sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 4 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes (a primeira está aqui,  a segunda, aqui e a terceira, aqui). Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a terceira parte do artigo:

6. O aporte das ciências psicológicas e antropológicas

6.1. Ante um quadro assim complexo, é necessário ter consciência de que a questão não pode ser abordada de maneira unilateral. Seria, por exemplo, demasiado simplista enquadrar as tendências sexuais humanas em dois grupos polarizados: o dos homossexuais e o dos heterossexuais. No tocante à sexualidade, não se pode reduzir o quadro a “ou preto ou branco”. Há toda uma gama de sensibilidades entre esses dois extremos. Cada caso, como se diz, é um caso. Em indivíduos de orientação heterossexual pode existir latente possibilidade de atração homossexual. E vice-versa. O que acontece é que o machismo repressivo da cultura dominante escondia, durante séculos, essa realidade latente. A atual permissividade e badalação no que se refere ao lado feminino do homem começam a mostrar, com maior nitidez, essa dimensão longamente recalcada seja no homem, seja na mulher.

A Igreja, como mãe e mestra, não tem o direito de simplificar ingenuamente o quadro e desconsiderar o momento sociocultural em que vivemos. Nivelamentos e simplificações a respeito da sexualidade são injustificados e não correspondem à realidade dos fatos. Confundem e mesmo inviabilizam a conquista de uma identidade sexual personalizada e razoavelmente consistente, que é o que interessa e é realisticamente possível.

6.2. A confusão poderá diminuir se esclarecermos algumas ideias errôneas que circulam a respeito da homossexualidade. Algumas delas têm um quê de verdade, uma vez que valem para alguns homossexuais. Outras não passam de “mitos” populares sem fundamento. Eis os mais difundidos:
  • O mito de que o interesse do homossexual é sempre ou quase sempre só genital;[11]
  • O mito de que todo homossexual sente atração por crianças e adolescentes e quer ter relações físicas com eles. É hipótese admitida por muitos psicólogos que a pedofilia, hoje um crime punido pela lei na maioria dos países, seja mais frequente entre heterossexuais;
  • O mito de que os homossexuais masculinos sejam sempre efeminados e as mulheres de tendência lésbica sejam sempre masculinizadas;
  • O mito de que todos os homossexuais tendam, sempre e necessariamente, a formar grupos mais ou menos secretos;
  • O mito de que todos os homossexuais masculinos tendem a certas profissões mais típicas de mulheres;
  • O mito de que todos sejam promíscuos, instáveis em suas relações e incapazes de compromissos duradouros (quando o são, é por razões que vieram a se somar à sua tendência, como pode dar-se também com heterossexuais);
  • O mito de que todos os que se sentem homossexuais ou até cometem atos homossexuais (na fantasia ou comportamentalmente) devam ser sempre e de fato diagnosticados como tais. Há aqui largo espectro de variações a ser levado em conta.
  • O mito de que os homossexuais possam sempre mudar essa sua orientação por meio da força de vontade, pela via do tratamento médico e terapêutico ou em virtude da oração e da ascese.
6.3. À luz do exposto, põe-se a questão: qual o objetivo da formação de indivíduos de orientação homossexual propriamente dita que desejam viver como cristãos católicos ou almejam mesmo ser admitidos ao processo formativo da vida religiosa e do sacerdócio? Uma congregação masculina de forte matiz norte-americano, após anos de debate interno, formulou assim o objetivo psicopedagógico de sua formação:

O objetivo de nossa formação, tanto para candidatos heterossexuais quanto homossexuais, é o estilo de vida celibatário. Esse supõe a capacidade de renunciar à atividade sexual genital e busca uma consistente maturidade psicossexual, expressa em um desenvolvimento global (humano-afetivo, pessoal, comunitário e espiritual) do candidato.

Nessa abordagem, já bastante adotada nos Estados Unidos, revela-se um estado mais avançado de discussão psicopedagógica do que o existente no Brasil. É concepção que considera possível uma pessoa de orientação homossexual ser encaminhada às ordens e ou à vida religiosa, não havendo razão, em princípio, para ser vetada. Os critérios de admissão e o acompanhamento psicopedagógico devem ser os mesmos usados para os heterossexuais. Mas o parágrafo acima citado enuncia dois requisitos indispensáveis para que uma pessoa assuma o compromisso de um estilo celibatário de vida: certa maturidade afetivo-sexual e razoável equilíbrio relacional global da pessoa. Tais requisitos são os mesmos para todos os candidatos. Essa proposta pedagógica me parece psicologicamente plausível, com a ressalva que farei logo abaixo. Há outra condição: saber que o objetivo da formação para a vida religiosa e para o serviço presbiteral não é o celibato. Este é apenas um meio e uma expressão de algo mais profundo: o amor a Deus e aos irmãos “por causa do Reino”. O que está no centro da formação é a pessoa em seu ser e agir, na rica trama de relacionamentos e potencialidades de seu existir como sujeito e filho/a de Deus.

