sábado, 4 de fevereiro de 2012

A "Paz" do Senhor


A paz que a maioria das pessoas procura, que tem a tranquilidade e a estabilidade como frutos, NÃO encontramos em Jesus.

A paz que Jesus nos oferece é a derivada de uma vida derramada no serviço ao outro, gerando sentido para quem serve e significado para quem é servido.

É o tipo de paz que nos tira o sono, que nos tira a tranquilidade, que insiste em dizer de dentro pra fora que algo está errado e continuará errado enquanto as estruturas não se parecerem mais com o Reino de Deus e os relacionamentos, mas com a Trindade.

É um tipo de paz que nos “tira a paz”, mas nos enche de contentamento.

Por isso ele nos diz que “minha paz vos dou, mas não vo-la dou como o mundo a dá”.

A “paz do Senhor” é a sensação interior de, mesmo a contragosto do todo ou na contra-mão do óbvio, se estar caminhando na direção correta.

- Fabricio Cunha
Reproduzido do blog do autor

Família que se escolhe

Foto daqui

Sempre fui meio avessa às ideias tradicionais de família. Nunca compreendi muito bem que se pudesse ser fosse forçado a gostar e conviver com pessoas específicas, simplesmente porque há entre nós e eles uma compatibilidade genética. Para mim, família sempre foi outra coisa, mais ligada ao sentimento do que à biologia.

Tenho uma família (biológica) até que grande. Minha avó materna era a quarta de cinco filhos. Meu avô materno, o terceiro de onze filhos. Meus avós paternos vieram para São Paulo do norte e do nordeste sem suas famílias, das quais nunca soube muita coisa, mas quando se casaram tiveram quatro filhos, o que também contribuiu significativamente para engrossar a minha árvore genealógica.

Mesmo assim, dessa gente toda, aqueles com os quais realmente convivi e criei laços ao longo da vida não são muitos. A maioria, habituei-me a encontrar somente em um ou outro aniversário ou casamento, velório ou enterro. Cumprimentamo-nos cordialmente, trocamos algumas palavras, contamos da vida como anda, mais por convenção do que por verdadeiro interesse, e quando saímos dali, cada um retoma a sua vida. Não há proximidade. Não há intimidade.

Há na minha vida, por outro lado, um bocado de gente sem qualquer laço genético comigo, mas com quem ao longo da vida fui criando laços afetivos fortes, pessoas que se importam comigo e com quem eu me importo, que fazem a diferença na minha vida. Foram afetos cultivados ao longo da infância, da adolescência, da vida adulta. Não viemos ao mundo biologicamente conectados, fazemos parte de grupos genéticos diferentes. Mas eu as escolhi como parte da minha lista de “indispensáveis”, para usar um termo que ouvi outro dia, e de que gostei muito. Estas pessoas sim, eu considero como parte da minha família. Juntamente, é claro, dos parentes (no sentido comum da palavra) com quem, além de laços biológicos, tenho também relações verdadeiras de proximidade, conhecimento mútuo, afeto e bem querer.

Minha família, portanto, é feita de gente bem escolhida. Família, para mim, não é destino nem fatalidade, é caminho. É construção de toda uma vida: é presença, é cuidado, é atenção. É amor desmedido, é olhar carinhoso, preocupado. É amizade. Nesse balaio que eu chamo, com toda sinceridade, de “minha família”, tem quem seja parente de sangue, e que junto comigo construiu uma história de afeto, muito além da biologia. E tem uma porção de gente muito querida, gente amiga que não tem comigo qualquer conexão genética, mas que vive do meu lado de dentro em um lugarzinho muito especial, porque nós nos escolhemos. Assim é com minha madrinha e seus filhos, que cresceram comigo e aprendi a amar como irmãos. Assim é com meu avô “postiço”, padrasto da minha mãe, que foi o avô que a vida me deu e me ensinou a amar. Assim é com amigos escolhidos muito a dedo, alguns deles hoje com suas familinhas, gente muito amada com quem eu sei que posso contar, e para quem estou presente para toda obra. Isso é família, para mim – não conheço outra definição.

Dizem que parente, a gente não escolhe. Pode até ser. Mas família, essa a gente escolhe sim – com o coração.

- Tata, do Blog Mamíferas

''Nos Evangelhos, não se aprende doutrina, mas sim uma forma de estar no mundo''

Foto: Laina Briedi

"É preciso descobrir o caminho aberto por Jesus e ser seus seguidores". A afirmação é de José Antonio Pagola, teólogo e ex-vigário geral da diocese de San Sebastián, na Espanha, que apresentou nesta quarta-feira, 25 de janeiro, em Donostia, seu livro "El camino abierto por Jesús: Marcos" (Ed. Desclée de Brouwer). Ele nota isso em sua própria carne e na forma de polêmica. Apesar dos inúmeros obstáculos por parte da hierarquia eclesiástica, sua obra "Jesus. Aproximação histórica" (Ed. Vozes) tornou-se um best-seller que está sendo publicado nestes dias em croata, francês e russo. "Os números de vendas não me interessam", diz.

A reportagem é de Cristina Turrau, publicada no sítio Diario Vasco, 26-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista, aqui reproduzida via IHU.


A relação do senhor com as livrarias e com os leitores está se tornando uma relação de amor.
Este livro que se apresenta hoje é a segunda parte de um projeto editorial que tem por título geral "O caminho aberto por Jesus" e será composto por quatro pequenos volumes. Cada um deles é dedicada a um dos evangelistas. Há um ano, foi publicado o livro de Mateus. Antes do Natal, apareceu o de Marcos. Para a Semana Santa, será publicado o de Lucas. E no outono [europeu] sairá o de João, além de um box com os quatro livros.

Seu projeto é ambicioso...
Estes livros nascem por causa do meu desejo de aproximar os homens e as mulheres de hoje ao caminho aberto por Jesus. E essa ideia do caminho tem muito importância.

A saber...
Os primeiros seguidores de Jesus não se sentiam membros de uma nova religião. Eles não se sentiam membros de uma instituição, mas sim homens e mulheres que descobriram um novo caminho para viver. Na Carta aos Hebreus, um escrito que circula em torno do ano 60 e que foi recolhido no Novo Testamento, fala-se de um caminho novo e vivo, inaugurado por Jesus, que é preciso percorrer com os olhos fixos nele.

É o que o senhor vem propondo.
Eu vejo a necessidade de que, na Igreja, se dê uma transformação para os homens e as mulheres de hoje. Não basta se sentir adepto de uma religião chamada de cristã, mas é preciso descobrir o caminho aberto por Jesus e ser seus seguidores. Hoje, muitos de nós vivem dentro da Igreja e se sentem cristãos sem ter tomado a decisão de ser discípulos. Fazemos o percurso sem sermos guiados pelas suas atitudes fundamentais e pelo estilo de vida. Jesus pode ser hoje uma figura humanizadora, que ensina a viver tanto as pessoas que se sentem cristãs como aquelas que não se sentem assim. E isso ocorre em um momento de crise, não só religiosa. Vivemos uma "omnicrise", e parece que não estamos acertando em alguma coisa.

Embora tenha havido problemas, não faltarão editores para os seus livros...
Este segundo livro foi publicado pela Desclée de Brower devido a alguns problemas, mas a coleção sairá pela PPC. Desde que deixei a responsabilidade como vigário geral da diocese, fiz todo um projeto.

Sim?
A primeira coisa que fiz foi dedicar oito ou nove anos para pesquisar melhor a figura de Jesus. Na realidade, esse foi o tema de toda a minha vida. Em "Jesus. Aproximação histórica", comuniquei e ofereci o que hoje pode se dizer de maneira razoável e confiável sobre a trajetória humana e histórica de Jesus.

Chegaram mais livros.
Com o meu segundo projeto, tento apresentar de maneira simples e com uma linguagem acessível e próxima, mas que "toque" as pessoas, o estilo de vida de Jesus. Quando nos aproximamos dos Evangelhos, não aprendemos doutrina; descobrimos uma maneira de habitar o mundo e de interpretar a vida e a história de grande força humanizadora.

A mensagem de Jesus é de plena atualidade, o senhor defende.
Eu me dou conta de que as pessoas, nesta sociedade que parece superficial, sentem a necessidade de viver de uma maneira diferente, sem saber exatamente como. Buscamos uma vida mais digna, saudável e feliz, algo que não é fácil. E o que eu tento demonstrar é que Jesus oferece um horizonte mais humano e uma esperança. Assim perceberam os primeiros cristãos.

Com seus livros, o senhor busca ser um mediador?
Trabalho com grupos distintos, falo com as pessoas e observo que não se busca mais técnica, nem mais ciência, nem mais doutrina religiosa. Buscamos algo, mas não sabemos como formular essas questões que levamos dentro.

Quais são as diferenças entre os quatro Evangelhos?
Os Evangelhos são quatro pequenos escritos. O primeiro é o de Marcos, que aparece em torno do ano 70, provavelmente depois da destruição de Jerusalém. Depois vêm os de Mateus e de Lucas, entre os anos 70 a 90. E, por último, já passado o ano 100, aparece o de João. Mas podemos dizer que os autores não são apóstolos. A elaboração dos textos é muito complexa. Eu analiso a vida de Jesus a partir de quatro relatos que nasceram da sua recordação. E cada um deles tem sua própria maneira de ressaltar, sublinhar e ordenar essas recordações.

Dê-nos uma pincelada de especialista: Marcos.
É o Evangelho mais breve. Pode ser lido em uma hora. Ocupou um lugar muito discreto ao longo da história. E, no entanto, há um interesse crescente nele, porque nos oferece a figura de Jesus com mais frescor. Ele remonta a tradições antigas, e Mateus e Lucas o utilizaram para os seus evangelhos.

Mateus.
É o evangelho mais longo e, em boa parte, segue Marcos, mas acima de tudo se caracteriza por seus grandes discursos. É o do Sermão da Montanha, das Bem-aventuranças ou das parábolas de Jesus, inesquecíveis. É o mais rabínico, provavelmente obra de um judeu que se tornou cristão.

