sábado, 1 de outubro de 2011

Verdade e certeza

Pintura: Marta Penter

Para atingir a verdade, é preciso superar a seriedade da certeza.

- Abrão Slavutsky

Escutatório


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)

- Rubem Alves
Reproduzido via Gospel LGBT, com grifos nossos.

"A religião deve resolver os problemas, não criá-los"


Perdeu sua cátedra na Universidade dos jesuítas de Granada, por solicitação do atual Pontífice. Agora é o primeiro teólogo espanhol a conseguir um doutorado honoris causa por uma Universidade não eclesiástica (a pública de Granada). José María Castillo defende o fim do celibato e a ordenação das mulheres. E fala sem rodeios sobre a visita do Papa, sobre “a fratura que existe entre religião e sociedade”. E se declara católico, apostólico e romano, “sem matizes”.

A entrevista é de Pedro Ingelmo e está publicada no jornal espanhol Diario de Sevilla, 24-08-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis a entrevista.


Leigos brigando com papistas. Presos, feridos... O que aconteceu?

É um indicador da tensão gerada pela visita do Papa, da fratura que existe entre religião e sociedade. Mas também nos fala da violência e intransigência que nos cerca, venha de onde vier.

Apresente-se. É católico, apostólico e romano?

Sim, sem matizações.

Romano também? Roma o expulsou.

Não me expulsou. Me comunicou em 1988, sem processo prévio, que estava proibido de ensinar na cátedra da Faculdade de Teologia de Granada que naquele tempo ostentava.

O que fez? O que disse?

Quer saber, tanto tempo depois, ainda não sei.

Talvez coisas parecidas com aquelas que dizia no começo dos anos 1960 um jovem teólogo de sobrenome Ratzinger.

Ratzinger publicou dois livros de enorme influência nos anos 60. Talvez hoje estejam superados, mas o certo é que "Introdução ao Cristianismo" e "O Novo Povo de Deus" diziam coisas e apresentava ideias que o Vaticano de hoje não iria permitir.

Bento XVI censuraria o teólogo Ratzinger?

Sem dúvida nenhuma.

Diga-me algo daqueles livros e que provocaria tanto escândalo.

O teólogo Ratzinger era um firme defensor de colocar os poderes do Papa em seu lugar. Não era escandaloso. Também o Concílio Vaticano II, que vai completar 50 anos, dizia isso. Paulo VI tentou implementá-lo, mas a cúria não o permitiu. De fato, o Papado tem mais poderes que naquela época.

Em Roma há mais papistas que o Papa?

Muitos. Não sejamos ingênuos. O Papa é um homem com uma idade, com uma saúde muito limitada. Quem manda ali? O Vaticano é um organograma muito complexo e oculto. Pouca coisa se sabe sobre seus meandros.

E quando o Ratzinger liberal deixou de sê-lo?

Temos que nos situar nos anos 1960. Naquela época se falava da anticiência, da contracultura, dos teólogos da morte de Deus, do pós-cristianismo. Na Alemanha, onde Ratzinger era professor, essas teorias tinham muita força. Falamos de um homem com um porte estudioso, piedoso, psicologicamente tímido. Veio o maio de 68. Aconteceram muitas coisas que mudaram o pensamento do jovem teólogo Ratzinger.

Voltemos à atualidade. Qual é a sua opinião sobre a concentração da juventude católica em Madri?

João Paulo II levantou um projeto muito interessante que consistia em uma concentração de âmbito mundial para recuperar as novas gerações em seus hábitos e convicções, reuni-los e ajudá-los em suas crenças e suas condutas. Era, sem dúvida, uma excelente iniciativa.

Algum porém?

Reunir jovens dos cinco continentes custa muito dinheiro. Evangelizar a toque de talão de cheque não é defensável. Se Jesus proibia os apóstolos até de levar trocado em suas viagens!

Eram outros tempos.

Para estas coisas não há tempo nem circunstâncias. O dinheiro é um fetiche do poder, tem uma sedução que o Evangelho deplora. Não se pode servir a Deus e ao dinheiro. O dinheiro é o inimigo de Deus.

Bom, mas a evangelização tem um custo. É inevitável.

O que se deve evitar é a ostentação e a pompa. O Papa é o vigário de Cristo e não me imagino Jesus sendo recebido pelos poderes e autoridades. Foram os poderes e as autoridades que ordenaram o seu martírio.

Situe-me Jesus no mundo de hoje, no 15-M, na primavera árabe.

Jesus entendia a fé como um conjunto de convicções que se traduzem em uma ética e no motor de mudança de uma sociedade. Nesse sentido, se podia entender como um político, mas Jesus não era um político, era um profeta. O 15-M e a primavera árabe são manifestações políticas nas quais a religião tem um papel ou secundário ou inexistente. Falamos de qualquer religião. Em um mundo como o árabe, com grande religiosidade, a religião não foi determinante nas revoltas. Religiosos eram tanto os defensores de Mubarak como seus detratores. Como se apresenta Deus em todas as religiões atualmente não é de recebimento.

A que se refere?

Pensar que o divino está em conflito com o humano. Proíbem coisas que limitam a felicidade do ser humano. Não faz sentido. É necessário humanizar a religião, humanizar a Deus. Deus não está a serviço dos interesses de uns poucos.

É isto que está por trás das manifestações contrárias ao Papa em Madri?

Não falo deste caso concreto, mas em Madri tudo começou por complicar a vida das pessoas, fechando ruas, incomodando comerciantes. A religião não está para complicar a vida das pessoas, não está para criar problemas, mas para resolvê-los.

Em um artigo você escreveu que o Papa teria que ter realizado esta jornada na Somália. Sua ideia teve muito sucesso, mas, na realidade, Mogadíscio está cheio de religiosos.

É a religião na qual creio e pela qual luto. Pensemos que a atividade de Jesus era curar os doentes e alimentar os famintos. Saúde e alimentação, os dois grandes problemas imediatos e, a partir daí, falava de Deus e da salvação, mas o primeiro era o primeiro. São produzidos no mundo alimentos para 10 bilhões de pessoas e um bilhão de pessoas passa fome. Esse é o grande problema deste mundo, não outro qualquer.

De que se confessaria em um confessionário móvel?

Me surpreendem essas imagens. É a confissão como espetáculo... Penso que é uma amostra de que a Igreja está em crise e sabe que está. Olhe, na Universidade de Granada há aproximadamente 60.000 universitários. Quantos vão à missa? Muito, muito poucos. Levar os confessionários às ruas é uma estratégia de publicidade.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Palavras que dão luz

Foto via eu, complexo

Todas as nossas palavras serão inúteis se não brotarem do fundo do coração. As palavras que não dão luz aumentam a escuridão.

- Madre Teresa de Calcutá

Uma gramática para dialogar


A fonte da fé cristã está precisamente em um diálogo divino que rompe o silêncio do nada e que tem como interlocutor privilegiado a criatura humana.

A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal e presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 31-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o artigo.


"Não considera uma vitória usar a violência contra uma forma de culto ou uma opinião. Farás, portanto, assim: deixarás de polemizar uns contra os outros e falarás da verdade de modo que todas as coisas ditas sejam inatacáveis... Estou consciente de que nunca polemizei contra gregos ou outros, porque penso que seja suficiente, para homens honestos, conhecer e expor o verdadeiro em si mesmo... Cada um, de fato, afirma possuir a moeda real, mas, na realidade, talvez tenha apenas a imagem enganosa de uma partícula de verdade".

Mil e duzentos anos antes que Voltaire entoasse o seu hino à tolerância (dentre outras coisas, dirigido em forma de oração ao "Deus de todos os seres, de todos os mundos e dos tempos"), entre os séculos V e VI, um obscuro monge escondido sob o pseudônimo de Dionísio Areopagita teceu esse programa de confronto teórico e pessoal, com o horizonte em que estava imerso, um programa concretizado nos seus escritos, que se revelavam como uma reformulação original da doutrina cristã usando a instrumentação do pensamento neoplatônico.

Começamos de tão longe para propor um tema que está inscrito no DNA do cristianismo, mesmo que, muitas vezes, tenham sido assumidos vigorosos anticorpos para esgotar a sua energia. Na verdade, o apóstolo Pedro já advertia assim os seus interlocutores da Ásia Menor, na primeira das duas cartas que chegaram até nós sob o seu patrocínio: "Estejam sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vos perguntar, mas com doçura, respeito e reta consciência" (1Pd 3, 15-16).

