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domingo, 27 de julho de 2014

O amor vencerá



Queridos amigos divers@s!

Aconteceu! Neste dia 26 de julho foi parido o nosso
I Encontro Nacional de Grupos Católicos LGBT. Um filho gerado há alguns meses e tão aguardado, nasceu e foi lindo. A ansiedade do preparo do enxoval foi a típica de quem espera alguém que não sabe como vai sair mas que já ama com todo o seu ser. Fruto do amor, esperado com todo o carinho do preparo, naqueles meses que antecediam sua chegada, e enfim... nasceu!!!

Um fato bastante emocionante durante este encontro, foi que em 8 anos da história de existência do grupo, pela primeira vez, tivemos entre nós a presença de uma pessoa representante dos "T".

M. é travesti, professora, psicóloga, feliz, filha de Deus e tão amada por Ele quanto qualquer outro ser humano, a obra mais perfeita da criação.

Foi emocionante ter a presença de M. em nosso meio porque naquele momento em que ela se pronunciava eu me lembrava do momento em que eu assumi pra mim mesmo que era gay e assumi que eu não poderia mudar isso em mim. Eu acreditava (mesmo antes de conhecer o DC) que se eu era assim então foi Deus que me criou assim, logo eu não poderia mudar em mim os planos de Deus. Me afastei da religião e não de Deus. Pois Deus não me condenava, mas eu acreditava que a religião sim. Fui me afastando dos meus trabalhos pastorais, pois mesmo tendo a certeza que ser gay não era uma escolha e sim a vocação para o qual fui chamado, eu me sentia um hipócrita por estar na igreja e não viver o que as pessoas naquela doutrina me diziam que era correto.

Eu me afastei da minha religião, por achar que ela me condenava. Mas mesmo assim este afastamento não foi total, vez ou outra lá estava eu sentado na missa, saboreando a palavra de Deus, o que não me deixava desanimar e enfraquecer totalmente ao ponto de me entregar. Pra mim era muito cômodo: Sou gay, mas ninguém sabe que sou gay. Se eu não contar ninguém vai me apontar o dedo, julgar ou me limitar nos espaços físicos da igreja.

E digo para vocês, mesmo assim era muito difícil viver assim. Mesmo assim era um processo desgastante estar ali, mesmo sem estar sob os olhares de acusação, mas o sentimento de culpa fazia com que eu achasse que todos estavam me olhando, julgando e condenando.

Agora vamos às analises dos fatos. Se eu, que passava despercebido sob os olhares acusadores dos homens da nossa sociedade que constituem nossa igreja, me sentia tão abandonado naquele meio. Imagina pros nossos irmãos e irmãs da classe T da sigla que nos define. Passava despercebido porque eu não assumi a minha homossexualidade em minha comunidade, então eu era apenas mais um na multidão. Mas Travestis, Transsexuais e Transgêneros, pela coragem que têm de assumir quem realmente são e adotar para si o estilo de vida que os fazem feliz, não conseguem passar despercebidos. Creio eu que um T quando passa por este conflito de poder ou não ser católico e ser quem realmente é, e opta por ser feliz vivendo da forma que foi criado para viver, ao se afastar da Igreja, ten seu afastamento total desta Comunidade. Para evitar sofrer com os olhares acusadores que os cercam. Eles não conseguem ser apenas mais um na multidão.

Receber M. em nosso I Encontro Nacional de Grupos Católicos LGBT foi um momento de muita alegria e ao mesmo tempo de reflexão sobre o tema "Avancemos para águas mais profundas". A própria M. em seu discurso nos relatava o que não seria novidade para nós, que muitas de suas amigas quando se descobrem e se aceitam deixam de ser católicas por não se sentirem acolhidas por Deus.

Deixam de ser católicas? M. tem grande dificuldade, no começo de sua fala, de se dizer católica. Por que?

M. e toda a comunidade de Travestis, Transsexuais e Transgêneros são criaturas de Deus, criada por Ele única e exclusivamente. Amados por Ele de forma incondicional. Batizados, são chamados e aceitos pela Igreja como filhos de Deus. Ora, não é o batismo um sacramento de caráter indelével na alma? Então nenhum batizado deixa de ser filho de Deus, nem por opção, nem por qualquer tipo de condenação.

Assim como M. tantos outr@s T, estão por aí se dizendo não mais católicos. Assim como ela tantos outr@s precisam ser lembrados do amor incondicional de Deus. Precisamos continuar buscando evangelizar nas periferias da nossa sociedade, onde pessoas estão se esquecendo que Deus é apenas Amor. Precisamos ir em busca dos que estão sendo convencidos, erradamente, de que Deus seleciona seus filhos amados. Precisamos ir em busca dos que ainda precisam saborear Deus, não apenas ouvir falar nEle. Precisamos arriscar viver por Amor.

 "O amor vencerá!"

Cabo Frio, 27 de janeiro de 2014, DG, 28 anos, membro do Diversidade Católica do Rio de Janeiro.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Garotos e garotas lindas que só precisam ser amados...


O autor deste emocionante depoimento (e, caso queira ler mais depoimentos, há uma série deles na tag "gay e cristão", aqui) nos enviou, para compartilharmos com vocês, esta carta que lhe foi enviada por sua mãe. Que suas palavras possam inspirar outras famílias, e que possam alimentar nossas esperanças na caminhada.

Hoje, 25 de junho de 2014, às 15:00h, hora da misericórdia, tive uma conversa muito sincera, tranquila e especial com o meu filho mais velho. Os amores da minha vida, na verdade, são dois: ele e seu irmão, as pérolas que Jesus me concedeu...

Mas, nessas linhas, quero me expressar sobre a conversa que tive com o meu filho mais velho, de 23 anos. Entre sorrisos e lágrimas, ouvi o que há muito tempo esperava ouvir de sua boca. E com muito amor, carinho e compreensão, graças a Deus, pude acolher o que o meu filho tinha para me falar. Claro que o ajudei, pois para ele foi muito mais difícil, mas com toda delicadeza e cuidado, como sempre, ele me disse: “mainha, eu sou gay”.

Hum... Olhei para aqueles olhinhos cheios de lágrimas e disse: “filho, mainha já sabe”, dei um forte abraço no meu João e disse-lhe: “você é o meu filho amado, aquele que Jesus com sua infinita misericórdia me deu. E eu sou a mãe mais feliz do mundo por ter você como filho. Filho que nunca me deu trabalho, e sim muitas alegrias”. Enxuguei seus olhinhos com cheirinhos e o lembrei do quanto ele me fazia bem. Fiz questão de repetir o que sempre disse a ele: “Você é uma pessoa incrível, de caráter muito íntegro, e de um coração tão grande que não sei como cabe em você”

Filho, você me mostrou com sua vida e dignidade o respeito para com os outros, o amor e, principalmente, o objetivo de ser um homem de Deus, tornando o caminho de quem passa por você mais florido e esperançoso.

Quero te agradecer, meu amor, por todos os momentos em que você foi tão generoso comigo, você é um filho que toda mãe gostaria de ter, mas quem tem sou eu...

Queria muito que todas as mães de filhos gays pudessem te conhecer e conversar um pouquinho com você.

Quem sabe as que ainda não conseguem abraçar os seus filhos, fossem abraçadas por ele e, daí, começassem a amar os seus filhos como eles são: garotos e garotas lindas que só precisam ser amados. Quero te deixar aqui, nessas linhas, uma palavra de sua mainha: enquanto vida eu tiver e por onde quer que eu vá, sempre defenderei essa causa com toda a força do meu coração!

Te amo, te amo, te amo...

Sua mainha

P.S: Cheirinhos nos olhos, meu menino mais lindo do mundo!

quarta-feira, 5 de março de 2014

Por uma nova experiência de transformação


Sempre acreditei que todos nós LGBTs estivéssemos ligados intrinsecamente por meio do sofrimento que enfrentamos em nosso processo de aceitação. Mas refletir sobre um texto me levou a perceber que descobrir o que realmente nos liga pode mudar nossa percepção de identidade e justiça.

No dia 21 de fevereiro, a queridíssima companheira Ivone Pitta publicou em seu blog um texto tão bonito quanto instigante, cujo título é “Apenas um Aniversário” (aqui). Ao lê-lo, me identifiquei imediatamente com a história e decidi deixar um comentário breve acerca daquilo que eu havia percebido como pontos mais importantes. Mas senti que eu poderia colaborar um pouco mais e daí nasceu o presente texto, onde estendo as ideias que levantei a partir do relato de Ivone.

Segue seu texto:
“Há pouco mais de 20 anos conheci minha primeira namorada. Eu católica daquelas de sábado e domingo na igreja, homotransfóbica, tímida daquelas de ter vergonha da própria sombra, ela com o namorado, na festa de aniversário de uma amiga em comum. E o que seria apenas um aniversário como tantos outros, tornou-se um marco divisório em minha vida.

Nos vimos logo após minha chegada, olhamos uma para a outra: olhos brilhantes, sorrisos rasgados. Havia algo diferente. Olhei pro céu e implorei para o deus no qual eu ainda acreditava que não fosse verdade aquilo que eu estava sentindo. Ela, mais corajosa e sem as mesmas amarras, fez a aproximação que eu desejava mais que tudo naquele momento.

Começamos a namorar 20 dias depois e eu hoje nem lembro por que razão há esse intervalo, mas lembro que durante a primeira semana de namoro eu ligava para ela pela manhã para terminar a relação que implantaram dentro de mim ser errada, pecaminosa, anormal, doentia, mas que a noite estava mais feliz do que jamais havia sido, estando na companhia dela.

Ela ter suportado minhas crises de homofobia internalizada fez toda diferença para tudo o que veio depois entre nós e para que eu me tornasse quem sou hoje. E aqui penso como nós LGBTs não vivenciamos nossa adolescência, juventude e até a vida adulta como quem se alinha bem à heterocisnormatividade, como somos reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente. E me emociono em pensar no que tive de vencer em mim mesma nestes últimos 20 anos até chegar nesta militante que vocês veem hoje. E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.”

Minha história se confunde com a dela. A descoberta do amor aos 20 e poucos anos, a prática do catolicismo paroquial que me tirava do mundo aos finais de semana e o extremo medo e raiva dos gays, lésbicas, trans e toda sua corja de depravados. As histórias de muitos de nós, católicos que se descobrem gays, encontram eco nesse relato. A dicotomia constante com retoques de transtorno bipolar: longe da pessoa amada sobrevinha a sensação de erro, pecado, anormalidade, doença; ao lado dela, amor, companhia, segurança.