Lucas.
Eu o recomendo para quem queira ler um evangelho inteiro e de uma vez só para ter uma ideia de como Jesus foi lembrado. Tem o evangelho da infância, muito poético. E é onde se destaca a bondade de Deus, sua compaixão e misericórdia, por exemplo, na parábola do filho pródigo.

João.
É um evangelho mais complexo, com uma cristologia muito elaborada. É mais teológico do que os demais.

Por que o lado humano de Jesus assusta?
Jesus atrai, mas é perigoso, porque é muito radical. Se você se aprofundar na ideia de que os últimos serão os primeiros, ou que você não pode servir a Deus e ao dinheiro, a vida muda. Jesus é muito sedutor, mas arriscado. Como disse algum agnóstico, é difícil dizer que ele não tem razão.

Como o senhor analisa os vetos à sua obra por parte da hierarquia?
Vão unidos à mensagem. Isso aconteceu com ele e acontece com os seus seguidores. Não é possível falar de Jesus com certa força e frescor e ficar impune.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Oração ao Deus desconhecido (F. Nietzsche)


Leonardo Boff traduz e declama a "Oração ao Deus desconhecido", de F. Nietzsche.*

Que o Deus que, das profundezas do nosso ser, nos chama pelo nome e nos convida a conhecê-lo, anime nossos passos na busca de atender ao seu apelo - ele que não será conhecido jamais. ;-)

Bom fim de semana a todos. :-)


*Fonte: Blog do Fabricio Cunha

Para gays, preconceito torna velhice ainda mais difícil

Foto daqui

O preconceito e a falta de direitos civis, que são problemas para todas as idades, acentuam as consequências do envelhecimento para os homossexuais. Esse é o resultado de uma pesquisa feita pela ONG inglesa Stonewall com gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais maiores de 55 anos no Reino Unido.

O estudo, divulgado em setembro, revela que 34% dos gays e bissexuais homens foram diagnosticados com depressão e 29% com ansiedade, o dobro em relação aos heterossexuais da mesma faixa etária. Nas mulheres, as diferenças entre os dois grupos são menores, mas os percentuais ainda são maiores entre as lésbicas (40% e 33% contra 33% e 26%).

O número de homossexuais idosos que consomem drogas é quatro vezes maior que entre os heterossexuais (9% contra 2%), assim como é maior o consumo de álcool e cigarro.

De acordo com pessoas entrevistadas pela reportagem, a realidade é parecida no Brasil, apesar de não haver dados e pesquisa semelhante para comparar.

"O gay velho é muito mal visto na sociedade, até entre os próprios gays", afirma o funcionário público Mário Tatsumoto, 50.

"Aqui no Brasil, os homossexuais não saem mais de casa quando passam de 30. Na Europa, o que você vê na rua são os gays de 40 a 60 anos", concorda o baiano Antônio Almínio, 55, que mora em São Paulo há mais de 30 anos.


DIFERENÇAS NA SAÚDE

O preconceito em relação à orientação sexual acaba afetando a qualidade do atendimento público de saúde para esse grupo. Em 14% dos casos pesquisados no Reino Unido, os parceiros de homossexuais não puderam opinar sobre tratamentos para seu companheiro e 25% presenciaram algum tipo de discriminação pela orientação sexual.

A pesquisa da ONG Stonewall também aponta que o atendimento em asilos e residências para idosos é feito por profissionais que não são treinados para lidar com gays, lésbicas e bissexuais.

Uma das alternativas para tentar driblar o preconceito é criação de residências exclusivas para homossexuais, que já existem na Europa, nos Estados Unidos e na Argentina.

"A criação desse tipo de casa é vista por muita gente como uma volta ao gueto, mas é uma oportunidade de socialização para os gays de baixa renda", afirma o técnico em informática Regis Cardoso, 52, criador do blog e do site "Grisalhos", que fala sobre saúde e relacionamentos com gays maduros.

O escritor João Silvério Trevisan, 66, que deu auxílio a gays idosos em dificuldades financeiras e com problemas de saúde, critica esse tipo de iniciativa. "Por que, em vez de fazer asilos, a sociedade não pode criar grupos para ajudar esses gays da terceira idade?"

Pesquisador do Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Fernando Pocahy, 40, diz que é preciso oferecer atendimento aos idosos de forma indiscriminada. Ele sugere a organização de residências coletivas entre grupos de amigos gays.

"É uma alternativa para essas pessoas viverem melhor, construindo vínculos com seus pares, e envelhecerem juntos."

- Diego Zerbato
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo. Reproduzido via X1

Metáforas desconcertantes do divino


Nietzsche disse que só acreditaria no Deus que soubesse dançar. As implicações filosóficas e existenciais dessa afirmação são enormes. Entre algumas: contingência, liberdade humana, o uso da sabedoria no improviso, desmonte da existência engrenada. Dizer que Deus dança significa que a vida pulsa com liberdade. Começo, meio e fim não jazem nos grilhões da necessidade.

Em desagravo à espiritualidade nietzscheniana, atrevo-me dizer que o Deus que dança não é estranho ao relato bíblico.

Sofonias (3.17) descreve Deus se regozijando com júbilo, cheio de brados de alegria. Deus se deleita tal qual o pai que se surpreende com a pergunta criativa do seu guri, igual ao professor que aceita ser ultrapassado pelo aluno, parecido com a mãe que se encanta com a bailarina que nasceu de suas entranhas. A alegria divina ou humana vem da percepção gostosa de um momento que, mesmo esperado, podia nunca acontecer. Isso desengrena o futuro e cria o insólito. Só o imprevisto tem força de gerar alegria ou decepção.

Os profetas não economizavam predicados portentosos para o Divino: Senhor dos Exércitos, Todo Poderoso, Rei, Santo Juiz. Mas, diferentemente das divindades gregas que, posteriormente, seriam descritas a partir dos absolutos da metafísica, os judeus se valeram de histórias, contos e parábolas para descrever Elohim Javé. Sem a aura de sacralidade das antigas divindades, eles não tiveram medo de dizer que Deus assobia – Isaías 5.26, 7.18. “Assobiarei para eles e os ajuntarei, pois eu já os resgatei…” (Zacarias 10.8). Nietzsche, estou certo, não teria muito problema em crer num Deus que assobia.

Um dos mais celebrados atributos dos deuses foi a constância. Contudo, Javé não se sente constrangido a comportamentos padrões. Os escritores o descrevem como um Criador arrependido, depois que constata o aumento da perversidade entre os filhos dos homens: “Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração” (Gênesis 6.8). Javé também se arrependeu de extrapolar sua severidade ao anunciar a destruição de uma cidade: “Tendo em vista o que eles fizeram e como abandonaram seus maus caminhos, Deus se arrependeu e não os destruiu como tinha ameaçado” (Jonas 3.10).


Com o fluir da história, certos mandamentos caducam, perdem a razão de ser, e merecem ser descartados. No período pós-exílio babilônico, foi necessário acabar com a lógica sacrificial de imolar animais inocentes. Os holocaustos se mostraram inúteis na transformação de pessoas. Jeremias teve peito de desdizer o que se considerava mandamento. Para ele, Javé nunca havia ordenado derramamento de sangue (quando, de fato, o Senhor exigira que se imolassem animais).

“ Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: ‘Juntem os seus holocaustos aos outros sacrifícios e comam a carne vocês mesmos! Quando tirei do Egito os seus antepassados, nada lhes falei nem lhes ordenei quanto a holocaustos e sacrifícios. Dei-lhes, entretanto, esta ordem: Obedeçam-me, e eu serei o seu Deus e vocês serão o meu povo. Vocês andarão em todo o caminho que eu lhes ordenar, para que tudo lhes vá bem’” (Jeremias 7.21)

Numa expressão chula, no Brasil chamam o homem traído de corno. Embora o termo esteja completamente desconectado do hebraico, o profeta não teve vergonha de comparar a sua sorte à do Senhor. E de usar a própria história para fazer paralelo entre deslealdade conjugal e espiritual. Para escancarar a dor da infidelidade, Oseias, corneado por sua mulher, Gômer, disse que Israel fazia o mesmo com Deus. “Vá, trate novamente com amor sua mulher, apesar de ela ser amada por outro e ser adúltera. Ame-a como o Senhor ama os Israelitas, apesar de eles se voltarem para outros deuses e de amarem os bolos sagrados de uvas passas” (Oseias 3.1).

O mosaico de metáforas atribuídas ao Divino é minimizado na teologia pelo termo técnico de antropomorfismo. Mas, os exegetas que procuram construir uma imagem de Deus sem essas inúmeras metáforas, acabam com um Deus apático, distante, indiferente, inacessível. Ao anularem as múltiplas descrições bíblicas, ficam com o Motor Imóvel aristotélico.

Jesus de Nazaré ousou desmontar todos os devaneios que antigos nutriam sobre Deus. O Evangelho de João diz que “ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido” (Jo 1.18). Quando Felipe pediu para ver o Pai, Jesus não hesitou: “Quem me vê, vê o Pai”. Portanto, a metáfora mais verdadeira de Deus encarnou e foi reconhecida em Jesus, o Cristo.

Em Jesus, Deus bate à porta e espera ser recebido para um jantar. Em Jesus, Deus relativiza as exigências cerimoniais de dias e espaços sagrados para preservar vidas. Em Jesus, Deus ama sem se impor – ainda ressoam de seus lábios a escandalosa condicional: “Se alguém quiser me seguir…”.

Creio que Nietzsche era ateu da Causa Primária, do Relojoeiro, do Supremo Arquiteto, do Superintendente da Meticulosa Providência. Ele desprezou meras caricaturas distorcidas do Pai que mandou preparar churrasco para um grande baile. Não consigo imaginar Deus sentado, observando a festança do dia da volta do Filho Pródigo. Naquele dia, Ele dançou.