Os inimigos do diálogo – esse é precisamente o tema ao qual se referiam São Pedro e o Pseudo-Dionísio – são múltiplos e muitas vezes antitéticos entre si. De um lado, o fundamentalismo integrista, que logo põe a mão sobre a sua espada para um duelo; de outro, o sincretismo, que gorjeia em um dueto confuso e incolor. De um lado, eis a rigidez intelectual confundida com rigor; de outro lado, a aproximação vaga, que impede a pesagem das argumentações, porque, sobre os pratos da balança, se deposita apenas névoa ou mucilagem ideológicas.

Certamente, o diálogo é cansativo, às vezes árduo, até porque – como sugere a própria etimologia do vocábulo – é o atravessamento (dia) de um lógos, ou seja, de um discurso, decompondo-se todos os seus segmentos argumentativos, e, se se quiser, também é o entrecruzamento (dia) de dois lógoi de matrizes diferentes, senão opostas.

Em nossos dias, muitas vezes tomamos o caminho rumo ao confronto imediato, sem escuta ou verificação do pensamento alheio, na típica agressividade inconclusiva e pirotécnica do talk-show televisivo. A mais alta força demonstrativa está no insulto ("Cabra, cabra, cabra...!"), ou na afirmação mais pacata mas sempre "exclusiva" do estadista vitoriana Disraeli: "O meu conceito de pessoa agradável é o de uma pessoa que está de acordo comigo".

A dificuldade do diálogo chega a altos picos quando, no meio, estão as religiões com as suas concepções dogmáticas e as suas concretudes seculares: já há livros e livros de documentos que atestam o esforço constante e não raramente infrutífero de um insone diálogo inter-religioso e ecumênico.

Sem falar, depois, do confronto dentro da própria confissão religiosa única, onde os conservadores lançam anátemas contra aqueles que, a seu ver, cavalgam para além das fronteiras da ortodoxia, e estes últimos ridicularizam e escandalizam aqueles postergadores inconclusivos.

É por isso que é preciso manter entre as mãos o livro de um teólogo francês, Jean-Marie Ploux, de 74 anos, que – também com base em uma longa experiência pastoral – elaborou uma espécie de gramática do diálogo como compromisso irreversível para o crente. A própria fonte da fé cristã está precisamente em um diálogo divino que rompe o silêncio do nada e que tem como interlocutor privilegiado a criatura humana.

Sobre tonalidades diferentes desse colóquio, que tem justamente "no princípio o Lógos", para usar as célebres palavras de abertura do Evangelho de João, leem-se nesse livro páginas iluminadoras em torno de sujeitos que agora elencamos apenas: o "hóspede interior", aceitar a diferença, a liberdade e a verdade, o "país do outro", o risco do encontro, a gratuidade e assim por diante.

À abundante sequência de lições, de regras, de exceções que essa gramática ideal propõe, associam-se também os capítulos dos "exercícios" práticos: o cruzamento com o judaísmo, o Deus do Alcorão, o redespertar do budismo, o diálogo com os que não acreditam em nenhum Deus (um "exercício", este último, que me envolve particularmente mediante o projeto de um "Átrio dos Gentios", símbolo judaico destinado a ilustrar o diálogo crentes-ateus).

Mas Ploux também se compromete a desdobrar os "casos" do encontro em torno dos pontos incandescentes da verdade científica, ética e teológica. E o seu olhar se alonga até Assis, que se tornou, por mérito do Beato João Paulo II, o emblema do diálogo inter-religioso, e que Bento XVI, no próximo dia 27 de outubro, quis repropor como sede da convergência em torno da verdade e da paz da multidão dos crentes, segundo as milhares de denominações, mas também dos não crentes que se interrogam sobre o "além" e sobre o "outro" com relação ao "aqui" e ao "si mesmo".

A certeza e a esperança são, no fim, aquelas que o poeta surrealista francês Paul Eluard bem expressava em alguns dos seus versos: "Não chegaremos à meta um a um, mas sim dois a dois. / Conhecendo-nos dois a dois, conhecer-nos-emos todos, / Amar-nos-emos todos, e os nossos filhos rirão / da lenda obscura onde chora um solitário".

Jean-Marie Ploux, “Il dialogo cambia la fede?” ["O diálogo muda a fé?"], Qiqajon, Bose (Biella), 296 páginas.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sem se esquivar


A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.

- Carlos Drummond de Andrade

A engrenagem

Arte: J.Mayer.H

Sim, engrenagens têm poder destrutivo. Mas temos todos o direito (e o dever) de modificá-las. Sempre.

O que vem a ser uma engrenagem? O que vêm a ser nossas engrenagens?

Eu penso que, quando, por exemplo, suas decisões não influem nada sobre a existência de sua família, sobre a organização da sua família, sobre a desorganização da sua família, você está sendo apenas um joguete na sua família, nesta sua engrenagem.

O mesmo com seu emprego. Quando, em seu emprego, você só obedece às ordens superiores, quando você não contribui em nada para a alteração, a ampliação, a organização dos objetivos de seu emprego, você está sendo apenas um joguete na sua empresa ou repartição.

Ou seja, para que você não se submeta à sua engrenagem, é preciso que participe ativamente da movimentação de conteúdo dela.

Você só não será joguete de sua engrenagem se ela permitir que você afirme a sua soberania.

Em suma, quando sua família passa por cima de sua soberania pessoal como um trator, não se importando com suas opiniões ou ideias ou despreza com método a sua capacidade de decisão ou influência, você acaba de ser um mero joguete da engrenagem.

Você tem o direito de manter e modificar a engrenagem, quando ela o imobiliza à inércia e à desimportância, aí é que se verifica a sua escravidão à engrenagem.

Já fui e sou submetido – e também não o sou – a várias engrenagens, uma roda de amigos, um clube, entidades de comércio e de lazer das quais sou usuário.

Mas, quando tentam me submeter ou conseguem me submeter, precisam ver como eu esperneio. Porque uma mania que eu tenho é a de fazer parte ativa da engrenagem, principalmente pelas minhas ideias. Eu estou sempre dando ideias a respeito de tudo o que me cerca. Em suma, eu sou um reformador.

A minha engrenagem tem de ter, se não meu rosto, pelos menos algumas das minhas feições.

Nada que venha de cima ou de baixo nas minhas engrenagens deixa de receber a minha concordância ou o meu protesto. Procuro ser cordial nesse relacionamento, mas sou muito atento.

Porque eu sempre reservei para mim o direito de decidir sobre o metabolismo das minhas engrenagens.

E confesso que, em matéria de minha família, eu nada mais sou do que um mero joguete dessa minha engrenagem. Essa minha engrenagem passou por cima de mim como um trator, fez o que quis de mim, me despersonalizou, acabou comigo.

Mas o que é que eu vou fazer? As engrenagens têm poder destrutivo.

- Paulo Sant'ana
Reproduzido via Conteúdo Livre

* * *

...mas temos todos o direito (e o dever) de modificá-las. Sempre. 


Sobretudo aquelas que carregamos dentro de nós.

''Muitos pedem só que a Igreja seja ela mesma''

Escultura: Gavin Worth

"Primeiro aprendemos, depois ensinamos, depois nos retiramos e aprendemos a calar. E nessa quarta fase, o homem aprende a mendigar". O provérbio indiano que ele quis citar em um de seus últimos livros representa, para o cardeal Carlo Maria Martini quase que uma fotografia da sua longa vida.

Ele espera o tempo de Páscoa na quieta obra do Aloisianum, a gloriosa casa dos jesuítas em Gallarate, na Itália, enquanto também naquele espaço apartado chegam os ecos de tempestades midiáticas que novamente se abatem sobre a Igreja. Ele diz que sente muita falta de Jerusalém. Com palavras incomuns para a Cidade Santa, ele explica que, para ele, aquele lugar tem quase um efeito tônico, porque "é riquíssimo de lugares e de motivos que levam à ação. Graças a Deus", acrescenta, "conservei também aqui a vontade de sair de mim mesmo e de me jogar nas coisas que Jerusalém me transmitiu".

A reportagem é de Gianni Valente, publicada na revista 30Giorni, 15-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis a entrevista.

O que o senhor pede agora nas suas orações de mendicante?