Talvez por ter lido tantos relatos como este, desenvolvi uma crença de que todos nós gays estamos de alguma forma conectados uns aos outros por termos experimentado, ao longo da nossa trajetória, o sofrimento de extrema exclusão gerado pela homofobia interna e/ou externa. Esse sofrimento tornou-se, para mim, como que uma insígnia, uma distinção, um elemento que ao mesmo tempo em que nos marca e nos separa de tantas pessoas importantes, nos une a outras. Ele fez com que nós nos organizássemos em associações e reivindicássemos voz e direito no campo social, e em torno dele se erigem discursos afirmativos que hoje começa a mobilizar uma parcela da sociedade que não tem ligação direta com esse sofrimento. Em outras palavras, no caminho transcorrido até aqui, nossos sofrimentos individuais e coletivos enquanto LGBTs tem sido o pilar central da nossa unidade ideológica. E no tocante a nós, católicos gays, identificar a Igreja como uma das principais instituições por trás da construção histórica do preconceito faz com que nossos sofrimentos individuais se relacionem com a crença num Deus impossível, que não me amava, que não era próximo a mim, que não havia me criado como eu sou.

Mas as nossas histórias não pararam aí. Uma espécie de força de vida nos fez caminhar para fora da condenação e nos conduziu em direção a um autoconhecimento. Somente partir daí é que o amor a mim mesmo e ao outro se tornou possível. No entanto, se lançarmos um olhar mais profundo sobre essa tal “força de vida”, poderemos perceber que ela é formada por muitos níveis. Em sua periferia habitam experiências da minha própria história e da história de outros que de alguma forma comigo se relacionaram. Lembro-me das falas relativas a um parente assumidamente gay que, mesmo condenado por diversas vozes importantes da família, insistia em ser uma referência de liberdade exótica para mim. Ou a estranha imagem do casal gay que foi vizinho nosso e de quanto incomodava ao condomínio o carinho que demonstravam ter um pelo outro. Num nível mais interno, percebo que essa “força de vida” é formada por exemplos de liberdade verdadeira que podiam vir, inclusive, de pessoas infelizmente homofóbicas, como meus parentes. A luta dos meus pais para que eu tivesse acesso a uma educação que me permitisse olhar o mundo com olhos de quem quer ser livre, os torna também parte dessa força. Ainda mais por dentro dessa força, encontramos as experiências de verdadeiro afeto, carinho e amor que muitas pessoas tiveram para conosco, como algumas avós que insistiam em nos amar de tal maneira como se quisessem nos mostrar que nós poderíamos ser verdadeiramente felizes. Em especial, lembramos também daqueles que conosco se relacionaram afetivamente quando ainda não nos aceitávamos. Sua paciência e dedicação nos deram a perceber a natureza de um amor verdadeiro, pois foram capazes de suportar nossas intensas crises de autocondenação.

Observar com mais cuidado como essa não tão óbvia rede de personagens atuou na construção e manutenção daquilo que chamei de “nossa ‘força de vida’”, me faz perceber que meu caminho em direção à aceitação não foi tão sem referências quanto eu imaginava. Se como diria Eric Fromm "a principal tarefa do ser humano nesta vida é dar a luz a si mesmo", pode ser que meu nascimento em direção à autoaceitação tenha se baseado numa importante rede de condições de possibilidades e que, dada sua intensidade, foram capazes de semear em mim o gérmen de uma coragem irredutível e, sobre certos aspectos, inexplicável. Hoje, vejo essa mesma força nos fazendo assumir com tanto orgulho a grandiosidade da nossa sexualidade, nos fazendo querer ser pessoas melhores para o mundo, nos fazendo querer ajudar aqueles que estão passando por esses mesmos sofrimentos, nos fazendo lutar por uma sociedade mais justa, nos fazendo optar pela verdade em todas as circunstâncias. Essa força nos motiva e nos faz acreditar no bem, na liberdade do amor, nas verdades inscritas em nossas consciências, na felicidade ímpar em ser você mesmo.

Assim, poderia arriscar uma nova luz sobre aquilo que nos liga enquanto gays: hoje, eu creio que é essa “força de vida” que nos conecta verdadeiramente, inclusive mais do mais que os nossos sofrimentos pessoais e coletivos. O que dá coesão às nossas histórias e as conectam entre si é muito mais o nosso nascimento para uma nova e verdadeira vida do que a dolorosa morte que o precedeu. Porque todo sofrimento foi enfim justificado é que podemos dizer que nossa luta não foi somente contra a sociedade, ou contra a igreja, ou contra nossos pais, foi contra o que nós mesmos acreditávamos e contra toda a estrutura de poder que internalizamos. Mas nossa batalha não foi tão solitária: diversas sementes estranhas aos nossos preconceitos brotaram e floresceram lindas em nossos corações, ao sabor d’um certo vento vindo não sei de onde.

Nós, os “reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente”, como diz Ivone, poderíamos agora nos olhar sob uma nova perspectiva: porque não deixar que o testemunho de renascimento se sobreponha ao do sofrimento nos nossos discursos enquanto LGBTs? E especialmente nós, gays católicos, porque não nos tornar os vanguardistas desta postura? Proponho que troquemos a chave de nossos discursos: em vez de “nós, os reprimidos”, diríamos “nós, os renascidos”. Digo isto em defesa de um olhar que nos conectaria não apenas entre nossos iguais, mas aos nossos Outros, e que por ser tão mais útil e agregador não se trataria de um processo de enquadramento da memória, mas da percepção de que talvez as antigas lágrimas tivessem a função de regar o solo para que neste brotassem as novas sementes de uma vida, e vida em abundância.

O papel da denúncia que leva à frente os nossos sofrimentos individuais e coletivos é ainda muito importante, pois muitas violências morais e físicas precisam hoje gritar o nome de seus mortos diante de seus assassinos. Mas agora proponho um novo passo ainda mais ousado para dentro da estrutura daquela “força de vida” que eu havia mencionado. Um passo tão intenso e visceral que muitos poderiam taxá-lo de descabido, sentimental ou mesmo romântico. Proponho um passo de fé. Olhemos para o centro dessa coragem exótica que nos fez aceitarmo-nos como somos mesmo em face de toda adversidade para fazê-lo. Lá, escondido no âmago desta força, há algo que a torna viva e cada vez mais operante, tanto que descobri-la não nos paralisou em nossas memórias, mas a usamos como alimento para nossa jornada. E de tal sorte pode esta força nos cativar e iluminar que hoje me portador de uma luz para o mundo, compreendo minha responsabilidade para com uma nova proposta de civilização, onde verdadeiramente compreendamos a essência de uma velha expressão: “dar a outra face”.

Uma leitura rasa dessa expressão bíblica traz consigo o perigo de uma postura que cria uma série de “vítimas santificadas”, conceito que margeia um masoquismo hedonista. Ao permitir que nos conectemos a partir de nossos sofrimentos, estamos o convidando para compor nossa identidade, o que de maneira nenhuma poderia acontecer. Assim como aquele que dá a outra face não será elevado por ser o coitadinho indefeso, não seremos elevados por ostentarmos nosso sofrimento. E o gay católico tem a enorme responsabilidade de convidar a comunidade LGBT e a sociedade como um todo a compreender que esta expressão não defende o derrotado ferido que dá a outra face para se livrar da responsabilidade da denúncia e, talvez por sua submissão, receber a "recompensa" do "céu". A “outra face” aqui tem um sentido simbólico muito mais profundo: seríamos capazes de abrir mão em definitivo da justiça parcial – baseada nas leis que legitimam a vingança violenta – praticada pelo homem através de tantas gerações para assumirmos a responsabilidade da nova justiça proposta por Jesus – baseada na misericórdia? “Dar a outra face” é abandonar a vingança legal e a violência permitida e estabelecer princípios de justiça que faça meu coração solidário com a condição miserável do meu agressor, ainda que eu seja a vítima mais óbvia. A nossa “outra face” deve esta: misericórdia e não sacrifícios.

Abrir mão da vingança violenta legitimada desde a Lei de Talião é o passo para dentro de uma renovação poderosa não só do movimento gay, mas das estruturas desumanizadoras que, ao mesmo tempo em que o comportam, contra ele batalham. Isto porque nossas críticas às instituições de poder não podem ser nossa única palavra no campo nos quais atuamos. Como ponto de partida, elas são fundamentais, mas se nos detemos neste caminhar em direção à compreensão do ser humano em todas as suas dimensões, não conseguiremos nos solidarizar com os nossos Outros. Nosso discurso perderá sua força profética, trará frutos por ora interessantes, mas que se mostrarão inversamente discriminatórios porque estão pensados dentro da mesma lógica dicotômica na qual fomos forjados. Se restringirmos nosso olhar às nossas questões, secaremos como uma figueira amaldiçoada.

“E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.” Não me parece à toa que Ivone demonstre sentir-se grata àquelas que estavam próximas. Este sentimento também me invade quando me lembro de tantos amigos que me apoiaram, estiveram ao meu lado, próximos a mim. E hoje convido você a revisitar sua trajetória e dar uma resposta afetiva positiva de gratidão a todos que direta ou indiretamente contribuirão para seu processo de aceitação. Gratidão poderia ser mais uma característica desta “outra face” a oferecer para o mundo, mais uma vez, não em “agradecimento” pela agressão sofrida que nos confere a confortável posição de oprimido, mas por tantas situações que nos permitem hoje sermos misericordiosos, solidários com nosso opressor para, enfim, ajudá-lo a também se libertar de sua opressão.

E finalmente, te proponho uma possibilidade. E se eu chamasse de "Deus" àquele que reside no centro de nossa força de vida? Seria apenas um nome. Mas diante de tantas conexões, de tantas novas visões e de tanto renascimento, não seria impróprio eu agradecê-lo por ter a oportunidade de conhecer e me conectar com histórias fantásticas como a de Ivone. Se abrirmos mão do sofrimento como única ligação entre nós, talvez passássemos a enxergar quão intensa é a ruptura que nós propomos, e quanto ela é capaz de oferecer outras respostas para as dores do mundo. Talvez essa nossa nova postura incentive na busca por uma justiça social verdadeira e profunda, só possível em toda sua plenitude se atrelada à misericórdia. Talvez esse lugar dispense a sua identidade, mas certamente hoje eu agradeço a Deus por essa força que você, eu e tantos outros tivemos.

Super beijo!