O celibato, não se pode olvidar, é dom de Deus; tem natureza essencialmente carismática. Há quem diga que a Igreja, em suas normas, tem esquecido essa premissa fundamental. Desde essa perspectiva, que é teológica, não se pode propriamente falar em “educar para o celibato”. O que se pode favorecer é a integração e a estabilidade emocionais que permitem viver esse dom com liberdade interior, fecundidade para os outros e senso de realização pessoal.

6.4. Hesito em apresentar uma opinião para a qual não disponho de dados colhidos diretamente de pesquisas e observações cientificamente conduzidas, mas sim verificados e testados em minha já longa experiência clínica e pastoral.

Conheço dezenas de seminaristas, religiosos e sacerdotes de tendência homossexual que chegaram a razoável integração psicossexual e afetiva. Alguns entre eles tiveram uma vida feliz e puderam dar testemunho de vida, de serviço e de fidelidade ao ideal de consagração proposto pela Igreja. Mas conheço também casos opostos, alguns dos quais dramáticos. Refiro-me aqui à homogenitalidade propriamente dita, sem excluir ohomoerotismo. Os atos e hábitos voltados unilateralmente para práticas genitais diretas são os que precisam ser questionados de melhor forma. Eles geram, com facilidade, vidas truncadas, sofridas e carregadas de tensões. No caso de ambientes religiosos, são necessariamente obrigadas a um ocultamento angustiado e ambíguo que de modo algum favorece o amadurecimento da pessoa e a expansão da vocação.

Tenho conhecimento, também, de casos de escândalo público e de condenações judiciais, aliás, mais do que justas, pois se tratava de crimes. Note-se que não me refiro apenas aos casos que aparecem nos jornais. Embora as práticas homogenitais sejam as que mais chamam a atenção, elas, psicologicamente falando, nem sempre são o problema mais fundamental. Elas tampouco se restringem a clérigos de orientação homossexual. Existem escândalos semelhantes também entre religiosos e sacerdotes de tendência heterossexual. Não se pode generalizar a afirmação que faço a seguir, mas minha experiência me leva a dizer que, em termos gerais, pessoas com características estruturais de tipo homossexual são mais facilmente infensas a esse tipo de comportamento, provavelmente devido às circunstâncias repressivas impostas pela sociedade e pela cultura e favorecidas pelos ambientes de formação da Igreja. Não me refiro, tampouco, aos casos patológicos, que naturalmente existem e mereceriam uma discussão à parte. O que tenho em mente são pessoas até certo ponto sexualmente consideradas “normais”.

7. À guisa de amarração

Conhecer as vias pelas quais a Igreja vem tentando se reposicionar a respeito da homossexualidade nos mostrou que estamos ainda em meio a um processo de esclarecimento. Eticamente, os formadores da Igreja sabem que estão ante sérios questionamentos e ainda em busca de critérios e procedimentos que façam justiça, sobretudo, às pessoas de tendência homossexual radicada. Não há, assim, nesta ‘amarração” como apresentar conclusões, no sentido estrito do termo. É preferível falar em pistas, fazendo mais justiça à complexidade da questão.[12] De grupos com os quais andei buscando tais pistas, aprendi a valorizar algumas indicações que passo a comentar.

7.1. Em minha prática, constato notável incidência, em homossexuais por constituição, de traços atitudinais e comportamentos que denotam habilidades de vários tipos. São distúrbios (não doenças!) de várias origens e tipos. Alguns deles podem, sim, trazer aspectos que exigem cuidado psicoterapêutico e os contraindicam à vida religiosa e ao ministério presbiteral, em boa parte por serem narcisistas e sexualmente infantis. Indivíduos heterossexuais que apresentassem essas mesmas características também deveriam ser considerados como não indicados a uma vida celibatária. Quando aceitos, ambos os grupos devem ser acompanhados especialmente no amadurecimento dos aspectos obscuros que os contraindicam ao sacerdócio e à vida de consagração. Em princípio, os formadores devem propor a todos – sem distinção da orientação sexual da pessoa – aquelas virtudes cristãs e humanas que a Igreja aconselha aos celibatários e que supõem disponibilidade ao outro, riqueza e equilíbrio nos relacionamentos e, naturalmente, abertura a Deus e à caridade pastoral para com todos, sem acepção de pessoas. É uma meta ideal árdua para qualquer ser humano. A Igreja pede, por isso, correspondente maturidade psicossexual, só possível a quem tiver superado os estágios egocêntricos da primeira evolução psicoinfantil. O mínimo que se deveria dizer é que essas pessoas, para se equilibrarem psíquica, emocional e socialmente, necessitariam de um acompanhamento mais especializado.[13]