Soli Deo Gloria

- Ricardo Gondim
Publicado originalmente no blog do autor

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O armário número 24


"Se eu pudesse dizer que ele não precisa se esconder..." 

Ele resolveu fazer esportes, voltar a ter uma vida saudável. Mas ele sempre sofria com o ambiente de vestiário, desde a época que era esportista e atlético. Sempre foi para ele meio esquisito os caras seminus querendo provar para cada um deles que era mais homem que o outro, elencando as mulheres comíveis, as que já comeram e as que nunca comeriam. Entendia como cultural – assim como os ingleses que têm adoração por falar do clima – o assunto recorrente sempre ser o futebol. Em alguns, ele percebia uma paixão genuína pela modalidade esportiva que nos transformou em uma pátria de chuteiras, mas em outros, ele enxergava algo meio forçado, apenas para poder ter a carteirinha do clube da masculinidade. Ele não gostava de futebol, apesar de ter time e de acompanhar à distância os campeonatos estaduais e brasileiro.

Ele ria - meio tímido – de certas piadas. Ele sabia que a vida era bem mais dinâmica que as teorias e teses, assim como os olhares que todos lançavam discretíssimos para os pênis dos outros colegas de vestiário. Sim, alguns eram homossexuais, mas ele sabia que muitos ali estavam - no melhor estilo do macho competitivo – apenas fazendo comparações. Não via naquilo o que a moçada do vestiário certamente chamaria de viadagem. Ele ria – meio sem graça – de certos comentários mais pejorativos contra os gays.

Ele voltou a fazer esporte e retornou ao ambiente dos vestiários, mas algo ainda o incomodava muito. Um garoto, muito feminino, muito frágil, era constantemente alvo de um silêncio e um desdém malicioso. Quando o jovem entrava na área dos chuveiros, todos faziam questão de tentar sair o mais rápido possível. Era como se um leproso fosse contaminar todo o clima de masculidade reinante. O moleque também era tímido e não reagia, não sabia como se comportar, o que responder, apesar de ser clara a vontade de excluí-lo do vestiário.

Ele lembrou de um artigo de Duílio Ferronato, na antiga coluna GLS da Revista da Folha de São Paulo que contava que ao fazer capoeira e escutar piadinhas contra gays, o colunista logo de cara rebateu: “Eu sou viado”. E todos começaram a respeitá-lo. Mas aquele pobre garoto não poderia fazer isso pois nada era direto, a agressão era silenciosa.

Ele, de repente, percebeu que um desses machinhos começou a dizer que o armário de número 24 – que sempre estava vazio - era do tal garoto. E essa brincadeira começou a ficar constante. O garoto talvez nunca tenha escutado, mas não demorou muito e nunca mais viram o jovem que sumiu para alívio das testosteronas exacerbadas.

Ele tinha que fazer algo, ele se irmanava com a timidez e com uma certa liberdade de não ter que seguir condutas e regras para poder ser homem. Enfim, no dia que o vestiário estava cheio de "cuecas", todos rindo, fazendo o seu velho e sempre ritual de afirmação da macheza, ele sem mais nem menos se trocou e colocou a roupa no armário de número 24. aquele que estava sempre vazio.

Ele percebeu que rolaram olhares estranhos, mas ninguém mexeu com ele nem fez piadinhas e assim ele fez durante todas as vezes que ia ao vestiário. Ele fazia questão de colocar suas roupas no armário de número 24. Era sua resposta sem barulho para uma agressão que o perturbou. Ele, heterossexual, mas deslocado do discurso de afirmação de uma certa forma de masculinidade, não precisava sair do armário, mas colocar lá dentro de forma trancafiada o desprezo e a ignorância de seus colegas de vestiário.

- Vitor Angelo
Publicado originalmente no Blogay

* * *

O vídeo acima faz parte da campanha "Pink Dot", de Cingapura, cujos organizadores sabem que o preconceito e a discriminação não vão acabar de uma hora para outra e convidam todos a mostrar que os LGBTx não estão sozinhos. A cada situação mostrada, os personagens dizem "Se ao menos eu tivesse coragem de defendê-lo..."; "Se eu pudesse dizer que ele não precisa se esconder...";
"Se pudesse dizer a elas que seu amor uma pela outra também é bonito..."; "Se eu pudesse mostrar a ela o quanto ela é importante para mim..."; "Se as pessoas gays pudessem parar de se sentir culpadas por serem diferentes..."; "Ah, se o mundo pudesse ver o que eu vejo".

Salve Maria sob todos os títulos... Senhora dos Navegantes!

Imagem daqui

Ó Nossa Senhora dos Navegantes, Santíssima Filha de Deus, criador do céu, da terra, dos rios, lagos e mares; protegei-me em todas as minhas viagens.
Que ventos, tempestades, borrascas, raios e ressacas não pertubem a minha embarcação e que nenhuma criatura nem incidentes imprevistos causem alteração e atraso em minha viagem ou me desviem da rota traçada.
Virgem Maria, Senhora dos Navegantes, minha vida é a travessia de um mar furioso. As tentações, os fracassos e as desilusões são ondas impetuosas que ameaçam afundar minha frágil embarcação no abismo do desânimo e do desespero.
Nossa Senhora dos Navegantes, nas horas de perigo eu penso em vós e o medo desaparece; o ânimo e a disposição de lutar e de vencer torna a me fortalecer. Com a vossa proteção e a bênção de vosso Filho, a embarcação da minha vida há de ancorar segura e tranqüila no porto da eternidade. Nossa Senhora dos Navegantes, rogai por nós.
Amém.

(Fonte: Amai-vos)

Nossa Senhora dos Navegantes, mulher de terra, água e gente, rogai por nós.

Odoyá! :-)

Toda sociedade produz o seu estrangeiro


A ideia de sociedade proposta por muitos movimentos xenófobos europeus é a de uma comunidade fechada, limitada e reservada aos autóctones. Não uma comunidade "quente", fundamentada na mútua solidariedade, em vínculos internos fortes, mas sim em uma fortaleza nascida para repelir o inimigo e defender seus bens.

A análise é do antropólogo italiano Marco Aime, professor da Universidade de Gênova, em artigo para a revista MicroMega, republicado pelo jornal La Repubblica, 24-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


"Todas as sociedades produzem estrangeiros, mas cada uma produz um tipo particular, segundo modalidades únicas e irrepetíveis". Parece uma paráfrase do incipit tolstoiano de Anna Karenina, mas essas palavras de Zygmunt Bauman evidenciam o processo de produção do estrangeiro como indivíduo, que ultrapassa as fronteiras que criamos e que às vezes mal suportamos.

Define-se como "estrangeiro", continua Bauman, quem não se adapta aos mapas cognitivos, morais ou estéticos do mundo e quem, com sua simples presença, torna opaco o que deveria ser transparente. Segundo o escritor e ensaísta martinicano Édouard Glissant, é justamente a ideia de transparência que é perigosa: "Eu reivindico o direito à opacidade. A definição e transparência excessiva leva ao apartheid: aqui, os negros, lá, os brancos. 'Não nos entendemos', diz-se, e então vivemos separados. Não, digo eu, não nos entendemos completamente, mas podemos conviver. A opacidade não é um muro, sempre deixa filtrar alguma coisa. Um amigo me disse recentemente que o direito à opacidade deveria ser inserido entre os direitos humanos".

Estrangeiro é aquele que subverte os modelos de comportamento estabelecidos, que compromete a serenidade difundindo a ansiedade (...).

"Os objetos se mundializam, os indivíduos se tribalizam". Com essa frase seca e um pouco sarcástica, o escritor francês Régis Debray sintetizou de modo exemplar um fenômeno que marca fortemente estas últimas décadas. É realmente assim?

A implementação de políticas de liberalização em escala mundial, típicas da globalização, não se traduz, de fato, como poderíamos esperar, em um triunfo do individualismo, mas, ao contrário, na proliferação de identidades coletivas. O progressivo descompromisso do Estado social obriga a chamada sociedade civil a se encarregar dos seus problemas. Isso encoraja o florescimento de uma série estruturas (associações, ONGs), que têm como missão a gestão do social no lugar do Estado e que, muitas vezes, se apoiam em formas comunitárias.

"Assiste-se, então, à retribalização das sociedades contemporâneas?", pergunta-se Jean-Loup Amselle. "A resposta é positiva se considerarmos que esse fenômeno está relacionado com a globalização e com a redução concomitante da esfera da intervenção estatal, e não com uma essência qualquer de sociedade que retornaria ao estado natural. Assim como as etnias africanas são o produto de uma história e, portanto, da modernidade, no sentido de que resultam da concretização de categorias importadas e de categorias locais, as tribos dos bairros difíceis são, também elas, o produto da história recente das sociedades ocidentais e, em particular, do descompromisso do Estado".

Estamos naquela sociedade líquida, incerta, descrita por Bauman, em que os pontos fixos tradicionais vieram pouco a pouco a faltar. A pós-modernidade é uma época marcada pela contingência, pela sobrecarga de presente a despeito das outras dimensões. "O pesadelo dos nossos contemporâneos é o de serem desenraizados, sem documentos, sem pátria, sozinhos, alienados e à deriva em um mundo de 'outros' organizados".

Nessa espécie de mar imenso em que nos encontramos flutuando, sem meta e sem um farol à vista, estamos continuamente em busca de um porto. Assim como ao náufrago se lança uma corda para se agarrar antes de ser levado pelas ondas, aos náufragos da modernidade se joga a boia salva-vidas da dimensão étnica.

"A identidade floresce no cemitério das comunidades, mas o faz graças à promessa de ressurreição". Nenhum agricultor jamais fez um museu para proclamar sua identidade: bastava-lhe ser agricultor. A identidade é um substituto da comunidade, que funciona no nosso mundo individualista, e é "no momento em que a comunidade desmorona que é inventada a noção de identidade". A identidade é algo que deve ser inventado, não descoberto. É o produto de um trabalho de construção, não uma matéria-prima que se encontra debaixo do solo de determinado território, nem um nutriente para as plantas de uma determinada região.