Pedro

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A verdade sobre a homossexualidade


Nossos amigos do Equally Blessed começaram o ano compartilhando um texto do padre americano Gary F. Meier no Huffington Post, do qual traduzimos e compartilhamos parte com vocês (para ler o artigo original, na íntegra, clique aqui). O Pe. Meier lançou em 2013 o livro Hidden Voices, Reflections of a Gay Catholic Priest ("Vozes Ocultas - Reflexões de um padre católico gay"), a princípio anonimamente, para depois assumir que era o autor do livro. Seu testemunho é rico e significativo, e coincide em muitos pontos com a carta que enviamos aos Bispos da Igreja Católica (saiba mais aqui. Ainda não assinou a petição on-line? Clique aqui!). Suas palavras sobre a verdade e a necessidade premente de mudança, especialmente, encontram eco em nosso pedido:
"Pedimos, então, não como mera questão acadêmica, mas como urgente exercício de responsabilidade pastoral, que os Senhores busquem a maneira de entrar pública e honestamente no processo de elucidar conosco aquilo que realmente é neste campo. Sem medo da verdade, pois sem ela, nenhuma Pastoral Católica é possível. O medo da verdade, além de pouco eficaz para a ação pastoral, também é inútil, pois, como lemos na Declaração Dignitatis Humanae, n.1, do Concílio Vaticano II, 'A verdade não se impõe de outro modo senão pela força da própria verdade'".

Segue o texto.


(...) Faz pouco mais de seis meses que anunciei que sou o autor de Hidden Voices, Reflections of a Gay Catholic Priest, e muita coisa aconteceu . O livro foi lançado no dia 23 de maio de 2013, e levou a uma série de entrevistas de televisão, rádio e jornais. Muitas dessas entrevistas podem ser encontradas no meu site (...).

Meu livro tem gerado muito interesse e, literalmente, milhares de e-mails e cartas de pessoas de todo o mundo. De tudo que recebi, apenas alguns foram negativos. O resto são um misto de e-mails de apoio e mensagens afirmativas daqueles que foram feridos pelos ensinamentos da Igreja Católica sobre a homossexualidade. Entristece-me que uma igreja que eu amo possa ser tão prejudicial para muitos de seus membros " - pessoas boas e amorosas . São seminaristas, sacerdotes, bispos, alguns jovens LGBT e seus pais, e aliados LGBT - todos eles estão desesperadamente tentando conciliar o que eles acreditam sobre a homossexualidade com o que a Igreja ensina. Se aprendi alguma coisa em 2013, é que o nível de dor que causamos é mais profundo do que eu poderia ter imaginado.

Recebi um e-mail de uma mãe cujo filho estuda em uma escola primária católica. Ela está tentando conciliar suas crenças com a decisão de sua escola de expulsar os escoteiros por causa de sua "nova política pró-gay". Ela me escreveu: "Será que realmente quero pertencer a uma instituição que não vai permitir gays em suas instalações?". Um homem hétero escreveu: "É cada vez mais difícil para mim continuar indo à missa sabendo que meus amigos gays e seus cônjuges não são bem-vindos no altar". Uma avó escreveu: "O meu neto é gay e vai se casar em poucos meses, e não sei o que fazer. Amo meu neto e amo seu parceiro. E amo a minha igreja. Será que os bispos percebem a posição em que estão nos colocando?". Um padre gay, de seus 60 anos, escreveu: "Um pedaço de mim morre cada vez que pego o jornal e leio mais falas anti-gays vindas de bispos católicos. Sinto-me encurralado entre permanecer em silêncio ou perder meus rendimentos, minha aposentadoria, meu plano de saúde - tudo".

Recentemente, almocei com a Irmã Jeannine Gramick, SL, co-fundadora do New Ways Ministry, e Mathew Myers, seu diretor-adjunto. Eles perguntaram: "O que podemos fazer para incentivar outros padres gays  a sair do armário?" Respondi: "Os padres não saem do armário por medo. Mas desconfio de que seu medo é mais de perder seus meios de subsistência (renda, aposentadoria, moradia, alimentação etc.) do que de ser rejeitados. Se minha história pode servir de exemplo do que as pessoas acreditam, parece que elas estão dispostas a aceitar padres gays. É o medo de perder tudo que é assustador".

Os e-mails mais perturbadores vêm de adolescentes anônimos que falam em "acabar com tudo" e se dizem dilacerados por se acreditarem falhos, desordenados, doentes ou, de alguma forma, traidores. Só posso imaginar a coragem que um adolescente precisa ter para escrever em segredo um e-mail e enviá-lo para mim. Eles estão em minhas orações todos os dias.

Em meados de novembro, recebi uma carta da arquidiocese de Saint Louis, afirmando que o arcebispo gostaria que eu "solicitasse voluntariamente minha demissão do estado clerical". A carta chegou a dizer que, se eu não "solicitasse voluntariamente minha demissão, a diocese dará início a um processo involuntário para me retirar do estado clerical". De um jeito ou de outro, seguir sendo um clérigo não é uma opção para mim.

Afirmei desde o começo que nunca duvidei da minha vocação ao sacerdócio e retornaria ao ministério ativo se pudesse falar a verdade sobre a homossexualidade. Para que isso aconteça, a igreja teria de mudar ou ampliar seus ensinamentos sobre a homossexualidade. Nosso novo Papa nos dá a esperança de estarmos em um bom caminho. Costumo dizer que sinto-me "cautelosamente otimista" a respeito do novo tom adotado pelo Papa. Otimista com relação à possibilidade de que, um dia, os ensinamentos da igreja vão mudar; e cauteloso, porque os ensinamentos da igreja ainda não mudaram. Nesse meio tempo, católicos continuam perdendo seus empregos e a ter os sacramentos negados em nossa igreja simplesmente por causa de quem eles amam.

Então, aonde é que isto me leva? Isso me leva a seguir em frente e continuar a falar a verdade - a verdade de Deus - a verdade sobre a homossexualidade. A verdade de que a homossexualidade não é uma cruz, não é uma doença, não um transtorno, mas um belo presente de Deus. A verdade de que fomos criados por amor, com amor - e a verdade que reconhece a dignidade e a igualdade inerentes a todas as pessoas, independentemente de quem eles amam. Santa Catarina de Siena disse: "Fale a verdade com mil vozes; é o silêncio que mata o mundo". 2013 chega ao fim, eu estou ansioso por um novo ano e um novas oportunidades para falar a verdade. (...)

- Pe. Gary M. Meier
(Fonte)

sábado, 28 de dezembro de 2013

"Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância" (João 10,10)


Nosso querido amigo Pe. James Alison, teólogo e escritor, nos enviou este emocionante depoimento, com a concordância do seu autor, para compartilharmos com vocês (e, caso queira ler mais depoimentos, há uma série deles na tag "gay e cristão", aqui). Ao fim deste ano que foi tão rico, ler essa carta é, para nós, um testemunho de fé que nos anima e nos enche de esperança para nossa caminhada no ano que se inicia. Que venha 2014, e que traga bons frutos!


Caro James Alison, graça e paz!

Sou filho de uma família católica, um tanto conservadora, pois são ligados ao movimento carismático. Meu avô era homossexual, casou-se com minha avó a pedido dos seus pais que, praticamente, combinaram tudo e o jogaram para casar-se com uma mulher, pois não queriam um filho gay. Naquela época, tudo era bem mais difícil. Meus avós tiveram três filhas (dentre elas, obviamente, a minha mãe). Os anos se passaram e os casos extraconjugais do meu avô começaram a aparecer. Minha avó, (para evitar o que considerava “um escândalo”) pediu o divórcio, deixando-o com sua irmã. Pouco tempo depois, ele se suicidou ingerindo "chumbinho", veneno para ratos. E, assim, perdi o meu avô, homem de um coração gigantesco, mas que foi vítima de preconceitos internalizados historicamente.

Aos 12 anos, descobri que também sou gay. Sentia-me atraído por outros garotos. Não sabia muito bem lidar com a situação. Eu tinha medo, Padre Alison. Tinha medo da minha família, do que as pessoas iriam pensar, do fantasma que era a história do meu avô. Mesmo diante dos medos, lancei-me nas descobertas, nas aventuras dos primeiros relacionamentos. Eu era um adolescente descobrindo o mundo e a mim mesmo. Um ano depois, a minha família começou a descobrir. Os conflitos e dificuldades começaram a aparecer. Lembro-me, com clareza, do olhar desaprovador da minha avó para mim, suas palavras severas, seu medo diante daquilo que não compreendia. No olhar da minha avó, conseguia enxergar o pavor da repetição, era como se o mesmo caso do meu avô se repetisse em seu neto. Era como uma maldição! Pensei em me suicidar também. Sentia-me sujo, pecador, miserável. Minha família dizia que eu precisava rezar, confiar e pedir a Deus que me curasse, que expulsasse de mim o "demônio' da homossexualidade.

No dia 01 de maio de 2005, data do meu aniversário de 14 anos, aceitei - depois de muita insistência da minha avó - participar de um acampamento para jovens, que estava acontecendo no Centro de Evangelização de uma Nova Comunidade (dessas que são fruto da espiritualidade do movimento carismático). Lembro-me que, ao chegar lá, a multidão de jovens reunidos no local, a princípio me incomodou, pois era um dia quente e não havia mais lugares para sentar. Apesar de tudo, naquele dia, ao ouvir a pregação de um padre (palestrante do evento), senti-me tocado por Deus, amado por Ele. Uma revolução começou em minha vida. Ao final do dia, voltei para casa. Estava em lágrimas. Alguma coisa, que eu não sabia explicar, acontecia dentro de mim.

Depois daquela experiência, passei a frequentar assiduamente Grupos de Oração da Renovação Carismática Católica, acampamentos de oração para jovens, frequentar a missa e demais atividades da Igreja. Convenci-me de que havia descoberto a verdade, o caminho de uma salvação que me era garantida pela fé. Convenceram-me de que era preciso que eu me desligasse do mundo, das festas seculares e, principalmente, das "amizades que me conduziam ao mau caminho". Naquela época, eu tinha muitos amigos homossexuais. Perdi todos eles, pois me afastei de todos. Hoje, lamento profundamente as perdas afetivas desse período. Cada dia mais cultivava em mim e naqueles que estavam próximos uma espiritualidade desencarnada, afastada de tudo que fosse humano. Comecei a frequentar orações de cura, de libertação, nas quais acreditava que Deus me curaria e libertaria da homossexualidade. Conseguia me manter “fiel” a esses propósitos por um tempo, mas, vez ou outra, não resistia e acabava “ficando” (para usar a popular expressão tão comum entre os jovens) com alguém ou vendo algum material de teor pornográfico. O que me fazia ficar com a consciência pesada e, consequentemente, me entregar a penitências e mais orações de cura.