Agora, a minha mendicância é também física, o que me obriga a pedir a ajuda de alguém, talvez de noite. Essa é a primeira pobreza por meio da qual o Senhor me fez passar, mas não é que me custe muito, porque assim dou oportunidade para que os outros façam atos de caridade. Depois, a minha oração agora é pela Igreja de Milão, é uma oração de intercessão por todas as realidades e as pessoas da diocese, que eu recomendo uma a uma à graça de Deus. Pela Igreja do mundo – mas talvez esse objetivo seja muito grande – peço que aumente a fé e a esperança, e que estas se expressem na caridade. São as virtudes às quais Bento XVI também dedicou as suas encíclicas.

O senhor falou da sua oração de intercessão. Em um recente livro seu, "Qualcosa di così personale" [Algo de muito pessoal], o senhor reuniu algumas de suas meditações sobre os muitos aspectos da oração.

Reza-se de muitos modos. Há a oração de súplica, que pede milagres e curas e prodígios, como ver almas que se odiavam chegarem a se perdoar. Há a oração de louvor, ou a oração de quem está angustiado, sofre, é frágil; de quem tem necessidade de perdão, ou do pobre que tem necessidade do pão. Mas o que distingue a oração cristã da oração, mesmo que altíssima, das outras religiões é que a oração cristã é dom direto de Deus, que o Espírito nos manda. Nós podemos dizer: "Senhor, eu não sou capaz, pronuncia tu em mim aquela oração, coloque-a no meu coração". E o ápice da oração é a oração de confiança, a entrega das nossas vidas nas suas mãos.

Naquele livro, há algumas páginas dedicadas à oração do velho Simeão. E o senhor se detém na imagem do velho que abraça o menino. E escreve: "Simeão representa cada um de nós diante da novidade de Deus", que "se apresenta como um menino". O senhor, justamente para as crianças, escreveu o seu último livro, "Una parola per te. Pagine bibliche narrate ai più piccoli" [Uma palavra para ti. Páginas bíblicas narradas aos mais pequenos], com reflexões sobre algumas páginas bíblicas narradas para as crianças.

"Da boca dos pequenos e das crianças de peito, Senhor, tirastes o vosso louvor": é a frase do salmo citada por Jesus, quando os sumos sacerdotes e os anciãos o criticam porque consideram inoportuno o grito de louvor dirigido a ele pelas crianças. Hoje, muitas vezes, as crianças me parecem abandonadas. As notícias destes dias nos mostram como estão indefesas diante do mal que pode ser feito a elas. Mas nelas me toca aquela natural abertura confiante aos próprios pais e à vida, que é essencial também na fé.

Às vezes, em vez de favorecer a se comover por essa abertura, buscam-se técnicas e estratagemas que deveriam aproximar os jovens da fé. O que o senhor espera para eles?

A fé se transmite às pessoas a partir do ambiente que as circunda, mas depois pode entrar concretamente em cada um de nós por meio de quatro vias: a cabeça, o coração, as mãos e os pés. Ou seja, a formação humana e intelectual, a oração, ou o trabalho com as mãos para ajudar os outros. De acordo com os tipos, uma ou outra coisa funcionam como via preferencial.

E os pés, o que têm a ver?

Os pés são usados pelos escoteiros, para fazer quilômetros nas suas caminhadas.

Porém, em um outro recente livro seu, é abordada a objeção de um menino que diz: "Não sei o que fazer com a fé. Não tenho nada contra, mas o que a Igreja deveria me dar? [...] Estou bem, do que mais eu preciso?".

Muitos jovens têm o inferno no coração, não devemos negar isso. Porém, vejo que justamente para os jovens que não sabem nada da Igreja, muitas vezes é mais fácil começar pelas mãos. Jogam-se em obras de caridade quando veem outros que fazem as coisas com a paz e a serenidade no coração.

Mas esse sentimento de indiferença, tão diverso das contestações e das críticas das gerações anteriores, pode verdadeiramente ser vencido ao se propor a via de uma vida comprometida, exigente, difícil?

Não se pode exigir nenhum sacrifício de ninguém se antes não saboreou como o ponto de chegada é fascinante. Mas o que pode impressionar os outros é a caridade em ação. E nela o Espírito é a primeira realidade. São Tomás diz que a lei do Novo Testamento é o Espírito Santo, as outras leis são secundárias. São Paulo destaca que a própria observância ética não é plenamente realizável como fruto do homem e do seu cansaço. Muitas vezes nos esquecemos disso, também na Igreja, e então tentamos dar mostras de força e de rigor a nós mesmos. Mas a caridade principalmente só é possível se o Espírito Santo está presente. É a graça do Espírito que torna fácil o que para os homens parece difícil ou até prodigioso.

Diz-se que a Igreja está sob ataque. Muitos falam de cristianofobia. Também entre nós há quem fale de Itália anticristã. De onde surge tudo isso? Da hostilidade do mundo descristianizado?

A hostilidade, de certo modo, pode ser útil. Faz com que se ressalte o desarmamento da Igreja, o seu ser sempre confiada ao Senhor. Mas a Igreja desfruta também a estima e a cordialidade de muitos, que pedem só que a Igreja seja Evangelho, isto é, que seja ela mesma.

O Evangelho basta? Justamente o senhor é muitas vezes citado como o defensor de uma Igreja sem dogmas e estruturas. Uma Igreja totalmente humilde e misericordiosa, sem preceitos.

Se pensarmos nas tantas propostas religiosas que existem no mundo, o que nos diferencia dos outros é Jesus e o seu caminho, e não o pertencimento a uma organização com regras e preceitos. Mas na fé em Jesus não tem sentido contrapor Evangelho e dogmas, misericórdia e mandamentos: isso também vale para isso que eu já disse sobre a prioridade do Espírito Santo. Tudo se compagina em unidade, na realidade da Igreja, que tem um aspecto interior e também um aspecto exterior e, portanto, compreende também estruturas, regras, instrumentos de organização. O importante é que essas realidades também existam por causa daquilo que sejam possíveis expressões de vida interior. E depois também é preciso distinguir as coisas importantes e as que não o são. Acredito que a Igreja já fez uma obra de purificação de muitas coisas exteriores que não serviam. E, no entanto, quando ainda leio nos jornais que eu seria o "chefe dos progressistas", quase rio disso tudo.

Para alguns, a resposta adequada a essa situação de hostilidade é aumentar o protagonismo público da Igreja.

A Igreja não pode ter medo de aparecer com cordialidade com relação aos outros na vida pública. Mas é fato que o seu verdadeiro tesouro é o Evangelho lido em nós pelo Espírito Santo. Um tesouro de oração e de humildade. E, de fato, o Evangelho é testemunhado no mundo como Jesus indicou no sermão da montanha, que eu já citei. Não se tratam de propostas "confessionais". Têm também uma conotação laica. Falam a todo homem. Porque fazem entrever um modo desejável de ser homens, que todos deveriam ter presente.

Estas são semanas de tempestade por causa do escândalo da pedofilia. Como o senhor avalia essa situação? Qual exigência surge para a Igreja nestas circunstâncias?

Tudo isso certamente pode ajudar a humildade em todos. Mas valem também as palavras de Jesus: houve ações graves, e em quem escandalizou os pequenos seria melhor que fosse colocada uma pedra de moinho no pescoço e fosse jogado no mar. Isso não exclui que seja registrada também uma grande hipocrisia. Há uma total liberdade sexual, a publicidade utiliza motivos sexuais também para as crianças.

Como defender o Papa das tentativas de chamá-lo em causa nesses episódios?

O Papa não tem necessidade de ser defendido, porque está clara a todos a sua irrepreensibilidade, o seu senso de dever e a sua vontade de fazer o bem. As acusações feitas contra ele nestes dias são ignóbeis e falsas. Será bonito constatar a solidariedade de todos os homens de boa vontade ao estar com ele e ao defendê-lo na sua difícil tarefa.

Na carta aos católicos irlandeses, Bento XVI pediu de todos o jejum, a oração, a leitura da Sagrada Escritura e o sacramento da confissão "para obter a graça da cura e da renovação para a Igreja na Irlanda".

Essas coisas valem para as comunidades em que ocorreram esses casos, assim como valem para toda a Igreja. Mas para os protagonistas desses casos, em que há uma perversão e uma compulsão interna, é preciso também a intervenção dos psicoterapeutas. Trata-se de entender o porquê dessas compulsões e como é possível dominá-las, e os outros meios não entram nesse aspecto específico.

Muitas vezes, fazem com que o senhor se pareça a um crítico feroz das insuficiências e dos limites da Igreja. O senhor se vê nesse tipo de descrições?