7.2. A marginalização e o desprezo a que a homossexualidade foi submetida por séculos e séculos é fenômeno cultural mais vasto do que a Igreja. Esta, no entanto, esteve diretamente envolvida na milenar opressão exercida sobre o grupo homossexual, reforçada pelo absoluto monossexismo dos claustros. Hoje, esse isolamento já não existe. Religiosos e religiosas jovens já convivem com naturalidade em espaços secularizados e em contato direto com pessoas de sua idade. Com isso, acentuou-se a exposição aos estímulos de uma cultura hipererotizada, na qual a homossexualidade se tornou uma bandeira libertária. Por essa razão, é preciso criar, nos lugares de formação, um clima mais saudável em relação à sexualidade e ao comportamento intersexual. Essa é uma precondição para que as casas de formação possam ser de auxílio aos portadores de traços que evidenciam tendência à homossexualidade.

Como não podia deixar de ser, os que se apresentam à porta das casas de formação são filhos/as da época consumista, permissiva e pluralista que os envolve. Os formadores estão ante a tarefa de rever costumes e normas herdados de um passado culturalmente cada vez mais longínquo. As velhas práticas pedagógicas precisam ser revistas, mas faltam-nos ainda as metodologias para tanto. No passado, os formadores eram afetados por grande ignorância (ignoratio invencibilis elenchi) a respeito das origens e desenvolvimento da homossexualidade humana. Hoje, já não há o direito de invocar essa justificativa histórico-cultural para omissões e equívocos pedagógicos. Os candidatos de orientação homossexual que eventualmente acolhemos em nossas casas têm o direito de esperar de nós não só compreensão, como também acompanhamento psicológico e espiritual adequados.

7.3. O acolhimento pedagógico de um candidato com orientação homossexual nada tem que ver com atitudes de facilitação e relativismo moral ou religioso. Talvez seja até o contrário. Compreender melhor o fenômeno homossexual em todas as suas dimensões pede um trabalho mais consciencioso nos relacionamentos e procedimentos formativos. Pode-se agir com respeito às pessoas de tendência homossexual sem ferir o que a Igreja pede, ao dizer que “nenhum método pastoral(ou pedagógico, ou psicológico) pode ser empregado que, pelo fato de esses atos serem julgados conformes com a condição de tais pessoas, lhes venha a conceder uma justificação moral” (Declaração, n. 8).

7.4. Da reflexão deontológica aqui feita pode-se tirar uma conclusão desafiadora: as questões afetivo-sexuais prementes em candidatos/as de tendência homossexual exigem maior estudo e melhor treinamento por parte dos pastores que acompanham essas pessoas no discernimento do que Deus lhes pede como caminho de vida (cf. EMPEREUR, 1998; OLIVEIRA, 2007; AARDWEG, 1997). Dessa maneira, no encaminhamento dessas pessoas, o que importa é colaborar para que possam discernir seu caminho de vida segundo as exigências de sua vocação cristã. Esse é um caminho de progressiva libertação pessoal e espiritual, no qual é preciso estabelecer uma parceria entre o esforço de autoconhecimento psicológico e religioso da pessoa e a presença atenta e competente de pastores e formadores bem preparados para essa tarefa.

