segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém*


Arte: "Devotion: The Two Girlfriends" (1895), Toulouse-Lautrec

Ontem me deparei com uma carta que escrevi há muitos anos para um namorado por ocasião de um episódio aparentemente bobo, mas carregado de um sentido particular e ao mesmo tempo abrangente, que eu gostaria de compartilhar com vocês por achar que tem muito a ver com a nossa própria luta em prol da afirmação dos nossos valores.

A carta foi motivada pela contrariedade absolutamente infantil causada nesse meu namorado pelo fato de eu ter, à época, criado para mim um fotolog (de onde vem esse apelido Mr. MM) no qual pretendia expor minhas idéias, divulgar meus textos... enfim, expressar-me. Ele foi terminantemente contra e só sabia justificar a sua recusa com a seguinte frase: porque eu não quero! Na discussão, entre outras coisas, ele me disse que eu permanecia no meu "mundinho" e foi por aí que eu comecei a carta. Hoje, relendo-a, confesso que vejo muita arrogância da minha parte, expressa nas intenções professorais mal disfarçadas, principalmente porque a minha raiva era tanta que eu sentia necessidade de colocá-lo no seu devido lugar.

No entanto, vejo nela questões com as quais nós, gays ou não, nos deparamos dia-a-dia na tentativa de nos entendermos nesse projeto chamado vida, em meio às relações humanas e principalmente ao complicado processo de construção da individualidade que conjuga tantos e tão diferentes aspectos e que acaba esbarrando inevitavelmente nos muros das interdições, das proibições, dos "quereres" alheios. Bem... vou deixar que o texto da carta fale por si:

"Em primeiro lugar: tenho orgulho do meu 'mundinho'. Tenho orgulho porque foi através dele que me tornei o que sou hoje: essa pessoa que você ama, admira, respeita e valoriza.

Acontece que o que aconteceu ontem me dá pistas para acreditar no contrário. Para início de conversa, vamos ao porquê de eu estar tão profundamente magoado e decepcionado. Ao contrário do que você pode pensar, não foi o fato de não poder ter um fotolog que me deixou nesse estado, embora isso mereça, por si só, um tratamento especial aqui.

Você me passa a imagem de um homem centrado, reflexivo e dedutivo, cuja lógica cartesiana privilegia os aspectos práticos da vida (a prova disso é a sua atitude em relação a coisas como plano de previdência, planilhas de orçamento, gastos etc). No entanto, quando foi obrigado a me expor um simples motivo (o porquê de eu não poder ter um fotolog), você não o soube fazer, repetindo apenas, e incessantemente, 'porque eu não quero, porque eu não quero…' Como assim? Então não existe um motivo racional para isso? O porquê é simplesmente a sua vontade própria, impositiva, proibitiva, tirânica e intransigente? Êpa! Então isso vai contra toda essa imagem de cara centrado e racional que você tem me passado, pois não consigo entender como é que alguém assim não possua uma explicação ou argumento coerente para defender suas idéias.

Essa falta de coerência, você a tem demonstrado muito nesses meses de namoro. E sabe por quê? Porque você tende a acreditar firmemente nas suas próprias opiniões e não leva em conta o que os outros pensam. Por isso, quando alguma coisa o contraria ou foge ao seu entendimento, você a rechaça com violência. Isso só me faz chegar a duas conclusões:

1) Que o meu erro foi ter, desde o início, me submetido à sua lógica e não ter feito você enxergar o que era realmente importante para mim;

2) E que, na verdade, você trabalha com 2 sistemas lógicos: um que você utiliza para o cotidiano, para o trabalho, a família e as relações impessoais. Este é frio, racional, pautado no 'ou você tem ou você não tem' (conforme você me exemplificou ontem quando falou sobre a minha possibilidade de emprego na área de publicidade). O outro é uma corruptela desse primeiro. Quando digo isso, quero dizer o seguinte: o segundo sistema lógico nada mais é do que o primeiro que você TENTA aplicar às suas relações afetivas. No entanto, ele se corrompe porque, nessa área, a gente tem de lidar com SENTIMENTOS e sentimentos, infelizmente (para você), não são exatos como cálculos matemáticos. Daí que a sua lógica cartesiana, aplicada ao universo afetivo, é irremediavelmente falha e acaba por criar a lógica do 'eu quero' e do 'eu não quero'. E pronto: você se infantiliza, você anula a sua capacidade analítica, você reduz tudo a uma verdade prática que é inaplicável ao universo amoroso. Assim sendo, quando, por exemplo, eu faço o que você acha que eu não devo fazer, isso logo significa (nessa sua lógica truncada) que eu não te amo, o que NÃO é verdade.

Amor, entre as muitas definições existentes no dicionário, significa: 1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa. 2. Sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro ser ou a uma coisa; devoção extrema. 3. Sentimento terno ou ardente de uma pessoa por outra, e que engloba também atração física. 4. Afeição, amizade, carinho, simpatia, ternura. 5. Inclinação ou apego profundo a algum valor ou a alguma coisa que proporcione prazer; entusiasmo, paixão. 6. Muito cuidado; zelo, carinho.