A Igreja, considerada na sua globalidade, está cheia de santidade e de força interior. A imprensa persegue os episódios particulares, mas em todo o mundo existe muitas pessoas leais, boas, devotas, que agem sem barulho. E eu sou muito grato a Deus, justamente por também poder viver este tempo. Nunca desejaria viver em momentos como o da Reforma Protestante, ou do Cisma do Oriente, ou no tempo do Cisma do Ocidente, quando haviam dois papas, um em Roma e outro em Avignon. Agora, a Igreja dá uma bela mostra de si. Há limites e falhas inevitáveis, e elas também fazem parte do projeto misterioso da vontade de Deus.

Então, não é verdade que o seu sentimento dominante é uma espécie de amargura, centrada na denúncia de fraquezas e de carreirismos.

Eu sempre agradeço a Deus pela forma como acompanhou a minha vida, por tantas pessoas que colocou ao meu lado ao longo do caminho. Sempre digo que Ele também me viciou. Toda a vida me mostrou que Deus é bom e prepara o caminho a cada um de nós. Tive muitíssimo, também dei aquilo que pude. E estou verdadeiramente contente, diante dEle.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Milagres

Foto: Anna Aden

Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.


- Fernando Pessoa

Rosh Hashaná e Yom Kippur / Ano Novo e Dia do Perdão


Hoje é véspera de Rosh Hashaná, o ano novo judaico. Para que possamos nos unir em oração a nossos irmãos judeus nesse momento de renovação, compartilho com vocês esta bela reflexão. :-)

Porque Rosh Hashaná marca a passagem do tempo e Yom Kippur nos interroga sobre o sentido de nossa vida, lembramos que há:

1. Tempo de olhar para o futuro e tempo de lembrar nosso passado.
2. Tempo de nos pensar como indivíduos e tempo de nos pensar como comunidade.
3. Tempo de realizar e tempo de refletir.
4. Tempo de ficar sós e tempo de ficarmos juntos.
5. Tempo de lembrar e tempo de esquecer.
6. Tempo de ensinar e tempo de aprender
7. Tempo de dar e tempo de receber.
8. Tempo de falar e tempo de calar.
9. Tempo de acreditar e tempo de duvidar.
10. Tempo de se sentir culpado e tempo de se perdoar.
11. Tempo de julgar e tempo de suspender o julgamento.
12. Tempo de se entregar e tempo de se dissociar.
13. Tempo de viver e tempo de morrer.
14. Tempo de rir e tempo de chorar.
15. Tempo de ser prudente e tempo de arriscar.
16. Tempo de trabalhar e tempo de descansar.
17. Tempo de semear e tempo de colher.
18. Tempo de ser orgulhoso e tempo de ser humilde.
19. Tempo de estar alegre e tempo de estar triste.
20. Tempo de ter ilusões e tempo de perdê-las.
21. Tempo de esperar e tempo de agir.
22. Tempo de amar sem ser amado e tempo de ser amado sem amar.
23. Tempos sem sentido e tempos com sentido.


E que a sabedoria se encontra em compreender que o tempo é sempre um, no qual:

1. Nosso passado esta sempre presente no nosso futuro.
2. A comunidade é formada por indivíduos livres e os indivíduos não esquecem que são parte de comunidades.
3. Quem faz deve refletir e quem reflete deve agir.
4. Os mortos continuam vivos em nos e a vida não pode desconhecer a morte.
5. Paramos de falar para ouvir e ouvimos para entender o que estamos falando.
6. A prudência não deve eliminar nossa coragem para ariscar e o risco deve ser responsável.
7. Quem recebeu já retribuiu e quem deu já recebeu.
8. Só aprendemos desaprendendo e só se ensina aprendendo.
9. Quem semeia já recolheu e quem recolhe não deixa de semear.
10. Não podemos ter dignidade se não somos humildes e somos humildes porque temos dignidade.
11. Estamos sós quando estamos juntos e estamos juntos quando estamos sós.
12. Acreditamos sem dogmatismo e duvidamos sem deixar de lutar pelo que acreditamos.
13. Choramos de alegria e rimos para não chorar.
14. No há culpa sem perdão, nem julgamentos que não sejam questionáveis.

Porque o tempo nos permite amar e aprender, e ambos são o maior dom da vida, agradecemos:

Shehechyanu, ve´quimanau ve’higuianu lazman haze.
Que vivemos, que existimos, que chegamos a este momento.

- Bernardo Sorj
Reproduzido via Amai-vos

O trilho do dogma


Paul Thibaud, presidente católico da Fraternidade Judaico-Cristã da França e ex-diretor da revista Esprit, em artigo para o jornal La Croix, 05-05-2009, comenta que "a Igreja parece incapaz, em tais situações, de desempenhar o papel de conselheira compreensiva, de ser um diapasão, em vez de querer dirigir a orquestra".

Segundo Thibaud, é preciso libertar o cristianismo da idolatria da doutrina para que ele tenha um futuro. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o artigo.


Às vezes, somos tentados a assumir a defesa do papa e do Vaticano contra a ideologia contemporânea. Irritamo-nos com o utilitarismo ingênuo que tem como dever moral satisfazer todas as demandas, ou com a ilusão de que se poderia, sem esforço algum, fugir do mal. Mas, por mais superficial que seja, a boa vontade de compaixão que assim se expressa é irrecusável. Esse mundo precisa, por parte do cristianismo, de um acompanhamento crítico* e não de advertências a uma ordem supostamente imutável.

Mas a Igreja parece incapaz, em tais situações, de desempenhar o papel de conselheira compreensiva, de ser um diapasão, em vez de querer dirigir a orquestra. As atitudes da hierarquia que recentemente estupidificaram e indignaram expressam uma ideia de si própria e da sua competência pela qual a Igreja se marginaliza.

Diante de uma humanidade empenhada em um processo de autoinvenção, ao mesmo tempo inebriante e inquietante, a instituição católica afirma que sabe a priori o que é humano e o que não é, e acredita que não tem nada a aprender do exterior. O cardeal Castrillón mostra aonde essa suficiência pode levar, para o qual a irregularidade de uma ordenação [caso dos lefebvrianos] importa mais do que a vontade de negar o maior crime do século XX [negação do Holocausto por dom Williamson], negação que, segundo ele, não é uma culpa moral, mas uma opinião sobre um "problema histórico".

Nisso, como se disse,** estamos muito distantes do Vaticano II e da pastoral compreensiva dos "sinais dos tempos" então anunciada. Mas por que, depois do Concílio, falhamos ao efetuar com a sociedade democrática a relação positiva preconizada? Parece que o motivo está no fato de que o Concílio ficou prisioneiro de ideias poucos consistentes (o muito celebrado "aggiornamento") sobre conciliação que se acreditava que fosse fácil, ou até mesmo natural, entre cristianismo e democracia.

No seu desenvolvimento posterior, a democracia desiludiu essas esperanças. Ela mesma se radicalizou ao ponto de se entregar a uma artificialidade técnica e jurídica que parece ameaçar a humanidade do ser humano. Mas justamente por essa razão – porque se pode temer que a humanidade, não querendo conhecer que os desejos do indivíduo, sacrifique o próprio futuro como espécie para satisfazer as demandas atuais – forma-se uma zona de inquietude em que uma modernidade capaz de duvidar de si mesma pode encontrar um ensinamento evangélico que leve à vida verdadeira, à vida reconciliada com o Criador.

Ao invés de dar atenção a essa zona de vulnerabilidade, a Igreja, diante da dificuldade da conciliação, se debruça sobre aquilo que o Concílio não interrogou, a relação entre identidade da instituição e o que ela considera como as verdades das quais tem a custódia, o seu patrimônio dogmático. A partir dessa identidade dogmática, baseando-se nela, a Igreja desenvolve um discurso apodítico (é verdade porque eu o digo!) sobre a natureza humana ou, em uma linguagem mais moderna, sobre o "limite", oposto imperturbavelmente a um mundo do qual se tem mais medo do que atenção e cuidado. Natureza e limite, hoje, não são meios para interrogar certas práticas, mas evocam um saber determinado antecipadamente, uma experiência em humanidade que nos é concedida a priori.