Aos dezesseis anos, após um processo de discernimento vocacional, decidi ingressar em uma Nova Comunidade de Vida Consagrada. Comunidade que também está ligada ao movimento carismático. Lá não foi diferente. Permaneci no solo moralista de minhas concepções fechadas, demonizando minha sexualidade e evitando tudo que me remetesse ao meu ser e estar no mundo. Dentro da comunidade optei pelo sacerdócio e, tendo meu pedido aceito, fui morar na casa dos seminaristas. Passei a conviver com um mundo diferente: o dos estudos filosóficos. A filosofia foi para mim uma alavanca de libertação. Sentia como se um martelo quebrasse – progressivamente - minhas convicções, dogmatismos e moralismos, fundados no solo conservador da Renovação Carismática. Sempre gostei de estudar, o mundo dos livros nunca me foi estranho ou desconhecido; talvez isso tenha contribuído no processo de “crise” (enfrentamento de si), em que adentrei logo no início da filosofia.

Fiz uma travessia intelectual. Foi minha segunda conversão. Certa vez, ao ler um texto de Henrique de Lima Vaz sobre Agostinho, descobri que na história do filósofo e doutor da Igreja aconteceu uma espécie de “itinerário de conversões filosóficas”. Ao olhar para minha história, também percebo isso. Minha mudança acarretou uma série de consequências, principalmente no ambiente eclesial em que me encontrava. Comecei a questionar os “tabus” (aquilo, para citar Freud, sobre o qual não se podia falar). Progressivamente, fui percebendo que na comunidade em que estava não conseguiria crescer como pessoa gay e como cristão católico, coisas que, a meu ver, estão interligadas indissoluvelmente. Pensar é atividade de risco em lugares fechados. Minhas leituras, em linguajar sartreano, eram como um “inferno” para mim. Revelavam-me o quão estranho eu era para mim mesmo, o quão desumano haviam sido meus últimos anos. Nesse período, arrisquei-me em algumas aventuras amorosas. A proibição, o tabu, o moralismo farisaico, instigavam-me a querer infringir, romper com a lei moral. Fiz isso algumas vezes, mas sabia que não podia permanecer em uma farsa, não suportava mais fugir de mim mesmo, negar o que eu era, ser reprodutor dos mesmos discursos dos quais outrora fora vítima. Não podia ser desonesto comigo, com minha fé, tampouco com os outros.

Na época, morava n’outro estado, um pouco distante do meu lugar de origem, e, deveria continuar os estudos filosóficos e teológicos lá. Todavia, a vida me preparou uma surpresa. Minha mãe caiu em uma terrível depressão, e os meus superiores acharam por bem que eu ficasse por perto. Fui transferido para a capital do estado em que vive minha família. Até hoje, eles vivem em uma cidadezinha a 70 km da capital. Lá dei continuidade ao curso de filosofia na Universidade Católica (onde lhe vi pela primeira vez, no Simpósio Internacional René Girard). Na Católica aconteceu minha terceira conversão. Conheci a Teologia da Libertação e entrei em uma estreita aproximação com os Jesuítas e com religiosos de outras congregações e ordens. Tudo era novo para mim. Eu que cresci em um cenário eclesial fortemente conservador, moralista e fechado, começava agora a conhecer horizontes novos, arejados por ventos eclesiais mais humanos. Conheci seminaristas com os quais podia conversar sobre a minha homossexualidade, partilhar minhas questões existenciais. Eu era o único seminarista de uma Nova Comunidade lá. Um ano depois, decidi fazer nova travessia. Como os discípulos, ao ouvir ressoar a palavra do Mestre, sentia que precisava lançar as redes de novo (Cf. Lucas 5,5). Foi no período em que conheci alguns frades de uma Ordem Religiosa. Era um grupo humano, de identidade marcada pela teologia da libertação, com um excelente trabalho no meio popular e no diálogo com a sociedade. Após um período de conhecimento e discernimento decidi sair da Nova Comunidade, em que até então estava, e ingressar no seminário dessa Ordem. E assim o fiz.

Hoje faz um ano que estou com eles. Não me arrependi da escolha. Continuo querendo ser padre. Continuo acreditando na Igreja. Mas, hoje, antes de ser padre, antes de ser religioso, quero ser uma boa pessoa, um bom ser humano. Não sei fazer isso de outro modo a não pelo da aceitação de minha condição homossexual. Esse ano, pela primeira vez, senti-me à vontade em partilhar com meu formador que eu sou gay. Ele é um ser humano fantástico, me acolheu e disse que era um sinal de maturidade humana reconhecer isso. O Grupo religioso em que estou é muito aberto nessa questão. Nós, formandos, conversamos sobre isso com naturalidade, não escondemos um do outro o que somos, independente de quem é hetero ou homossexual. Estou feliz! Sei que ainda tenho muito a crescer. Quero fazê-lo. Minha família continua não sabendo sobre minha condição, tenho vontade de assumir para eles, mas ainda tenho medo e não sei muito bem como fazer.

Hoje li um artigo seu. Você não sabe como ele foi importante para mim. “Um pequeno erro no começo torna-se muito maior ao final: rumos da discussão eclesial sobre a questão gay” [que publicamos aqui], uma conferência que você deu em um congresso de Teologia Moral. Foi a leitura desse artigo que me motivou a querer contar um pouco de minha história para você. É a primeira vez que narro a minha história de forma tão livre, tão leve, sem culpa. Gostaria de lhe pedir que rezasse por mim. Sinto como se sua história tivesse se cruzado com a minha, não sei como. Ao escrever isso, lágrimas correm no meu rosto. Também quero lhe pedir ajuda. Que me ajude nesse processo de honestidade, de aceitação; pois, como disse acima, poucos são os que sabem sobre mim. Eu não quero ser um religioso, um padre, um ser humano que vive na penumbra da mentira, sob o véu do mistério. Eu quero, antes de tudo, poder ser eu mesmo: filho de Deus, gay, cristão, humano.

Não sei se você chegará a ler essa carta. Mas, se por acaso chegar a ler, ficarei muito feliz e grato. Receba o meu abraço! Muito obrigado pela paciência em passar os olhos sobre essas letras que, juntas, revelam um pouco do que eu sou. Espero, um dia, poder te conhecer pessoalmente. Não somente lhe ver (como foi no Simpósio sobre o Girard), mas ter o prazer de lhe abraçar e agradecer pessoalmente pelo seu testemunho que tem curado tantas histórias, que ajudou e ajuda a curar a minha.

S.G.P.
Dezembro de 2013




segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"Não se podem pular etapas"

Nosso querido Arnaldo, um dos fundadores do Diversidade Católica, foi entrevistado para a matéria de capa da revista Época desta semana - que faz um balanço deste início de pontificado do Papa Francisco - e contou um pouco da sua história. Se quiser saber mais, você pode ler seu depoimento aqui - e, para depoimentos de outros membros e amigos do grupo, é só clicar na tag "gay e cristão", aqui. :-)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Sim, somos gays e católicos!


Linda a matéria que saiu no Portal Todavia com nosso amigo Murilo Araújo e o Ed, membro do Diversidade Católica.

O batismo ainda pequeno, a catequese logo depois, a missa aos domingos na companhia de algum familiar, talvez até a participação em um grupo de jovens mais tarde e uma identidade religiosa é estruturada. Foi assim com Murilo Araújo, André Soares e Edilmar Alcântara, três rapazes que além de compartilhar da fé e de uma formação baseada no catolicismo, tiveram outra coisa em comum: precisaram lidar com suas condições sexuais dentro da religião.

Se as heranças religiosas familiares de Murilo levaram aos seus primeiros passos na Igreja Católica, o gosto pela vivência cristã foi sendo desenvolvido em sua própria formação pessoal. Um ano antes do permitido, Murilo decidiu pedir a sua mãe para entrar na catequese e, ainda adolescente, sua missão no grupo de jovens já era uma realidade. “O que antes era um vínculo mais ligado à coisa da família, virou uma parte da minha vida mesmo. Até o meu amadurecimento para pensar a sociedade, a minha vida social e a minha forma de estar no mundo foram desenhadas pelo meu vínculo com a minha comunidade de fé e pela minha vivência religiosa. Isso é muito forte pra mim”, confessa.

Para André, o caminho pela religião foi ainda mais intenso. Neto de católicos praticantes, ele chegou a se dedicar na missão de ser padre e morou em um seminário. “Desde menino, meus avós me levavam à igreja. Para aceitar a minha verdadeira identidade como filho de Deus, já estive morando em um seminário e também fiz parte da ordem franciscana. Quanto a minha identidade sexual, fico muito tranquilo hoje quando alguém me pergunta se sou gay”, revela.

É nesse processo de descobertas sexuais que a maior parte dos jovens entra em conflito. Segundo pesquisa da Universidade da Columbia, em Nova Iorque, a taxa de suicídio entre os jovens gays e bissexuais é até cinco vezes maior do que a de jovens heterossexuais, independente da religiosidade. No Brasil, o índice de suicídio entre esses jovens gays chega a três por dia, mais de mil adolescentes por ano.

Se enfrentar os dilemas familiares junto ao bullying no colégio, por exemplo, já é árduo para um homossexual nos primeiros momentos de suas descobertas, para um gay católico o contexto religioso é um quesito a mais desse processo. “Foi estranho no começo, muito complicado de administrar. Comecei a ler livros que desmitificavam passagens bíblicas tidas como imutáveis. Hoje, vejo a relação da Igreja com a minha sexualidade de outra forma. Penso que ninguém escolhe ser gay, hétero ou o que seja. As pessoas simplesmente são o que são. Alguns aceitam, outros fogem de si mesmo”, conta Edilmar.

Mas para toda regra, há exceções. Murilo sempre lidou com bastante serenidade quando a assunto foi entender o processo de identificação sexual e religioso em sua vida. A aceitação parece ter vindo como uma luz, provocando uma liberdade ímpar. “Eu digo que eu sou até mais cristão por ser gay – e mais gay por ser cristão. Se tem uma experiência na minha trajetória que associou tudo isso, foi o dia em que eu saí do meu próprio armário: me senti saindo de um caixão quase, me senti vivo como nunca antes, deixando pra trás um Murilo que era uma mentira, e me sentindo mais livre, sem amarras. Se não foi Deus quem me proporcionou esse bem, essa bênção e essa liberdade, eu não sei mais quem foi”, revela.

Nessa caminhada em direção a uma melhor descoberta (e por que não dizer aceitação?) pessoal, alguns grupos foram surgindo para dialogar melhor sobre essa relação entre homossexualidade e catolicismo. É o caso do Diversidade Católica, um grupo que atua no Rio de Janeiro há mais de seis anos funcionando e reúne católicos gays periodicamente na casa de um grande amigo do grupo. Como nos conta Edilmar, membro do Diversidade, tudo funciona como uma grande família, sempre aberta a receber novos corações para dividir histórias, compartilhar a fé, sem nunca desistir de seguir Jesus por causa de sua condição sexual. “Eu sabia que não era o único no mundo a passar pelo o que estava passando, por isso me empenhei em encontrar pessoas que vivam a mesma coisa que eu. Hoje, somos uma família que cresce a olhos vistos”, completa.