É aqui que entra em jogo a etnicidade, e o "nós" regional é definido em termos etnoculturais, que se entrelaçam com interesses econômicos específicos. Enquanto o nacionalismo clássico, o social, se baseava em uma sociedade que incluía diferenças em seu interior, unidas por uma cultura nacional compartilhada e por um sentimento unanimemente percebido, o nacionalismo étnico é exclusivo, não aceita diferenças, porque se baseia exclusivamente na identidade étnica. Uma 'identidade que, tal como é concebida, indiscutivelmente ligada à autoctonia, não pode ser negociada nem modificada, sob pena da "contaminação", termo que incute temor e não por acaso é utilizado nas retóricas da pureza, porque evoca doenças contagiosas e mortais.

Quando a busca de comunidade se torna obsessão, ela corre o risco de se tornar tribalismo. É a ideia de uma sociedade "pura", fundamentada em uma uma suposta origem comum, definida com vagueza porém, mas capaz de fornecer aquela autoctonia a qual é atribuída uma importância fundamental. Evitar misturas, conservar a suposta pureza original.

A simplificação, que reduz tudo a dois elementos contrapostos, (...) trai a falta de elaboração da complexidade, mas que se revela absolutamente vencedora no plano midiático. Além disso, responde perfeitamente à necessidade de satisfazer, a baixo custo, um sentimento de pertença, que não prevê diversidades internas ao grupo do "nós", nem ao dos "outros".

Além disso, essa visão dicotômica e antagônica, que não deixa espaço para nuances, favorece uma adesão acrítica ao "nós", que seria, contudo, melhor do que a solução oposta, construída deliberadamente com base em conotações negativas e diametralmente opostas às nossas.

A ideia de sociedade proposta por muitos movimentos xenófobos europeus é a de uma comunidade fechada, limitada e reservada aos autóctones. Não uma comunidade "quente", fundamentada na mútua solidariedade, em vínculos internos fortes, mas sim em uma fortaleza nascida para repelir o inimigo e defender seus bens.

Retomando a definição de Huxley e de Haddon a propósito da nação em geral, se poderia dizer que "é uma sociedade unida por um erro comum com relação às suas próprias origens e por uma aversão comum com relação aos vizinhos".

Ficam as perguntas:


Quais serão os estrangeiros que nós, religiosos, produzimos, aqui e agora? Até que ponto não erigimos nossa identidade como uma fortaleza que exclui o outro que nos parece tão perigoso?

Quais serão os estrangeiros que nós, LGBTx, produzimos, aqui e agora? Até que ponto não erigimos nossa identidade como uma fortaleza em oposição ao outro que sentimos nos ser hostil?



Como con-viver?

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O jornal que ousa dizer seu nome

Foto daqui

Flávia Péret lançou domingo, em Belo Horizonte, o livro Imprensa gay no Brasil, pesquisa sobre a história dos jornais e revistas dedicados à questão da liberdade e da diversidade sexual.

O respeito à diversidade sexual no Brasil convive com uma sociedade machista. O mesmo país que exibe ao mundo passeatas de orgulho gay com milhões de pessoas na rua volta e meia se depara com manifestações homofóbicas que partem de deputados como Jair Bolsonaro e pastores evangélicos como Silas Malafaia, sem contar cenas explícitas de violência física. A contradição não é de hoje. A imprensa, que espelha a sociedade, parece também ir de um campo a outro, ora afirmando a liberdade, ora ecoando o preconceito. Há 50 anos, um folheto datilografado e reproduzido em mimeógrafo, o Snob, dava início a uma história singular: a imprensa gay brasileira.

As primeiras publicações – logo surgiu a mais expressiva delas, o Lampião da Esquina – tinham como característica o fato de serem produzidas por gays, com assuntos de interesse dos gays e consumidas por leitores gays. Entre o jornalismo e a militância, foram instrumentos de crítica política que não se concentravam apenas no combate à ditadura militar, mas sobretudo às tiranias da intimidade. Com linguagem direta, tom muitas vezes irônico, ampliaram a luta por liberdade de modo a criar constrangimentos até mesmo à esquerda, que sempre foi careta em matéria de sexualidade.

A jornalista Flávia Péret reconstitui essa história no livro Imprensa gay no Brasil, que lança hoje em Belo Horizonte, na Livraria Ouvidor. Resultado de pesquisa em arquivos, o estudo propõe ainda uma leitura dos jornais e revistas ao longo do tempo, a partir de elementos ideológicos, editoriais e de comportamento. Entre os temas que perpassam vários períodos está a luta sempre difícil pela manutenção dos periódicos, o preconceito, a divisão entre a vertente comercial e política, a entrada em cena da pornografia, a questão da Aids, o novo cenário inaugurado com a internet.

O caso do Lampião da Esquina é paradigmático. O jornal, surgido em meio à onda da contracultura, tinha em seu corpo editorial dois nomes que se tornaram marcantes na trajetória da imprensa gay no Brasil, Aguinaldo Silva e João Silvério Trevisan. Escritores e militantes, Aguinaldo e João Silvério se desentenderam quanto aos rumos da publicação. Para Aguinaldo, que depois se tornaria famoso como autor de novelas de TV (é dele o atual folhetim das nove, Fina estampa), o jornal precisava ter compromisso com o mercado em primeiro lugar. João Silvério, romancista e ensaísta, defendia o caráter prioritário da ideologia. Não foi uma questão apenas do Lampião, mas de toda a imprensa gay do período. O impasse levou ao fechamento do jornal.

A liberdade, mais que uma conquista, é uma construção que precisa ser renovada a todo momento. Os primeiros veículos, em sua corajosa mescla de militância e resistência, inauguraram formas editoriais e modos de linguagem, ampliaram os assuntos presentes na imprensa, combateram o preconceito e afirmaram um horizonte moral mais libertário. A reincidência, 50 anos depois, de elementos que parecem conter esse impulso, seja em nome do mercado, seja do conservadorismo, mostra que a história não cessa de ser escrita.

E não deixa de ser curioso que Aguinaldo Silva, um dos atores de ponta na luta contra o preconceito aos homossexuais, tenha optado por criar um personagem como Crodoaldo Valério, o Crô, em Fina estampa. Dono de todos os estereótipos que o movimento gay sempre combateu, o mordomo tem conquistado a simpatia do público, muito mais que os casais homossexuais politicamente corretos das novelas de Gilberto Braga, por exemplo. Como se vê, a contradição entre ideologia e mercado está longe de terminar.



A militância e o consumo: entrevista com Flávia Péret, jornalista e pesquisadora

A imprensa gay nasceu em época de repressão política e comportamental. Como esse contexto influiu em seu conteúdo?
É importante ressaltar que já existiam publicações gays antes de 1964. O Snob, por exemplo, que é, com o Lampião da Esquina, um dos jornais mais importantes da história do jornalismo gay no Brasil, surgiu em 1963. O pesquisador norte-americano James Green tem um estudo fundamental sobre o assunto (Além do carnaval – a homossexualidade masculina no Brasil do século XX). Ele mapeou dezenas de publicações gays, em todos os cantos do Brasil, que também já existiam antes do golpe. Sobre o contexto político e social, nós vivíamos um grande paradoxo, era um período bastante contraditório. Por um lado, a repressão política, a ditadura militar e o conservadorismo. No entanto, em várias partes do mundo ocidental – e a juventude brasileira foi bastante permeável a esses acontecimentos –, as pessoas estavam vivendo uma revolução de costumes muito forte, que chegou com mais ou menos uma década de atraso ao Brasil: a cultura hippie, o amor livre, o pacifismo e as lutas dos grupos minoritários, não só gays, mas mulheres e negros. A contracultura eclodiu nos Estados Unidos alguns anos antes e no país encontrou nos artistas brasileiros – Secos e Molhados, Dzi Croquettes, Caetano Veloso, Leila Diniz – e na imprensa alternativa bastante visibilidade. Então era algo bastante paradoxal: violento do ponto de vista político, mas com uma juventude aberta, curiosa e principalmente insubordinada às convenções sexuais.

Como essa situação se refletiu na imprensa?
A contracultura introduz um novo tom na imprensa brasileira. O Lampião, por exemplo, era um jornal supercombativo e polêmico e que marcava claramente sua postura ideológica. Eles não lutavam contra a ditadura militar apenas, como alguns alternativos da época, como o Opinião, o Pasquim, lutavam também contra o preconceito, contra a moral sexual conservadora, contra a hipocrisia sexual do brasileiro, o machismo. Era esse o contexto, a ditadura de um lado e a contracultura ou o desbunde de outro. E essa dicotomia estava ali, impressa nas páginas do jornal, as pessoas que fizeram o jornal respiravam e viviam esses dois mundos e é claro que o jornal refletia isso no seu conteúdo e na sua postura editorial: o humor, a ironia, o sarcasmo eram algumas das ferramentas de linguagem.

A mistura de militância com jornalismo repercutiu no resultado das publicações e em sua continuidade como projeto comercial?
Sim e não. Essa mistura foi superimportante para a repercussão política desses veículos, sua legitimidade e valor editorial perante a sociedade. No entanto, a continuidade não foi possível justamente porque os jornais não se sustentavam financeiramente em função de uma série de fatores. Infelizmente isso é uma constante nos casos que pesquisei, os veículos deixam de existir em função de questões financeiras, não se sustentam só com as vendas.