Esse fechamento na doutrina endurece a mente e o coração, constitui uma barreira, como uma tela impermeável, que impede que o espírito dos Evangelhos penetre: o juízo suspenso até o fim dos tempos, as parábolas que mostram Jesus atento à experiência humana. Em certo modo, o perigo de um cristianismo fascinado pela ideia do saber exaustivo foi identificado pelo próprio Bento XVI no discurso de Regensburg. Entre a fé e a razão, o Papa mostra o perigo de concluir a síntese: então "a fé já não se apresenta como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico". Aparentemente, é no âmbito da doutrina moral que, em grande parte, essa tendência a "cimentar" a aliança da fé e da razão triunfa hoje.

Por que, então, malgrado as boas intenções, conciliares e pós-conciliares, a Igreja recai, quase naturalmente, no trilho do saber absoluto, do magistério peremptório e surdo? A emancipação moderna torna essa pergunta incontornável. Temos a tendência de nos alegrarmos por isso e dizer: finalmente!

Mas o esforço para sair do trilho é árduo, porque prolonga uma maneira cristã muito antiga de dominar o tempo, apropriando-se da história passada e desvalorizando a história em curso. No que se refere ao passado, acreditou-se que a potencialidade do judaísmo fosse completamente identificada e realizada no cristianismo. Por outro lado, a tendência foi a de considerar insignificante o que a criatividade humana podia produzir depois de Jesus Cristo.

Assim, o cristianismo se estabeleceu no maior dos paradoxos: a Encarnação em que São Paulo previa o rebaixamento daquele que era "de condição divina" foi interpretada como uma tomada de poder direta de Deus no mundo, poder que era herdado pela Igreja. A idolatria da doutrina é o prolongamento dessa pretensão desmesurada (aquela de já ter levado a humanidade a cumprimento, essencialmente, e de ter reduzido à insignificância a história que continua). É preciso libertar o cristianismo para que ele tenha um futuro.
_______________
* O termo é de Charles Taylor em "A secular Age" (nota do autor).
** Cf Claude Dagens, "Souffrir pour l'Église et par l'Église", La Croix, 12-03-2009 (nota do autor).

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Poeta e a Rosa

Foto: Luki

(...)

- Que foi? - balbucia o poeta.
E a rosa: - Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.

- São milhões! - a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!...

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
É aqui que a rosa respira...
Geme o vento. Morre a rosa.

E um passarinho que ouvira
Quietinho toda a disputa,
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.


- Vinícius de Moraes

Bento XVI: "A abertura da Igreja deve prevalecer sobre a institucionalização"

Estêncil: Bovey Lee

Num post de domingo passado sobre a leitura do Evangelho de domingo (uma linda reflexão sobre o que é a ação verdadeiramente justa e inspirada pela fé, que você pode ler aqui), respondemos ao Ricardo Cavalcante, leitor que nos fez o seguinte questionamento: "Como podemos defender uma fé que nos reprime e pesa nossa cruz?" - e nos remeteu a um artigo sobre um pronunciamento do Papa Bento XVI, em sua recente visita à Alemanha, cujo título era "Papa diz que católicos não podem aceitar casamento gay".

Entre outras coisas, dissemos o seguinte:


"É preciso tomar enorme cuidado com a forma como a imprensa de modo geral, veículos LGBT e veículos de comunicação cristãos mais fundamentalistas transmitem os pronunciamentos do Magistério. Muitas vezes, ocorrem distorções graves, piorando ainda mais uma situação que já não é, de fato, das mais confortáveis.


Dito isso, e procurando-se ter uma perspectiva mais realista e bem contextualizada das palavras das autoridades do clero, há que se entender que a Igreja mudou muito ao longo da história - e é uma LONGA história, ao longo da qual muitas transformações se acumularam -, que as mudanças continuam acontecendo, e, principalmente, que as mudanças acontecem da base para o topo. Isso quer dizer que é a partir das vozes dos leigos que a Igreja se transforma com o tempo, a fim de cumprir sua vocação de atender as necessidades espirituais de seus membros.


Acreditamos que há muitos motivos para, apesar dos tempos difíceis que correm, termos esperança. Cada vez mais vozes, tanto no Magistério quanto entre leigos e teólogos, religiosos ou não, vêm questionando a doutrina católica com relação à homossexualidade. Há muita movimentação acontecendo, e muitas transformações por vir."

Para nossa surpresa, e como que confirmando nossas palavras, nos deparamos hoje com esta nota sobre o tal discurso do Papa na Alemanha. De todo o discurso, a maioria dos veículos, LGBT e fundamentalistas, vem destacando o fato de que o Papa vetou a realização imediata de reformas, sobretudo no tocante a uma possível revisão da doutrina católica acerca de o homoerotismo ser um comportamento desordenado (e NÃO um pecado, nunca é demais lembrar. Mais esclarecimentos aqui).

Porém, em meio a tantas matérias que ressaltam tudo o que o Papa disse que não mudará na Igreja agora, eis que nos caiu nas mãos um relato mais completo e isento de seu último discurso em sua visita ao país; um discurso em que ele salienta que há necessidade de mudança, sim, e que a principal e mais urgente delas é que a Igreja deixe de ter como objetivo principal "os valores do mundo" - o poder pelo poder, a institucionalização pela institucionalização, a riqueza pela riqueza - e se abra para sua missão original de reconduzir cada pessoa a si mesma e ao encontro com Deus, abraçando sua vocação para a pobreza e reconhecendo que "a Igreja não são apenas os outros, não é apenas a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos nós todos, os batizados".

A Igreja não pode, tampouco, partir para a reforma pela reforma; há que realimentar e reacender o fogo do Espírito onde ele é mais necessário: em seu próprio coração. Por mais que se diga que as mudanças não são para agora, e por mais que não vejamos nenhuma transformação concreta ainda no horizonte, a mudança já está acontecendo, aqui e agora. Vale a leitura para ver que, como dissemos ao Ricardo, temos motivos, sim, para ter esperança.

Eis a matéria:


Se a Igreja pretende realizar plenamente sua missão, deve “destacar-se da mundanidade”, fazendo que o chamado à abertura prevaleça sobre a atenção à organização e à institucionalização.

Esta foi a mensagem do Papa, no Konzerthaus de Freiburg, aos católicos comprometidos na Igreja e na sociedade, no último encontro da sua visita de quatro dias à Alemanha.

“Assistimos, há decênios – disse o Pontífice em seu discurso, o mais longo dos pronunciados nesta 21ª viagem apostólica, a terceira à sua pátria –, a uma diminuição da prática religiosa, constatamos o crescente afastamento duma parte notável de batizados da vida da Igreja.”

“Surge a pergunta: Porventura não deverá a Igreja mudar? Não deverá ela, nos seus serviços e nas suas estruturas, adaptar-se ao tempo presente, para chegar às pessoas de hoje que vivem em estado de busca e na dúvida?

“Uma vez alguém instou a beata Madre Teresa a dizer qual seria, segundo ela, a primeira coisa a mudar na Igreja. A sua reposta foi: tu e eu!”, recordou.

“Este pequeno episódio evidencia-nos duas coisas: por um lado, a Religiosa pretendeu dizer ao seu interlocutor que a Igreja não são apenas os outros, não é apenas a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos nós todos, os baptizados. Por outro lado, Madre Teresa parte efetivamente do pressuposto de que há motivos para uma mudança. Há uma necessidade de mudança. Cada cristão e a comunidade dos crentes são chamados a uma contínua conversão”, explicou.

O Pontífice se perguntou, portanto, em que consiste esta renovação. “Mas, no caso da Igreja, o motivo fundamental da mudança é a missão apostólica dos discípulos e da própria Igreja. (…) A Igreja deve verificar incessantemente a sua fidelidade a esta missão”.

O Papa advertiu que, “por causa das pretensões e condicionamentos do mundo, o testemunho fica muitas vezes ofuscado, são alienadas as relações e acaba relativizada a mensagem”.

Para cumprir a sua missão, a Igreja deve “continuamente manter a distância do seu ambiente, deve por assim dizer 'desmundanizar-se'”.

Duas tendências
A Igreja deve seu ser à permuta desigual entre Deus e o homem. “Encontra o seu sentido exclusivamente no compromisso de ser instrumento da redenção, de permear o mundo com a palavra de Deus e de o transformar introduzindo-o na união de amor com Deus.”

Neste sentido, afirmou, “está sempre em movimento, deve colocar-se continuamente ao serviço da missão que recebeu do Senhor”.

