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sábado, 29 de agosto de 2015

Eu sou lésbica!

Nesse dia importante de enfrentamento do desafio da invisibilidade, publicamos aqui um texto bonito e sensível enviado pela nossa amiga Andréa Balsan.

Todo nosso apoio e solidariedade às nossas irmãs, mulheres lésbicas!


Sinto-me corrompida em um mundo que me transforma em fetiche e demônio.
Muitas vezes sou só mais uma mulher invisível, algo a ser cobiçado pela falta de harmonia.
Matam, surram, abusam.
Me chamam de caminhoneira, sapatão, alguém possuído.
Mas sou só uma mulher.
Se corto o cabelo, se uso roupas diferentes...
Só penso em amor.
Homens, mulheres, poetas de todos os tipos, olhem os meus olhos!
Olhem em minha alma!
Vejam:

Eu sou lésbica!

E sou amiga, filha, trabalhadora, vizinha, irmã, mãe, companheira, namorada.

Eu sou lésbica!

Então não me vejam por estereótipos.
Vejam quem eu sou.
Ser humano como você.
Alguém que vive, sonha. E ama.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Oração sem fé vai a pé


«Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: ‘Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.’ O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: ‘Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.’ Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.» (Lucas 18, 10-14)

Sherlock Holmes e o Dr. Watson acampavam na floresta. Estavam prestes a adormecer, deitados sob o céu estrelado, quando o detetive perguntou ao seu assistente: «Watson, observe: o que vê?».

«Vejo milhares e milhares de estrelas.»

«E o que é que isso quer dizer para você, Watson?»

«Quer dizer que, entre todos os planetas do universo, somos verdadeiramente afortunados por estar aqui na Terra. Somos pequenos aos olhos de Deus, mas muito especiais para o seu coração. E para você, Holmes, o que significa?»

«Significa que alguém roubou a nossa tenda!»

* * *

Desde a aurora da civilização esteve sempre presente uma interrogação inquietante: quem é que governa este vasto universo e como é que nós convivemos com ele?

As pessoas imaginavam que os deuses eram como os chefes das tribos e reis que conheciam: fortes e poderosos mas excêntricos, vingativos, caprichosos, não se importando com ninguém a não ser com eles próprios. Deuses assim precisavam de ser tratados como peças de porcelana e muitos presentes, subornos, incenso, ofertas imoladas e, sobretudo, imensas virgens sacrificadas em cerimónias solenes. A finalidade de tudo isto era amansar os deuses e tê-los sob controlo, de maneira a que as pessoas se pudesse distender e continuar as suas vidas.

Era tudo terrivelmente primitivo, mas é onde muitos continuam presos, tentando controlar e manipular um pequeno e não muito simpático Deus com subornos, promessas e observâncias religiosas desprovidas de adesão interior.

Foi aí que o fariseu ficou enclausurado, do lado de fora da vida, num sítio em parte nenhuma que ele pensava ser esplêndido. «Obrigado Deus», dizia, «não sou como o resto dos homens». Não percebia nada de Deus, de si próprio ou do essencial da vida.

Mas o cobrador de impostos, que ele havia desprezado, tinha a perceção correta: Deus não precisa de ser adulado, persuadido ou comprado. Ele já nos ama, ele já quer que sejamos felizes. E ele já sabe que nunca cresceremos inteiramente a não ser que nos ajude e perdoe constantemente.

Aquele pobre cobrador de impostos, permanecendo ao longe, com a cabeça inclinada, compreendeu o que está em jogo na oração e na devoção: a transformação interior com a ajuda de Deus. E o preço dessa mudança é simplesmente dizer a verdade, ou seja, ser humilde: Senhor, preciso de mudar, e para isso preciso da tua ajuda e do teu perdão em doses massivas.

Se a nossa oração e a nossa presença nas celebrações não nos estão a transformar, devíamos parar de perder o nosso tempo. Não significa deixar de rezar ou ir à igreja. Significa mudar o coração, abrindo-o a Deus nas questões essenciais da vida, prontos a pronunciar as palavras que têm de ser ditas com toda a verdade:

Senhor, preciso de mudar... muito. E para isso, preciso que me leves pela mão e não me deixes fugir, ainda que eu não possa andar depressa e ainda que continue a tropeçar. Eu confio em ti, Senhor. Sei que sabes por onde ir e eu estou pronto a mudar a minha direção e deixar que tu me mostres o caminho. Amen.

- P. Dennis Clark
In Catholic Exchange
Fonte aqui

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Comunidade: quando a correção é fraterna


Hoje, na Igreja, precisamos, mais do que nunca, de correção fraterna, e os pastores da Igreja, que corrigem a comunidade cristã, por sua vez, devem ser corrigidos pela comunidade com respeito e sem contestação, nem, muito menos, desobediência.

A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal
Avvenire, dos bispos italianos, 20-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, reproduzido via IHU.


Estamos no tempo pascal, no qual a Igreja nos convida a proclamar a boa notícia por excelência: "Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente". Imersos nessa alegria, podemos olhar para trás, para o caminho quaresmal recém-percorrido, para verificar se foi um caminho de conversão e de crescimento espiritual, ou se não demos um passo para voltar ao Senhor, ou mesmo se acabamos cedendo ainda mais aos ídolos mundanos que sempre nos tentam.

Ao fazer esse exame de consciência, não podemos esquecer que, no início da Quaresma, Bento XVI endereçou à Igreja uma mensagem voltada a fazê-la refletir sobre o fim do seguimento: o amor, a caridade. Por isso, o papa de Roma nos forneceu o rastro de uma busca, de uma reflexão, de um compromisso cotidiano a ser assumido, o que se refere à correção fraterna.

Contaminados como estamos por uma verdadeira doença que é a indiferença uns pelos outros, a falta de proximidade, já não sabemos mais que a correção fraterna é uma das atitudes cristãs mais decisivas para a salvação do indivíduo e para a própria comunidade cristã, a Igreja. Se não nos sentimos protetores, responsáveis pelo irmão, pela irmã, pelo outro (cf. Gn 4, 9: "Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?"), então vivemos no próprio autismo, sem olhar para os outros, sem nos aproximarmos do outro, sem praticar o face a face.

Desse modo, nunca nasce a ocasião para a correção recíproca, e, de fato, encoraja-se o crescimento do mal, que sempre será mais disseminado enquanto nunca for julgado. Entre as obras de misericórdia que aprendemos na catequese, havia também "advertir os pecadores", expressão talvez pouco feliz, porque parece pressupor que o cristão não pecador deve advertir quem o seja. Também por isso, provavelmente, essa obra foi esquecida, e assim se perdeu a memória do fato de que a instância subentendida a essa expressão é, na verdade, a da correção fraterna, uma correção sempre recíproca.

A mensagem de Bento XVI para esta Quaresma não me parece ter recebido uma recepção igual à que foi reservada às anteriores, e isso também diz muito sobre as dificuldades que os cristãos já têm com relação à prática da correção fraterna. Assumindo um estilo mundano, às vezes, alguns cristãos oscilam entre a indiferença e uma intervenção imediata violenta, caracterizada por insultos e por palavras que visam a deslegitimar a outra parte.

Com relação a isso, o Papa Bento XVI chegou até a escrever que, infelizmente, hoje, na Igreja, existe um "morder-se e um devorar-se uns aos outros" (cf. Gal 5, 15) que é escandaloso e contradiz gravemente a comunhão eclesial (Carta aos Bispos da Igreja Católica do dia 10 de março de 2009).

Sim, no tecido da vida eclesial, isso parece ser gravemente contraditório com relação ao Evangelho, ao estilo de Jesus, a uma vontade de comunhão que não perde a ocasião de declarar publicamente em palavras, mas que na realidade se desmente de modo persistente com o comportamento cotidiano, com acusações infundadas, com palavras caluniosas.

Porém, a correção fraterna está no coração da vida eclesial, é até indicada como necessária e normalizada pelas palavras de Jesus contidas nos Evangelhos. Como, portanto, ela pode ser praticada?

Acima de tudo, "prestando atenção uns aos outros" (cf. Hb 10, 24, versículo que intitula a mensagem de Bento XVI). O cristão é, por natureza, um vigilante, alguém que presta atenção, que mantém o seu olhar fixo no Senhor (cf. Hb 12, 2). A partir desse exercício de olhar com atenção para o Senhor, tornamo-nos capazes de olhar para os irmãos, para as irmãs e para os eventos da história cotidiana fazendo um discernimento sobre eles, isto é, lendo-os na sua verdade profunda e tentando olhar o outro com um olhar que o próprio Cristo teria voltado para ele.

Só quem assumiu o olhar, os sentimentos, o pensamento de Jesus também pode ver o outro na verdade, pode descobrir o seu mal, a sua culpa que jamais coincide com o outro – e, portanto, pode julgá-la na sua objetiva gravidade. Mas eu o repito – isso deve ser feito olhando para quem cometeu o mal, um homem ou uma mulher que é muito mais do que o pecado cometido: o outro sempre continua sendo uma pessoa, e nenhuma ação malvada por ele cometida pode nos fazer esquecer isso!

Normalmente olhamos o outro e logo vemos um ladrão, um mentiroso, um delinquente, uma prostituta... acabando por identificá-lo com a ação cometida: mas o ser humano é sempre muito mais do que o seu agir eventualmente julgado como negativo.

Portanto, para corrigir o outro é preciso se despojar do preconceito, daquele pensamento que nos habita e nos induz a julgar uma pessoa sobretudo pelo fato de que ele repetiu algumas vezes o seu pecado. Não, precisamos nos esforçar para ver o outro como Jesus o veria. Então, diante de uma mulher adúltera, não teríamos pedras nas mãos para apedrejá-la, mas, como Jesus ensinou, nos perguntaríamos se temos o direito de condenar quem cometeu o pecado, nós que somos pecadores como ela: "Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra" (Jo 8, 7).

Se somos exercitados a "ter em nós os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo" (cf. Fl 2, 5), a "ter o pensamento de Cristo" (cf. 1 Cor 2, 16), então devemos e podemos praticar a exortação e a correção fraterna com sinceridade e parrésia, franqueza, sem dureza, sem nos colocarmos em posição de superioridade com relação ao outro. Cada um de nós é tentado, em seu próprio subjetivismo, a perder o sentido objetivo das coisas, a não saber mais avaliá-las a justa distância.