Por que, mesmo com o novo mercado gay, as revistas não se mantêm em circulação por muito tempo?
Por causa do preconceito. Infelizmente ainda existe muito preconceito por parte dos anunciantes. Eles não querem atrelar a marca a uma revista que traz, por exemplo, um homem seminu em poses sensuais ou que fala em assuntos como adoção ou casamento gay. Resumindo, os anunciantes evitam as polêmicas, os assuntos “delicados”... Engraçado, porque o mesmo não ocorre com as revistas de nu feminino. A Playboy tem grandes anunciantes, então está claro que não é a questão da nudez que é o tabu, é a questão da homossexualidade masculina. A falta de anunciantes inviabiliza a produção de uma revista.

Como as primeiras revistas sobreviviam?
Na década de 70 havia um jornalismo diferente, mais militante, por isso falo que a imprensa gay no Brasil se situa um pouco entre estes dois campos: a militância e o consumo. As pessoas que produziam essas publicações se reuniam em suas próprias casas, faziam jornais em mimeógrafos, colagem, xerox, iam para a rua vender, distribuíam via correio. Era um envolvimento intenso. Muitos não recebiam pelo trabalho, pelo contrário, gastavam o dinheiro que tinham para realizar o projeto de publicar um jornal ou um fanzine gay. Ou seja, elas iam driblando a falta de anunciantes. Hoje isso não é mais possível, mas por outro lado existe a internet.

A liberdade sexual no Brasil convive com fortes reações homofóbicas, em diversos setores, na política, na religião e na cultura. Que papel a imprensa tem nesse contexto?
O papel é importantíssimo, crucial, mas infelizmente enquanto a mídia se atrelar ideologicamente e economicamente a empresas e pessoas com pensamentos conservadores – principalmente os religiosos – será difícil para a imprensa atuar da forma adequada. Acho que a imprensa deveria ser mais corajosa, mais polêmica e, principalmente, mais autônoma. Muitas vezes o jornal fica em cima do muro. Às vezes o “princípio” da imparcialidade é uma desculpa para a falta de coragem de se posicionar em relação a temas polêmicos. Somos um país laico apenas na Constituição, vivemos um controle abusivo da Igreja Católica e das igrejas evangélicas. A imprensa deveria abrir mais esse debate, se posicionar efetivamente.

A ligação da imprensa gay com a pornografia interferiu no conceito que essas publicações tinham junto a um público mais amplo?
Com certeza, porque no Brasil pode-se falar das coisas até determinado ponto. Algumas pessoas até aceitam falar de homossexualidade e de direitos gays, mas mostrar um homem nu, não. Isso para mim é hipocrisia, patrulha ideológica do prazer. Durante anos o João Silvério Trevisan escreveu para a G Magazine, a Vange Leonel também. O João Silvério é para mim uma das pessoas mais importantes dentro do movimento da imprensa gay, muito mais do que o Aguinaldo Silva, aliás. Mas depois a G Magazine foi vendida e as pessoas que compraram a revista – um grande grupo internacional – não achavam que era importante ter outros assuntos além das fotos. O espaço do João Silvério foi diminuindo, diminuindo, até que ele parou de escrever. Acho isso pouco inteligente e pouco estratégico por parte dos novos donos da revista. As duas questões podem conviver.

Há alguma semelhança entre a imprensa gay e outros projetos editoriais ligados a causas minoritárias ou contra-hegemônicas?
Sim. Os movimentos contraculturais da década de 70 provocaram uma revolução na forma como determinados grupos minoritários passaram a se articular politicamente. Não só o movimento gay, mas o movimento negro, o movimento das mulheres, dos estudantes ocuparam um espaço de atuação até então inédito. Isso ocorreu porque uma série de descentramentos – quem fala muito sobre isso é o filósofo Stuart Hall – foram empreendidos no campo da política. Entre eles, o enfraquecimento de instâncias de representação social, ligadas exclusivamente ao conceito de classe. Houve também uma crescente politização da subjetividade – das identidades individuais. Ou seja, começa a surgir uma “política da diferença” nas décadas de 60 e 70. Tal deslocamento permitiu que atores sociais até então excluídos e desarticulados ampliassem o debate em torno de questões culturalmente silenciadas. No Brasil, na década de 70, além dos jornais gays tivemos jornais feministas, como o Brasil Mulher (1975 a 1980) e o Nós, Mulheres (1976 a 1978) e publicações produzidas pelo movimento negro como os Cadernos Negros (criado em 1978 e que existe até hoje), uma publicação referência no campo da literatura afro-brasileira. Acho que foi esse o espírito que uniu projetos editoriais e literários com temáticas tão diversas, dizer: existimos!

- João Paulo
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas. Reproduzido via Conteúdo Livre

* * *

Caso você se interesse pelo assunto e queira saber mais
Vale ler a nota do Ministério da Cultura sobre a criação do Primeiro Centro de Documentação LGBT (aqui). Aproveite para visitar o acervo digitalizado completo do histórico jornal "Lampião da Esquina", disponível para consulta aqui por iniciativa da ONG Grupo Dignidade do Paraná e com o apoio do Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural.

Evangelizar sem afundar na restauração: o desafio da Igreja hoje

Escultura: Yoan Capote

Três ministérios, três serviços prestados permanentemente aos outros e a Cristo: a benção, a escuta e a esperança. A bênção, a escuta e a esperança nos parecem ser os caminhos da evangelização.

O texto que segue é a contribuição da Conférence Catholique des Baptisé-e-s Francophones (CCBF, Conferência Católica dos/as Batizados/as Francófonos/as) para a preparação do Sínodo sobre a Nova Evangelização que será realizado em Roma, em outubro de 2012. Ele foi enviado pela CCBF à Conferência dos Bispos da França no fim de outubro de 2011.

O artigo foi publicado no sítio da CCBF, Baptises.fr, 17-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.






"Jesus percorria toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, anunciando a Boa Nova do Reino e curando toda espécie de doença e enfermidade do povo" (Mateus 4, 23)

Evangelizar significa assumir a atitude de Jesus que, em todos os relatos evangélicos, encontra, escuta, dá a palavra, eleva e cura. Hoje, a Igreja busca os caminhos para uma "Nova Evangelização", sobretudo na Europa, nos países muito antigamente cristãos, e que, aos olhos de muitos, hoje parecem sê-lo menos. Nos países europeus, o Magistério deplora aquela que chama de secularização e a sua perda de influência, mas os cidadãos, cristãos e católicos em primeiro lugar, não se encontram tão mal. Ao contrário, apreciam a democracia e a liberalização dos costumes que a Igreja por muito tempo obstacularizou.

Além disso, dentro da Igreja, levantam-se movimentos de leigos para contestar o conservadorismo e a governança autoritária dos clérigos. A "Nova Evangelização", nesse contexto, não pode ser entendida em termos de reconquista de um terreno perdido, mas sim como um convite pessoal a se apropriar das palavras de Cristo na própria linguagem e na própria de homens e de mulheres de hoje, a acolher o Verbo na própria carne, mesmo que ela não seja judaico-cristã depois de 2.000 anos.

A criação da CCBF é a nossa resposta para a nova evangelização.

A CCBF se vê livre de toda ligação clerical ou hierárquica; ela não é um movimento de Igreja, mas também não constrói uma oposição na Igreja.

A Conferência está na Igreja e quer fazer Igreja com todos. A Conferência reúne cristãos muitos diferentes que não têm todos a mesma opinião sobre certas questões sociais. O ponto comum dos membros da Conferência é querer que todos os batizados exerçam a sua vocação de sacerdotes, profetas e reis, leigos e clérigos juntos, unidos em Cristo, no cotidiano e na encarnação de suas vidas.

É com essa finalidade que a Conferência quer colocar todas as suas ações no quadro de três ministérios, três serviços prestados permanentemente aos outros e a Cristo: a benção, a escuta e a esperança. A bênção, a escuta e a esperança nos parecem ser os caminhos da evangelização.


Bênção: e se começássemos a falar bem da Europa?

Abençoar, bendizer, significa "dizer bem". É reconhecer o valor do outro, é o início do respeito e do diálogo. E, ainda que hoje as instituições e a moeda europeias se encontrem em plena crise, se começássemos a falar bem da Europa e dos europeus?

Depois de séculos de enfrentamentos, os europeus encontraram o sábio caminho da paz. Depois de mais de 60 anos, a Europa está em paz. A paz, primeira riqueza dos homens e primeiro dom de Deus. Desde o fim dos anos 1950, a União Europeia progride, certamente não muito depressa em certas questões, mas os cidadãos do continente globalmente obtiveram disso prosperidade e progresso social. Certos países da União souberam até desenvolver, sob a influência conjunta da social-democracia e da democracia cristã, um modelo social de proteção, que deve ser sustentado e estendido.

A Europa é democrática, aboliu a pena de morte e promove a paz no mundo: seus exércitos são os primeiros fornecedores de tropas para a manutenção da paz, enviadas pela ONU a todo o planeta. Os europeus podem ficar orgulhosos por participar no cotidiano dessa obra, certamente imperfeita, totalmente humana e frágil, mas única no mundo.

Graças sejam dadas aos seus pais fundadores, como Jean Monnet, Konrad Adenauer, Alcide De Gasperi, tenazes leigos católicos, àqueles que os seguiram e a todos aqueles, cidadãos e habitantes da Europa, que trabalham todos os dias para a sobrevivência e o desenvolvimento desse conjunto político, econômico e social que, apesar de seus pesos e disfunções, a Terra inteira inveja.

Bendigamos, falemos bem também da juventude europeia, que, quando tem a chance, estuda juntos, muitas vezes fala ao menos duas línguas como em um Pentecostes laico e convive com outros jovens em todas as metrópoles estudantis, sob a égide de um grande pensador cristão independente e livre: Erasmo.

Alguns deploram que a Europa como instituição não faça mais referência ao cristianismo, mas será que ela precisa ser uma organização cristã? Não, absolutamente não, porque deve dialogar com toda a Terra sem a prioris religiosos. Em contrapartida, a Europa integrou muitos valores do Evangelho, incluindo a paz e o respeito da pessoa e do indivíduo. Pela atenção aos pobres, ela deve continuar essa rota e às vezes confirmá-lo, sob o olhar de seus cidadãos. Reconciliada, a Europa não precisa ser piedosa ou praticante, ou fazer referência – como bloco único – a raízes cristãs. Basta-lhe sempre continuar debatendo e discutindo, conciliando, "fazendo concílio" das suas dificuldades, dos seus desacordos, para permanecer moderna, para viver e fazer viver uma permanente atualização de paz e de progresso social.

