Guarnieri descobrisse a autora, pensou-se durante séculos que fosse obra de um homem, e como tal foi publicada em inglês e foi lida, por exemplo, por Simone Weil.

Quando se vai ao específico “feminino”, o espiritual recai no psicológico, e então temos os exemplos das mulheres que acreditavam estar grávidas de Jesus, sonhavam em aleitar Jesus menino etc., onde o místico recai no patológico e pode aparecer – como talvez o seja, de fato, nesses casos – como o substituto de uma vida plenamente vivida. Não por acaso aqueles homens – mas, sobretudo, aquelas mulheres, porque quase sempre é delas que se trata – que tiveram experiência de matrimônio (por exemplo, santa Catarina de Gênova ou Madame Guyon, mas também Angela de Foligno), quase nunca utilizam o simbolismo e os termos “esponsais” da mística chamada “nupcial”, para não misturar corpo e alma com espírito, que, como ensina ainda o Apóstolo, é o seu oposto.

IHU On-Line – Em sua opinião, que figuras históricas mais se destacam na abordagem mística feminina a Deus e ao Mistério? Por quê?

Marco Vannini – Lembrando que, como recém disse, não compartilho muito a ideia de que haja uma “abordagem mística feminina” essencialmente diferente da masculina, devo dizer com a mesma franqueza que devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução. E isso é extremamente indicativo pelo fato de que a experiência espiritual, na sua universalidade, não depende das culturas. Sem querer deixar de lado muitas outras figuras importantíssimas, penso que Marguerite Porete, na Idade Média, santa Catarina de Gênova, na época moderna, e Simone Weil, no presente, são expoentes da experiência mística. Dei como subtítulo Da Ilíada a Simone Weil à minha Storia della mistica occidentale, precisamente para sublinhar o relevo que atribuo a uma mulher na história da mística.

IHU On-Line – Como a mística – e sobretudo a cristã – foi entendida, discutida e estudada ao longo do tempo? Quais seriam os grandes pontos de referência históricos do conceito de mística?

Marco Vannini – O discurso seria longo. Indicarei apenas um momento realmente fundamental: o fim do século XVII, quando a condenação de Miguel de Molinos, dos chamados “quietistas”, e depois também da obra de Fénelon, Explications des maximes des saintes sur la vie intérieure [Explicação das máximas dos santos sobre a vida interior] (1689), marcou realmente aquela que os historiadores da espiritualidade franceses chamam de la déroute de la mystique, a derrota da mística. De fato, junto com Fénelon e os outros condenados, eram também condenadas as teses mais relevantes da mística cristã: a doutrina do “puro amor”, a presença de Deus no “fundo da alma”, a “indiferença”, ou seja, o completo distanciamento.

A partir de então foi reservado à mística somente um espaço marginal, reservado àqueles poucos favorecidos pelas graças (no plural: não pela graça) divinas e que, por isso, se exprimia em visões sobrenaturais, experiências estáticas particulares etc. Portanto, não algo que seja universal, pertencente a todo homem (ou mulher, evidentemente), mas só particular, excepcional. Esse é o significado que a palavra mística assumiu na época contemporânea e que, por isso, de fato, a coloca em oposição com a ciência, com a lógica, com a razão. Infelizmente, ainda não saímos desse modo de pensar a mística, pelo menos em nível comum.

Tenha-se presente que a própria palavra “mística” como substantivo entrou no uso comum somente muito tarde, pelo século XVI: antes, era somente adjetivo, em geral de “teologia” ou de “interpretação”, relativamente à Sagrada Escritura: assim, por exemplo, o maior místico do Ocidente, Mestre Eckhart, não sabia, de fato, que era um “místico”! A Antiguidade e a Idade Média cristã falavam antes de “contemplação” – uma palavra que mantinha intacto todo o sentido originário do filosofar como bios teoretikós, vida contemplativa, vida de conhecimento voltada ao Uno, no afastamento dos laços e das paixões – a única capaz de dar beatitude. Por isso paradoxalmente se poderia dizer que, no próprio uso da palavra e do conceito de “mística”, já está implícita essa separação daquilo que é comum, universal e, portanto, próprio de cada homem e de cada mulher, o que condena a mística à marginalização e à incompreensão.

IHU On-Line – Como o senhor vê a tensão entre mística feminina e instituição eclesiástica no decorrer da história? Quais foram os fatos históricos mais marcantes, em sua opinião?