Precisamos, portanto, de outros que nos ajudem a voltar novamente à objetividade, que nos inspirem reservas, perguntas as quais devamos responder, se quisermos ser autênticos e permanecer na verdade. Sozinhos, isolados, sem a ajuda de outros e o confronto com eles, fazemos poucos avanços e caímos facilmente.

Corrigir – lembra o papa – "dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal". O próprio Jesus praticou muitas vezes a correção para aqueles que o escutavam ou o seguiam: desse modo, queria justamente exercitar a correção do pecador, e não dar-lhe a condenação ou a morte (cf. Ez 18, 23.32; 33, 11). Jesus usou palavras de reprovação, mas sempre finalizadas a dar a salvação. Ele o fez às vezes também com palavras fortes, de cólera, que relatam o seu pathos, isto é, comportando-se como verdadeiro herdeiro do pathos dos profetas, da sua paixão pelo ser humano e pela sua salvação, pela vida.

Não é por acaso que, no discurso de Jesus sobre a Igreja relatado no capítulo 18 do Evangelho segundo Mateus, se dê tanto espaço à correção fraterna. Nesse texto, registra-se uma indicação de tipo quase processual sobre o desenvolvimento da correção fraterna: "Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão. Se ele não lhe der ouvidos, tome com você mais uma ou duas pessoas, para que 'toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas' (Dt 19, 15). Caso ele não dê ouvidos, comunique à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele der ouvidos, seja tratado como se fosse um pagão ou um cobrador de impostos" (Mt 18, 15-17).

A correção deve, portanto, ocorrer em três etapas: a correção pessoal, discreta "só entre vocês dois", para que o irmão se reveja e o seu pecado não seja conhecido por outros. Depois, se necessário, a correção feita em dois ou três, de modo que quem cometeu uma culpa seja induzido a se rever na presença de mais irmãos. Se nem isso for suficiente, como medida extrema, que se faça uso da correção no meio da assembleia, diante de todos. Mas, se essa forma de correção também não tiver sucesso, Jesus pede que se adote contra quem errou a atitude que ele mesmo viveu com relação aos pagãos e aos pecadores. Nos lábios de Jesus, isso equivale a dizer: "Vá encontrá-lo, hospede-se com ele, coma com ele e converta-o com o seu amor e a sua atenção, como eu fiz com Levi, o publicano (cf. Mc 2, 13-17 e par.) e com tantos pecadores que estão no meu seguimento".

Corrigir, advertir é necessário, mas está habilitado a fazê-lo quem nutre o amor pelo irmão: cada um de nós também é responsável pelo outro, quem quer que seja, mas sobretudo de quem é irmão na fé e vive "o mandamento novo" do amor recíproco (cf. Jo 13, 24).

Certamente, "na hora, qualquer correção parece não ser motivo de alegria, mas de tristeza" (Hb 12, 11), porque quem é repreendido se sente humilhado e conhecido no seu próprio pecado. Mas, depois, torna-se verdade que, da correção, podem nascer "frutos de paz e de justiça" (cf. ibid.), e, portanto, podemos nos sentir amados por quem nos corrige.

Na parênese apostólica do Novo Testamento, pede-se mais de uma vez que se pratique a correção fraterna (cf. (cf. Rm 15, 14; 2Cor 2, 6-8; Gal 6, 1; Ef 5, 11; Col 3, 16; 1Ts 5, 12.14; 2Ts 3, 15; Tt 3, 10-11), mas esses ensinamentos já manifestam como a correção é difícil e cansativa, mesmo para quem a faz; indicam que, para corrigir, é preciso humildade e amor sincero; que nunca devemos nos sentir estranhos ao pecado do outro, nunca julgá-lo ou se considerar superior a ele. Enfim, nunca devemos praticar a correção como um inspetor que realiza a sua tarefa friamente: a correção cristã, de fato, não uma vigilância de tipo empresarial!

Na história – sabemo-lo bem –, a correção fraterna foi atestada principalmente nos primeiros séculos cristãos, depois quase desapareceu; ou, melhor, foi relegada aos mosteiros ou delegada à práxis do sacramento da penitência administrado individualmente. Nos mosteiros, que levam uma vida cenobítica, a correção ocorre todas as manhãs durante o capítulo, ou seja, a assembleia diária dos irmãos. Aqui, aquele que preside corrige os erros e os pecados comunitários, mas às vezes também corrige um irmão individual. Mas quem preside, o abade ou o prior, também pode ser corrigido e advertido pelos outros irmãos.

A respeito disso, escrevia Basílio de Cesareia: "Quem preside a comunidade não deve ser o único a não se beneficiar do apoio fraterno da correção recíproca, ele que exerce a função mais pesada" (Regras difusas 27). E o autor da Didaqué não perguntava talvez: "Corrigi-vos reciprocamente, não na ira, mas na paz" (15, 3)?

Na sua mensagem, Bento XVI pede com força o exercício da caridade fraterna na Igreja, na vida eclesial. Aqui, a correção fraterna se torna ainda mais difícil; demonstra-o o fato de que ela é muito pouco realizada, como fica aparece na prevalência da desobediência, da revolta, da divisão dentro da Igreja. Também nesse caso, a história é mestra. No primeiro milênio, a práxis da correção fraterna era bem atestada: há inúmeros exemplos de correção fraterna eclesial entre as Igrejas orientais e a Igreja latina romana (pense-se apenas na de Basílio de Cesareia com relação ao Papa Dâmaso I), e muitas tensões foram resolvidas graças ao diálogo, à escuta recíproca e à correção. No segundo milênio, ao contrário, raros são os casos de correção fraterna praticada pelo simples fiel com relação à autoridade, mesmo a suprema.

Perguntemo-nos com franqueza: se a escuta fosse mais praticada, se fosse aceita a correção recíproca, teríamos sofrido o grande cisma do Ocidente, aquele em que Lutero, de fato, levou trouxe a divisão à Igreja? O grande rabino Tarfon, depois do Holocausto de 70 d.C., defendeu que o povo de Deus havia sofrido a humilhante catástrofe porque não tinha sabido praticar humildemente a correção fraterna...

Mas há algumas exceções, que vale a pena elencar brevemente. Clássica, conhecidíssima e de perene atualidade é a correção praticada pela abade de Claraval, Bernardo, com relação ao Papa Eugênio III, no seu De consideratione (1150 ca.). Bernardo chega até a lembrar ao papa audaciosamente que ele é o sucessor de Pedro, e não de Constantino, e se dirige a ele dizendo: "Mesmo que estejas vestido de púrpura e caminhes coberto de ouro, não há nenhuma razão para que tu, que és o herdeiro do Pastor, tenhas tédio do ministério pastoral e sintas vergonha do Evangelho (cf. Rom 1, 16). Mas, se te dedicares com decidida vontade à evangelização, terás um lugar glorioso entre os apóstolos. Evangelizar significa pastorear. Portanto, faze a evangelização e serás pastor" (IV, 3.6).

Cerca de um século antes, deve ser lembrado Pedro Damião; depois de Bernardo, é a vez de Mechthild de Magdeburgo, depois Catarina de Siena, mulher de fogo, que, ao redor do fim do século XIV, durante o cativeiro de Avignon, criticava o Papa Gregório XI por não estar na sua cátedra de Roma. Mais tarde, viriam Vincenzo Quirini e Paolo Giustiniani; no século XIX, não podemos nos esquecer do Pe. Antonio Rosmini, e, no século passado, Pe. Primo Mazzolari.

No exercício da correção da Igreja por parte das autoridades da própria Igreja, devem ser lembrados ao menos Guillaume Durand, o bispo francês dos inícios do século XIV, que parece ter sido o primeiro a ter utilizado a expressão "reforma (da Igreja) na cabeça e nos membros"; o Papa Adriano VI, que, nos inícios do século XVI, reconheceu corajosamente a decadência da Igreja romana, identificando a sua causa principal nos comportamentos e nas escolhas da corte romana; e, sobretudo, o Papa João Paulo II, que, por ocasião do Jubileu do ano 2000, confessou os pecados dos cristãos na história pedindo perdão a Deus mediante uma solene liturgia pública.

Finalmente, gostaria de salientar que, a propósito da correção, dois conceitos são inseparáveis, embora em uma tensão recíproca nada fácil de resolver: correção fraterna, justamente, e obediência. Para exercer a correção fraterna precisamos ser guiados e iluminados por alguém, por alguma coisa, e, para o cristão, essa luz que dá orientação pode ser apenas o Evangelho que é Jesus Cristo e Jesus Cristo que é o Evangelho. E assim surge o valor da obediência. Sem obediência ao Evangelho e sem escuta a quem recebeu do Senhor a tarefa de ser testemunha do Evangelho, o apóstolo e portanto os seus sucessores, reinam a anarquia e a anomia – diz ainda Basílio – e não pode haver nem reciprocidade (allélon) nem comunhão (koinonia).

Hoje, na Igreja, precisamos, mais do que nunca, de correção fraterna, e os pastores da Igreja, que corrigem a comunidade cristã, por sua vez, devem ser corrigidos pela comunidade com respeito e sem contestação, nem, muito menos, desobediência.

Bento XVI lembrou recentemente na homilia pronunciada durante a Missa Crismal: "Será a desobediência um caminho para renovar a Igreja? (…) Pode-se intuir na desobediência algo da configuração a Cristo?" (5 de abril de 2012).

Não é verdade que a obediência nada mais é do uma virtude: ao contrário, é a virtude cristã por excelência, porque "Cristo Jesus se tornou obediente até à morte, e morte de cruz" (Fl 2, 5.8).


sexta-feira, 8 de junho de 2012

“Maturidade eclesial”, característica de uma Igreja em diálogo com a sociedade contemporânea

Imagem daqui

Em seu artigo intitulado "Maturidade eclesial", [o teólogo e sacerdote jesuíta Mario de França] Miranda faz referência à atual crise da Igreja, com as seguinte palavras: “nenhum de nós ignora que hoje a Igreja Católica atravessa uma crise, como, aliás, também outras instituições da sociedade. Embora sua história apresente outros momentos difíceis por ela vencidos, parece-nos que a atual crise se diferencia das anteriores, mesmo da crise do século XVI, pelos desafios inéditos que traz em seu bojo”.