É reconhecendo essa Europa da modernidade, dando confiança a essa sociedade secularizada, mas democrática e social, que os cristãos poderão transmitir nela a mensagem de Cristo. Evangelizar significa não apenas socorrer, à beira da estrada, como o Samaritano, a pessoa dada como morta na fé, mas também dar confiança à sociedade (ao dono da pensão) para levar a termo a sua obra.


Escuta: saber ouvir as pessoas, a Igreja e a Palavra de Deus

A CCBF coloca a evangelização no centro do seu ministério de Escuta: a escuta das pessoas, do povo simples com o qual a Igreja e os fiéis convivem, a escuta da Igreja, de sua Tradição e de seu Magistério, e a escuta da Palavra de Deus.

Embora distantes da Igreja, ou opostos às suas opiniões, aos seus ritos ou aos seus posicionamentos, os nossos concidadãos, no entanto, têm uma rica espiritualidade: é o específico do homem. Evangelizar significa sobretudo escutar, dar a palavra a essas interioridades, a essas expressões da fé ou da não fé que alguns crentes rígidos prefeririam nem ouvir, mas que são o terreno fértil dos imensos questionamentos espirituais do nosso tempo e a ocasião para que aqueles que se dizem cristãos testemunhem a sua fé em Cristo.

Aqui, pelo debate e pelo testemunho, pode haver escuta mútua: expressão de uma espiritualidade pessoal, mais ou menos cristã, ou nada cristã, e apostolado de uma fé cristã que dá à luz o seu Cristo, não com um discurso teórico, mas sim com uma palavra existencial. Com esse objetivo, a Conferência promoverá oficinas de expressão da fé, ou da espiritualidade, abertas a todos.

A Conferência também está à escuta da Igreja, de sua Tradição e de seu Magistério, e se vê próxima dos seus clérigos, que precisam do sustento dos batizados para exercer seus ministérios.

Muito frequentemente, esses ministérios ordenados são o lugar de sofrimentos humanos, que nada mais são do que a consequência da incompreensão, de rigorismos e da falta de atenção justamente dentro da nossa Igreja. Escutar os nossos clérigos, os nossos padres, as nossas religiosas é acolher fraternalmente os seus questionamentos e os seus problemas, e oferecer soluções que respeitem mais o espírito dos discípulos de Cristo do que a simples disciplina regulamentar e organizacional.

Uma Tradição e um Magistério vivos e presentes devem ser audíveis por todos. Para a Conferência, escutá-los não é lhes outorgar uma obediência cega. A obediência evangélica não é a execução de uma ordem, mas sim uma escuta, uma discussão, uma disputatio, uma necessária interpretação, especialmente pelos e para os leigos encarregados, segundo as próprias palavras da constituição dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, capítulo 4, §31, do Concílio Vaticano II, de "iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo".

A Conferência se esforçará, portanto, para predispor espaços públicos de debate em torno das questões levantadas pela Tradição e pelo Magistério, de modo que a Tradição continue sendo aquilo que se pode e se quer transmitir e intercambiar (tradere em latim), e de modo que o Magistério, encarnado na vida dos homens e das mulheres deste tempo, seja unicamente o de Cristo. Assim, falando a mesma linguagem dos seus contemporâneos, os católicos poderão ser escutados por todos, crentes ou não crentes, o que é uma condição prévia para uma nova evangelização exitosa.

Enfim, evangelizar é sobretudo escutar a Palavra de Deus. Ler, falar, contar, discutir os relatos bíblicos e evangélicos, destacar as suas asperezas, os subentendidos, os símbolos, as correspondências, as contradições, os exageros, os escândalos. Não tomar nada ao pé da letra, mas fazer uma leitura e uma escuta ativas, revoltadas, implicadas, para finalmente, com a ajuda do Espírito, poder escutar o seu sal que dá sabor à nossa vida e nos faz dizer "Eu creio".

Nessa perspectiva, a Conferência irá orientar o seu ensinamento segundo a exortação apostólica Verbum Domini "sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja", que insiste na importância da Bíblia, no pecado unicamente como não escuta da Palavra e no papel dos leigos na evangelização.


Esperança: Cristo se dirige a cada um de nós, para que possamos fazer e refazer a Igreja

Se criamos a Conferência, é porque não podemos mais suportar que a nossa Igreja seja átona, que os cristãos se afastem dela silenciosamente, porque não são mais ouvidos. Sabemos também que toda oposição leigos-clero é estéril, e que a nossa Igreja não se transforma como um partido, uma empresa, um país ou uma associação. Por isso, queremos ficar no meio do barco, não reivindicar nada, mas esperar tudo, não ir embora, mas não calar, porque acreditamos que somos a Igreja e Cristo todos juntos, leigos e clérigos, liberais e mais tradicionais, homens e mulheres igualmente.

Para que a nossa Igreja não seja mais estática, em pane ou tentada a afundar na restauração de um passado superado e contrário à evolução da sociedade, porque nós somos a Igreja e somos modernos, parte ativa da sociedade atual, porque não desenvolvemos uma contracultura, mas estamos na vida real, com todos os outros, cristãos e não cristãos, temos no coração o nosso sacerdócio de batizados/as e, por tudo isso, temos a Esperança de que fazemos e continuaremos refazendo a Igreja, porque Cristo se dirige a cada um de nós e a cada um daqueles que encontramos no nosso apostolado.

Pouco a pouco, não mais de forma hierárquica, nem mediante um poder temporal, mas, de ser humano para ser humano, em rede, em rizoma [1], faremos crescer, faremos florescer e daremos o fruto da Vida.

- Conférence Catholique des Baptisés Francophones, pelo seu Conselho de Administração

Nota:
[1] Rizoma é um modelo descritivo e epistemológico no qual a organização dos elementos não segue uma linha de subordinação hierárquica, segundo uma concepção de árvore, mas sim na qual cada elemento pode influenciar qualquer outro elemento. A concepção é dos filósofos franceses Deleuze-Guattari.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

How to dismantle an atomic bomb

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"Não ligue pra essas caras tristes
Fingindo que a gente não existe"

Eu detesto Parada do Orgulho Gay*. Detesto da mesma forma que detesto o Carnaval, da mesma forma que detesto festas de largo, da mesma forma que detesto shows, principalmente os gratuitos, da mesma forma que detesto ajuntamentos de pessoas em geral onde há muito barulho, muita bebida e muita bagunça. Detesto. E quando eu digo "detesto" quero dizer que detesto estar lá, detesto estar perto, detesto participar, não que detesto sua existência.

Tendo isso claro, devo dizer que eu apóio a Parada do Orgulho Gay. Enquanto olho para o Carnaval e outras festas com uma certa condescendência que beira o desprezo, olho para a Parada do Orgulho Gay como algo necessário.

Algumas pessoas acham que faz muito barulho e que acaba perdendo o foco que é lutar contra o preconceito. Eu concordo com essa interpretação, porém, acho importante esse barulho, inclusive acho bom essa perda do foco. A Parada virou uma espécie de carnaval onde as pessoas assumem sua orientação sexual, brincam e se divertem esfregando na cara da sociedade que elas existem - e não são poucas.

Algumas pessoas se preocupam com o barulho, mas esquecem que o barulho é uma das melhores formas de dar sinal de vida. Qual o maior sinal de que se tem criança saudável em uma casa? O barulho! Eles precisam fazer barulho porque estão crescendo, se desenvolvendo, aprendendo e se fortificando. Eu vejo a Parada do Orgulho Gay dessa forma. O movimento precisa fazer barulho para que as pessoas vejam que ele existe, precisam chamar atenção para que as pessoas se acostumem com a existência dele, precisam parar uma avenida para que as pessoas entendam que eles também têm direitos e merecem ser respeitados, eles precisam fazer barulho para que as pessoas que se identificam saibam onde eles estão.

Domingo fui ao shopping com minha filha, meu marido e meu cunhado. Sentamos para comer e a conversa veio para o nascimento do [blog] Minoria é a mãe. Falei sobre a intenção do blog, sobre as pessoas que fazem parte dele, falamos sobre preconceito e tolerância. Em determinado momento meu cunhado, que é artista plástico, comentou que "O problema dos gays é que eles são descarados e ficam dando em cima o tempo todo", falando sobre a experiência que ele tem trabalhando em uma escola onde um aluno gay dava em cima dele insistentemente. Meu marido retorquiu na hora "Você está falando de HOMEM, não é? Porque muito homem hétero fica dando em cima da mulher até chatear. Não é porque ele é gay, é porque homem é idiota e gosta de fazer isso."

Eu senti muito orgulho de meu marido nesse momento, porque ele não fez uma coisa que muito hétero faz, que é concluir que por gostar de outro homem o gay deixa de ser homem.

A afirmação de meu marido tem um certo fundo de verdade, porque nossa sociedade machista ensina os meninos que eles podem tudo e que se uma pessoa lhe diz não, basta insistir que ele receberá um sim, mas isso fica para outro momento. A questão que fica é o fato de que as pessoas acham que somente os gays dão em cima e insistem, e que todo gay é assim. E elas tiraram essa conclusão do simples fato de quase todo mundo falar a mesma coisa, sem nenhuma experiência com outras pessoas.

Como ele é meu cunhado resolvi ser boazinha e não ir chegando dando fatality, aproximei-me dele e falei calmamente "Você fala isso baseado na sua experiência com UM homossexual na escola que você trabalha, mas deixe eu te dizer uma coisa sem medo NENHUM de pecar: a maioria dos gays na escola que você trabalha não são assim, há muitos outros deles, e você não sabe quem são, porque eles nem assumiram sua sexualidade. Tenha CERTEZA que a maioria dos meninos gays da escola estão nessa hora em casa, na frente do computador, sem incomodar ninguém."