Bibliografia

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[1] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração acerca de certas questões de ética sexual. São Paulo: Paulinas, 1976.
[2] BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Paulinas, 2005, n. 3-5.
[3] Não entro aqui na crítica agressiva que o documento pontifício recebeu de grupos de defesa da causa homossexual. Menciono, no entanto, o comentário do Pe. Bruce Williams, dominicano, que valoriza o documento sem omitir que ele próprio teve “reações ambíguas” numa primeira leitura da carta de 1986, a seu ver “construtiva em muitos aspectos e negativamente desapontadora em outros”(Williams, 1987).
[4] Saliento, desde já, que o texto fala aqui de “atos” e não da “tendência” homossexual.
[5] Cf. JOÃO PAULO II. Discurso a los obispos de EEUU. Ecclesia, n. 39, p. 1314, 5 out. 1979.
[6] As críticas foram muitas. Denunciava-se, no documento, uma postura biologística e medicalizante e uma tentativa de defender concepções pré-modernas que não podem ser hoje sustentadas. No fundo, mantinha-se o conceito de um caráter universal de doença, presente necessariamente na homossexualidade, o que já havia sido contestado por importantes entidades médicas desde a década de 1980. Além disso, a visão de sexualidade, nos meios católicos, mantinha o ponto de vista “procriativo” como o único definidor da validade moral da sexualidade humana, esquecendo sua dimensão interativa e de reciprocidade, mais ampla que o aspecto da genitalidade ao qual o documento estaria limitado.
[7] Deus Caritas Est, teologicamente falando, é um texto que mereceria uma análise mais acurada. Em sua primeira parte, a encíclica trata de conceitos como os de eros, philia e ágape e conversa com filósofos como Nietzsche, que criticava abertamente a maneira como os cristãos praticam e vivem a caridade. Lidas na perspectiva de nosso tema, as considerações de Bento XVI poderiam servir de base teológica para novas reflexões a respeito da sexualidade humana. Em princípio, os conceitos da Deus Caritas Est não contradizem o que Joseph Ratzinger assinava quando prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, mas com esse texto ele traz um fundamento evangélico mais promissor. Não é aqui o lugar para entrar nesse assunto.
[8] Um comentário psicoterapêutico sobre esse documento pode ser encontrado em Valle (2011).
[9] Veja-se, por exemplo, a bem fundamentada posição do Conselho da Igreja Evangélica Luterana da Alemanha em seu documento oficial: Mit Spannungen leben, Hannover, EKD, 1996.
[10] No Brasil, tivemos o médico e sacerdote João Mohana, que inovou a visão católica e a pastoral no campo da sexualidade.
[11] Nos documentos aqui comentados, pode-se observar que não é essa a posição da Igreja. Interessante documento da Diocese de Michigan (de 1973) lembra que a sexualidade, também a de tendência homossexual, pode e deve implicar a responsabilidade, a disposição ao sacrifício, a fidelidade, a amizade etc. Cf. Kosnik,1982, p. 246. Recente texto dos bispos norte-americanos a pais de filhos/as homossexuais assume a mesma postura positiva, na tentativa de animar positivamente os pais na ajuda a seus filhos/as.
[12] Cerca de 200 participantes de um seminário conduzido por Edênio Valle e Antônio Moser segundo a metodologia ver-julgar-agir, com a assessoria do psiquiatra Dr. João Moura e da psicanalista paulista Dra. Elsa Oliveira Dias, chegaram a interessantes conclusões, redigidas e posteriormente publicadas no formato de cópias mimeografadas.
[13] Quando se trata da admissão à vida religiosa ou às ordens sacras, devem ser tomados em conta os dois lados do compromisso que o candidato assume de livre vontade. À congregação ou diocese que o acolhe cabe a responsabilidade de acompanhá-lo em direção ao ideal proposto, mas não se pode esquecer que o candidato, por sua vez, se compromete com um esforço pessoal de crescer nessa mesma direção. Ambos os compromissos precisam ser devidamente ponderados não só na fase formativa, mas também na vida adulta.

Edênio Valle
Presbítero da Congregação do Verbo Divino. Professor associado de Psicologia da Religião no Programa de Ciências da Religião da PUC de São Paulo. Doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Publicou diversos livros e dezenas de artigos em sua área de especialização.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A festa do corpo


Corpus Christi é a festa em que a Igreja Católica celebra a instituição do sacramento da eucaristia. No século 13, Santa Juliana, francesa, viu em sonho, aos 16 anos, a Lua com pequena mancha escura. Interpretou como sendo a Igreja iluminada por suas festas e, a mancha, sinal da ausência de data dedicada ao Corpo de Cristo.

O cristianismo é a religião do corpo, malgrado as sequelas platônicas. No Credo, proclamamos nossa fé, não na ressurreição da alma ou do espírito, mas na “ressurreição da carne”.

A cultura da morte faz do corpo objeto de sujeição. A pessoa é reduzida à força de trabalho. Suga-se de seu corpo toda a vida, sem que lhe pague o salário justo para que possa florescer em sua potencialidade espiritual: cultura, lazer, criatividade.

Tais direitos ficam restritos àqueles que podem gravitar em torno do culto hedonista do corpo. Há um infindável estímulo consumista para exaltar a estética do corpo: publicações, cosméticos, academias de ginásticas, cardápios diet etc.

A cultura da vida sacraliza o corpo. Para Jesus, ele é morada de Deus. A própria divindade se faz corpo no homem Jesus. A quem lhe indagou o percurso para a vida eterna (o doutor da lei, Zaqueu, Nicodemos etc.), Jesus respondeu com ironia.

A quem lhe pediu vida nesta vida, um corpo saudável como expressão do dom maior de Deus, Jesus atendeu com amor: o cego que pediu a cura para recuperar a visão, o paralítico que desejou andar, a mulher atormentada pela hemorragia, o homem da mão seca que suplicou por saúde.

Jesus restaurou corpos (milagres); alimentou corpos (partilha dos pães e dos peixes); celebrou corpos (bodas de Caná e o Reino de Deus comparado a banquetes).

Uma sociedade que segrega corpos pela cor da pele ou submete-os por relações injustas de trabalho é contrária aos princípios do Evangelho.