Entretanto, para o teólogo, essa crise deve ser entendida a partir da própria missão da Igreja que deve se desenrolar no seio da sociedade. Em outras palavras, a Igreja não se constitui numa realidade fora da sociedade, mas numa perspectiva relacional. Segundo o autor, as “rápidas e sucessivas mudanças socioculturais, a sociedade pluralista e secularizada, a hegemonia do fator econômico na vida social e familiar, a emergência da subjetividade, a desilusão e a desconfiança diante da capacidade da razão humana, a proximidade das outras religiões, são alguns fatores que transformaram a nossa sociedade e nossas vidas e que inevitavelmente incidem na vida da própria Igreja, visto que sua existência só se justifica enquanto esteja voltada para a sociedade levando-lhe a mensagem e a realidade do Reino de Deus”.

Para que a missão evangelizadora e transformadora frutifique na sociedade, a Igreja deve conhecer bem os interlocutores, levando em conta “suas linguagens, suas deficiências, seus valores, suas preocupações, seus sonhos, seus sofrimentos e suas realizações”. Caso contrário, alerta Miranda, a Igreja “não conseguirá ser uma realidade pertinente e significativa para seus contemporâneos”.

Os desafios contemporâneos não impactam apenas na linguagem da proclamação da fé, mas envolvem também a realidade da Igreja enquanto instituição. Por isso a Igreja deve “mudar para poder ser Igreja, a saber, sinal salvífico que seja, de fato, captado como tal pela sociedade”. Trata-se de uma tarefa exigente, na medida em que as “transformações de mentalidades, de práticas, de hábitos que nos são familiares só se realizam lentamente, mesmo quando pressionadas pelo contexto vital em que nos encontramos”.

Diante do novo contexto de mundo e de Igreja, abrir-se para uma perspectiva de mudança demanda uma maturidade inédita. Isto é, a “atual realidade eclesial pede de nós uma maturidade inédita, uma atitude nova, um posicionamento original, condizentes com a hora presente, já que a história jamais se repete como bem sabemos”. Trata-se, em outras palavras, de uma maturidade que implica a Igreja como um todo. Daí o sentido da maturidade eclesial mencionada por Miranda.

[Leia o artigo "Maturidade Eclesial" na íntegra aqui]

- Luís Carlos Dalla Rosa, para o IHU

quinta-feira, 7 de junho de 2012

"Deus sabe como o amo, e Ele a mim"

Foto: i can read

Nossa amiga Rosilene foi uma das pessoas que compartilharam conosco, no evento que realizamos domingo, um pouco de sua história e vivência como gay e católica. Aproveitamos esta oportunidade para dividir suas reflexões também com vocês.

Tenho 48 anos, sou cristã católica praticante e gay (talvez seja o contrário), mas nem sempre pude me afirmar assim. Desde bem pequena aprendi com meu pai a rezar. Me ensinou o Pai Nosso (que ensinava, naquela época, a rezar “Padre nosso que estais no céu...”), Ave Maria, Oração do Anjo da Guarda... Foi ele quem iniciou a minha formação católica. Aos três anos, como eu já sabia ler e escrever iniciei meus estudos na escola São José, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, uma escola católica. Era um ambiente afetuoso e de muita compreensão. As irmãs incentivavam a minha precocidade estudantil e fertilizavam a minha relação com Deus. Foi um tempo excelente! Aos seis anos, com ardente desejo de comungar (mesmo ainda não tendo iniciado o catecismo), aproveitei a distração do meu pai, na missa, na hora da comunhão, e corri como um raio para frente do padre, que gentilmente me deu a comunhão. Nossa! Sinceramente eu senti um estado de céu que nunca mais na vida esquecerei.

Tudo transcorria muito bem. Cresci, e as mudanças comuns ocorriam com naturalidade. Mudei de escola, de paróquia, fiz novos amigos... Participava das diversas atividades da igreja juntamente com minha família. Tios, tias, e primos, todos participávamos na mesma paróquia. Então veio a adolescência e a descoberta da sexualidade que me causava a maior confusão na cabeça. Um dia perguntei a minha mãe “porque é que eu gosto muito das meninas?”. Na maior tranquilidade ela me respondeu “é a sua preferência”. Fiquei satisfeita com a resposta, e minha vida seguia. Não demorou muito até eu me dar conta da minha homossexualidade, e foi aí que começaram os meus problemas. Era um dilema pra mim, pois em casa tudo bem, mas no círculo religioso uma pessoa gay não poderia participar das atividades pastorais comuns, porque seria um mau exemplo de pecado. Que terrível era conviver com aquelas pessoas, sendo considerada pecaminosa e desajustada. Então, plenamente consciente que a minha condição sexual era diferente das demais pessoas de minha família, da escola e da igreja, decidi reprimir minha sexualidade (o que foi uma situação de caos em minha vida). Mas os questionamentos não me abandonavam. Foi então, que passando férias em outra localidade, procurei o pároco e numa confissão, contei-lhe tudo o que se passava comigo. Ele me recomendou muita penitência e que eu me entregasse a contínuas orações e levasse uma vida de castidade. Procurei seguir fielmente as orientações daquele pároco, durante algum tempo. Foi um período sombrio em minha vida, eu tinha 18 anos. Então passei a frequentar as missas de maneira discreta e a me afastar das ações pastorais.

Foi então que conheci uma religiosa que me apresentou ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Fiquei amiga de um monge que me atendia às vezes em que eu ia ao mosteiro. Então um dia, abri meu coração a ele e contei-lhe tudo o que se passava comigo. Falei-lhe quanto me sentia triste, sobretudo que parecia que Deus vivia a me perguntar “Tu me amas?”, e que Ele não me dava nenhuma esperança a minha resposta “Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo”. Ele me olhou bem profundamente e me perguntou onde é que eu enxergava o Amor de Deus na minha vida. Com toda a convicção respondi “Na Encarnação de Jesus Cristo! ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus... O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens...’ “. “Então,” disse-me ele, “como você ainda não consegue enxergar esperança de que Deus te ama como você é?!”. Foi a minha libertação! Nada mais me aprisionou. Descobri que minha condição de ser homossexual não impede o amor de Deus, não me impede de praticar este amor, e nem me impede de praticar a religião cristã católica. Acolhi esta libertação como uma graça do Amor de Deus por mim. Retornei a igreja nos trabalhos pastorais com mais ardor, e é claro tive de superar obstáculos. Hoje com fé e confiança declaro como o Apóstolo “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos”.

Deus, que sabe de tudo, sabe como o amo e Ele a mim. Paz e Bem!

- Rosilene Luiza

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Onde sopra o Espírito?

Foto via Blue Pueblo

A festa de Pentecostes, celebrada neste domingo, lembra a vinda do Espírito Santo sobre os primeiros cristãos, reunidos no cenáculo em Jerusalém. Com a força do Espírito, sentiram-se animados a partir em missão.

Daí para a frente, o Espírito Santo iria conduzir a Igreja. Ele se encarregaria de indicar os rumos, e até de antecipar os passos que os cristãos deveriam dar.

Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Pedro foi procurado por Cornélio, um pagão, que o convidava a visitar sua casa. Ao entrar, Pedro se surpreendeu, vendo que o Espírito Santo descia sobre os pagãos, da mesma maneira como tinha descido sobre eles em Pentecostes.

Pedro então compreendeu que os pagãos eram destinatários do Evangelho, tal como o povo de Israel. A Igreja aprendeu a estar atenta aos sinais do Espírito, para tomar suas decisões com segurança.

Foi o que aconteceu em nossa época, com o anúncio do Concílio Vaticano Segundo, em janeiro de 1959. O Papa João 23 não se cansava de testemunhar que a idéia de um concílio tinha surpreendido a ele mesmo. A certeza da inspiração divina lhe vinha da pronta adesão do povo, que de imediato se identificou com a proposta do papa. Com esta certeza, a Igreja pôde levar em frente a realização do Concílio.

Algumas manifestações do Espírito são fáceis de identificar. Sobretudo quando contam com o aval do povo. A própria teologia reconhece que o "sensus fidelium”, a "intuição dos fiéis” é sinal seguro de procedimento eclesial.

Mas existem situações mais complicadas. Nem sempre o clamor do povo é porta-voz do Espírito Santo. Há certas manifestações, também políticas e sociais, cuja ênfase, em vez de manifestar caminhos seguros de procedimentos corretos, esconde interesses não confessados, e tenta forçar rumos que não levam ao bem comum.

Por isto, não dá para colocar na conta do Espírito Santo todas as manifestações populares. A confiança no Espírito de Deus não dispensa o esforço de discernimento, para perceber os valores que estão em jogo.

O próprio Evangelho nos dá uma pista, quando Jesus explica como seria o procedimento do Espírito. Disse Ele que o Espírito "não falará de si mesmo...; mas, receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (Jo 16, 13).

Com esta afirmação, Jesus sinaliza a necessidade de constatar a coerência entre o que ele fez e ensinou, com as manifestações que possam ocorrer. Para serem do Espírito, precisam estar em sintonia com as verdades objetivas proclamadas por Cristo.

A Bíblia conta uma bonita história, para advertir da necessidade de discernir a presença de Deus. Elias estava refugiado na caverna, nas proximidades do monte Horeb. Foi avisado que Deus passaria naquela noite. Ele se colocou então na entrada da caverna. Veio um forte furacão que fazia as rochas se contorcerem. Mas Deus não estava no furacão. Depois aconteceu um violento terremoto, que sacudiu a terra. Mas Deus não estava no terremoto. Depois desceu um fogo devorador. Mas Deus não estava no fogo. Por fim, veio uma brisa suave, que amenizou todo o ambiente. Era Deus que estava chegando.

Precedendo a este episódio, o mesmo livro narra a cena do confronto de Elias com os 400 sacerdotes do deus Baal. Desafiados por Elias a invocarem o seu deus para que fizesse descer fogo sobre a lenha da oferenda, os sacerdotes gritaram o dia inteiro, mas não foram capazes de se fazerem ouvir por seu falso deus. Ao passo que Elias, com poucas palavras, foi prontamente atendido por Javé.

Há certas manifestações que se assemelham à gritaria dos sacerdotes de Baal. Em nada contribuem para o discernimento objetivo dos problemas a resolver.

A análise objetiva da realidade é garantia mais segura do acerto das decisões a serem tomadas.