Marco Vannini – Não resta dúvida de que por séculos a instituição eclesiástica suspeitou das mulheres que, de algum modo, traziam uma voz nova ou assumiam um papel magisterial. A história da mística está cheia de episódios de mulheres incriminadas ou talvez condenadas por esse motivo: o caso de Marguerite Porete, queimada como herege pelo seu livro Espelho das almas simples, que depois foi publicado, nos nossos dias, no Corpus Christianorum. Continuatio medievalis. Ou seja, entre os grandes clássicos da espiritualidade cristã, é verdadeiramente exemplar.

Mas não sublinharei muito esse fato como “feminino”: na realidade, a instituição eclesiástica sempre suspeitou da mística enquanto tal, na medida em que o místico tende a superar a mediação, coloca-se “só para o só”, como diz Plotino, indo além de sacerdotes, sacramentos, Escrituras etc. O Mestre Eckhart era um homem, um dominicano, no topo da sua Ordem e da universidade, mas mesmo assim foi processado e condenado. Também não devemos nos esquecer de que sempre houve homens da Igreja que se puseram à escuta de mulheres e que aprenderam com elas: o bispo Fénelon com Madame Guyon, por exemplo. O próprio Eckhart, que esteve presente em Paris no processo contra Marguerite Porete, utiliza amplamente a sua obra, embora não pudesse citar a sua autora, queimada como herege.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Angela de Foligno? O que mais caracteriza a sua mística e espiritualidade?

Marco Vannini – Angela de Foligno foi uma mulher que viveu intensamente a experiência da separação, do despojamento interior – do qual esse exterior, a nudez, é manifestação sensível – e da perda do eu, até a identificação com o Tu divino, na específica forma do Cristo: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve ela, de fato, no Memorial. O central da sua mística me parece ser a consciência alcançada de que “tudo está bem”, até à paradoxal afirmação de que Deus está presente “em toda criatura, em qualquer coisa que exista, seja diabo, seja anjo bom, seja no inferno ou no paraíso, seja no adultério e no homicídio, seja nas obras virtuosas, em qualquer coisa provida de ser, mesmo que seja bela ou se é torpe”.

IHU On-Line – Que imagem de Deus ou do Mistério Angela de Foligno nos deixou em seu Liber?

Marco Vannini – Deixou-nos a imagem de Deus como Nada – ou seja, um Todo que não é possível compreender senão negativamente, como Nada justamente. Isso explica por que Angela, exatamente como Marguerite Porete, fala do não amor como o próprio cumprimento do amor. De fato, o amor sempre se dirige a algo determinado, finito, e depende dos laços do próprio eu, enquanto o amor mais puro não tem objeto, é “sem porquê” (uma expressão que já encontramos na poesia do seu contemporâneo úmbrio, o franciscano Jacopone de Todi) e deve cessar precisamente enquanto amor, desejo, vínculo, em perfeita correspondência com o extinguir-se do próprio eu.

IHU On-Line – Que relação há entre Angela e Francisco de Assis? Em que sentido a mística de Angela – que nasceu pouco mais de 20 anos após a morte do santo de Assis – foi uma mística “franciscana”?

Marco Vannini – Diria que ela foi franciscana sobretudo pelo lugar e pela época, aquela Úmbria mística da Idade Média que sequer se pode conceber sem a presença do espírito franciscano. Também sublinhamos que, naquela época, houve um florescer extraordinário de experiências místicas femininas. Margherita de Cortona, Vanna de Orvieto, Chiara de Montefalco, todas coetâneas de Angela e operantes a poucos quilômetros de distância. Para todas elas, o espírito franciscano se manifesta, em primeiro lugar, na pietas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo crucificado, literalmente “co-sofrido” [com-patito], ou seja, compartilhado na sua Paixão.

Específica de Angela, mas ainda de cunho franciscano, é a prática ascética, verdadeiramente intensa; a escolha voluntária da pobreza, fora de conventos ou instituições; a caridade operante, voltada aos pobres e aos doentes. Muito significativo nesse sentido também é o relativo distanciamento que Angela mostra com relação à função intermediária do clero, da cultura teológica e religiosa, em benefício de um saber totalmente interior, dado pelo livre colóquio da alma com Deus. “Aqueles que leem a Escritura entendem pouco; aqueles que sentem algo de mim entendem bem mais”, escreve por isso Angela.