No entanto, advertiu, existe “uma tendência contrária, ou seja, a de uma Igreja que se acomoda neste mundo, torna-se auto-suficiente e adapta-se aos critérios do mundo. Deste modo, dá uma importância maior, não ao seu chamamento à abertura, mas à organização e à institucionalização”.

Por isso, a Igreja “deve esforçar-se sem cessar por destacar-se da mundanidade do mundo” e, neste sentido, “a história vem em ajuda da Igreja com as diversas épocas de secularização, que contribuíram de modo essencial para a sua purificação e reforma interior”.

Secularização, positiva
“De fato, as secularizações – sejam elas a expropriação de bens da Igreja, o cancelamento de privilégios, ou coisas semelhantes – sempre significaram uma profunda libertação da Igreja de formas de mundanidade: despojava-se, por assim dizer, da sua riqueza terrena e voltava a abraçar plenamente a sua pobreza terrena.”

Assim, explicou, “liberta do seu fardo material e político, a Igreja pode dedicar-se melhor e de modo verdadeiramente cristão ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo. Pode de novo viver, com mais agilidade, a sua vocação ao ministério da adoração de Deus e ao serviço do próximo”.

A Igreja se abre ao mundo, “não para obter a adesão dos homens a uma instituição com as suas próprias pretensões de poder, mas sim para os fazer reentrar em si mesmos e, deste modo, conduzi-los a Deus”.

Diante dos escândalos
Neste sentido, o Papa lamentou que os escândalos atuais relacionados ao clero tenham ensombrecido a mensagem da Igreja.

“Cria-se uma situação perigosa, quando estes escândalos ocupam o lugar do skandalon primordial da Cruz tornando-o assim inacessível, isto é, quando escondem a verdadeira exigência cristã por trás da incongruência dos seus mensageiros”, advertiu o Papa.

Por isso, sublinhou a necessidade de “depor tudo aquilo que seja apenas táctica e procurar a plena sinceridade, que não descura nem reprime nada da verdade do nosso hoje, mas realiza a fé plenamente no hoje vivendo-a precisa e totalmente na sobriedade do hoje, levando-a à sua plena identidade, tirando dela aquilo que só na aparência é fé, não passando na verdade de convenções e hábitos nossos.

“Uma Igreja aliviada dos elementos mundanos é capaz de comunicar aos homens, precisamente no âmbito sociocaritativo – tanto aos que sofrem como àqueles que os ajudam –, a força vital particular da fé cristã”, concluiu.

- Fonte: Zenit
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos

O perigo da religião que nem sempre conduz a fazer a vontade do Pai


Jesus leva uns dias em Jerusalém movendo-se à volta do templo. Não encontra pelas ruas o acolhimento amistoso das aldeias da Galileia. Os dirigentes religiosos que se cruzam no Seu caminho procuram desautorizá-lo ante as pessoas simples da capital. Não descansarão até enviá-Lo para a cruz.

Jesus não perde a paz. Com paciência incansável continua a chama-los para a conversão. Conta-lhes um episódio simples que lhe ocorre ao vê-lo: a conversa de um pai que pede aos seus dois filhos que vão trabalhar a vinha da família.

O primeiro rejeita o pai com uma negativa categórica: "Não quero". Não lhe dá explicação alguma. Simplesmente não lhe apetece. No entanto, mais tarde reflete, dá-se conta que está a rejeitar o seu pai e, arrependido, dirige-se para a vinha.

O segundo atende amavelmente a petição do seu pai: "Vou, senhor". Parece disposto a cumprir os seus desejos, mas rapidamente se esquece do que disse. Não volta a pensar no seu pai. Tudo fica em palavras. Não se dirige para a vinha.

Para o caso de não terem entendido a Sua mensagem, Jesus, dirigindo-se aos "sumo sacerdotes e aos anciãos da terra", aplica-lhes de forma direta e provocativa a parábola: "asseguro-vos que os publicanos e as prostitutas estão à vossa frente no caminho do reino de Deus". Quer que reconheçam a sua resistência para entrar no projeto do Pai.

Eles são os "profissionais" da religião: os que disseram um grande "sim" ao Deus do templo, os especialistas do culto, os guardiões da lei. Não sentem necessidade de converter-se. Por isso, quando veio o profeta João a preparar os caminhos a Deus, disseram-lhe "não"; quando chegou Jesus convidando-os a entrar no Seu reino, continuaram a dizer "não".

Pelo contrário, os publicanos e as prostitutas são os "profissionais do pecado": os que disseram um grande "não" ao Deus da religião; os que se colocaram fora da lei e do santo culto. No entanto, o seu coração manteve-se aberto à conversão. Quando veio João acreditaram nele; ao chegar Jesus acolheram-no.

A religião nem sempre conduz a fazer a vontade do Pai. Podemos nos sentir seguros no cumprimento dos nossos deveres religiosos e habituar-nos a pensar que nós não necessitamos de converter-nos nem mudar. São os afastados da religião os que o hão-de fazer. Por isso é tão perigoso substituir o escutar o Evangelho pela piedade religiosa. Diz Jesus: "Nem todos os que me digam "Senhor", "Senhor" entrarão no reino de Deus, mas os que façam a vontade do Meu Pai do céu".

- José Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos.

Texto para reflexão:
Mt 21, 28-32

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Jardineiro ou canteiro?

Escultura: Rick Floro

Pobre do pensador que não é o jardineiro, mas apenas o canteiro de suas plantas.

- F. Nietzsche
Via "Nietzsche para estressados"

Desafios da nova religiosidade


No início do terceiro milênio a profecia secularista —avalizada por Weber e Durkheim— do declive e desaparecimento da religião e da fé não se cumpriu. Parece que estamos muito longe dela. Mas nem tudo continua da mesma maneira: a fé das grandes igrejas está dando passo a um tipo de religiosidade diferente, que acentua a individualização. E não só a individualização, assistimos a um fenômeno da fusão sincrética de diferentes horizontes religiosos: as pessoas, de maneira natural e na vida diária, misturam diferentes aspectos das religiões, gerando algo diferente, novo, às vezes com maior ou menor sentido.

As religiões, sobretudo as mais elaboradas, têm em si o germe da individuação. Nas grandes religiões se vê que há um processo da religião como vínculo, coesão e controle social, ao encontro pessoal e individual com a transcendência. O fundamental passa a ser a própria relação —caminho de iluminação ou salvação— que o sujeito estabelece com a divindade. No Ocidente, por exemplo, o cristianismo foi veículo de individuação, através da busca da relação pessoal com Deus (1). Desta maneira, diferentes movimentos e famílias espirituais, assim como místicos, foram acentuando a idéia de que cada um deve percorrer seu próprio caminho para chegar a Deus. Obviamente este processo não tem sido fácil, pois no tempo também tem ocorrido o movimento contrário: a exigência de viver a fé não a partir da própria individualidade, mas a partir da instituição e do que a sociedade exige.

Mas a importância do indivíduo não só ocorre no plano religioso. Na década de 1960 ocorre um ponto de inflexão —no sentido que se acentua e se torna mais visível, pelo menos no mundo Ocidental—, uma revolução individualizadora que gira sobre o eixo do cultivo do “eu” e da importância da «autenticidade» como paradigma e, também, como fenômeno de massas (2). E nos últimos anos foi dado mais um passo: a individualização da religião no sentido do “Deus pessoal”. A este Deus se adere de forma individual e não pelo mero influxo da sociedade. Pode-se nascer numa determinada tradição religiosa, mas depois o sujeito deve fazer sua própria escolha. A este respeito, Taylor assinala: “A vida ou a prática religiosa da qual eu faça parte não só deve ser o resultado de minha escolha, e sim que deve me dizer algo; deve fazer sentido dentro de meu desenvolvimento espiritual assim como eu o interpreto ” (3). Uma pessoa escolhe em que acreditar, e faz isso dentro de uma denominação histórica, dentro de uma fé. Mas não fica encerrado nela: essa fé deve ter sentido para o sujeito e ele deve gerar seu próprio credo (4).

Seguindo o pensamento de Ulrico Beck, podemos dizer que, diante da insegurança que supõe a radicalização dos processos modernizadores de nossa época —maior solidão pessoal, falta de referenciais valóricos, desarraigamento, sentimento de vazio, de falta de sentido, etc.—, a fé religiosa é vivida como um questionamento de certa modernidade desumanizadora e como apoio para viver com sentido transcendente à própria vida.