- Dom Demétrio Valentini, Bispo de Jales (SP)

(Fonte: Amai-vos)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Quem desobedece a quem?


A infalibilidade papal não pode legitimar o argumento da autoridade. Mesmo com a voz mais doce e o espírito mais humilde que ninguém contesta a Bento XVI, pode ser que nos encontremos diante de um abuso de poder.

A opinião é do sacerdote francês Patrick Royannais, da diocese de Lyon, em artigo publicado no jornal católico
La Croix, 13-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Durante a última Missa Crismal, Bento XVI se referiu ao apelo lançado por mais de 300 padres austríacos há um ano acerca da urgência das reformas na Igreja: "Recentemente, em um país europeu, um grupo de sacerdotes publicou um apelo à desobediência, referindo ao mesmo tempo também exemplos concretos de como exprimir essa desobediência, que deveria ignorar até mesmo decisões definitivas do Magistério, como, por exemplo, na questão relativa à Ordenação das mulheres, a propósito da qual o beato Papa João Paulo II declarou de maneira irrevogável que a Igreja não recebeu, da parte do Senhor, qualquer autorização para o fazer".

Bento XVI reconhece que esses padres querem servir a Igreja, mas se interroga sobre a pertinência dessa desobediência, e o podemos compreender. Mas desobediência a quem? A Cristo? Não parece se tratar disso. Certamente – de maneira falaz ou por falta de rigor – o papa opõe a "configuração a Cristo, que é o pressuposto para toda a verdadeira renovação", e o "impulso desesperado de fazer qualquer coisa, de transformar a Igreja segundo os nossos desejos e as nossas ideias". Desobediência à Igreja? Isso não é dito. A polêmica diria respeito a apenas um ponto, além disso discutido, do ensinamento de João Paulo II.

O que diz a Igreja? Quem não é fiel? Em quê? Em que âmbito cultural ou intelectual é preciso que nos encontremos para pensar que, dado que o chefe falou, o que ele disse é automaticamente verdadeiro? Nenhum grupo, nenhuma pessoa, nem mesmo o chefe, pode pretender ter a última palavra da verdade. Somos entregues ao conflito das interpretações, não que se possa dizer qualquer coisa ou que a verdade seja subjetiva, mas nada garante de maneira definitiva qualquer interpretação. Fragilidade recentemente reconhecida, mas não nova, da verdade expressa em linguagem humana.

Além disso, será que é preciso lembrar que o chefe da Igreja Católica não é o papa, mas Cristo? Isso evita fazer do governo do papa um regime político mundano e permite ressaltar, com o último Concílio, que todo discípulo está à escuta da Revelação, à qual, incluindo o magistério, quer obedecer.

"O magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente" (Dei Verbum, n. 10).

O papa e os padres austríacos ouvem a palavra do Senhor, mas não compreendem a mesma coisa, pelo menos em pontos muito periféricos, embora decisivos no comportamento da Igreja. Não pode ser posto em causa o seu apego comum de Cristo que revela no Espírito a paternidade de Deus; ou o seu apego à Igreja, que recebe a missão de fazer ressoar a palavra de Jesus e de louvar ao Pai pelos sinais do Reino que germinam no mundo; ou o seu apego à forma histórica da Igreja Católica, em particular na sua estruturação sacramental do ministério.

O conflito das interpretações deriva do contragolpe criado pela secularização e pela crise das instâncias de verdade ou, em outros termos, da conscientização da historicidade da verdade. Para ser fiel ao ensinamento da Igreja, não basta repetir sempre a mesma coisa. Com o tempo, as mesmas palavras, as mesmas práticas têm sentidos diferentes, de modo que aqueles que se limitam a repetir tornam-se inevitavelmente inféis.

Por isso, é preciso comentar continuamente as Escrituras, comentar o Credo, reinterpretar a Tradição da Igreja, reinventar a ação pastoral. A Igreja sempre inovou para ser fiel à sua tradição e à sua missão.

Portanto, há interpretações diferentes ou conflitantes entre esses padres e o papa. Mas quando quem tem a autoridade fala de desobediência passa de um conflito de interpretações à denúncia e à exclusão de uma posição. Bento XVI pretende encerrar o debate, recorrendo de facto ao argumento da autoridade que a grande tradição sempre contestou: "Acima do papa como expressão da autoridade eclesial, existe a consciência, à qual é preciso obedecer acima de tudo, se necessário até contra as exigências da autoridade da Igreja" (Joseph Ratzinger).

Falar de desobediência, em vez de admitir a contingência, o conflito indefinido de interpretações, significa confiscar a autoridade e a verdade. A infalibilidade papal não pode legitimar o argumento da autoridade. Mesmo com a voz mais doce e o espírito mais humilde que ninguém contesta a Bento XVI, pode ser que nos encontremos diante de um abuso de poder. Quem desobedece a quem?

sábado, 19 de maio de 2012

Só a experiência direta e imediata do Evangelho pode revitalizar a Igreja

Imagem via Facebook

A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 16, 15-20 que corresponde ao Domingo da Ascenção do Senhor, ciclo B do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Os evangelistas descrevem com diferentes linguagens a missão que Jesus confia aos seus seguidores. De acordo com Mateus, hão de “fazer discípulos” que aprendam a viver como Ele os ensinou. De acordo com Lucas, hão de ser “testemunhas” do que viveram junto Dele. Marcos resume tudo dizendo que hão de “proclamar o Evangelho a toda a criação”.

Quem se aproxima hoje de uma comunidade cristã não se encontra diretamente com o Evangelho. O que se percebe é o funcionamento de uma religião envelhecida, com graves sinais de crise. Não podem identificar com clareza no interior dessa religião a Boa Nova proveniente do impacto provocado por Jesus há vinte séculos.

Por outro lado, muitos cristãos não conhecem diretamente o Evangelho. Tudo o que sabem de Jesus e da sua mensagem é o que podem reconstruir de forma parcial e fragmentária escutando catequistas e pregadores. Vivem a sua religião privados do contato pessoal com o Evangelho.

Como poderão proclamá-lo se não o conhecem nas suas próprias comunidades? O Concílio Vaticano II recordou algo demasiado esquecido nestes momentos: “O Evangelho é, em todos os tempos, o princípio de toda a sua vida para a Igreja”. Chegou o momento de entender e configurar a comunidade cristã como um lugar onde o principal é acolher o Evangelho de Jesus.

Nada pode regenerar o tecido em crise das nossas comunidades como a força do Evangelho. Só a experiência direta e imediata do Evangelho pode revitalizar a Igreja. Dentro de alguns anos, quando a crise nos obrigue a centrar-nos apenas no essencial, veremos com clareza que nada é mais importante hoje para os cristãos do que nos reunir para ler, escutar e partilhar juntos os relatos evangélicos.

O principal é acreditar na força regeneradora do Evangelho. Os relatos evangélicos ensinam a viver a fé, não por obrigação mas por atração. Fazem viver a vida cristã, não como dever mas como irradiação e contágio. É possível introduzir já nas paróquias uma dinâmica nova. Reunidos em pequenos grupos, em contato com o Evangelho, iremos recuperar a nossa verdadeira identidade de seguidores de Jesus.

Temos de voltar ao Evangelho como novo começo. Já não serve qualquer programa ou estratégia pastoral. Dentro de uns anos, escutar juntos o Evangelho de Jesus não será uma atividade a mais entre outras, mas a matriz desde a qual começará a regeneração da fé cristã nas pequenas comunidades dispersas no meio de uma sociedade secularizada.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Não temos medo de pensar. Temos medo de não amar.

Foto: David Talley

Texto escrito a quatro mãos por Lucas Lujan e Suênio Alves e publicado no extraordinário blog Fora da Zona de Conforto em 4 de agosto de 2009. Fica para reflexão... :-)

Não temos medo de (re)pensar conceitos sobre Deus. Temos medo de não (re)amar como Cristo, quem na realidade não amamos: os mendigos, os pobres, os excluídos, os marginalizados, as crianças africanas, os homens e mulheres de Darfur.

Não temos medo de incertezas. Temos medo que nosso Amor deixe de ser nossa bandeira do Reino de Deus.

Não temos medo de não saber. Temos medo das certezas que prendem Deus a um esquema.

Não temos medo de questionar dogmas. Temos medo de que os dogmas impeçam a transformação de vidas.

Não temos medo do inferno. Temos medo de que nossas mãos se fechem, e não possam ajudar o nosso próximo a sair de sua existência-inferno. Ou pior, que as nossas próprias mãos sejam as quais o empurra para esta existência-inferno.

Não temos medo de devanear teorias loucas. Temos medo que a loucura desse mundo violento cegue nossos olhos a ponto de sempre que pararmos num farol, nesta cidade-sombria, fechemos nossos vidros para a sinceridade dos filhos da injustiça.

Não entendemos como problema sair do molde da teologia sistemática. Temos medo de sistematizar Deus e modela-lo a algum padrão.

Nós não temos medo de chorar por nós mesmos. Nós temos medo de que não mais choremos o choro dos outros.

Não sentimos culpas pelas nossas dúvidas. Mas pedimos que nos lembre sempre de amar como Cristo.

Não temos medo ter uma fé cheia de espelhos em enigmas e despedaçada, que não tem a precisão de uma fé “face a face”. Temos medo de perder o que existe de mais precioso: Amar.

Não temos medo de balançar alicerces religiosos construídos por pensamentos humanos. Temos medo de perder a doçura e a simplicidade de Jesus.

Não temos medo de sermos rejeitados pela instituição. Temos medo da hipocrisia religiosa.

Não temos medo de sermos chamados de hereges. Temos medo de compactuar com o sistema religioso e seus interesses, e esquecermos de amar pessoas.

Não temos a pretensão que nossos argumentos tenham todos os versículos a favor, e assim entrarmos numa guerra de versículos. Temos medo que nós não cumpramos aquilo que Cristo chamou de o resumo da lei e dos profetas: Amar a Deus e ao próximo.

Não temos medo de nos manifestar a favor de alguém. Desde que esse alguém não se esqueça que o conceito central do cristianismo é o amor.

Aprendemos que não podemos ficar presos às amarras da religião e da instituição.

Aprendemos que Deus está acima da religião.

Aprendemos que no Reino não importa o que se pensa, importa o que se ama.