Entretanto, se o conflito pode ser administrado com o tempo, grande parte das pessoas ainda olha torto para esses homossexuais que decidiram seguir o caminho cristão. “Às vezes, a gente fica meio sem lugar: quando chega à Igreja, a gente é muito ‘pra frente’, muito subversivo, por estar querendo uma abertura à homossexualidade num espaço que mal fala de sexo (só fala quando é pra proibir); do outro lado, por mais ‘pra frente’ e subversivo que eu seja, sempre alguém vai me achar atrasado por eu ‘estar numa instituição que me condena’”, explica Murilo. Para ele, trata-se de uma grande falta de compreensão, de todos os lados: "apesar dos dois grupos me ‘julgarem’ por razões diferentes, nenhum dos dois para pra me escutar. E pior, ambos estão partindo de um mesmo fundamentalismo: achar que o fato de eu ser religioso me desautoriza a criticar a minha religião – e que se eu tiver críticas, eu tenho mais é que sair dela e criar a minha própria. E não é assim que as coisas funcionam".

Entre dilemas pessoais e sociais, o caminho de descoberta e o entendimento de uma identidade formada tanto pela vivência da religião quando pela condição sexual são acontecimentos que só se tornam possíveis através do amor e do respeito. Como diz Anais Nis, escritora francesa: “Não podemos salvar as pessoas. Tudo o que podemos fazer é amá-las”.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Um Deus completamente diferente


Compartilhamos o lindo testemunho do Edilson da Silva Cruz, da Pastoral da Diversidade/SP, elaborado "coletivamente" - quer dizer, a partir de todas as contribuições à reflexão que ele ouviu na missa do grupo este sábado. Também nós tivemos reunião e missa este fim de semana, aqui no Rio, e conversamos sobre a carta que enviaremos aos bispos com nossa contribuição para o Sínodo de 2014 (mais informações e link para a petição on-line aqui). É com grande alegria e esperança que aguardamos pelo próximo ano, que, temos certeza, será muito auspicioso!

Celebramos a Imaculada Conceição de Maria como o mistério de Deus que irrompe na humanidade no lugar mais insuspeito e da forma mais inusitada: Maria, uma mulher pobre, analfabeta, da periferia da Galiléia, mulher, semelhante a tantas de nosso tempo, envolta em suas tarefas e afazeres diários, longe dos lugares-comuns de teofanias extraordinárias, recebe uma visita de Deus. E de repente, abre-se para a história humana uma nova perspectiva, oposta ao simbolismo de Adão e Eva no Antigo Testamento: de agora em diante, pela resposta positiva e livre daquela pobre mulher, mulher pobre, a humanidade pode vislumbrar novas perspectivas. As portas da glória de Deus, enfim, se abriram para a humanidade.

O lugar, a pessoa, as circunstâncias, o momento...nada no relato de Lucas condiz ao paradigma de um Deus triunfante, senhor dos exércitos, que vem restaurar a gloriosa monarquia de Israel. Ao contrário, vislumbra-se um Deus pequeno, fraco, indefeso, cuja proposta subverte o que se espera das teologias de então. Eis a grande novidade do Evangelho: propõe uma constante revisão de nossas teologias, nossos dogmas mais profundos, nossas formas de ver a Deus, de ver a realidade a partir de Deus.

Como católicos LGBTT’s, nossa contribuição com a Igreja é justamente no caminho que Lucas propõe no relato da anunciação: enquanto seres humanos plenos em dignidade e direitos, ocupamos nosso lugar dentro da igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus, e com isso, a indagamos a rever velhas teologias, velhos moralismos que nada tem a ver com a proposta do Evangelho, de um Reino de vida em abundância para todos.

“Como vai acontecer isso se não conheço homem algum?”, pergunta Maria. Em suas palavras não está presente somente a curiosidade a respeito de uma concepção que exclui o sexo entre homem e mulher, mas uma indagação que encontra raízes no lugar e no papel que a mulher exercia no tempo de Jesus: submissa ao homem, não poderia sobreviver sem este, sem lhe ser dependente, como mãe e mulher. Como poderiam acontecer aquelas coisas maravilhosas a ela, a depender tão somente de sua resposta livre, sem que houvesse um homem de intermediário? Como poderia ela, depois, ser mãe sem um homem que lhe amparasse?

Eis que a resposta do anjo é um decreto de liberdade para a mulher: a intervenção de Deus a tiraria daquele jugo no qual se encontravam as mulheres de seu tempo. Maria seria mãe, não por necessidade de conferir descendência ao marido, mas por livre iniciativa, por vontade de colocar-se à disposição de Deus, na inteira liberdade, e gestar para o mundo a nova criação. Doravante, as mulheres e todos nós somos convidados a rever nossos dogmas, nossas hierarquias patriarcais de gêneros “naturalmente” estabelecidas por Deus, e segundo as qual a mulher existe apenas pela função de ser mãe e para conferir descendência e herdeiros ao marido, preservando a propriedade.

A indagação de Maria, além disso, ressoa familiar a nós, católicos e LGBTT’s em geral. Hoje, como ontem, somos questionados sobre nossas relações afetivas e amorosas: “Como podem formar família se não geram vida? Como podem se casar/se unir se não para reproduzirem-se?”. É o preconceito e a desinformação que nos interpelam e exigem respostas criativas. Mas eis que, novamente, a força subversiva do Deus de Jesus, o Deus do êxodo e da Ressurreição, nos envolve com sua sombra e destrói esquemas moralistas. Em nossas experiências de amor, afetivo, sexual, descobrimos o Deus Criador que gera vida no ato e no gesto de amor, em cada momento de doação e entrega. Assim, restabelece nossa dignidade de seres humanos e nos convida a ocupar um lugar na construção do Reino.

Novamente percebemos que nossa condição nos coloca num lugar subversivo dentro da igreja, o de colocá-la em crise, ao questioná-la, não para se vingar com rancor das vezes em que falsas teologias e moralismos nos excluem da comunhão sacramental, mas para ajudá-la a sair de si e ir ao encontro das periferias existenciais, como nos pede Francisco. Ajudá-la a deixar de ser uma “igreja autorreferencial” e se engajar na causa dos pobres, dos sofredores, daqueles que ainda são excluídos.

Sem rancor, sem ressentimento, queremos fazer parte dessa reconstrução teológica que implica outra forma de enxerga r a Deus. Talvez não totalmente inédita, mas que signifique retornar ao evangelho, à prática e à pregação de Jesus, para descobrir como Deus se mostra no amor, na misericórdia, no perdão e na abertura e entrega generosas, e não no ódio, no fechamento, no moralismo, dogmatismo e tantos ismos mais...

Um Deus que, a despeito das descrições apocalípticas que o associam às trombetas do julgamento final, da condenação e da culpa, se mostra completamente diferente, vindo morar num quarto pobre de uma mulher pobre na periferia do mundo...

Rezemos, com o Papa Francisco:

Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.

Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.

Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.

Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.

Amen. Aleluia! (Oração retirada da Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Carta aos jovens gays da minha igreja

 
Nosso querido amigo Murilo Araújo publicou ontem, no Vestiário, este belo testemunho, que com grande alegria compartilhamos com vocês. Como ele diz, em tempos de consulta pública do Vaticano às paróquias sobre casamento gay, divórcio e contracepção [saiba mais aqui], está na hora de transformarmos em realidade nosso desejo de construir mudanças.

Viçosa, Minas Gerais, 03 de novembro de 2013.

Caros jovens gays da minha igreja, gays como eu, e católicos como eu:

Hoje me senti orgulhoso de mim. Bastante. Viajei para uma cidade próxima à minha, para participar de um encontro celebrado anualmente pela pastoral de que participo em nossa Igreja, e fui carregando na bolsa uma bandeira do arco-íris e um pouco de ousadia. Meu objetivo era fazer uma “intervenção”: exibir comigo a bandeira durante as atividades, tentando provocar alguma reflexão sobre a nossa existência, sobre a nossa identidade de gays e cristãos, que as pessoas costumam ver como ambígua.

Não foi uma tentativa de alfinetar ou desrespeitar o espaço, como alguém pode vir acusar. Estar lá, com a minha bandeira, não agredia a fé de ninguém. Fiz o que fiz por ver que ainda temos muitos silêncios a serem quebrados. A maior violência que nos atinge é uma invisibilidade que toma proporções muito significativas em uma instituição que só fala do sexo quando é para proibi-lo. A consequência disso é que muitos de nós, se em algum momento achamos que Deus nos odeia, ainda precisamos enfrentar tudo com a sensação dura de que estamos sozinhos – ainda que existam outras pessoas entre nós vivendo os mesmos dramas, ou pessoas que já tenham passado por eles e possam nos ajudar a superá-los.

Romper esse silêncio sempre foi uma questão importante pra mim, e por isso quis carregar a minha bandeira para o lugar onde estava indo viver a minha fé. Lá, esperei todas as reações possíveis. Até que as pessoas, timidamente, começaram a se aproximar. E, graças a Deus, foi bonito. Tão bonito que me fez vir aqui escrever essa carta pra você.

As primeiras pessoas a vir falar comigo eram como nós: católicos e gays. Primeiro, um casal de meninas lésbicas, participantes de um grupo de jovens, que elogiaram a bandeira com um sorriso, e pediram uma foto. Bastou que elas chegassem para os outros pedidos começarem a acontecer. Um garoto gay com a amiga lésbica, depois outro grupo de amigas, sempre com o mesmo pedido de uma fotografia com a bandeira, às vezes me chamando para aparecer na foto. Pouco depois, começaram a vir me cumprimentar também meninos e meninas heterossexuais, que eventualmente contavam o caso de um ou outro amigo gay, que estava passando por dramas ou dificuldades em casa, na Igreja...

E nessas conversas breves, duas coisas me chamavam atenção. A primeira, nos héteros: era perceptível a vontade de falar daquilo que não se fala nas nossas igrejas. Vinha dali um desejo empolgado de conversar sobre aquilo, falar, discutir, debater com franqueza e praticar o exercício da escuta... um desejo que parecia ter encontrado espaço pela primeira vez naquela bandeira que ousava se exibir. A segunda coisa curiosa vinha dos nossos iguais, gays e lésbicas: ainda que estivessem ali, no espaço religioso, vivendo a sua fé sem conflito aparente, pareciam se espantar um pouco diante da minha fé sem armário, como se aquela visibilidade incomum assustasse, ainda que positivamente. Não à toa, foram muitos os olhares admirados quando, durante a missa, recebi a comunhão com a bandeira amarrada às costas.