O corpo de Deus, em Jesus, é rejeitado, difamado, preso, condenado, torturado, crucificado. Contudo, "no primeiro dia da semana", seu corpo ressuscitou, primícia e promessa de que nossos corpos haverão de vencer a morte.

Jesus permanece entre nós na forma de pão. Todo pão que se partilha é eucaristicamente dotado de presença divina. Pães materiais — salário digno, emprego, direitos reconhecidos; e pães simbólicos —, o gesto de carinho, a solidariedade, o amor.

Nosso corpo traz a história do Universo. Todas as células foram tecidas por moléculas feitas de átomos engendrados no Big Bang e cozinhados no calor das estrelas. Somos feitos de matéria estelar. Na intimidade atômica, cada partícula é também onda, como se a natureza risse de nossa lógica cartesiana incapaz de apreender que toda matéria, inclusive o nosso corpo, é energia condensada.

Espírito não é algo que se opõe à carne, mas sua expressão mais profunda e luminosa. É fantástico que a própria natureza, em trajes bordados pela química e em baile ritmado pela física, tenha aflorado em seres dotados de inteligência capaz de decifrar os seus enigmas e apreender o seu sentido.


- Frei Betto

Fonte

Para sempre


A liturgia, na sequência do Tempo Pascal, faz questão de celebrar na semana depois da Santíssima Trindade, uma grande festa da Eucaristia: a festa do Cristo que se dá em alimento para a felicidade de seus irmãos.

A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras da Festa do Corpo e Sangue de Cristo (quinta-feira, 19 de Junho de 2014). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Eis o texto.

Referências:
1ª leitura: Deuteronômio 8,2-3.14-16
2ª leitura: 1Coríntios 10,16-17
Evangelho: João 6,51-58

Para além do rito

Seja na 1ª leitura, que fala do maná e da água do rochedo, seja na Carta de Paulo ou no capítulo 6 de João, em nenhum lugar encontramos a ideia de «adoração do Santo Sacramento». O pão e o vinho da Eucaristia não estão aí para serem olhados, mas para serem compartilhados e consumidos. Repetindo, a presença de Deus e do Cristo é «presença real» e permanente, em todas as coisas. Presença esta que se torna eficaz, operativa em nós, quando aceitamos nos reunir, fazendo-nos um só, em seu nome (Mateus 18,20). É isto mesmo o que se passa quando fazemos a Eucaristia, mas devemos compreender que o «sacramento» significa, convoca e sustém o que temos que viver por todo o tempo. O «fazei isto em memória de mim» não se refere apenas a um rito, mas à reprodução ao longo de nossas existências do dom de si mesmo que o Cristo nos fez. Que fique bem entendido, este dom da nossa vida para os irmãos não assume sempre a forma de uma paixão corporal e sangrenta, mas sempre passa pela crucifixão dos nossos egoísmos e das nossas vontades de possuir e dominar. Uma descoberta a ser feita: a alegria incomparável de uma nova vida que vem habitar todos os que escolhem reproduzir da forma que for a atitude doCristo «dando sua vida pelos seus amigos». Por isso a forma ritual da memória da Paixão e Ressurreição do Cristotoma o nome de «Eucaristia», ou seja, «ação de graças».

Mas, então, por que o rito, o "sacramento"?

Esta questão se põe, de fato, e explica um pouco porque hoje muitos crentes desertam de nossas Eucaristias. Quando alguém aceita passar por algum detrimento para que outro possa viver, o Cristo está aí, mesmo se não é nomeado e, até mesmo, no limite, se sequer é conhecido. Este exatamente é o caso da viúva de Marcos 12,41-44: deu para o Templo «tudo o que tinha para viver». Sim, talvez pudesse encontrar melhor destinatário, mas na verdade também o Templo é uma figura do Corpo do Cristo. Muitas são as razões para a celebração do sacramento, sejam quais forem. Primeiro, o que o Cristo fez na última Ceia traz já um caráter ritualístico: através da partilha do pão e do vinho, significando o dom de sua carne e do seu sangue, é que o fato se dá. É uma antecipação que vai tornar os discípulos parte interessada nos acontecimentos da Páscoa. Já para nós que viemos depois esta antecipação dá lugar a uma re-atualização, mas, por ela, também nós seremos integrados ao dom da sua vida que o Cristo nos fez. O rito é a linguagem, a proclamação pública do que consideramos primordial e que temos de fazer o mundo saber, pois que se refere também a ele, bem entendido. Mas é preciso acrescentar que o desprezo ao mandamento doCristo, ao «fazei isto em memória de mim», no que se refere também ao rito, nos destina ao esquecimento (que é o contrário da memória). Ao fim de certo tempo, a Páscoa, o Evangelho e o próprio Cristo acabam saindo das nossas vidas e dos nossos espíritos.