Beck toma como paradigma desta vivência a experiência de Etty Hillesum: no contexto do Holocausto, esta jovem de procedência judaica, mas formada num contexto laico, vai “descobrindo” a transcendência e Deus num ambiente cheio de dor, maldade, injustiça e morte. Com completo realismo —sem tornar a religião uma forma de fuga—, Hillesum vive um encontro místico de unidade com Deus muito além do marco de uma fé determinada. De alguma maneira, a experiência dela tem um pouco de paradigmática na vivência da religião atual, pois refere-se ao Deus pessoal, ao encontro espiritual muito além de um credo ou de um dogma.

Na vivência atual a religião não desaparece, mas sim sofre um processo de transformação que implica uma fé de índole mais subjetivista cujos conteúdos dogmáticos —utilizando terminologia tradicional— e estruturas teológicas são difusos. Dessa maneira, vê-se como convivem numa só fé propostas que em religiões tradicionais são contrárias, tais como a crença na ressurreição e na reencarnação. A unidade entre religião e crença se rompe, ocorre uma separação entre o que se propõe em nível institucional e o que se crê e vive no plano pessoal. Este ponto é, obviamente, produto da modernidade: o triunfo do pensamento do indivíduo que se pergunta, questiona e propõe.

O processo de individualização e desdogmatização das religiões traz também algumas conseqüências negativas, entre as quais se destaca certa tendência à banalização e vulgarização da religião, provocando  uma espécie de “supermercado das religiões” onde cada qual escolhe o que mais lhe agrada ou acomoda. Outra conseqüência é a destradicionalização. Isto significa que a religião coletiva vai-se desintegrando: os ritos litúrgicos, a moral, as práticas piedosas, a aceitação dos dogmas, etc., vão-se esvaindo pouco a pouco.

Uma das reações diante da individualização e da destradicionalização é o surgimento de certos grupos integristas que se definem e se compreendem a partir de um credo e do conflito com a modernidade (5), percebendo-se como verdadeiramente fiéis a Deus e a sua mensagem. Por último, também há algumas dificuldades no forte acento no que se sente e se percebe, junto com o excesso de emotivismo, que é explorado por alguns grupos religiosos, ou pseudoreligiosos, que às vezes tendem a reduzir a relação com a transcendência a uma mera experiência emocional e centrada somente no pessoal.

Ao pensar nas características atuais da religião —individuação, desdogmatização, etc.—, constata-se que se tornou pessoal, mas não privada , pelo contrário, foi desprivatizada. O que significa isso? As diferentes teorias de secularização entenderam que no mundo moderno as religiões deveriam passar a um estado de “privatização”. Isto implica, pelo menos, dois aspectos: o primeiro é que na modernidade a religião deve sair da esfera pública, exigindo-se a separação de Igreja e Estado e também procurando “isolar” as razões religiosas para deixar em pé somente as razões laicas. De alguma maneira, é um convite para atuar, na esfera pública, como se “Deus não existisse” (6). O segundo, faz referência a entender a religião como um tema estritamente privado, que corresponde à vida íntima do sujeito. Aqui se aponta à idéia da liberdade de consciência: liberdade para crer —ou não crer— no que quiser e vivê-lo no âmbito pessoal sem ter que ser questionado por isso. Deste modo, a religião é forçada a permanecer no âmbito da esfera privada.

O que a desprivatização faz é questionar este princípio, mas não no tema da liberdade de consciência, e sim no lugar que corresponde às religiões no mundo moderno. Nos últimos anos — pelo menos 20 anos— pode-se apreciar um sustentado processo de — se for permitido o uso do vocábulo — reaparecimento do religioso na esfera pública. Em várias partes do mundo se pode apreciar como as religiões entram na arena pública e política para, por um lado, proteger seus próprios interesses tradicionais e, por outro, para entrar em diferentes lutas para exigir justiça, liberdade, respeito pelos oprimidos, etc. (7).

Embora muitos não estejam de acordo com esta nova situação, a única condição pedida às religiões para entrar na esfera pública é que assumam e respeitem a condição do princípio da liberdade de consciência. Isto significa, de maneira prática, a não imposição de suas posturas ao resto da sociedade.

Tendo aceitado a condição previamente assinalada, teria pelo menos três situações que justificariam a intervenção, ou desprivatização, das religiões no âmbito público (8): a primeira é aquela em que a religião entra na esfera pública para defender não somente sua própria liberdade religiosa —como sucedeu em certos regimes ditatoriais—, e sim também as liberdades e direitos que surgiram na modernidade, tais como os Direitos Humanos, o direito à informação, a democracia, etc. Exemplo deste exercício se pode encontrar em ditaduras de cunho comunista, como foi o caso de Polônia; ou ditaduras baseadas na doutrina da Segurança Nacional como foi o caso da ditadura de Pinochet no Chile. Nestes casos —e em muitos outros— o papel da religião, especificamente através da Igreja Católica, foi a promoção dos Direitos Humanos, a liberdade de informação, a exigência do respeito pela justiça e a volta ao regime democrático.

A segunda situação de desprivatização da religião ocorre quando esta entra na esfera pública para questionar e ir contra certas leis, derivadas da autonomia secular, que pareceriam ir contra certos princípios básicos de moralidade e justiça. Aqui se podem pôr como exemplo as cartas pastorais dos bispos dos Estados Unidos, condenando situações de injustiça tais como a corrida armamentista, ou as injustiças derivadas das políticas e leis de imigração por considerá-las abertamente injustas; ou a declaração feita em 2009 pela Conferência Episcopal Suíça, que condenou o resultado do plebiscito que proíbe a construção de minaretes nas cidades da nação helvética.

A terceira instância ou situação em que as religiões intervêm na esfera pública, tem a ver com a busca de proteção de formas tradicionais de vida que se vêem ameaçadas por decisões políticas, administrativas ou judiciais. Neste caso se abre o debate público sobre a moralidade do aborto, a eutanásia ou o direito ao casamento homossexual.

Como se pode comprovar, a participação da religião em cada uma destas situações é diferente. Na primeira situação a religião participa no prosseguimento de valores modernos como a liberdade, a democracia, etc. São valores liberais e que geram a construção de uma ordem social baseada nestes princípios. A segunda e terceira situação, em compensação, manifestam os limites do sistema liberal político e como o discurso religioso pode ajudar a abrir —e também a fechar— novos horizontes.

Por último, também chama a atenção como ocorre uma aproximação ao tema religiosos a partir do âmbito político . Um exemplo disto é o discurso pronunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, na Universidade do Cairo em 4 de junho de 2009. Ali Obama reconhece a tensão das relações existentes entre o Oriente e o Ocidente, entre o mundo árabe e os EUA, sabendo que pequenos grupos integristas são os que deixaram o diálogo como opção e se empenharam em agudizar o conflito através do terrorismo. Diante disso, Obama faz um chamado para fazer o esforço contínuo de aprender a escutar, para serem capazes de aprender do outro. O caminho para esta aprendizagem é reconhecer os valores de ambas culturas, o que temos em comum, porque Deus nos deu: “compartilhamos aspirações: viver em paz e segurança; adquirir uma educação e trabalhar com dignidade; amar nossas famílias, nossas comunidades e nosso Deus. Compartilhamos tudo isto. Esta é a esperança da humanidade” (9).

Se Obama não for ingênuo, seu discurso reconhece as dificuldades entre as diversas culturas e países; pede para respeitar os direitos das mulheres —que em algumas partes do mundo árabe são pouco respeitados— e também para promover e respeitar a liberdade religiosa. Mas, com o mencionado anteriormente, vê no diálogo interreligioso uma possibilidade enorme de superar as diferenças e tentar a conciliação de dois mundos inicialmente tão opostos. A religião, antes de dividir e levar ao conflito, pode levar ao encontro.

Outro exemplo deste ponto ocorreu na França, um dos países com maior tradição laica do mundo. Em setembro de 2008, durante a visita do Papa Bento XVI, o presidente Nicolás Sarkozy declarou: “Privar-se das religiões seria uma loucura, uma falta contra a cultura, contra o pensamento” (10). Para logo depois acrescentar: “O laicismo positivo, o laicismo aberto é um convite ao diálogo, à tolerância, ao respeito. É uma oportunidade, um impulso, uma dimensão suplementar proposta ao debate público”.