Mas o que foi ainda mais bonito de ver foi que havia ali, em todo mundo, um sorriso de esperança e um sonho compartilhado. A vontade de conversar dos héteros parecia se transformar em um desejo de construir mudanças, ampliando os limites daquela discussão curta. O espanto aparente dos gays e das lésbicas rapidamente se convertia em uma espécie de cumplicidade de iguais, que se compreendem e querem buscar o mesmo espaço. No fim, eu, que estava tentando dizer a eles que não precisavam viver os seus processos sozinhos ou escondidos, recebia através de um abraço afetuoso uma resposta que me enchia de alegria e esperança: eu também não precisava travar sozinho a minha luta por uma Igreja mais livre, acolhedora e transformadora. Aqueles jovens se dispuseram a ser essa Igreja junto comigo.

Queria partilhar contigo essa história, caro jovem gay cristão, porque penso que só caminharemos para uma Igreja e uma sociedade melhores no dia em que aprendermos a valorizar essa troca, essa conversa sobre as histórias, os conflitos e os amores, que leva a gente a perceber que temos sonhos parecidos e que conseguimos mais quando estamos juntos. Ou a gente toma as rédeas e fala da própria vida, ou alguém falará por nós, muitas vezes perpetuando os eternos discursos que geram a homofobia, a negação de direitos, e até uma suposta condenação ao inferno...

Continue lendo no site do Vestiário, aqui :-)


sábado, 3 de agosto de 2013

Carta de um gay católico ao papa Francisco


Esta semana vários amigos compartilharam no Facebook a notícia de que um ex-padre gay havia escrito uma carta aberta ao papa Francisco. Embora as matérias divulgadas descrevessem a carta e contivessem trechos traduzidos do original espanhol, não encontramos nenhuma tradução na íntegra. Ao ler o original, ficamos muito impressionados com a clareza e qualidade de seu conteúdo, e achamos que valia muito a pena traduzir e compartilhar com vocês o texto completo. Fica para a reflexão de todos nós, Igreja.

Admirado e estimado Francisco:

Paz e bem! Tomo a ousadia de escrever, com todo o respeito e admiração marecidos.

Como milhões de pessoas, venho observando, ouvindo e acompanhando de perto sua nomeação, seus primeiros atos como papa, sua viagem à América Latina, suas belas palavras para os jovens. E, mesmo em meu atual agnosticismo, vi renovar-se minha esperança de que dentro da Igreja se torne realidade o tão esperado "aggiornamento" ["atualização"], como dito e reivindicado pelo Concílio Vaticano II. Estou feliz e comemoro o fato de que o ar fresco segue entrando no Vaticano, e de que há um longo caminho a percorrer.

Pessoalmente, faço eco às suas palavras: quero "criar problemas", "não me excluo", eu pertenço. Quero fazer valer os meus direitos e de muitos outros que estão em situação semelhante, não vou ficar de braços cruzados. Já fui padre, pastor, partilhei desse zelo missionário católico e da necessidade de reivindicar abertura da parte da Igreja - até que decidi me afastar, quando descobri minha própria tendência homossexual e admiti minha incapacidade de exercer o ministério pastoral em celibato. Hoje, meus caminhos seguiram em outras direções, e minha vocação foi tingida com outros tons.

Mas suas palavras e seu exemplo me fizeram reunir forças e tomar esta iniciativa. Atrevo-me a colocar-me como porta-voz de uma grande parcela de pessoas que pertencem à comunidade gay. E simplesmente, humildemente, peço-lhe encarecidamente que encoraje, estimule, promova e acompanhe um maior aprofundamento na teologia moral sexual sobre o lugar e a experiência das pessoas homossexuais.

Não peço que de um dia para outro a Igreja mude sua catequese em relação a este assunto. Pedimos apenas para não estigmatizar os teólogos e pastores que aportam elementos de dissensão a uma resposta pastoral insatisfatória para muitos de nós.

Não pedimos que se oponha à extensa tradição que fala de pecados contra a natureza, mas peço-lhe que reveja e amplie a concepção de "natureza".

Não lhe peço que deixemos de ler e interpretar as Escrituras, mas que nos aprofundemos e façamos leituras menos carregadas de preconceitos. Que não se usem mais como "armas" passagens bíblicas que a Teologia já provou e determinou que não se relacionam com o assunto. Quanto mais água deve correr debaixo dessa ponte para que se dissocie a palavra "sodomia" de um pecado que nada tem a ver com o que a passagem bíblica quer denunciar? Você sabe muito mais do que eu que, como esta, somos assolados por erros de interpretação que fizeram com que a Verdade - essa que nos torna tão livres - tenha sido relegada e escondida por muito tempo. Apenas para ilustrar com um exemplo: quantos anos levou para que João Paulo II pedisse desculpas pelos erros da Igreja em relação a Galileu Galilei - por interpretar mal uma passagem da Escritura (Josué 10,12-14)? É surpreendente que também nessa disputa o conceito de "natureza" esteja na base.

Não lhe peço que deixemos de manter uma doutrina. Peço-lhe que a ajude a continuar crescendo e adaptando-se aos novos paradigmas do mundo contemporâneo que nos desafiam a encontrar novas respostas. Lembra que, não muitos anos atrás, a Moral Sexual afirmava que o único objetivo primário do casamento era a procriação? Quantos casamentos tiveram renovada sua aliança quando foi reconhecido também o aspecto do amor e da ajuda mútua, o bem dos cônjuges? Essas atualizações são ar fresco que renova o coração das pessoas e as ajuda a viver com dignidade.

Não peço para diluir a Cristo; peço-lhe que, olhando para ele, se atreva a procurar todas as ovelhas espalhadas como um Bom Pastor.

Muitos governos e estados estão adotando uma forma mais aberta, uma nova visão de casais. O momento é propício. Há vários anos, o mundo clama por uma mudança de abordagem. Depois de anos de análise científica, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade de "Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais". Mas só em 1990 a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais.

A Igreja precisa dar um passo mais contundente e significativo. Para que atrasar ainda mais esse processo? Não seria bom ser pioneira, com respostas de adequação em uma sociedade em constante busca? Até não muito tempo atrás, pensava-se que esta tendência poderia ser curada com várias terapias e tratamentos. E você deve estar ciente de que são muitas as comunidades católicas que insistem nessas técnicas e causam prejuízos à vida de muitas pessoas submetidas a este tipo de prática.

Por experiência no confessionário, sei que há muitas pessoas que abraçam a fé católica e continuam recebendo uma resposta diluída, incompleta, que não cabe em seu estilo de vida. As pessoas de fé que têm essa tendência não tem muitas opções para viver sua sexualidade livremente. Ficam limitadas, na prática, a duas opções: ser casto ou celibatário (mas, de acordo com a doutrina católica, o celibato é um dom dado a poucos, que não pode ser abraçado compulsoriamente, por voluntarismo) ou agir de maneira distinta daquela proposta pelo catecismo e, portanto, viver em pecado, que seria a consequência de agir de acordo com a sua realidade homossexual.

Por outro lado, quando vejo na minha cidade, e em muitas outras do mundo, manifestações e passeatas do orgulho gay, reconheço que não me identifico plenamente com as formas pelas quais as reivindicações são apresentadas. Mesmo quando seu conteúdo seja verdadeiro sob muitos aspectos, me dói ver as duras críticas à Igreja (aquela que com tanto entusiasmo integrei no passado) e outras instituições, e me pergunto se a solução é mesmo o confronto agressivo, em um mundo tão dividido por visões díspares.

Gostaria de ser ponte e elo entre posições tão desencontradas, para que as experiências possam se aproximar e as expressões afetivas da humanidade possam se enriquecer. Aproveitar para transmitir algumas das dúvidas ocultas nestas reivindicações:

Será mesmo que o amor entre duas pessoas do mesmo sexo não demonstra nem reflete de modo algum o amor de Deus? Será que não desvela algum traço ainda por descobrir de sua criação sem limites?

A Igreja realmente insiste na visão maniqueísta de que o sexo homossexual é apenas um ato de prazer carnal, destituída de qualquer real envolvimento espíritual, capaz de enobrecer o diálogo copular e corporal?

A Igreja vai mesmo, com seus silêncios, continuar permitindo que tantos jovens sejam estigmatizados em tantos países onde os gays ainda são mortos apenas por sua tendência? Não está na hora, como você mesmo disse, de sair e defender a integridade do ser humano com uma mensagem conciliadora e inclusiva?

Permita-me, finalmente, remontar-me à minha experiência pessoal. Especialmente quando me descobri homossexual, fiquei apavorado, com medo do novo e desconhecido que teria de enfrentar. Fiquei aterrorizado com a possibilidade de estar desafiando a vontade de Deus e estar à beira dos abismos do inferno. Minha saída do sacerdócio foi caótica, escandalosa, dolorosa. Mas justamente essa cicatriz, essa marca, essa ferida, hoje, me fazem questionar e desafiar esse paradigma, que continua sem nenhuma resposta sensata. Com humildade saudável, eu diria que hoje, depois de quase dez anos de vida monogâmica com outra pessoa do mesmo sexo, sinto-me feliz, realizado e ansioso para compartilhar essa experiência, de modo que muitos outros podem experimentá-la e vivê-la.

Ajude-me, e ajude muitos outros, a descobrir como mover-nos na fé, sem abrir mão da experiência de amor, que, em plena consciência, sentimos ser essencial em nossas vidas.

Com admiração e elevando uma oração por seu ministério.

Gioeni Andrew*, outro filho de Deus.

*Ex-padre católico que se reconheceu homossexual e renunciou ao hábito. Escritor e ator. Fonte

quinta-feira, 7 de junho de 2012

"Deus sabe como o amo, e Ele a mim"

Foto: i can read

Nossa amiga Rosilene foi uma das pessoas que compartilharam conosco, no evento que realizamos domingo, um pouco de sua história e vivência como gay e católica. Aproveitamos esta oportunidade para dividir suas reflexões também com vocês.