"Eu sou o pão da vida vindo do céu"

Tem mais: a convergência dos crentes para celebrar o sacramento significa a sua unidade. E ela mesma produz esta unidade. Lembremos que, para santo Agostinho, o corpo que põe no mundo o sinal sacramental (todo sacramento é «sinal sensível») é, enfim, este corpo que chamamos de Igreja. A eficácia do sacramento não é mágica: ela se faz pela nossa adesão livre ao dom de si mesmo que o Cristo nos faz, entregando-nos a sua vida. «Nós comemos deste pão.» Isto que Jesus fez na Páscoa torna-se a nossa Sabedoria, a nossa «filosofia», a nossa razão de viver. E se nos rendemos à Missa, é porque esta escolha do amor não vem de nós mesmos: não podemos produzir este pão porque ele não vem da terra. Na linguagem bíblica (1ª leitura e evangelho) se diz que ele «vem do céu», ou seja, desta presença que, mesmo se inacessível aos nossos sentidos, nos envolve, nos habita e nos faz existir. Este “outro” do mundo, de nós mesmos e de tudo o que podemos produzir abre as nossas vidas, arranca-nos das nossas escravidões, das nossas solidões e dos nossos fechamentos em nós mesmos. Da fé neste «outro lugar» e neste «outro modo de ser» é que nasce a esperança. E aqui estamos nós, abertos que estamos já, e em condições de encarnar o amor que nos faz ser. O pão e o vinho que recebemos permitem que nos tornemos no pão que, por nossa vez, podemos dar também. Assim o «pão do céu» pode tornar-se o pão da terra.

Fonte

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 3 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes (a primeira está aqui e a segunda, aqui). Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a terceira parte do artigo:

3. O Catecismo da Igreja Católica (1992)

3.1. Como se sabe, o Catecismo foi redigido para compendiar o que a Igreja ensina e precisa ser guardado por todos os fiéis, como um item básico de referência. O Catecismo não diz tudo sobre os temas que aborda, quer apenas resumir o que a Igreja considera essencial. No caso da homossexualidade (cf. n. 2.357-2.359 e 2.331-2.333), ele não entra em questões ainda em fase de esclarecimento. Ao falar da homossexualidade, começa com uma espécie de definição. A simples leitura dessa definição já demonstra que os redatores do verbete estavam atentos ao que hoje se discute na biomedicina e nas ciências psicológicas e sociais. A homossexualidade, afirma o Catecismo, implica “relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo”. Esse fenômeno fundamentalmente humano, segundo o texto, tem uma origem psicológica ainda sem explicações satisfatórias. Além disso, revestiu-se das mais variadas formas ao longo dos séculos, de acordo com as distintas culturas. A cultura de hoje lhe conferiu algumas características próprias ao nosso tempo.

3.2. Do ponto de vista da moral, o Catecismo retoma o que os dois textos já comentados nos afirmaram. Vê a prática de atos homossexuais como inadmissível do ponto de vista da moral cristã, pois é uma “desordem”. Como tal, contraria a lei natural porque é fechada ao dom da vida e desprovida daquela complementaridade e reciprocidade à qual a sexualidade integral naturalmente se endereça. Reconhece que o número de pessoas com orientação homossexual “não é negligenciável” e que essa tendência pode estar fundamentalmente ancorada no organismo (seria “inata”). Diz, também, que ela pode representar uma “provação”para a pessoa, sublinhando que “toda pessoa, homem ou mulher, deve reconhecer e aceitar sua própria identidade sexual” e que a pessoa humana “não pode ser adequadamente descrita por uma referência reducionista ao seu ou à sua orientação sexual” (n. 16). Essas duas observações são de suma relevância, pois supõem a originalidade fundamental de cada pessoa. Em uma cultura que massifica a sexualidade e a reduz a um objeto, é essencial a defesa da diferenciação e originalidade da pessoa em sua dimensão sexual.

Uma pessoa de orientação homossexual não o é por opção; deve, por isso, ser aceita com respeito, sensibilidade e compaixão, pois também essas pessoas “são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição”.

4. Outros documentos posteriores

Vou me referir ainda a três outros textos, deixando de lado uma consideração mais cuidadosa da recente encíclica Deus Caritas Est, de Bento XVI, que muito tem a nos dizer sobre o amor humano assim como este se revela no homem e na mulher.[7]

4.1. Em um desses documentos, que leva o título de Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé, a tomada de posição é formalmente contrária às modificações que estão sendo introduzidas em vários países no sentido de favorecer a união civil entre casais homossexuais de ambos os sexos. No contexto, estão em discussão também a ética e as normas sobre a adoção de crianças por parte desses casais.