Meu marido acrescentou comentando sobre a experiência dele no trabalho onde tem alguns gays, e que os comportamentos deles são muito variados. As pessoas tendem a achar que gay é aquele homem afetado, que usa roupas extravagantes ou femininas, que a lésbica é aquela mulher que se veste de homem e engrossa a fala (alguns também pensam que essas são as feministas, mas isso também fica para outro momento). As pessoas só esquecem de pensar que gays são, como posso dizer?... Er... Pessoas. Gays são PESSOAS. E se tem uma coisa que todas as pessoas têm em comum é que elas são diferentes umas das outras. É bem pouco saudável achar que gays são todos iguais.

Por isso eu apóio a Parada do Orgulho Gay. Ela é uma forma das pessoas verem que no meio das drag queens, dos travestis, dos crossdressers, dos dançarinos com pouca roupa também há pessoas vestidas convencionalmente, dançando convencionalmente e que todos citados acima são gente, também convencionalmente. Será que eles terão que virar cachorrinhos para que as pessoas percebam que eles também têm direitos?

- Rebeca
Postado originalmente no blog Minoria é a Mãe

*Sou péssima com termos, e tenho o desleixo de ser desatualizada, então se o nome da parada tiver sido atualizado podem avisar.
O título do post é o nome de um disco do U2. A epígrafe é um trecho da música Bete Balanço, de Cazuza.

Cristãos hoje: o desafio de superar os dualismos estéreis


"Padre Radcliffe fascina: ele liga você ao seu estilo e aos seus conteúdos profundos, mas apresentados de modo agradável, simpático. Seu humor muitas vezes surpreende, porque desde sempre estamos acostumados com o fato de que os discursos sérios devem ser abordados de modo sério. Mas é justamente essa a magia das suas reflexões: embora sendo profundamente aderentes à vida, as palavras do padre Timothy levam para o alto, elevam o espírito, apaixonam por belas visões de futuro, que dão sentido ao nosso ser cristãos e nos fazem amar profunda e autenticamente Deus e o mundo" (do Prefácio de Paul Renner).

A análise é de Maria Teresa Pontara Pederiva, publicada no sítio Viandanti, 16-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


O dominicano Timothy Radcliffe, ordenado sacerdote em 1971, ativamente comprometido no movimento pela paz e no ministério pastoral, também entre os pacientes com Aids, foi mestre-geral da ordem de 1992 a 2001. É um escritor e conferencista de fama internacional. O texto reúne algumas de suas recentes intervenções, que delineiam um estilo cristão para o presente.

O livro está dividido em três partes: primeiro, uma série de conferências resumidas no título "A palavra de Deus em um mundo globalizado"; uma segunda parte mais específica sobre o tema "Vida Religiosa e sacerdócio, sinais do reino"; e, finalmente, uma coleção de homilias e uma conferência apresentadas sob o título "Pregar hoje: uma conversa com a comunidade".

Pe. Radcliffe indica uma terceira via entre o gueto cristão e o enfraquecimento do Evangelho, que é o caminho conciliar da Gaudium et Spes. Uma via mais do que necessária hoje, porque, embora, de um lado, na nossa sociedade pareça não existir mais "a diferença cristã", como costumava dizer o Pe. Enzo Bianchi, de outro, a tentação de nos fecharmos em uma cidadela fortificada (que não tem nada a ver com uma comunidade evangélica) é muito forte em muitos.

Assim, acabaríamos nos encontrando muito bem naquele ninho confortável descrito pelo Pe. Timothy, enquanto nos é pedido algo completamente diferente. Encastelarmo-nos nas nossas certezas de bons católicos e olhar o mundo assim do alto, desprezando aqueles que não são cristãos, faria de nós fariseus ou pior do que desertores do Evangelho.

Eis então a proposta, evangélica e conciliar, de Radcliffe: "Devemos estar com as pessoas, compartilhar os seus problemas (...) e ir descobrir juntos uma palavra que deve ser compartilhada". Porque não basta brandir o crucifixo como se estivéssemos no tempo de Constantino. Talvez nos seja pedido, tanto hoje quanto ontem, que coloquemos em prática o que a cruz significa para nós: "Tive fome, estava nu, preso (...) qualquer coisa que vocês fizeram ao menor deles fizeram a mim". E isso é muito diferente de uma gratificante conferência paroquial ou de movimento, útil sim, mas não muito suficiente.

"As nossas Igrejas não devem se tornar refúgios para fugir da modernidade", escreve o Pe. Radcliffe. "Ao contrário, devem se tornar casas capazes de acolher toda a humanidade, com todos os seus dramas".

"Em geral, os nossos modos de ver o mundo são profundamente dualistas: dia/noite, bom/mau, preto/branco, homem/mulher, corpo/alma. Muitas vezes, esses dualismos são o sinal das oposições que conferem identidade: nós/eles, certo/errado, republicano/democrata, esquerda/direita, jesuíta/dominicano! A nossa política, os nossos esportes, as nossas questões e rivalidades de amor: normalmente tudo é dualista. Mas nos encontrarmos, nós mesmos, em um amor trinitário, significa estarmos livres dessas oposições binárias. Encontramo-nos, nós mesmos, dentro do amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai que é o Espírito Santo. Esse é um amor que é absolutamente recíproco, mas também fecundo para além de si mesmo. Portanto, estar envolvidos no interior da vida trinitária nos leva para além das estreitas e limitadas obsessões, dos antagonismos em que os seres humanos estão confinados. Somos levados para dentro de um espaço que é sempre maior".

Talvez, no século XXI, sejamos chamados a ser cristãos, e ponto final; ou, melhor, a nos esforçarmos a tornarmo-nos cristãos dia após dia, sem julgar os outros.

- Essere cristiani nel XXI secolo. Una spiritualità per il nostro tempo, de Timothy Radcliffe. Ed. Queriniana, 2011, 360 páginas.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Simplesmente


Por que casais homossexuais podem ser excelentes pais

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O casamento gay e a questão de pais homossexuais estiveram na boca de todos nos últimos tempos. Muito se tem discutido a respeito da capacidade dos LGBTs de cuidar de seus filhos de forma a que cresçam com saúde e equilíbrio. Mas pesquisas com famílias lideradas por homens e mulheres gays não trazem nenhum resultado desastroso. De fato, algumas vezes, pais gays podem trazer talentos à mesa que os heterossexuais não conseguem.

Os pais gays “tendem a ser mais motivados, mais comprometidos do que os heterossexuais, na média, porque escolhem ser pais”, afirma a psicóloga Abbie Goldberg, que pesquisa esse tipo de caso. De acordo com ela, gays e lésbicas raramente viram pais por acidente, em comparação com quase 50% de gravidez acidental entre os heterossexuais. “Isso dá mais comprometimento e envolvimento, em geral”.

E enquanto pesquisas indicam que os filhos de pais gays apresentam diferença quase nula de aprendizagem, saúde, funcionamento social e outras medidas, essas crianças podem ter a vantagem de possuir uma mente mais aberta, tolerante e modelos de comportamento para relações igualitárias, de acordo com outros estudos. Não só isso, mas de acordo com pesquisas, pais homossexuais tendem também a oferecer casa para crianças difíceis do sistema de adoção.

Adotando quem mais precisa
A adoção gay causou controvérsia no estado americano de Illinois, onde serviços de adoção católicos decidiram parar de oferecer os serviços porque o estado se recusou a disponibilizar fundos, a menos que os grupos concordassem em não discriminar os gays.

Deixando de lado a oposição católica, pesquisas sugerem que pais gays são uma fonte poderosa para crianças que precisam ser adotadas. De acordo com um estudo de 2007, 65 mil crianças americanas estavam vivendo com pais adotivos homossexuais, entre 2000 e 2002, com outras 14 mil em casas de adoção lideradas por gays. (Existem mais de 100 mil crianças, atualmente, nessa situação, nos EUA).

Um estudo de outubro de 2011, do Instituto de Adoção Evan B. Donaldson, descobriu que das adoções por pais gays em mais de 300 agências, 10% das crianças tinham mais de seis anos – uma idade tipicamente difícil de ser adotada. Cerca de 25% tinha mais de três anos; 60% dos casais adotou raças diferentes, o que é importante já que crianças que são minorias tendem a se manter no sistema de adoção; e mais da metade das crianças adotadas tinham necessidades especiais.

De acordo com o autor David Brodzinsky, o estudo não comparou as preferências adotivas dos heterossexuais. Mas pesquisas sugerem que os gays tendem a adotar crianças mais velhas, com necessidades especiais e minorias. Parte disso poderia ser de suas preferências, e outra por causa da discriminação nas agências que coloca as crianças mais “difíceis” para os pais “menos desejados”.

Brodzinsky afirma que não importa como você encare isso, os gays, como um grupo, se interessam por adoção. Um estudo de 2007, do Instituo Urban, revelou que mais da metade dos pais gays e 41% das lésbicas, nos Estados Unidos, gostariam de adotar. Numericamente isso corresponde a dois milhões de pessoas para adoção. “É uma reserva enorme de pais em potencial que poderiam tirar as crianças do sistema instável de adoção”, comenta Brodzinsky.

“Quando você pensa nas 114 mil crianças que estão prontas para serem adotadas mas continuam vivendo em casas de adoção, o objetivo é aumentar a reserva de pais disponíveis, interessados e treinados para serem pais delas”, comenta Brodzinsky.

E ainda, o pesquisador comenta que existem evidências sugerindo que os gays aceitam adoções abertas, quando a criança continua tendo algum contato com os pais biológicos. E as estatísticas dizem que esses pais não têm problemas em suas crianças serem criadas por casais do mesmo sexo.