IHU On-Line – E o que mais é possível falar sobre Marguerite Porete? Que outros aspectos é possível ressaltar sobre a experiência mística dessa mulher francesa?

Marco Vannini – Não sabemos com precisão quem foi Marguerite Porete, já que as únicas notícias certas que temos sobre ela são aquelas deduzidas das atas do processo que a condenou à morte como herege, na Paris de Felipe, o Belo. No entanto, ela devia ser uma mulher de cultura, provavelmente de origem aristocrática, como fica evidente no livro, no qual cortesia e nobreza desempenham um papel essencial.

Como já disse, creio que os pontos centrais da verdadeira mística são sempre os mesmos, ou muito de perto correspondentes. Em Marguerite, no entanto, a via do distanciamento, a via do nada é percorrida verdadeiramente até o extremo limite, com uma coerência, uma determinação e uma radicalidade impressionantes, que se lança ao distanciamento até de Deus. Limito-me a citar esta extraordinária passagem, do capítulo 135 do Espelho:

“Para a alma tudo é uma só coisa, sem porquê, e ela é nada em tal Uno. Então não sabe mais o que fazer com Deus, nem Deus com ela. Por quê? Porque ele é, e ela não é. Ela não retém mais nada para si, no seu próprio nada, já que lhe basta isso, ou seja, que ele é, e ela não é. Então, é nada de todas as coisas, já que é sem ser, e lá onde era antes de ser. Por isso ela tem de Deus aquilo que tem; e é aquilo que Deus mesmo é, por transformação de amor”.

IHU On-Line – Para Romana Guarnieri, O espelho das almas simples, de Marguerite, é uma “autêntica obra-prima da literatura mística de todos os tempos”. Em sua opinião, qual é a importância dessa obra?

Marco Vannini – Acima de tudo, devo dizer que compartilho plenamente o juízo que Romana Guarnieri dá sobre esse escrito, com a qual tive a honra de colaborar na edição italiana do Espelho. O Mestre Eckhart se inspirou nele em alguns pontos do seu pensamento e, em particular, naqueles mais profundos e ousados, como, por exemplo, no célebre sermão Beati pauperes spiritu [Bem-aventurados os pobres de espírito], no qual ele fala da necessidade de que o homem “pobre” não tenha na alma sequer um “lugar próprio”, de modo que o próprio Deus seja o “lugar próprio da sua obra, dado que Deus opera em si mesmo”. Aqui é clara a leitura do Espelho, no qual a alma aniquilada “não tem fundo e, portanto, não tem lugar próprio e, consequentemente, não tem amor próprio”. De fato, para Marguerite, assim como para Angela de Foligno, a alma que se fez verdadeiramente nada “colocou todo o amor debaixo dos pés”.

O livro de Marguerite, embora condenado, continuou a ser lido, mais ou menos ocultamente. Seguramente foi conhecido por santa Catarina de Gênova, assim também pela milanesa Isabella Berinzaga, cujo Breve compendio sulla perfezione cristiana, traduzido ao francês no fim do século XVI, está na base do extraordinário florescimento místico do século XVII na França. Simone Weil (sempre se trata de mulheres!) também o leu e o amou, mesmo que no fim de sua breve vida, e hoje me parece que ele é unanimemente reconhecido em toda a sua extraordinária profundidade.

IHU On-Line – O que foi o movimento beguinal, do qual Marguerite fez parte? E qual foi a novidade trazida pelas beguinas à mística?

Marco Vannini – O movimento das beguinas foi um movimento extraordinário, sem origem, sem fundadora, sem regra. De fato, as beguinas eram mulheres, não casadas e não Irmãs, que, por cerca de oito séculos, mas, sobretudo, em plena Idade Média e no vale do Reno, viveram em pequenos grupos do seu próprio trabalho ou na mendicância, em uma extraordinária síntese de comunhão e de liberdade, de aprofundamento espiritual e de empenho caritativo – basta pensar que foram, de fato, as primeiras enfermeiras da história europeia. Pelo seu caráter de independência da autoridade masculina, o movimento beguinal poderia ser considerado o primeiro movimento feminista, mas seria verdadeiramente desviante inscrevê-lo nas categorias redutivas do feminismo – sem contar, depois, o fato de que ele também teve um correspondente masculino, o dos beguinos, ou begardos.