É uma discussão polêmica, presente também no Brasil (cf. Martin, 1995). A posição manifestada pela Santa Sé provocou especial repulsa por parte de seus críticos por ser interpretada como uma intervenção descabida da Igreja em um tema laico e civil. Não caberia a uma Igreja dizer se essa mudança na legislação seria ou não uma exigência da justiça e uma prática pertinente em sociedades laicas como as atualmente existentes no Ocidente. Em uma sociedade plural, o injusto seria tentar impor a opinião de um grupo, religioso ou não, sobre a dos demais. O texto, em si, repisa os mesmos conceitos e princípios nos quais a Igreja vinha insistindo desde os anos 1970, por exemplo: “as relações homossexuais estão em contraste com a lei moral natural [...] pois fecham o ato sexual ao dom da vida”. Mas há afirmações mais taxativas e de tom mais duro, por exemplo: “por seu caráter imoral [...] ela é nociva a um reto progresso da sociedade humana”.

4.2. Outro texto veio do Secretariado para a Família, organismo da Santa Sé chefiado por prelados reconhecidamente conservadores. Foi publicado quase concomitantemente com o pronunciamento sobre a união civil de casais homossexuais. Trata-se de um léxicon (não, portanto, de um pronunciamento) sobre a sexualidade e a família. No verbete sobre a homossexualidade emite-se um juízo crasso e quase grosseiro. Em vez de apresentá-lo, julgo mais oportuno citar o que escreve João Silvério Trevisan, assumindo o papel de porta-voz da indignação dos homossexuais brasileiros (cf. Trevisan, 2004). Para ele, o Lexicon perpetua

velhos preconceitos, num raciocínio capcioso que chega à arrogância. Contrapondo-se à Organização Mundial da Saúde, define a prática homossexual como “um conflito psíquico não resolvido” que “favorece um desvio”, o que a torna “contrária ao vínculo social e aos fundamentos antropológicos”. Assim, desautoriza casais homoafetivos a constituir família, sob o pretexto de se tratar de “atormentados” que sofrem de “impotência ansiogênica”. Numa inversão perversa que torna a sociedade vítima de militantes homossexuais, o documento acusa-os de conspirar para ganhar poder na ONU e no Parlamento Europeu. E demoniza homossexuais como vilões que minam a moral familiar. Há cinismo ao esconder que a própria Igreja partilha da responsabilidade de criar atormentados/as. Bastaria um mínimo de sensatez para compreender como o seu poder espiritual afeta gravemente a vida de milhões de pessoas, por minar a autoestima e estimular o ódio social aos homossexuais. Ao contrário de sua propalada vocação pastoral, a Igreja não se dá conta sequer do sofrimento psíquico que impõe a milhares de homossexuais católico/as e à numerosa parcela homossexual do clero.

4.3. O terceiro documento, que retoma e sintetiza muito do que a Igreja oficial havia afirmado nos textos até aqui citados, é a Instrução sobre os critérios de discernimento acerca das pessoas com tendência homossexual e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras, de 2005.[8]

Dois tópicos dessa instrução chamam especialmente a atenção do psicólogo. Logo no início, após citar suas muitas fontes eclesiásticas sem fazer distinções (cf. nota 2 da instrução), é tratado o tema da maturidade afetiva e da paternidade espiritual necessária a um presbítero católico. A linguagem é, propositadamente, a da “tradição constante da Igreja”e não a da academia ou da ciência psicológica. Saliento, nessa parte, duas afirmações da instrução; uma delas “define” o que é a homossexualidade e a outra oferece os critérios a serem usados pela autoridade eclesiástica responsável pela formação dos futuros padres ou religiosos:

No que respeita às tendências homossexuais profundamente radicadas, que certo número de homens e mulheres apresenta, também elas são objetivamente desordenadas e constituem, frequentemente, mesmo para tais pessoas, uma provação. Estas devem ser acolhidas com respeito e delicadeza: evitar-se-á, em relação a elas, qualquer marca de discriminação injusta. Essas pessoas são chamadas a realizar em sua vida a vontade de Deus e a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que encontrar (n. 4).

A Igreja não pode admitir ao Seminário e às Ordens sacras aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente arraigadas ou apoiam a chamada cultura gay. Essas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que obstaculiza gravemente um correto relacionamento com homens e mulheres. De modo algum, se hão de transcurar as consequências negativas que podem derivar da ordenação de pessoas com tendência homossexual profundamente radicada. Diversamente, no caso de se tratar de tendências homossexuais que sejam apenas expressão de um problema transitório como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completa, elas devem ser claramente superadas, pelo menos três anos antes da ordenação diaconal (n. 6).