Aprendemos a olhar pessoas como “filhos de Deus”, e amá-las incondicionalmente.

Aprendemos que qualquer um que tenta abrir os olhos de pessoas encabrestadas pela religião, acaba sendo queimado na fogueira da instituição.

Estamos seguros que o Verdadeiro Amor lança fora todo medo, e por isso não temos medo de caminhar com alguém que nos ensina a lidar responsavelmente com a liberdade do amor.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Discordar em nome da fé

Instalação: Lee Eunyeol

Quando a discordância nasce da escuta prolongada e atenta à Palavra de Deus e das alegrias e das angústias humanas, a fé ajuda a progredir, a se reformar. Nasce da exigência de amar a Deus e ao próximo, de uma preocupação de fidelidade ao que é irrenunciável e mais importante.

A opinião é do cientista político e leigo católico italiano Christian Albini, em nota publicada no blog Sperare per Tutti, 02-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Há espaço na Igreja Católica para a discordância, ou ela é uma realidade a ser condenada e rejeitada por ser incompatível com a autêntica fé?

Esse é um assunto que foi reproposto por Bento XVI na sua homilia da Missa Crismal da Quinta-Feira Santa, no rastro da qual muitos se puseram, incluindo Andrea Tornielli, em um artigo publicado no sítio Vatican Insider [disponível aqui em italiano].

O motivo dessa atenção à discordância católica é a duradoura ressonância, até mesmo internacional, que está tendo o Apelo à desobediência assinado por centenas de padres austríacos que pedem mudanças substanciais na pastoral da Igreja e pretendem implementá-los. Entre as suas reivindicações: a Eucaristia aos divorciados em segunda união, o direito de pregação dos leigos, a presença de moderadores nas paróquias sem clero...

A modalidade de manifestar opiniões e necessidades à hierarquia eclesial através de posicionamentos públicos não é nova. Há vários exemplos, muitos dos quais documentados pelo sítio Viandanti na seção Lettere alle chiese. Vale a pena conhecê-las para descobrir uma Igreja Católica muito mais plural.

Voltando agora ao artigo de Tornielli, o jornalista reconhece a existência de desconfortos profundos que não correspondem à imagem de uma Igreja sempre triunfante, que muitos querem propor a todo custo, beirando a formas de propaganda. É uma realidade que, em muitos ambientes católicos, não se quer admitir.

Encontro-me, no entanto, menos em sintonia quando o jornalista recorre a outras afirmações de Joseph Ratzinger, que remontam a quando ele ainda era arcebispo de Munique.

"O magistério eclesial protege a fé dos simples, daqueles que não escrevem livros, que não falam na televisão e não podem escrever editoriais nos jornais: essa é a sua tarefa democrática. Ele deve dar voz àqueles que não têm voz".

"Não são os doutos – dizia ele em uma homilia pronunciada em dezembro de 1979 – que determinam o que é verdade na fé batismal, mas sim a fé batismal que determina o que é válido nas interpretações doutas. Não são os intelectuais que medem os simples, mas sim os simples que medem os intelectuais. Não são as explicações intelectuais a medida da profissão de fé batismal, mas sim a profissão de fé batismal, na sua ingênua literalidade, que é a medida de toda a teologia. O batizado, aquele que está na fé do batismo, não precisa ser ensinado. Ele recebeu a verdade decisiva e a traz consigo com a própria fé...".

Tornielli retira daí, como conclusão, que o anúncio da Igreja Católica deve se concentrar no essencial da fé, ao qual foi dedicado justamente um ano pastoral, deixando que os leigos intervenham nas questões políticas e econômicas.

É uma posição que eu compartilho, mas, apresentada dessa forma, desvia a atenção daquilo que importa na questão da discordância. As palavras de Ratzinger põem uma dicotomia: de um lado, há os intelectuais, que se baseiam nos livros e nos seus raciocínios, e, de outro, há os simples, que contam apenas com a própria fé. O magistério garante estes últimos.

Trata-se de um raciocínio simples, mas também simplista, porque generaliza e estabelece a priori que toda discordância vem dos intelectuais e dos seus livros. Mas com base em que se diz isso? Por princípio? Seria preciso, ao contrário, entrar no mérito dos casos individuais e das questões individuais.

Concordo que há um risco de intelectualismo ao se lidar com problemas religiosos, mas isso não significa negar o exercício da razão crítica, que é um serviço à fé. Ele ajuda, por exemplo, a identificar superstições e preconceitos. Também estou convicto de que o novo pelo novo não é um valor, razão pela qual a posição mais correta não está necessariamente sempre do lado da mudança. Mas isso não significa enrijecer-se no imobilismo.

Quando a discordância nasce da escuta prolongada e atenta à Palavra de Deus e das alegrias e das angústias humanas, a fé ajuda a progredir, a se reformar. Nasce da exigência de amar a Deus e ao próximo, de uma preocupação de fidelidade ao que é irrenunciável e mais importante. Assim, discorda-se em nome da fé, e não contra a fé ou fora dela. É uma discordância que não tem nada a ver com ser intelectual. Não é uma discordância fácil, barata. Ela provém de um amadurecimento interior sofrido, mas sincero.

Tornam-se, então, indispensável a escuta e o diálogo como normalidade da vida eclesial. Quem são os simples? Aqueles que vivem o peso da condição do divórcio, por exemplo, não pertencem a essa categoria? Olhar para o essencial da fé não significa também ver as situações com um olhar de misericórdia, que é a primeira verdade, e discernir quando é o momento de não absolutizar práticas e situações que parecem consolidadas?

domingo, 6 de maio de 2012

Da missa tridentina à reforma litúrgica do Vaticano II (parte 2)

Imagem daqui

Publicamos aqui a segunda e última parte da análise do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose (leia a primeira parte, publicada ontem à tarde, aqui), sobre a passagem da missa tridentina para a nova forma da missa, após o Concílio Vaticano II. O artigo foi publicado na Revista do Clero Italiano, n°. 3, de março de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


A missa tridentina – As primeiras reformas
Além da missa dos dias de semana e da missa dominical, gostaria também de lembrar uma outra missa muito solene, que era celebrada por ocasião de funerais ou missas de sufrágio, mas somente para pessoas ricas ou nobres. Sim, os ricos podiam pagar não só a missa "dita" pelo pároco, a ordinária, ao alcance das pessoas comuns, mas também a chamada "missa grande levítica".

Nessa ocasião, vinham de fora outros dois padres, que revestiam o papel levítico do diácono e do subdiácono: estes últimos vestiam a dalmática e assistiam o pároco durante a missa. Era uma missa que admirava pela solenidade (devida sobretudo à presença simultânea de três padres), pelo canto (executado pelo coro), pela presença de um catafalco altíssimo e ornado com inúmeras velas, diferente do dos pobres, montado especialmente para acolher o caixão, ou, no caso de missas em memória do falecido, para fingir que ali estava o caixão (até se incensava o catafalco vazio...).

Mas então, ninguém pensava que este era uma farsa ou que na liturgia era necessária a verdade, não a simulação. Nas cidades pequenas como a minha, a "missa grande levítica" era um evento raro de se ver, e o sentimento predominante era a maravilha pelo seu caráter solene, grandioso, espetacular.

Para mim, a missa de então era a única missa, e eu não tinha nenhum problema com relação à forma da sua celebração. Eu entendia o latim, tinha o messalino [pequeno missal popular] e era um cristão muito convicto. Não por acaso, aos 11 anos, contra a vontade do meu pai (a minha mãe havia morrido há três anos), eu quis ir para o seminário para me tornar padre, principalmente – dizia eu – para poder celebrar a missa.

Além do serviço cotidiano como coroinha no altar, era um exercício à liturgia e dava uma subjetividade cristã certamente nada fraca, mas convicta. Eu confesso que, de toda a celebração da missa, para além da consagração, para mim era importantíssima a meditação sobre a [oração da] coleta da missa do dia, em particular o domingo. A coleta da tradição latina, de fato, muitas vezes é uma "pérola", uma verdadeira síntese da oração cristã, um esboço para quem quer rezar segundo o coração da Igreja. Por isso, eu conhecia de cor muitas coletas, de modo que eu podia rezá-las em ocasiões diversas, sem recorrer à leitura do messalino.

Um evento muito significativo foi, depois, a reforma da Semana Santa desejada por por Pio XII no início dos anos 1950. Para mim que tinha dez anos se tratava de aprender novos ritos junto com o pároco: a introdução do lava-pés na Quinta-Feira Santa, a vigília pascal na noite entre sábado e o domingo apareciam como novidades que requeriam empenho e dedicação. Sim, porque até 1954 – perdoe-se e compreenda-se a expressão popular de então – "Jesus Cristo ressuscitava no sábado de manhã".

A liturgia pascal, de fato, ocorria por volta das 9h da manhã, em uma igreja obscurecida por cortinas, de modo a poder celebrar a luz da ressurreição. Na igreja, éramos muito poucos, menos do que em uma missa de semana em que participavam os parentes do falecido pelo qual se celebrava o sufrágio.

Por volta das 10h30, ouvia-se o som dos sinos, soltos na leitura do Gloria in excelsis Deo, depois de terem sido amarrados na Quinta-Feira Santa à noite, e as pessoas que ficavam em casa corriam para os córregos para se lavar o rosto.

Essa era, na época, a celebração da ressurreição de Jesus. Não foi fácil, portanto, aceitar essa primeira reforma litúrgica. Eu, o pároco, as freiras e alguns dos cristãos mais instruídos aprendíamos a compreender a grandeza do mistério das ressurreições. Para outros, ao invés, o comentário era: "Mudam até a nossa Páscoa!".

Uma reação não muito diferente daquela suscitada pela reforma litúrgica posterior, do Vaticano II, quando a exclamação era: "Mudam até a nossa missa!".

A missa pós-conciliar
Com Pio XII, a dinâmica da mudança já havia entrado na liturgia, e João XXIII, ele também, simplificaria alguns ritos e mudaria algumas fórmulas. Certamente, teria sido necessário explicar mais às pessoas o porquê da reforma, despertar nas pessoas um interesse pela "nova missa", iniciá-las à escuta das Sagradas Escrituras.