Na recente visita do Papa Bento XVI ao Reino Unido — precedida por uma forte campanha contra — o primeiro-ministro, David Cameron, agradeceu o Pontífice que tenha posto a questão da fé “no centro do debate nacional” (11). Estas palavras são em resposta ao que foi dito pelo Papa, ao manifestar sua preocupação pela crescente marginalização da religião, especialmente do cristianismo, no debate social público; esquecendo que a religião não é um problema, e sim que pode ser uma contribuição à sociedade (12).

A desprivatização das religiões está tornando-se realidade. Isto levanta, pelo menos, duas perguntas essenciais: as religiões e o laicismo serão capazes de gerar um diálogo produtivo entre eles, onde as religiões não caiam no dogmatismo e o laicismo aprenda a escutar e valorizar as razões religiosas? Mas, por outro lado, também surge a pergunta se as instituições religiosas, as igrejas, serão capazes de gerar maneiras novas e criativas de encontro com os crentes.

- Ignacio Sepúlveda del Río
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos

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(1) O cristianismo tem em si um paradoxo curioso: é uma religião comunitária, tendente sempre ao universal, mas também precisa e se move na escolha particular do indivíduo, pois o cristianismo exige a declaração livre e individual para aderir-se a ele. É o movimento que se vê em Mt 25, onde o Juízo é universal, mas também individual.

(2) Aqui podemos observar a juventude: todos querem ser diferentes, diferentes, únicos, coisa que é um grande valor. A indústria, seja de roupa, música, livros, etc., aponta para este mercado com a mensagem insistente de “ser único”, “ser diferente”. No final, como grande paradoxo, o ser único e diferente se torna um fenômeno de massas. Os que são diferentes e únicos terminam vestindo à moda ditada por algum desenhista da moda.

(3) Taylor, Ch., Las variedades de la religión, hoy, Paidós, Barcelona, 2003, p. 104.

(4) Isto tem as ressonâncias do tradicional “crio a minha maneira”, mas é inegável que muito pouca gente –cada dia menos– adere à totalidade de dogmas, ou crenças, de uma religião.

(5) Em seus discursos se enfatiza “os valores verdadeiros”, “ respeitar a moral”, “ a verdade”, etc.

(6) Esta proposta deve ser considerada com mesura, pois muitas vezes entre as “razões de Estado” também se invocaram “razões divinas”. Um claro exemplo disto ocorre nos Estados Unidos.

(7) Aqui se pode considerar todas as lutas a favor dos Direitos Humanos em diferentes partes do mundo, a proteção dos direitos dos povos originários na América Latina, ou a defesa e o trabalho a favor dos imigrantes na Europa.

(8) Cf. Casanova, J., Public Religions in the Modern World, The University of Chicago Press, Chicago and London, 1994.

(9) ABC

(10) El Mundo

(11) El País

(12) Discurso de Bento XVI

É possível viver o Evangelho?


"Vou embora depois de ter combatido para reformar a Igreja, mas agora estou convencido de que a Igreja é irreformável", me disse um velho monge", narra prior do Mosteiro de Bose, na Itália.

E continua: "Somos capazes de dar à Igreja um novo rosto, mais fiel e conforme ao rosto de Cristo, ou essa é só uma esperança, e a esposa de Cristo só será tal quando o Esposo vier?".

O artigo é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, em artigo publicado na revista italiana Jesus, de setembro de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o artigo.


"É possível viver o Evangelho?". Quem, como eu, tem uma certa idade, já tendo atravessado as várias estações da vida e tendo chegado à última, reconhece que essa pergunta recebeu e continua recebendo respostas diferentes.

Houve uma época, que, para a minha geração, coincidiu com a juventude, em que as expectativas, esperanças, as fortes convicções típicas do tempo em que os jovens se deparam com a vida e nela entram, eram convergentes com as esperanças da Igreja e do mundo. Eram os anos do degelo entre o Ocidente e o Oriente comunista, os anos em que se retomava um diálogo interrompido há muito tempo, e a primavera parecia ser a metáfora mais apropriada para definir aquela época em que muitas realidades pareciam brotar, e algumas, desabrochar.

Isso também ocorria na Igreja: um papa que aparecia sobretudo como um cristão; um Concílio por ele desejado em que nos ouvíamos, nos confrontávamos também asperamente, mas com a paixão da fidelidade ao Senhor; um debate entre indivíduos cristãos e entre comunidades cristãs que sentiam, no seu cotidiano, a necessidade de mudança, de renovação, poderíamos dizer também de conversão. Respirava-se no ar uma novidade que não era a chegada de uma "moda", mas sim um retorno ao Evangelho, à forma vitae da Igreja primitiva.

Por isso, falava-se, com muito temor, de aggiornamento; alguns até se atreviam a falar de reforma da vida da Igreja. Para os cristãos, com uma certa consciência, era o Evangelho que se tornava uma presença dinâmica, uma referência, um princípio que era invocado como uma urgência, uma realidade a ser vivida concretamente e, ousaria dizer, visivelmente: não por "ostentação diante dos homens", mas para verificar se o Evangelho inspirava verdadeiramente a vida de muitos cristãos e era assumido pela Igreja como presença hegemônica. Nesse caminho, cunhavam-se palavras e expressões novas: retorno às fontes, redescoberta da Igreja dos Padres, inspiração à comunidade apostólica, autoridade da Igreja indivisa.

Alguns, hoje, analisando essa época, concluem que, na Igreja, havia se instaurado um mito – o mito de uma idade dourada, o mito das origens – e que isso se devia principalmente a Erasmo de Roterdã, que, no início do século XVI, moldou um certo vocabulário e uma certa filosofia da reforma eclesial. Na verdade, quem conhece mais profundamente a história da Igreja sabe que, na própria história do cristianismo, essa nostalgia das origens é inerente. Ou melhor, poderíamos dizer que ainda no Antigo Testamento os profetas, a partir de Oseias, recordavam ao povo do Senhor a necessidade de voltar aos tempos do engajamento, aos tempos do deserto, marcados pela fidelidade e pelo amor (cf. Os 2, 16-25): aquele amor que sabe cantar a convicção forte e a grande esperança em que não parece não haver lugar para o cansaço nem para a frustração, a desilusão, a medida da própria fraqueza.

Quando, diante da igreja constantiniana que surgiu no século IV, ocorreu o protesto do monasticismo e a sua fuga para o deserto, os padres monásticos pediram que se voltasse à koinonia, à comunidade descrita por Lucas nos chamados "resumos" dos Atos dos Apóstolos (cf. Atos 2, 42-47; 4, 32-35). Retorno às fontes, portanto.

Em seguida, cada tradição alcançará sempre aquela forma da Igreja primitiva: isso acontecerá com as várias tentativas de reforma, da de Cluny à de Bernardo de Claraval, aos movimentos mendicantes e também aos heréticos, todas destinados a retomar a prática de quem "nu segue o Cristo nu".

Mito da reforma? Ou capacidade do Evangelho de ser um fogo que continua ardendo debaixo das cinzas, que continua sendo brasa incandescente, que sempre pode dar origem a um arbusto ardente? "O Evangelho é 'dýnamis', poder de Deus" (Rom 1,16), diz o apóstolo Paulo! Pode ser desmentido, silenciado, tornado ineficaz, pode até ser contrariado e pervertido, e então parece permanecer inerte sob as cinzas. Mas depois volta a arder, porque é um fogo que logo renasce assim que um cristão joga sobre as cinzas algum graveto do seu viver, em busca da luz e da presença divina.

Não se pode silenciar o Evangelho para sempre: por algum tempo, sim, e a história da Igreja o testemunha; mas, depois, basta que um homem ou uma mulher, em busca de luz verdadeira e de fogo que consome, tenha a coragem de remover um pouco de cinzas e de jogar uma braçada de lenha seca, que logo o fogo e a luz se fazem ver novamente.

Já velho, perto da morte, um grande espiritual italiano confiou a mim e um irmão meu: "Vou embora depois de ter combatido para reformar a Igreja, mas agora estou convencido de que a Igreja é irreformável". Essas palavras me pasmaram, me fizeram mal, mas não nego que agora, às vezes, sou tentado a compartilhá-la. Somos capazes de dar à Igreja um novo rosto, mais fiel e conforme ao rosto de Cristo, ou essa é só uma esperança, e a esposa de Cristo só será tal quando o Esposo vier?

Obstino-me a acreditar que, às brasas do Evangelho, basta o sopro do Espírito para voltar a queimar, reaquecendo os nossos corações e iluminando a humanidade inteira. Sim, o Evangelho ainda pode ser vivido em todas as épocas.
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