“O interessante é que encontramos uma pequena porcentagem, mas o suficiente para ser notada, de mães biológicas que fazem a decisão consciente de deixar o filho com homens gays, para que sejam a única mãe na vida da criança”, afirma Brodzinsky.

Boa criação
Pesquisas mostram que filhos de casais do mesmo sexo – adotados ou biológicos – não são piores do que os filhos de heterossexuais na saúde mental, funcionamento social, desempenho escolar e outras variedades de sucesso na vida.

Em 2010, os sociólogos Tim Biblarz e Judith Stacey reviram quase todos os estudos sobre pais gays, e não descobriu nenhuma diferença entre crianças criadas em casas com pais heterossexuais e em casas com mães lésbicas. “Não há dúvida de que crianças com mães lésbicas vão crescer e ser ajustadas socialmente e obter sucesso como as crianças com pai e mãe”, afirma Stacey.

Há muito pouca pesquisa sobre homens, pais, homossexuais, então Stacey e Biblarz não conseguiriam chegar a conclusões nesse ponto. Mas Stacey suspeita que homens gays “seriam os melhores pais na média”, comenta.

Ela afirma que isso é especulação, mas se lésbicas têm que planejar para ter uma criança, isso é ainda mais difícil para homens gays. Para Stacey, os dois devem estar muito comprometidos. Homens gays também podem experimentar menos conflitos parentais, já que a maioria das lésbicas usa doações de esperma para ter uma criança, então uma mãe é a biológica, o que pode criar conflito por proximidade à criança.

“Com homens gays, você não tem esse fator”, comenta. “Nenhum deles fica grávido, nem amamenta, o que não gera essa assimetria no relacionamento”.

E para aqueles que dizem que uma criança precisa de um pai e uma mãe em casa, Stacey afirma que estão esquecendo pesquisas que comparam filhos de pais solteiros e de casais. Dois bons pais são melhores do que um, mas um bom pai é melhor do que dois ruins. E a opção sexual não parece afetar isso. Mesmo que existam diferenças entre como homens e mulheres criam os filhos, ela afirma que há muito mais diversidade dentro dos gêneros do que entre eles.

“Dois pais heterossexuais com o mesmo passado, classe, raça e religião são muito parecidos na maneira como criam os filhos. Não é como se um fosse igual a todos os homens e outra, a todas as mulheres”, comenta Stacey.

Para Goldberg, os únicos pontos consistentes onde você pode encontrar diferenças entre crianças de casais gays e de heterossexuais está na tolerância e abertura de conceitos. Em um estudo de 2007, ele conduziu entrevistas com 46 adultos com pelo menos um pai gay. Vinte e oito falaram espontaneamente que se sentiam mais abertos mentalmente e empáticos do que aqueles não criados nessas condições.

“Esses indivíduos sentem que suas perspectivas sobre família, gênero ou sexualidade são muito acrescentadas por crescerem com pais gays”, comenta Goldberg.

Um homem de 33 anos, com uma mãe lésbica, afirmou à Goldberg: “Eu me sinto mais aberto por ter sido criado em uma família não tradicional, e penso que aqueles que me conhecem iriam concordar. Minha mãe me abriu para o impacto positivo das diferenças entre as pessoas”.

Crianças com pais homossexuais também comentaram que se sentem menos bloqueados por estereótipos de sexualidade do que se tivesse nascido em casas heterossexuais. Isso porque casais homossexuais tendem a possuir uma relação mais igualitária.

“Homens e mulheres sentiam que eram mais livres para procurar uma série de interesses”, afirma Goldberg. “Ninguém estava dizendo para eles, ‘Oh, você não pode fazer isso, isso é coisa de menino’, ou ‘Coisa de menina’”.

Aceitação do mesmo sexo
O sociólogo Brian Powell argumenta que se o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem alguma desvantagem, a culpa não é da escolha dos pais, mas da reação da sociedade sobre essas famílias.

“Imagine ser uma criança vivendo em um estado onde, legalmente, apenas um dos pais pode ser seu pai”, comenta Powell. “Nessas situações, a família não é vista como autêntica ou real pelos outros. E seria uma desvantagem”.

Em sua pesquisa, Goldberg descobriu que muitos filhos de casais gays pensam que mais aceitação das famílias homossexuais ajudaria a resolver o problema.

Em um estudo desse ano, Goldberg entrevistou outro grupo de 49 adolescentes e adultos jovens com pais gays, e descobriu que nenhum deles rejeitava o direito de homossexuais se casarem. Muitos citaram benefícios legais e aceitação social.

“Eu estava pensando sobre isso com alguns amigos e comecei a chorar pensando em como minha infância poderia ter sido se o casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse legalizado, há 25 anos”, confessou para Goldberg um homem de 23 anos, criado por um casal de mulheres. “Os impactos culturais e status legal afetam as narrativas familiares desse tipo de situação – como nos vemos em relação a uma cultura maior, como parte ou excluídos”.

Fonte: Blog Um outro olhar

Nota: O texto acima é uma tradução do site LiveScience, feita por outro portal de ciência, o HypeScience. Na tradução, faltam vários links que vale conferir no original, aqui.


Jesus sempre começa a curar libertando de um Deus opressor

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A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 21-28, que corresponde ao 4º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico). O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Segundo Marcos, a primeira aparição pública de Jesus foi a cura de um homem possuído por um espírito maligno na sinagoga de Cafarnaum. É uma cena impressionante, narrada para que, desde o início, os leitores descubram a força de Jesus que cura e que liberta.

É sábado e o povo encontra-se reunido na sinagoga para escutar o comentário da Lei explicada pelos escribas. Pela primeira vez Jesus vai proclamar a Boa Nova de Deus precisamente no lugar onde se ensina oficialmente ao povo as tradições religiosas de Israel.

As pessoas ficam surpreendidas ao escutá-lo. Têm a impressão de que até agora estiveram a escutar notícias velhas, ditas sem autoridade. Jesus é diferente. Não repete o que ouviu a outros. Fala com autoridade. Anuncia com liberdade e sem medos de um Deus Bom.

De repente um homem «põe-se a gritar: Vieste acabar conosco?». Ao escutar a mensagem de Jesus, sentiu-se ameaçado. O seu mundo religioso derruba-se. Diz-nos que está possesso por um «espírito imundo», hostil a Deus. Que forças estranhas o impedem de continuar a escutar Jesus? Que experiências más e perversas lhe bloqueiam o caminho até o Deus Bom que lhe anunciam?

Jesus não se acovarda. Vê o pobre homem oprimido pelo mal, e grita: «Cala-te e sai dele». Ordena que se calem essas vozes malignas que não o deixam encontrar-se com Deus nem consigo mesmo. Que recupere o silêncio que cura o mais profundo do ser humano.

O narrador descreve a cura de forma dramática. Num último esforço para destruí-lo, o espírito «retorceu-o e, dando um grito muito forte, saiu». Jesus conseguiu libertar o homem da sua violência interior. Pôs fim às trevas e ao medo a Deus. Daí em diante poderá escutar a Boa Nova de Jesus.

Não são poucas pessoas que vivem o seu interior com imagens falsas de Deus que lhes fazem viver sem dignidade e sem verdade. Sentem-No não como uma presença amistosa que convida a viver de forma criativa, mas como uma sombra ameaçadora que controla a sua existência. Jesus sempre começa a curar libertando de um Deus opressor.

As Suas palavras despertam a confiança e fazem desaparecer os medos. As Suas parábolas atraem para o amor à Deus, e não para a sustentação cega da lei. A Sua presença faz crescer a liberdade, não os servilismos; suscita o amor à vida, não o ressentimento. Jesus cura, porque ensina a viver apenas da bondade, do perdão e do amor que não exclui ninguém. Cura porque liberta do poder das coisas, do autoengano e da egolatria.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Amorfobia


Recebemos da leitora Rosinha Tricolor (@RosinhaTricolor) um comentário aqui que acabou levando-a a produzir o pequeno texto abaixo, que reproduzimos com sua permissão. Vale a reflexão: recebemos muitos dons, e o que fazemos e construímos com eles? Que mundo é gerado a cada pequena escolha e cada uma de nossas atitudes?

Num mundo onde há guerras e que até mesmo crianças vão à luta (literalmente); onde se mata em nome de Deu$, onde crianças morrem de fome, são agredidas e violentadas; onde há inúmeros preconceitos; onde os idosos são maltratados; onde não se tem o menor respeito ao próximo, não pode haver amor...

Num mundo onde se profere o nome de Deus em vão, alimentando o preconceito e o ódio entre as pessoas em Seu nome; onde prevalece a força do dinheiro (que compra almas), enganando-se, matando-se por ele; onde pessoas se odeiam, se agridem, se matam por uma partida de futebol, não pode haver amor...

Num mundo onde se faz qualquer coisa pelo poder; onde se deixa um semelhante passar necessidade, morrer no corredor de um hospital; onde se nega o direito à boa educação e à boa saúde; onde há exploração da fé e exploração da boa-fé, não pode haver amor...

E é nesse mundo que vivemos...

É esse o mundo que estamos deixando às nossas futuras gerações: um mundo preconceituoso, hipócrita, de falsas morais, de falsos dogmas; de pessoas que têm a necessidade de ver o outro infeliz, para baixo e que riem da desgraça alheia; que se incomodam pelo fato de alguém amar outro alguém, independente do sexo, da cor, da religião, da idade, da condição física ou da condição social...

Um mundo onde criamos termos e mais termos para cada vez mais nos desassociarmos (inutilmente) do outro (tão humano e tão imperfeito quanto nós)... E nesse mundo de pessoas tão iguais e tão diferentes, não há homofobia ou heterofobia, na verdade. O Ser (des)Humano sofre mesmo é de Amorfobia: aversão ao Amor...

O alento é saber que sempre, a cada momento, podemos fazer escolhas novas - e com elas começar a criar um outro mundo, um Reino novo. Que mundo você escolhe construir? :-)
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