Foi feito muito pouco, mas posso dizer que, na minha cidadezinha, o pároco fez muito, todo o possível, eu acredito. Mas já haviam chegado os anos do boom econômico, as pessoas haviam mudado: o sábado e o domingo haviam se tornado ocasiões para ir ao mar ou – se dizia – para "dar uma volta". Era a televisão que dava lições no lugar dos padres. Os jovens andavam por aí para dançar...

Quanto a mim, tendo chegado a Turim para a universidade, ia sempre todos os dias à missa, mas não mais como coroinha. Aqui, lembro-me de missas ditas às pressas, tantas missas em diversos altares simultaneamente, ao menos na igreja mais perto do meu alojamento, o Santuário della Consolata.

Mas o Concílio já havia começado e estávamos cada vez mais convencidos de que, para chegar a uma reforma da vida do cristão e de toda a Igreja, era preciso dar vida a um caminho de reforma acima de tudo do ponto de vista litúrgico. Sentia-se a necessidade dela e ela também era esperada, nesse sentido, por parte das pessoas comuns.

Assim, pouco a pouco, chegavam "novidades". As novidades realmente existiam, mas – infelizmente – eram introduzidas aos trancos e barrancos, porque os presbíteros acabavam anunciando antes da missa: "A partir de hoje, na missa, muda-se isto... Esta parte da missa não é mais em latim, mas sim em italiano... Não se faz mais como se fazia, mas se faz de forma diferente...".

Essa modalidade, talvez, não era a mais adequada para fazer com que os cristãos comuns entendessem a intenção da reforma, e poucos presbíteros explicavam com paciência e competência as mudanças. Não houve revolta por parte das pessoas, mas, ao contrário, uma acolhida passiva. E a exclamação "Mudam até a nossa missa!" não tinha amargura, era quase uma piada, naquela hora em que a Itália do boom econômico estava mudando tudo. Porém, precisamente porque mudava a vida dos cristãos, também devia mudar a forma da liturgia.

Pouco a pouco, a reforma litúrgica mudou profundamente o modo de ir à missa. Podemos sintetizar essa mudança através de uma eloquente mudança de linguagem: "do tomar missa (ou assistir à missa)" para "participar da missa". Em primeiro lugar, todos ficaram agradecidos pela introdução da língua italiana, porque, finalmente, podiam compreender palavras que, até aquele momento, pareciam monopólio do presbítero e do coroinha.

O que o presbítero fazia ao altar não era mais obscuro, secreto, mágico para alguns, mas era algo compreensível e cada vez mais referido ao que Jesus fizera e dissera. Pense-se, depois, na maior riqueza de leituras na missa. Para dar só um exemplo, se, antes, no conjunto das missas dominicais e festivas, ouviam-se (ou, melhor, eram lidos em latim) cinco trechos do Antigo Testamento e dez do evangelho segundo Marcos, com o novo lecionário, os trechos do Antigo Testamento proclamados eram cerca de 240, e os de Marcos, quase 40.

As pessoas ouviam pela primeira vez páginas jamais ouvidas, das quais a pregação podia se tornar uma explicação e um comentário. Depois de um longo exílio, a palavra de Deus voltava ao coração do povo de Deus, e, acima de tudo, os evangelhos eram conhecidos quase na sua inteireza.

Além disso, começou-se a responder às palavras do padre. Teve-se verdadeiramente aquela "missa dialogada", como se dizia na hora do Concílio, tão desejada pelos párocos e pelos fiéis. Desapareceu o uso de conjugar a missa de semana com a missa "de morto": nessas liturgias, as leituras escriturísticas também eram variadas e abundantes.

Em suma, deve-se confessar – e por isso também é preciso agradecer ao Senhor – que se voltava verdadeiramente a uma comunidade, a uma assembleia celebrante, mesmo que as pessoas não tinham plena consciência disso.

Além disso, o presbítero, ao presidir a liturgia, aparecia mais claramente como sinal de Cristo para a assembleia e como sinal da assembleia para com Deus.

Não digo que não foi cansativo aceitar todas as mudanças introduzidas, mas a consciência de uma renovação necessária da liturgia me fez participar a partir de dentro dessa reforma, até por causa da minha amizade e assiduidade com os especialistas liturgistas que, em Turim, no centro litúrgico da Elle Di Ci de Leumann, trabalhavam para fazer uma contribuição de qualidade para toda a Igreja italiana.

A convicção e a determinação do cardeal Michele Pellegrino e a frequentação dos mosteiros beneditinos e trapistas franceses me ajudaram muito a acolher a reforma dentro da minha comunidade, que, desde 1968, já tinha feito da liturgia a “opus Dei” sobre a qual se podia construir a sua vida monástica.

A única tristeza, diante da qual eu senti toda a minha e a nossa impotência, foi a introdução de cantos e músicas cuja feiúra e banalidade, e cujo caráter ideológico muitas vezes deturpavam a liturgia. Compreendi que, nas paróquias, não se podia cantar o gregoriano (de fato, desapareciam os coros e eram introduzidas as bandas juvenis), mas se podia buscar, esperar e não ceder às novas modas musicais.

De nossa parte, enraizando-nos na liturgia monástica, fomos preservados dessa contaminação, e o nosso canto permaneceu em continuidade com a grande tradição latina, embora em língua italiana. Nenhuma alteração, mas sim um progresso, um crescimento da liturgia em si mesma.

Conclusão
Então, a missa mudou? Sim, mudou na sua forma, como sempre mudou nas diversas épocas da história da Igreja. Ao mesmo tempo, porém, a missa é a mesma em uma continuidade bem mais profunda do que a língua ou os gestos com os quais é executada.

Na verdade, para quem vive uma fé autenticamente cristã e eclesial, a liturgia da Palavra não mudou desde a da assembleia presidida por Esdras no retorno do exílio (cf. Ne 8), e a liturgia eucarística é sempre a mesma, desde o partir do pão da comunidade de Jerusalém na hora da Páscoa até hoje.

No meu coração, há, portanto, uma enorme gratidão ao Vaticano II e a Paulo VI, que atuaram pela reforma em fidelidade à tradição, à grande tradição cristã, mas não tenho sentimentos depressivos, muito menos negativos, lembrando a missa como era celebrada antes da reforma conciliar.

Há 40 anos, eu recolhia na reforma litúrgica principalmente as novidades. Hoje, reconheço sobretudo a continuidade, a tradição que se acresce e se renova para não morrer ou decair, mas que sempre sabe conservar a mesma missa, a mesma celebração da aliança entre Deus e o seu povo.

Ha 40 anos, a missa era, para mim, o sacrifício da cruz: hoje, ainda é o sacrifício da cruz, que tem como êxito a ressurreição, a vitória de Cristo sobre o mal e sobre a morte. Hoje, na missa, eu vivo com mais consciência o mistério pascal, renovo a aliança com o Senhor, ofereço a minha vida, o meu corpo em sacrifício (cf. Rm 12,1), oferece toda a criação com uma epiclese, invocação ao Espírito Santo, para que transfigure essa criação em reino dos céus.

E continuo convencido de que haverá outros desenvolvimentos, outros acréscimos e mudanças na liturgia, porque a liturgia, assim como a Igreja, é semper reformanda. Tudo isso, porém, em uma continuidade que tem como referência a grande tradição do Oriente e do Ocidente, e que completará o que faltar, corrigirá o que for necessário, enriquecerá o que parecer mísero.

sábado, 5 de maio de 2012

Da missa tridentina à reforma litúrgica do Vaticano II (parte 1)

Imagem daqui

Com uma forte marca autobiográfica, o prior de Bose relata como viveu a missa nos anos anteriores à reforma litúrgica. Palavras densas de memória e ricas de sugestões, que transparecem todo o afeto para com uma forma litúrgica que foi alimento espiritual imprescindível na primeira parte da sua vida. E, na passagem para a nova forma da missa, posterior ao Vaticano II, os seus inegáveis enriquecimentos – em particular a língua e o lecionário – e alguns defeitos – no canto litúrgico. Na reforma, enfim, reside "a continuidade, a tradição que cresce e se renova para não morrer ou decair, mas que sempre sabe conservar a si mesma, a mesma aliança entre Deus e seu povo".

Publicamos aqui a primeira parte da análise do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose. O artigo foi publicado na Revista do Clero Italiano, n°. 3, de março de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Introdução
Há muito tempo, eu sentia o dever de contar como eu vivi a missa por 20 anos, antes da reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II. Eu sinto esse dever por diversas razões. Acima de tudo, porque em mim a recordação dessa missa permanece muito viva: dos meus seis aos 24 anos, ela foi, para mim, a missa cotidiana, uma missa em que eu "servia" como coroinha.

Essa missa era a principal fonte da minha vida espiritual, era a missa que me moldava todos os dias, era a liturgia de comunhão com o Senhor, na qual eu crescia e fazia discernimento sobre a minha vida e sobre a minha vocação.

Mas também há uma outra razão pela qual eu sinto esse dever de memória. Muitos dos que têm a minha idade ou são ainda mais velhos e, portanto, viveram como eu ou mais do que eu essa forma litúrgica, parecem não lembrar, não sabem mais falar a respeito, nem sabem lê-la: eu constatei isso mais de uma vez, ficando perturbado muitas vezes com tanto desmemoriamento...

Não se trata, porém, da transcrição de recordações pessoais, como se fossem minhas memórias, nem de nostalgia por parte de um senescente: é uma comparação entre duas formas de celebração, entre dois ritos capazes de celebrar o mistério de Cristo, mas um derivado do outro e gerado pelo mais antigo, na continuidade do crescimento da fé e da eloquência da fé que é a liturgia católica.

Ao escrever este testemunho, eu espero apenas ser verídico, honesto comigo mesmo dentro do possível, porque é verdade que a experiência da missa reformada pelo Concílio Vaticano II também me moldou, ou, melhor, muito mais, já que é a "minha" missa há mais de 40 anos, é a missa que eu vivo na minha comunidade, como monge que tenta ser cristão.

Espero não ferir ninguém e prestar um serviço àqueles que querem um testemunho sobre essa missa que hoje pode ser celebrada como rito extraordinário, concedido por Bento XVI àqueles que se sentem ligados e afeiçoados a essa forma pré-conciliar.

O leitor poderá, portanto, fazer uma comparação, poderá compreender ainda mais a continuidade entre os dois ritos e, ao mesmo tempo, discernir a "graça" que a reforma litúrgica contribuiu para a vida de toda a Igreja.