Tenho 48 anos, sou cristã católica praticante e gay (talvez seja o contrário), mas nem sempre pude me afirmar assim. Desde bem pequena aprendi com meu pai a rezar. Me ensinou o Pai Nosso (que ensinava, naquela época, a rezar “Padre nosso que estais no céu...”), Ave Maria, Oração do Anjo da Guarda... Foi ele quem iniciou a minha formação católica. Aos três anos, como eu já sabia ler e escrever iniciei meus estudos na escola São José, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, uma escola católica. Era um ambiente afetuoso e de muita compreensão. As irmãs incentivavam a minha precocidade estudantil e fertilizavam a minha relação com Deus. Foi um tempo excelente! Aos seis anos, com ardente desejo de comungar (mesmo ainda não tendo iniciado o catecismo), aproveitei a distração do meu pai, na missa, na hora da comunhão, e corri como um raio para frente do padre, que gentilmente me deu a comunhão. Nossa! Sinceramente eu senti um estado de céu que nunca mais na vida esquecerei.

Tudo transcorria muito bem. Cresci, e as mudanças comuns ocorriam com naturalidade. Mudei de escola, de paróquia, fiz novos amigos... Participava das diversas atividades da igreja juntamente com minha família. Tios, tias, e primos, todos participávamos na mesma paróquia. Então veio a adolescência e a descoberta da sexualidade que me causava a maior confusão na cabeça. Um dia perguntei a minha mãe “porque é que eu gosto muito das meninas?”. Na maior tranquilidade ela me respondeu “é a sua preferência”. Fiquei satisfeita com a resposta, e minha vida seguia. Não demorou muito até eu me dar conta da minha homossexualidade, e foi aí que começaram os meus problemas. Era um dilema pra mim, pois em casa tudo bem, mas no círculo religioso uma pessoa gay não poderia participar das atividades pastorais comuns, porque seria um mau exemplo de pecado. Que terrível era conviver com aquelas pessoas, sendo considerada pecaminosa e desajustada. Então, plenamente consciente que a minha condição sexual era diferente das demais pessoas de minha família, da escola e da igreja, decidi reprimir minha sexualidade (o que foi uma situação de caos em minha vida). Mas os questionamentos não me abandonavam. Foi então, que passando férias em outra localidade, procurei o pároco e numa confissão, contei-lhe tudo o que se passava comigo. Ele me recomendou muita penitência e que eu me entregasse a contínuas orações e levasse uma vida de castidade. Procurei seguir fielmente as orientações daquele pároco, durante algum tempo. Foi um período sombrio em minha vida, eu tinha 18 anos. Então passei a frequentar as missas de maneira discreta e a me afastar das ações pastorais.

Foi então que conheci uma religiosa que me apresentou ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Fiquei amiga de um monge que me atendia às vezes em que eu ia ao mosteiro. Então um dia, abri meu coração a ele e contei-lhe tudo o que se passava comigo. Falei-lhe quanto me sentia triste, sobretudo que parecia que Deus vivia a me perguntar “Tu me amas?”, e que Ele não me dava nenhuma esperança a minha resposta “Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo”. Ele me olhou bem profundamente e me perguntou onde é que eu enxergava o Amor de Deus na minha vida. Com toda a convicção respondi “Na Encarnação de Jesus Cristo! ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus... O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens...’ “. “Então,” disse-me ele, “como você ainda não consegue enxergar esperança de que Deus te ama como você é?!”. Foi a minha libertação! Nada mais me aprisionou. Descobri que minha condição de ser homossexual não impede o amor de Deus, não me impede de praticar este amor, e nem me impede de praticar a religião cristã católica. Acolhi esta libertação como uma graça do Amor de Deus por mim. Retornei a igreja nos trabalhos pastorais com mais ardor, e é claro tive de superar obstáculos. Hoje com fé e confiança declaro como o Apóstolo “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos”.

Deus, que sabe de tudo, sabe como o amo e Ele a mim. Paz e Bem!

- Rosilene Luiza

terça-feira, 8 de maio de 2012

Viver a verdade


Recebemos ontem por e-mail este vídeo-depoimento, com um pedido do autor para que fosse compartilhado com os demais leitores do blog. É um belo depoimento e um testemunho da força da consciência. Realmente, não dá para negar aquilo que a gente sente, no mais íntimo do nosso ser e com a convicção que só a verdade dá, sobre quem a gente realmente é. Sentimos muito por ele ter se optado por afastar-se das suas tarefas na sua paróquia, mas claro que cada um sabe quais são os seus limites, o que é e o que não é possível para cada um - e sabemos bem como a pressão pode ser grande... Por outro lado, que bom que ele chegou a conversar com duas pessoas e que o diálogo foi possível; que bom que, mesmo não mudando sua maneira de ver, elas puderam mudar sua maneira de agir, respeitá-lo e acolhê-lo - mesmo sem compreender, e que grande mérito há aí! Esse é o primeiro passo.

Torcemos para que essa experiência de troca lhe dê forças para continuar buscando o diálogo, que é um processo muito trabalhoso e árduo, mas necessário - tanto para cada um de nós, em nossa busca de viver com honestidade, quanto para a comunidade, a sociedade, a Igreja, o Corpo de Cristo, que precisa da verdade de que os gays existimos e não, não somos monstros: somos pessoas com fragilidades, virtudes, forças, fraquezas como quaisquer outras.

Muito obrigado ao leitor, mais uma vez, pela confiança e pela partilha generosa conosco e com os demais leitores do blog.

E, sim: palavras inspiradas pela verdade e pelo amor serão sempre cristãs. ;-)

* * *

Leia também:
Perguntas frequentes: "Se a Igreja condena a homossexualidade, como é possível uma pessoa gay ser católica?"

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Dicotomias, lutas, fé e amor: gays versus Igreja?

Foto via Facebook

Certa feita, uma amiga comentava sobre as crises possíveis na cabeça de homossexuais religiosos. Se a sociedade diz que a homossexualidade é anormal, a religião diz que é errado, que é pecado...

Todo mundo pode se sentir no direito de fugir da normalidade, se for esse o caso (não é esse o caso). Mas fugir do que é certo tem efeitos piores. A carga do “anormal” pode até ser suportada (quem disse que estou a fim de ser “normal”?), mas a carga do “errado” pesa.

E enquanto seguem essas dicotomias extremistas, esse jeito limitado mesmo de enxergar as coisas, seguem cristãos e homossexuais massacrados dentro de sua própria consciência, sem liberdade, sem vida, sem fé, sem amor. Os paradigmas ainda atrasados que as igrejas oferecem são um grande desafio para a luta LGBT, para as saídas do armário, para o fim da homofobia.

Mas disso, todo mundo sabe. Preciso falar diferente.Se as igrejas ainda erram ao tratar dos gays, o movimento ainda erra ao tratar da igreja. Vício de tantos grupos que se articulam em torno de várias causas, temos a mania de personificar as lutas em torno de um inimigo só. Muitas vezes, o nosso debate sobre homofobia soa como se desejássemos acabar com as religiões (especialmente com o cristianismo) para ter, enfim, tudo muito resolvido.

A matriz religiosa da formação da nossa sociedade meio que já limitou nossa visão de mundo, nessa coisa de céu e inferno, homem e mulher (opostos completos, sem se misturar ou se confundir). A bagunça já está feita. Assim, simplesmente derrubar a instituição não faz com que derrubemos o pensamento discriminador que anda espalhado por aí, influenciando até mesmo quem está fora das igrejas. A mudança tem que proceder no pensamento do povo, não na estrutura, na hierarquia. Muitas vezes, precisamos até mesmo da estrutura para mudar o pensamento.

Digo isso por visualizar um lado (muito forte, por sinal) da igreja e do cristianismo que enxerga um outro Cristo, um carinha que morava lá pelas periferias da Galiléia, carpinteiro, favelado, sofredor... e que por isso entendeu e defendeu na sua mensagem todo um povo que, como ele, sofreu alguma opressão.

Jesus hoje iria na Parada Gay. Mesmo que não gostasse de homens, estaria lá pela causa política, pelo debate, pela luta por visibilidade de uma galera segregada pela falta de amor e respeito pela diferença. Estaria lá, assim como estaria no acampamento dos sem-terra, na ocupação dos atingidos por barragens, no protesto do movimento estudantil. Foi um preso político do seu tempo, defendendo as causas dos oprimidos, fortalecendo as lutas do povo, e cobrando de seus seguidores (até hoje) um posicionamento transformador.

Lá, na multiplicação dos pães, Jesus pede que as pessoas “se sentem” em grupos de cinquenta. O povo que o seguia era um povo de sofridos, de escravos. Nessa época, escravo não comia sentado. Pedir que se sentem, assim, sutilmente, é pedir que se libertem. As pessoas só precisam entender isso, mudar os pensamentos.

E assim, mais do que segregar e desejar um forte “cala a boca, senhor bispo!”, é preciso fazer entender que há um diálogo possivel, pela compreensão de que o amor tem a função primordial de libertar (assim como Jesus o quis)... A missão é fazer com que as pessoas acreditem é direito de todos sentir essa coisa que é o sentimento, coisa doida que deixa mais vivo, que faz lutar pela vida do outro através do cuidado e da afetividade, que pega a gente sem que possamos escolher o alvo... nem homem, nem mulher...

Faço, sim, uma defesa da religião. Faço por entender que, ao contrário do que se imagina, lá dentro a gente também se livra de alienações. Não se trata de uma evangelização cega, mas de um desabafo de cansaço por ouvir os comentários chatos de quem (dicotomicamente, também) acha que gays não podem estar na igreja, e que tudo o que virá dela será prejudicial. Se ainda precisamos que ela mude, a função de quem quer mudança é se inserir para mudar. É necessário postura de quem quer tranformação.

Pode até não parecer possível, mas é cá na minha fé que eu milito. Mais que por qualquer coisa, é por ser muito religioso que eu repito incessantemente o grito de não à Homofobia!

- Murilo Araújo
Jornalista e professor. Homem feminista, católico homossexual, fã de Beyonce e Bethânia. Sem enxergar nenhuma ambiguidade em nada disso.

terça-feira, 20 de março de 2012

Dores e amores da homossexualidade

Foto: i can read

Recebemos de um amigo este lindo depoimento, e é com muita gratidão e sentindo-nos muito honrados que o reproduzimos aqui.

Enquanto homossexual não saberia dizer se a homossexualidade nos faz mais sensíveis. Penso que na condição de seres humanos vivemos num mundo diverso, pronto a ser descoberto na sua riqueza existencial infinita. Por isso, seria importante que estivéssemos sempre sensíveis a tudo que nós rodeia. Sou daqueles que acreditar que sensibilidade também se aprende. Mas, talvez, aqueles que, por algum motivo, não são desejados pela sociedade tentem a criar um mundo particular e, neste mundo, vivem seus sonhos e pesadelos, tentando, de algum modo, encontrar a forma como aparecer no mundo concreto sem precisar sofrer muito.