Isso quer dizer, menino, que só existe amor quando um está disposto a fazer um movimento de ida em direção ao outro, de encontro, de compreensão, de conhecimento. Aqui vou me valer da minha lógica para evocar o significado contido na raiz etimológica do verbo conhecer (em Latim, cognoscere), que é o de saber pelos sentidos. Assim, só 'conhecemos' algo se dele nos aproximamos pelos sentidos, se trazemos para perto de nós o que está afastado. Ora, só trazemos para perto de nós aquilo que amamos, as coisas pelas quais temos afinidade, afeição, simpatia, carinho, ternura, apego profundo. Conhecer, portanto, é um ato de amor.

O seu comportamento, ao me impedir de ter um fotolog sem sequer me apresentar uma razão prática para tal, indica que você é ainda muito resistente a esse movimento realizado em direção ao ser amado. Que você reluta em abrir mão de suas convicções, de suas opiniões e verdades cristalizadas, em favor de um bem comum. Esse seu comportamento te impede de crescer, de se aprimorar como ser humano e de, consequentemente, expandir os limites do seu conhecimento. Limites são muros imaginários que criamos para proteger (ou não perder) aquilo que conquistamos ou para não entrar em contato com uma realidade outra que não conhecemos, que nos é estranha e, por isso, potencialmente hostil. Você não quer o nosso bem? Você não deseja a nossa felicidade? Então você deveria tentar me conhecer melhor, saber o que é importante para mim, quais as coisas que prezo, nas quais acredito… enfim, você deveria sair um pouco do seu 'mundinho' para entrar em contato com o meu, conhecê-lo e tentar compreendê-lo.

Chegamos, afinal, à razão principal da minha decepção: o fato de você não ter reconhecido que o importante para mim não era TER um fotolog, mas, sim, poder expressar LIVREMENTE as minhas idéias, sem censura, sem proibições, sem ter que me anular intelectualmente por uma coisa que nem um motivo concreto tinha. O que estou tentando te dizer é que eu possuo uma individualidade, eu sou um EU que é capaz de se expressar em palavras, ações e idéias. Ao me negar a possibilidade de me expressar intelectualmente através de QUALQUER veículo (jornal, internet, e-mail, carta, blog, fotolog, outdoor, rádio, televisão, teatro, música, literatura etc, etc, etc), você está se investindo de um direito que não tem. Você está, por fim, me desrespeitando. Ora bolas, se você não tem respeito por mim, por quem sou, pelo que prezo, pelo que acredito e/ou pelas idéias que professo, consequentemente você não me valoriza. Mais ainda: você então me valoriza de acordo com o que você QUER e não de acordo com o que eu SOU. Assim sendo, esses seus valores vêm carregados de preconceitos (entendido aqui como PRÉ-CONCEITOS, aquilo que se formaliza antes do que é real e, portanto, uma verdade imaginária, uma ilusão), de ciúmes, de irracionalidade, de possessividade, de mesquinharia e egoísmo… enfim, de uma série de sentimentos que acaba por excluir a possibilidade do 'conhecer', pois que nega a individualidade do outro, que aprisiona o relacionamento nos limites da lógica do 'eu quero' e do 'eu não quero'.

Isso me faz lembrar um dia, quando estávamos no seu carro e eu te disse que queria muito fazê-lo feliz. Você se lembra da sua resposta? 'Eu também quero que você me faça muito feliz…' Isso foi uma pequena amostra de como a sua lógica funciona. Você pode até dizer que não, mas isso é uma forma de egoísmo, de querer apenas que o outro vá até você, que apenas o outro se interesse por você e pelo seu mundo, sem que você precise descer do seu patamar, sem que você precise se explicar ou dar alguma satisfação. Enfim, sem que você precise sair de si para chegar ao ser amado.

Se você quiser mesmo ficar comigo, vai precisar repensar as suas próprias definições de amor, relacionamento… vai precisar aprender que a lógica aplicada ao amor só é possível através do DIÁLOGO, ou seja, por definição do dicionário: 'troca ou discussão de idéias, de opiniões, de conceitos, com vista à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia; comunicação.' E vai perceber, enfim, que dialogar no amor não é apenas expor suas idéias, pontos de vista, desejos ou vontades: é estar preparado para adequá-los aos do seu parceiro para que, desta adequação, surja o entendimento, a harmonia, o CONHECER expresso pelo movimento de trazer para si (de ir ao encontro de) o que está, a principio, afastado. Está aí, creio eu, a raiz de toda a admiração, todo o respeito que tenho por você e o verdadeiro valor que lhe atribuo como indivíduo, enquanto meu parceiro na vida e no amor.

Mais do que nunca (e ainda mais do que sempre) afirmo: quero conhecê-lo. E continuar a amá-lo."

Com carinho,

Mr. MM
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*O título da carta é um verso de "Berimbau", música de Baden Powell e Vinicius de Moraes.

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