A missa tridentina
Comecemos dizendo alguma coisa sobre o tempo e sobre o espaço dessa liturgia. Nas cidades do interior, como a minha, a missa dos dias de semana era celebrada às 6h da manhã: um horário que ia ao encontro das necessidades das pessoas, em particular das mulheres, que, mais tarde, deviam trabalhar em casa.

Às 6h, eu estava na sacristia e ajudava o pároco a se vestir: ele, depois de tê-lo beijado, vestia o amito sobre as costas e ao redor do pescoço, depois vestia a alva, tomava o cíngulo e a estola que eu lhe estendia, depois vestia a casula, e eu lhe amarrava o manípulo.

Nesse ponto, o padre estava pronto e, depois de fazer uma reverência para a cruz colocada sobre a credência, nos aproximávamos à igreja, enquanto eu, na frente dele, portava o missal apoiado no peito, com a abertura junto ao coração. Quando passávamos pela porta, o sacristão dava um toque de sineta: e, então, estávamos na igreja.

Nos primeiros bancos, havia duas ou três irmãs, a governanta do padre, algumas senhoras idosas. Nos bancos do outro lado da igreja, estava uma família mais ou menos numerosa, aquela que havia "ordenado", ou seja, feito celebrar a missa para o seu querido falecido no aniversário ou no 30º dia da sua morte. No fundo da igreja, havia algumas mulheres e alguns homens que gostavam daquele lugar distante, fora dos bancos: com uma certa ironia, eram chamados de "aqueles da soleira".

No total, eram entre 10 e 15 pessoas, não mais. Porém, principalmente naquele hora, muitas vezes ainda no escuro, pelo menos eu e o meu pároco tínhamos a consciência de estar coram Domino por todos os cristãos da cidade e em comunhão com toda a Igreja.

Tendo chegado ao altar, depois da genuflexão, se subia até ele para levar até lá o cálice e a patena, cobertos pelo véu, e para colocar o missal sobre o suporte. Depois, se descia, e a missa tinha início. "Introibo ad altare Dei", dizia o padre em voz baixa, e eu respondia: "Ad Deum quilaetificat iuventutem meam".

Então, eu e o padre rezávamos o Salmo 41 (42). Era um salmo com o qual eu me identificava de modo particular, porque a minha vida era dura e marcada também pelo sofrimento. "Quare tristis incedo?" (Sl 41 [42], 2), eu dizia a Deus e esperava nele apenas para que alegrasse a minha juventude.

Seguia-se a confissão dos pecados. O padre a fazia primeiro: "Confiteor Deo omnipotenti", e eu o absolvia: "Misereatur tui omnipotens Deus et, dimissis peccatistuis, perducat te ad vitam aeternam. Amen". Depois, eu me confessava, e ele me absolvia ou, melhor, absolvia todos os presentes: mas eles não podiam ouvir, porque esse diálogo ocorria em voz baixa e parecia se referir apenas a nós dois, o padre e eu. Nós dois éramos os protagonistas.

Nesse sentido, também é preciso dizer que, quando um padre vinha de fora para dizer missa na minha cidade, ele chamava a mim, que morava na frente da igreja e, assim, podia satisfazer a obrigação, porque era proibido de celebrar a missa sozinho (segundo a norma do cânone 813 § 1 do Código de Direito Canônico de 1917: "Sacerdos missam ne celebretsine ministro qui eidem inserviat et respondeat").

O padre me explicava: "As pessoas não sabem o latim, portanto não podem entender. Às pessoas basta 'assistir à missa' e rezar como sabem, com o rosário ou com outras orações". Na verdade, nem sequer se ousaria pensar no conceito de "assembleia", muito menos considerar que as pessoas ("povo de Deus" era uma expressão inconveniente) entendida como assembleia era sujeito da celebração.

Os fiéis, de fato, eram pensados e tratados como "presentes ausentes". Nem mesmo as fidelíssimas freiras tinham um messalino [pequeno missal] para seguir a celebração, enquanto eu tinha orgulho de possuir e de poder usar o do Caronti [referência ao monge beneditino Emanuele Caronti (1882-1966)], que me foi presenteado no dia da primeira comunhão.

Para a minha geração, o pequeno missal ainda era um livro decisivo para a formação cristã. Aprendia-se a missa, as vésperas, o ano litúrgico com esse precioso livro que sempre estava sempre em cima do criado-mudo, também como fonte das orações da manhã e da noite, além das várias orações para as diversas necessidades e devoções dos fiéis.

Havia um pequeno missal para todas as idades: depois do Caronti, aos 12 anos me foi presentado o Lefebvre [referência ao monge beneditino Gaspar Lefebvre (1880-1966)] e depois, aos 15, o Feder [referência ao padre jesuíta G. Feder]. Ainda hoje, ao lado da minha cama, à espera de um pequeno missal latim-italiano posterior à reforma litúrgica, conservo o do Feder para a oração pessoal.

A missa tridentina - Consagração e comunhão
Naqueles anos, estava presente um movimento litúrgico muito reconhecido pelo meu pároco. Principalmente depois que Pio XII, na encíclica Mediator Dei (1947), falara das crianças como ministrantes, coroinhas, estas haviam se tornado uma presença e um serviço ao qual se prestava muita atenção.

Todas as semanas, havia duas horas de ensino litúrgico e de provas para aprender a como servir a missa e as outras liturgias: o pároco era muito exigente, e devia-se aprender a postura, o modo de caminhar, de manter as mãos, de fazer a genuflexão, de se inclinar...

Esse ensinamento e o exercício cotidiano me davam uma consciência profunda e uma forte convicção do serviço ao altar, quase como se a missa fosse coisa do padre e minha: nós dois éramos os protagonistas, porque, como coroinha, eu era, de fato, um concelebrante. Ainda mais que o que podia ser cantado pelas pessoas era irrelevante para a validade da missa: só o padre era celebrante, e o que importava era que ele e o coroinha seguissem o rito segundo as rubricas e validamente (riteet valide). Os cantos ou as eventuais respostas do povo eram decorativos, mas não necessários.

O coroinha de então tinha que ser um rubricista especialista, um atento conhecedor das regras e das normas litúrgicas, um rapaz consciente e valoroso do seu serviço ao altar. A sua presença e as suas respostas ao padre eram essenciais para a celebração: era uma espécie de clérigo virtual.

Também não devemos esquecer que esse serviço estava consentido apenas aos homens, enquanto as mulheres absolutamente não podiam entrar no presbitério, muito menos colaborar com o desenvolvimento da celebração. O coroinha era, portanto, educado no espírito litúrgico e à execução ordenada, elegante, séria das funções litúrgicas das quais era investido.

Quando o padre subia ao altar, ele o beijava e, depois, invocava a piedade do Senhor: "Kyrie eleison", dizia ele, e eu respondia. Cruzavam-se assim, entre mim e ele, as invocações de piedade. Depois, havia a oração da coleta do dia, sempre em latim, seguida pela leitura da epístola. Todas as manhãs, sendo a missa "de morto", a leitura da epístola era a mesma, 1Ts 4, 13-18, que iniciava com as palavras: "Fratres, nolumus vosignorare de dormientibus…", assim como a leitura posterior retirada do evangelho segundo João (Jo 11, 21-27).

Eu estudei e aprendi muito cedo o latim, ainda aos oito anos, graças a quem me educou de modo tão refinado, especialmente depois da morte da minha mãe, e assim pude seguir todas as palavras sussurradas pelo padre. Eu também ouvia, porém, por trás das costas, o burburinho das pessoas que recitavam o rosário. De vez em quando, o padre se virava para as pessoas dizendo: "Dominus vobiscum", mas eu só eu que respondia: "Et cum spiritu tuo".

No entanto, em um certo ponto, quando, depois do prefácio às vezes cantado, eu proclamava o Sanctus e tocava três toques de sineta, eis que o burburinho da oração das pessoas cessava, e todos, ajoelhados, olhavam para o padre que, no altar, inclinado sobre a hóstia e sobre o cálice, pronunciava em voz baixíssima as palavras da consagração. Todos sabiam, em uma total obediência à "disciplina do arcano", que aquele era o momento culminante da missa, um momento que infundia temor: era o "santíssimo" da missa, em que absolutamente era preciso calar e prestar atenção. Era o fascinosum et tremendum, que se impunha também para o povo rude do interior!

Todos os olhares estavam fixos na coluna inclinada do padre, à espera de que aparecessem, por cima da sua cabeça, elevados ao alto pelas suas mãos, a hóstia e depois o cálice. Aqui também a sineta ritmava os movimentos do padre que se ajoelhava depois das elevações. Um toque contínuo da sineta que eu fazia girar com arte indicava o fim da consagração, do momento mais alto, do ápice da missa.

Ver a hóstia e o cálice, para muitos, era o elemento decisivo da missa, a máxima comunhão possível com o Senhor, porque quase ninguém, depois, acedia à comunhão do corpo do Senhor. A comunhão sacramental, de fato, era praticada por pouquíssimos. Era necessário comungar ao menos uma vez por ano – recitava o preceito da Igreja –, e ninguém, à parte das freiras e eu, sentiam a necessidade de comungar cotidianamente.

Também devemos dizer que a comunhão não era feita durante a missa: no momento da comunhão, só o padre comungava, depois a missa acabava. Depois de entrar novamente na sacristia e de ter deposto a casula, o padre, em alva e estola, voltava ao sacrário do altar, o abria, e nós comungávamos, ajoelhados no parapeito. Depois, fechava-se o tabernáculo sussurrando: "O sacrumconvivium…".

Essa era a missa dos dias de semana e cotidiana, que durava entre 20 e 25 minutos, no centro da qual havia "o silêncio canônico", o santíssimo momento da consagração e da elevação, um tempo em que o celebrante se imergia, mais ou menos de acordo com a sua devoção, em uma ação temorosa, adorante, mistérica. E com ele eu também, que, de perto, apenas três degraus mais abaixo, escutava e, assim, podia acompanhar as suas palavras sussurradas.

A missa tridentina – A pregação
É verdade que as pessoas "assistiam" e que essa era a sua participação: o que importava era a devoção, o exercício dos afetos, a atenção à presença de Deus, o temor pelo que acontecia sobre o altar. Não era dada a palavra do Senhor: o Antigo Testamento, durante a semana, era lido pouquíssimas vezes, as leituras da epístola e do evangelho eram – como se disse – sempre as mesmas, em ainda em latim (mais em geral, nas missas não "de morto", as leituras bíblicas eram muito escassas: textos quase que unicamente do evangelho segundo Mateus e admoestações tiradas do apóstolo Paulo).