Não há dúvida de que entre as beguinas houve personalidades eminentes na história da mística – Beatrijs de Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a própria Marguerite Porete, se é que foi beguina – mas sobre o movimento beguino pesou frequentemente a suspeita de heresia, voltada por diversas vezes a essas mulheres por parte das autoridades eclesiásticas, talvez temerosas, acima de tudo, de perder o controle da sociedade. Nesse caso, mais uma vez, a “liberdade do espírito”, do qual a mística é composta, foi advertida como perigosa para o dogma, para a doutrina, para a instituição religiosa constituída. Não resta dúvida, entretanto, que a mística beguinal – Minnenmystik, “mística do amor cortês” por excelência – alimentou com a sua riqueza alguns dos maiores místicos medievais, como Ruusbroec e Eckhart.

IHU On-Line – Em que sentido a mística de Angela e de Marguerite nos é contemporânea?

Marco Vannini – Ela nos é contemporânea no sentido de que, como dizia no início, a experiência do espírito é quase idêntica em todos as épocas e em todos os lugares, e vai muito além das distinções espaço-temporais, além daquelas, como eu dizia, de gênero. Para mim, homem, as palavras de Angela ou de Marguerite falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade.

IHU On-Line – Como percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Há hoje a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica para captar a novidade dos místicos?

Marco Vannini – Há um caso emblemático que eu gostaria de citar para responder essa a pergunta. O franciscano são Pedro de Alcântara escreveu a santa Teresa de Jesus, em Ávila, que se maravilhava muito que ela tivesse pedido conselho a teólogos sobre problemas espirituais, novas fundações de conventos etc., porque, em matéria de perfeição, é preciso dirigir-se só a quem a pratica, e disso os teólogos não sabem nada. Eles são especialistas em questões doutrinais, escolásticas, ou talvez jurídicas, mas certamente não em questões espirituais.

A teologia nascera como teo-logia, ou seja, discurso racional sobre Deus, em contraposição aos mitos (lembro que a palavra foi cunhada assim por Platão), com a consciência de que, na realidade, não sabemos nada de Deus, mas que devemos pensar só que ele é bom, e que dele vêm todos os bens. Trata-se, por isso, não de fazer discursos impossíveis sobre Deus, mas sim de nos tornarmos semelhantes a ele (omòiosis tò theo). Hoje, ao contrário, há “teologia” de tudo: a palavra teologia deixou de ter o seu significado originário e se tornou uma espécie de “tudologia”.

Isso vale hoje, com maior razão, também para a filosofia. No momento em que ela perdeu a consciência de ser “ciência da verdade”, como Aristóteles a chama, e de ter em comum com a religião o objeto, que é o Absoluto em si e por si, como dizia Hegel, é evidente que não tem nada a ver com a mística, que, aliás, realmente não entende. Por isso não é de se admirar que a palavra filosofia, hoje, também é adotada no sentido, por exemplo, de estratégia empresarial (a filosofia da Fiat...).

O saudoso professor Hadot defendia com razão que a verdadeira continuação da filosofia, que é a grega clássica, foi a mística: enquanto a teologia sempre foi dependente da instituição eclesiástica, da dogmática, do respeito pela Sagrada Escritura, pelos Concílios etc. – e desse modo perdeu aquela liberdade da inteligência que, sozinha, a filosofia pode dar –, só a mística continuou a via mestra do filosofar, que é o distanciamento, o platônico exercitar-se a morrer.

A filosofia em sentido forte não é continuada nem nas universidades medievais, submetidas à Igreja, nem nas modernas, sempre submetidas ao poder e coligadas com ele: o professor é sempre um funcionário, enquanto o místico realmente não o é.

Não penso, por isso, que haja a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica: já a possuímos desde a antiguidade clássica. Ao contrário, há a necessidade de experiência.

IHU On-Line – Como as grandes religiões do mundo abordam a mística? Que diferenças existem em termos de compreensão da mística e da sua experiência?

Marco Vannini – Sobre esse tema, eu escrevi um livro: La mistica delle grandi religioni, onde sustento, acima de tudo, que, no coração das grandes religiões, que, no entanto, são diversas entre si em tantas coisas, e até mesmo opostas – e como tais muitas vezes se combateram e ainda se combatem –, há uma mística quase idêntica. Embora as religiões sejam diferentes, dizia Simone Weil, as místicas se assemelham até quase a identidade.