Enquanto permanecemos no mundo particular ganhamos tempo para nos compreender internamente. Percebo que nesta experiência ganhamos em sensibilidade na medida em que é preciso criar pequenos modos de felicidade. Lembro-me, por exemplo, da minha infância na qual por não poder brincar com bonecas eu pedia aos meus pais lápis de cor e muitas folhas para poder desenhá-las e, assim, me divertir com elas no meu imaginário. Deste modo, eu fui desenvolvendo a sensibilidade para as cores. Também comecei a prestar atenção às bonecas para poder reproduzi-las, em detalhes, no papel. Enquanto as outras crianças já tinham o seu brinquedo pronto, eu era desafiado a aguçar as minhas capacidades perceptivas e criativas. E quanto mais eu desenhava e melhorava o meu traço, apesar de muitos estranhamentos por parte das pessoas por eu só reproduzir bonecas, era muito elogiado por todos. Bom, mas é claro que, por outro lado eu sofria. Sofria porque enquanto criança o mundo era severamente posto de uma forma na qual eu não encontrava um lugar. E, apesar de todos perceberem a minha homossexualidade, era como se ela não existisse. O que existia era uma criança sensível, diferente das demais. Muitas vezes introvertida. Fui crescendo num mundo confuso, entre formas de disciplinamento heterossexuais e a fantástica descoberta da minha sexualidade. A atração pelo mesmo sexo provocava em mim, ao mesmo tempo, prazer e medo. Eu achava curioso o encantamento pelo mesmo sexo. Minha sensibilidade me dizia intimamente que aquela combinação era uma coisa bonita, e isso era muito natural. No entanto, eu não podia imaginar em dizer isso para ninguém. Tinha medo de não ser compreendido e aceito. Parece estranho dizer, mas isso era dolorido e delicioso ao mesmo tempo.

O tempo passou, e eu fui direcionando todas as minhas energias para os estudos. Lembro-me que quando cursava o segundo grau eu me apaixonei por um rapaz. Ele era da minha turma. Como era bom conversar com ele! Mas, com medo de que ele se distanciasse de mim, calei. Foi duro! Acabamos brigando. Foi uma forma que eu encontrei para não sofrer mais. Depois que o ano letivo terminou, eu nunca mais o vi. Entrei na faculdade e comecei a investir pesado nos estudos. Na minha família ninguém cursou uma faculdade, e para mim era um desafio. Concluí a faculdade com boas expectativas. Fui elogiado e incentivado pelos professores a realizar o mestrado e seguir a carreira docente. Embora introvertido, me fascinavam as relações humanas, e via na relação de ensino e aprendizagem a mais bonita forma de diálogo. Esse passou a ser o meu grande projeto. O mestrado foi concluído com sucesso.

Neste percurso não deixei de pensar, sofrer e me alegrar com a minha sexualidade. Mas o fato é que até então eu não havia vivido a minha homossexualidade. Eu não tinha tido uma experiência homossexual. Não tinha amigos gays e nunca havia falado sobre a minha sexualidade para ninguém. Pode-se imaginar como é difícil não poder falar o que se sente? Mas o fato é que eu tinha me tornado um homem inteligente e sensível e, também, bonito. Já não era mais um menino franzino. Faltava apenas que eu me percebesse.

Logo retorno aos estudos para a realização do Doutorado, com 27 anos. E assim continuava a minha trajetória de estudos. Paralelamente a minha sexualidade permanecia oculta para o mundo. Hoje penso que não ter falado sobre a minha condição me afastou da possibilidade de experiências afetivas e sexuais. Mas, se até então eu não havia tido a coragem de revelar a minha sexualidade, as circunstâncias da vida me puseram a prova.

Um colega com o qual eu convivia por aquele período começou a me notar. Mas eu acreditava que me mantinha tão imperceptível do ponto de vista da sexualidade, que não acreditei que ele pudesse ser gay e que estava interessado em mim. O fato é que ele era gay e tinha interesse. A cada encontro nos aproximávamos mais. E quando dei por mim eu já estava apaixonado. Talvez não pelo rapaz, e sim por toda aquela situação que para mim era uma extrema novidade. O fato é que eu lhe despertei o interesse. Neste caso eu me vi percebido por ele. Alguém havia me visto e isso mexeu demais com a minha auto-estima. Bom, custei a entender que o meu colega não estava apaixonado por mim, era apenas uma atração. Claro que eu sofri muito, pois me vi apaixonado e ao mesmo tempo vivendo e descobrindo as possibilidades da minha sexualidade. Parecia que uma represa tinha se rompido dentro de mim. Não sabia o que fazer com todos aqueles sentimentos e descobertas. Era a minha sexualidade me confrontando e me dizendo: como é que você vai querer viver daqui em diante?

Na ocasião eu revelei a situação a uma amiga. A escuta dela foi fundamental. Pela primeira vez eu me via falando sobre a minha sexualidade, ainda com muitos receios, mas eu falava, eu expressava. Esta amiga, na tentativa de me ajudar, apresentou-me a um amigo seu que era gay. Ela fez isso por acreditar que ter um amigo gay iria me ajudar. O rapaz tinha 21 anos e uma cabeça de adolescente. Ele vivia na região serrana, numa cidade pequena e cheia de repressões. Eu percebia que isso havia aflorado a sua rebeldia e ele se expressava de maneira bem intensa, parecendo querer provocar a atenção de todos. Apesar de um tanto assustado, eu comecei a manter contato com ele. Assim nos aproximamos e, após duas semanas de contato, fui conhecê-lo na sua cidade. Comprei um tênis all star, vesti uma bermuda, coloquei um boné e uma mochila nas costas. Segui viagem pela Serra. Essa sensação da viagem foi maravilhosa! Era como se eu estivesse mudando o cenário da minha vida. Dizem que às vezes é preciso viajar, sair de si, para depois retornar à nossa essência. Eu acho que era um pouco isso que estava acontecendo comigo. Trajado do modo como descrevi anteriormente, ali eu era um adolescente. Enfim, eu experimentava a adolescência que não havia vivido! Encontrei-me com o rapaz, juntei-me ao seu grupo de amigos adolescentes e vivi dias maravilhosos. Acordei no dia seguinte com as badaladas do sino da igreja local, que me transmitiam sinais de vida. Retornei para casa com entusiasmo para prosseguir. O namoro com o rapaz não foi adiante, e nem tinha condições de dar certo. Era mais uma experiência que a vida estava me anunciando. O anuncio era: nunca mais deixe as páginas da sua vida em branco, você tem o direito de ser feliz, você é especial.

Nesta experiência acabei me apaixonando pela região serrana. Aquela sensação do ônibus subindo a Serra mexia comigo, me enchia os pulmões e, eu sentia, alargava os meus caminhos de liberdade. Numa dessas subidas conheci outro rapaz. Um homem simples, mas com imensa sabedoria, cultivador de orquídeas na região. Eu sempre gostei de flores e ele me apresentou muitas delas. Passamos um final de semana num lugarejo chamado São Pedro da Serra. Este é um lugar que vai ficar pra sempre na minha memória! Lá pude entrar em contato com muitas cores. Eu precisava de cores, muitas cores! Fiquei encantado com a diversidade da natureza e, nesta experiência, pude compreender a minha própria riqueza e diversidade. No contato com cada flor, com cada fruta, com cada planta que ele me apresentava eu descobria uma sensação nova, um novo sentido! Marcou-me uma experiência em que ele me levou diante do espelho e chamou atenção para a minha aparência, para que eu valorizasse a minha aparência no mundo. Eu não podia mais me esconder, e nem tinha porque fazer isso.

Namorei este rapaz por alguns meses e com ele aprendi muito. A relação afetiva com ele foi fundamental. Com a sua simplicidade e sabedoria ele me mostrou como ser gay podia ser especial, como podia ser maravilhoso o sentimento entre dois homens. Sou-lhe grato por isso e, até hoje, tenho um carinho e uma amizade muito especial por ele.

Assim eu prossegui a minha experiência de vida. Conheci pessoas, namorei, conheci novos lugares, continuei me empenhando nos estudos... apareci para mim e para o mundo, com serenidade e orgulho. Ficou-me a certeza de que eu podia conhecer!

O mais importante dessa história foi que eu pude, entre dores e amores, me apresentar à vida. Apresentar-se a vida é confirmar a nossa existência. Como é que as pessoas saberão quem você é, quais são os seus valores, se você não se apresenta para o mundo? E quanto mais temos orgulho ao nos apresentar, mais as nossas relações afetivas vão se ampliando...maiores são as possibilidades de ser feliz!

E hoje me apresento à vida com grande orgulho de ser gay! Deus me fez especial nesta condição, e como é bom vivê-la sem medo! Embora a minha vida não se resuma a minha sexualidade, ela não seria nada se eu não pudesse expressar e viver as minhas relações sociais e afetivas como gay. Compreendo que a minha riqueza, o que me torna singular e especial neste mundo é a minha condição sexual. Não seria inteligente e justo anular justamente aquilo que me torna especial. Por isso - embora eu compreenda que ser gay não é uma opção - se eu tivesse que optar eu escolheria ser gay sempre! O bom é viver e poder se apresentar à vida, ao mundo! E, sobretudo compreender que não estamos sós. Há uma infinidade de pessoas no mundo e o nosso desafio é construir relações com elas. Quando eu decidi assumir a minha sexualidade eu me perguntei: “que mal há em viver o que somos de modo verdadeiro e digno”? “Ser homossexual não é um crime, então eu não preciso viver em clandestinidade”. “Para quem sobrará o ônus da infelicidade se eu não me assumir”? Mas até chegar a essa compreensão foi um longo caminho. Não é nada simples. As famílias, as instituições, algumas religiões, apesar de toda a mudança ocorrida nos últimos tempos no mundo, ainda não estão preparadas para acolher e respeitar a diversidade. A produção da culpa, da violência, da exclusão infelizmente ainda é recorrente. É preciso esclarecimento, fé, apoio e coragem! Mas o bacana é descobrir a nossa essência, o quanto somos especiais e o quanto é bom defender a nossa auto-estima com vigor. O que nos sustenta e amplia horizontes não são somente as dores, mas, sobretudo os amores. E eu decidi que estou na vida para amar. Eu escolhi amar e por isso sou feliz na minha condição. Nesta minha caminhada, entre dores e amores, ficou um aprendizado: O mais duro não é sofrer por amor...o mais duro é sofrer pelo desamor, pela ausência, por aquilo que não vivemos, ou deixamos de viver. Abraçar a nossa homossexualidade e vivê-la com plenitude, responsabilidade e fé é um ato de amor por si, pelos outros e pelo mundo!

- Bruno Peres
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