Eu também me lembro que o meu pároco, considerado um inovador na liturgia e às vezes por isso criticado pelo bispo, a partir de 1951, me fazia ler em italiano, do parapeito, as leituras que ele, simultaneamente, lia em voz baixa em latim no altar. Então, as pessoas faziam silêncio, ouviam, como na elevação: eram os únicos momentos em que se suspendiam as devoções realizadas paralelamente com o desdobramento da missa.

No domingo, ao invés, as missas eram três: às 6h para as mulheres, que depois tinham que ir para casa para preparar o almoço; às 8h para os meninos, à qual se seguia a hora de catecismo; às 11h, a "missa grande", principalmente para os homens e os jovens.

Nessa última missa, em particular, havia os cantos: o coro da cidade executava em gregoriano a Missa de angelis. No início e no fim, cantavam-se hinos que eu recordo com verdadeira tristeza, por serem composições feias, com palavras carregadas de sentimentalismo, às vezes contendo elementos dramáticos.

Mas as pessoas – deve-se reconhecer – consideravam-nos como seus e os cantavam com paixão. Na "missa grande", não faltava a pregação, adaptada para o auditório: no primeiro pós-guerra, vinha um "josefino" de Asti ou um frei passionista do santuário das Rocche e, para não tornar a missa muito longa, ele pregava durante o desdobramento do rito.

Ele só parava no momento do Sanctus, ele também se ajoelhava na direção do altar e retomava o sermão depois do toque de sineta que se seguia à consagração. Tratava-se de pregações, não de homilias: era a ocasião para lembrar e repassar durante o ano a ética cristã, os mandamentos de Deus, os preceitos da Igreja.

Nos anos 1950 e 1960 do século passado, a pregação era uma oportunidade para a defesa da Igreja, para a luta contra o ateísmo, o comunismo e o desaparecimento da rigorosa moral sexual, em uma sociedade que perdia os seus parâmetros e conhecia uma nova cultura, cada vez menos tradicional e cada vez mais embebida de individualismo e de liberdade.

Muitos homens, durante a pregação, ficavam do lado de fora, formando pequenos grupos, e eu tinha que sair para forçá-los a entrar antes do ofertório, advertindo-os que, caso contrário, para eles, a missa não seria válida. O pároco me disse: "Vamos, força! Compelle intrare, faça-os entrar (Lc 14, 23)". Aqueles que entravam, saíam de novo para o pátio da igreja depois do Pai Nosso, dizendo com alívio: "Acabou!", e se queixavam da pregação resmungando.

(Continua amanhã à tarde)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Abre, Senhor, os meus lábios...


Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Para o judeu, ouvir Deus e orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shemá Israel” (escuta, Israel...(Dt 6,4-9). Esta prática cotidiana estava ligada diretamente com a saúde, pois o “Shemá”, diziam, 248 palavras que corresponderiam aos 248 órgãos que acreditavam ter o corpo humano. Assim, recitavam as 248 palavras pela “saúde” dos respectivos órgãos do corpo, pois não é só a boca que ora, mas também o fígado, os rins e cada músculo...

Ser “surdo e mudo”, para o hebreu, afastava-o da essência da devoção, pois não podiam usar o ouvido nem a palavra.

Para a psicologia, quem não fala nem escuta não desenvolve a linguagem, característica mais íntima do ser humano. Este é o pano de fundo para considerar esta cura, feita por Jesus com a linguagem não-verbal, linguagem mais primitiva e anterior à palavra. Para o bebê, a linguagem não-verbal (gestos da mãe, olhar, aconchego, alimento...), o constrói como ser humano e assim é humanizado. Também nós precisamos desta cura profunda!

Eis os passos, cheios de simbolismo, que o Evangelista Marcos nos apresenta (Mc 7, 31-37):

1. Jesus conduz o surdo-mudo à parte, longe da multidão... Condução não-verbal, pela mão, longe da massificação. E o surdo-mudo deixa-se conduzir... Confiança originada não na fala, mas em outros sinais captados interiormente. E lá, o deficiente é cuidado na sua limitação.

2. Jesus pôs os dedos nos ouvidos... Literalmente: pôs o dedo na ferida! A mão, fonte de contato, é passagem do amor e do poder curador.

3. Depois, tocou-lhe a língua com saliva... Como a saliva da mãe que aplaca a dor e limpa a ferida do filho. Quem não fez isso alguma vez? Não é a palavra que sai da boca de Jesus, mas o líquido que cura, remetendo a uma comunicação por líquidos, como no útero. Freud diz que o sofrimento vem da sensação de desamparo, quando fomos expulsos do paraíso do ventre materno. Jesus restitui essa ligação primordial, e restaura uma conexão que faz suportar o “desamparo” com o amparo da compaixão.

4. Levantando os olhos ao céu... para o alto, em direção ao Pai. É preciso remete-se sempre ao Pai, origem de toda vida e ser de novo “matriciado” e gerado. Com esse olhar, Jesus introduz aquele que não fala nem ouve no “Shemá Israel”: O Senhor é o nosso único Deus!

5. Jesus suspirou... "Ruach" solidário, sopro do Espírito, presença invisível de Deus e anúncio do sopro que logo passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.

6. E disse-lhe: ‘Effatha’ (abre-te!). Depois dos gestos não-verbais e primitivos, vem a força da palavra. E o surdo-mudo começa a falar; insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único. Sua cura revela que o Reino de Deus chegou.

Uma pergunta: O que está mudo em você? (O que não fala e deveria dizer? Que palavras se transformaram em condutas agressivas?)

- Pe. J. Ramón F. de la Cigoña sj, em seu blog Terra Boa

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Dicotomias, lutas, fé e amor: gays versus Igreja?

Foto via Facebook

Certa feita, uma amiga comentava sobre as crises possíveis na cabeça de homossexuais religiosos. Se a sociedade diz que a homossexualidade é anormal, a religião diz que é errado, que é pecado...

Todo mundo pode se sentir no direito de fugir da normalidade, se for esse o caso (não é esse o caso). Mas fugir do que é certo tem efeitos piores. A carga do “anormal” pode até ser suportada (quem disse que estou a fim de ser “normal”?), mas a carga do “errado” pesa.

E enquanto seguem essas dicotomias extremistas, esse jeito limitado mesmo de enxergar as coisas, seguem cristãos e homossexuais massacrados dentro de sua própria consciência, sem liberdade, sem vida, sem fé, sem amor. Os paradigmas ainda atrasados que as igrejas oferecem são um grande desafio para a luta LGBT, para as saídas do armário, para o fim da homofobia.

Mas disso, todo mundo sabe. Preciso falar diferente.Se as igrejas ainda erram ao tratar dos gays, o movimento ainda erra ao tratar da igreja. Vício de tantos grupos que se articulam em torno de várias causas, temos a mania de personificar as lutas em torno de um inimigo só. Muitas vezes, o nosso debate sobre homofobia soa como se desejássemos acabar com as religiões (especialmente com o cristianismo) para ter, enfim, tudo muito resolvido.

A matriz religiosa da formação da nossa sociedade meio que já limitou nossa visão de mundo, nessa coisa de céu e inferno, homem e mulher (opostos completos, sem se misturar ou se confundir). A bagunça já está feita. Assim, simplesmente derrubar a instituição não faz com que derrubemos o pensamento discriminador que anda espalhado por aí, influenciando até mesmo quem está fora das igrejas. A mudança tem que proceder no pensamento do povo, não na estrutura, na hierarquia. Muitas vezes, precisamos até mesmo da estrutura para mudar o pensamento.

Digo isso por visualizar um lado (muito forte, por sinal) da igreja e do cristianismo que enxerga um outro Cristo, um carinha que morava lá pelas periferias da Galiléia, carpinteiro, favelado, sofredor... e que por isso entendeu e defendeu na sua mensagem todo um povo que, como ele, sofreu alguma opressão.

Jesus hoje iria na Parada Gay. Mesmo que não gostasse de homens, estaria lá pela causa política, pelo debate, pela luta por visibilidade de uma galera segregada pela falta de amor e respeito pela diferença. Estaria lá, assim como estaria no acampamento dos sem-terra, na ocupação dos atingidos por barragens, no protesto do movimento estudantil. Foi um preso político do seu tempo, defendendo as causas dos oprimidos, fortalecendo as lutas do povo, e cobrando de seus seguidores (até hoje) um posicionamento transformador.

Lá, na multiplicação dos pães, Jesus pede que as pessoas “se sentem” em grupos de cinquenta. O povo que o seguia era um povo de sofridos, de escravos. Nessa época, escravo não comia sentado. Pedir que se sentem, assim, sutilmente, é pedir que se libertem. As pessoas só precisam entender isso, mudar os pensamentos.

E assim, mais do que segregar e desejar um forte “cala a boca, senhor bispo!”, é preciso fazer entender que há um diálogo possivel, pela compreensão de que o amor tem a função primordial de libertar (assim como Jesus o quis)... A missão é fazer com que as pessoas acreditem é direito de todos sentir essa coisa que é o sentimento, coisa doida que deixa mais vivo, que faz lutar pela vida do outro através do cuidado e da afetividade, que pega a gente sem que possamos escolher o alvo... nem homem, nem mulher...

Faço, sim, uma defesa da religião. Faço por entender que, ao contrário do que se imagina, lá dentro a gente também se livra de alienações. Não se trata de uma evangelização cega, mas de um desabafo de cansaço por ouvir os comentários chatos de quem (dicotomicamente, também) acha que gays não podem estar na igreja, e que tudo o que virá dela será prejudicial. Se ainda precisamos que ela mude, a função de quem quer mudança é se inserir para mudar. É necessário postura de quem quer tranformação.

Pode até não parecer possível, mas é cá na minha fé que eu milito. Mais que por qualquer coisa, é por ser muito religioso que eu repito incessantemente o grito de não à Homofobia!

- Murilo Araújo
Jornalista e professor. Homem feminista, católico homossexual, fã de Beyonce e Bethânia. Sem enxergar nenhuma ambiguidade em nada disso.
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