Dito isso, já é implícito o fato de que a relação entre mística e religião é uma relação não fácil, ou melhor, difícil, muitas vezes conflituosa. De fato, a mística – que, como dizia acima, é a legítima herdeira da filosofia antiga – é por sua natureza inclinada a superar toda forma de mediação, voltada a uma relação direta entre a alma e Deus, que se encontram até se reconhecerem como uma coisa só. Por isso ela alimenta, ao mesmo tempo, a religião, ou seja, a religiosidade mais profunda e remove toda religião quando ela pretende se constituir como dogmática, prescrição moralista ou sacerdotal.

Exemplar nesse sentido é a o fato de a mística se pôr diante das Sagradas Escrituras (quando se possui uma religião): nasce aqui, de fato, a oposição espírito-letra, por força da qual o místico, mesmo quando respeita profundamente a Escritura, considerando-a “palavra de Deus”, pensa, no entanto, que a palavra mais verdadeira e profunda é aquela que o espírito dirige ao espírito, para além e acima de toda palavra escrita. Deus é espírito, disse Jesus à samaritana (João 4, 24) e não é honrado nem nos templos nem sobre os montes, mas somente em espírito e verdade. Ou melhor, o distanciamento, que é o coração de toda mística, se lança até ser distanciamento das Escrituras, e, como vimos em Marguerite Porete, até de Deus mesmo, enquanto imagem determinada, finita. Não é por acaso que as palavras dirigidas por Jesus aos discípulos despedindo-se deles em João 16, 7 – “É necessário para vós que eu vá, pois, se eu não for, o Espírito não virá a vós” – são singularmente caras aos místicos mais profundos. E é evidente que isso não é a coisa mais apta para que as religiões sustentem em sua estrutura positiva, litúrgica, dogmática etc.

Também é preciso notar que, entre as grandes religiões do mundo, as mais hostis à mística são seguramente a judaica e a muçulmana, enquanto religiões da absoluta transcendência de Deus, para as quais é blasfema a ideia da união homem-Deus, ou também da divinização do homem. A expressão “mística judaica” é recentíssima: foi cunhada no século XX por Buber e Scholem, mas até então soava como absurda, precisamente como dizer “um ferro de madeira”, e é bem difícil assimilar um fenômeno como a cabala a Plotino ou ao Mestre Eckhart! No islamismo, sem dúvida houve grandes místicos – penso sobretudo em Al-Hallaj e em Ibn-Arabi –, mas não é por acaso que eles foram considerados heterodoxos.

O cristianismo, ao invés, precisamente enquanto cristianismo, ou seja, religião fundada sobre Cristo, considerado verdadeiro Deus e verdadeiro homem – ou seja, religião da divino-humanidade – é intrínseca e substancialmente místico.

Em menor medida, também se pode dizer isso sobre a grande tradição religiosa da Índia, em particular do não dualismo (advaita), porque aqui também é claríssimo o sentido da unidade entre espírito de Deus e espírito do homem. Nos nossos dias, é interessantíssimo e importante o caso de Henri le Saux, o beneditino francês que foi à Índia e ali assumiu vestes, linguagem e nome, reconhecendo a profundidade do vedanta, mas nem por isso abandonou o cristianismo: ao contrário, considerou que a experiência espiritual da Índia o ajudava a compreender verdadeiramente a própria mensagem cristã. Essa é uma consideração que compartilho plenamente: com le Saux, considero que o futuro do cristianismo deve, por assim dizer, “atravessar” a espiritualidade da Índia. De outra parte, aquilo que encontramos na Índia não é, de fato, dessemelhantes daquilo que podemos encontrar também no Ocidente: o livro de Rudolf Otto, West-Östliche Mystik, que eu traduzi ao italiano há tantos anos, pondo em debate Mestre Eckhart e Sankara, mostra isso adequadamente. A relação de estreitíssima semelhança entre Eckhart e le Saux também é objeto de meu livro Oltre Il cristianesimo [Além do cristianismo], no prelo.

IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?

Marco Vannini – Acredito que o renovado interesse pela mística, feminina ou não, depois de tantos séculos de remoção, é um dos sinais mais positivos em âmbito religioso, e cristão em particular. É preciso, no entanto, que se sublinhe o seu valor de conhecimento, psicológico e espiritual, e não o confessional, como, ao contrário, tem sido feito até agora.

(Por Moisés Sbardelotto)
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