Há, nesse documento, uma lacuna que causa estranheza a quem entende de psicologia e/ou psicoterapia. Trata-se de uma questão que envolve a formação profissional de quem deve emitir um parecer a respeito do tipo, grau e complexidade do envolvimento homossexual do candidato portador dessa tendência. A instrução parece dispor que é às autoridades eclesiásticas (o bispo, o reitor do seminário, os formadores, o diretor espiritual e o confessor) que incumbe o discernimento tanto da idoneidade vocacional quanto do psicodiagnóstico de cada candidato. Discernir, por exemplo – coisa nem sempre fácil –, entre o caráter “transitório” ou “profundamente radicado” da tendência. Não deixa de ser preocupante que a instrução parta desse pressuposto, pois há casos em que se torna indispensável colaboração dos especialistas da psicologia e da pedagogia para chegar a distinções diagnósticas e encaminhar os cuidados psicoterapêuticos muitas vezes indispensáveis e que são, por lei, privativos de profissionais devidamente credenciados.

5. Pronunciamentos moral-teológicos

5.1. Na teologia católica, os ensinamentos do magistério sempre tiveram um peso decisivo, uma espécie de palavra final seja qual fosse a natureza do tema em debate. As aberturas ou fechamentos do que ele preceitua repercutem na reflexão dos teólogos, seja estimulando, seja coibindo sua função de aprofundamento, explicitação, crítica ou aplicação. As posições hoje existentes na teologia moral sobre a homossexualidade refletem bem essa situação. Os teólogos de outras Igrejas cristãs[9] gozam de maior liberdade, uma vez que não têm de se preocupar com limites e condições, em geral restritivas, que são de praxe na Igreja Católica. No tocante à sexualidade, têm crescido cada vez mais as posições críticas, mesmo que sub-repticiamente. Há três correntes teológicas a esse respeito: uma mais tradicional, que até chega a criticar o Vaticano como demasiado condescendente neste campo; outra, seguramente majoritária hoje em dia, que tenta aprofundar as brechas que os pronunciamentos oficiais oferecem; e uma terceira, que vê como inadequado e insuficiente o tratamento que as autoridades maiores da Igreja Católica dão à sexualidade em geral e, consequentemente, à homossexualidade e aos homossexuais.

Pioneiro na discussão psicopastoral da homossexualidade foi o médico, psicanalista e sacerdote francês Marc Oraison.[10] Para ele, ser homossexual não podia ser a priori visto como algo “mal”. O fato de alguém serhomossexual “não comporta em si nenhuma maldade moral”(Vidal, 1985, p. 117). Oraison foi bem além do ensinamento oficial e teve provavelmente influência sobre ele, na medida em que foi um dos primeiros a propor que, também quanto ao juízo e tratamento pastoral e médico-psicológico da tendência homofílica, o critério principal de sua eticidade fosse o grau e a qualidade de sua “humanização”. Sobre os homossexuais, ele afirmava expressamente:

o prazer intercambiado e compartilhado pode ser uma expressão de amor, na medida justamente em que se o viva em uma relação intersubjetiva alcançada… O prazer erótico não é forçosamente a expressão do amor, ou seja, de uma relação verdadeiramente intersubjetiva. Pode ser “solitário”, pode ser buscado também com um companheiro ao qual se situa, sobretudo, como objeto, como instrumento de excitação e distensão orgástica. Mas pode ser verdadeiramente relacional. Um sujeito homossexual não pode sentir-se atraído por esse prazer se não com um sujeito de seu mesmo sexo. Representa, como vimos, um inacabamento da evolução afetiva, uma imperfeição quanto ao acesso à diferenciação (sexual). Mas o homossexual não pode mudar nada em semelhante situação, que está sofrendo com pesar. Não é, portanto, impossível que, nessa situação que é a sua, chegue a viver uma relação erótica com um companheiro igualmente homossexual que seja, ao nível do que lhes é acessível, a expressão de uma verdadeira relação intersubjetiva. Pode-se falar, em tal caso, de um “pecado”? (apud Vidal, 1985, p. 118).

5.2. Na sequela de reflexões como a de Oraison, vale a pena chamar a atenção para o esforço de moralistas católicos para chegar a uma compreensão e avaliação ética mais correta do “comportamento” homossexual. Em tal comportamento, esses teólogos procuravam distinguir os comportamentos “desintegradores” – que se verificam também em heterossexuais (aberrações, promiscuidade, prostituição, pedofilia, abusos e atos não vinculativos etc.) – dos comportamentos que propiciam e manifestam uma evolução em curso no nível psicoafetivo, humano e cristão. O que diz, por exemplo, J. McNeill resume bem a posição de fundo que hoje se tornou dominante na ética sexual cristã: “as mesmas regras morais que se aplicam às atividades e condutas heterossexuais” se aplicam igualmente às pessoas de tendência homossexual (apud VIDAL, 1985, p. 117). Outro ponto em que reina relativo acordo prático e pastoral é a aplicação do princípio do “mal menor”. Mas, naturalmente, há que perguntar, caso a caso, se essa “solução” não seria uma maneira de fugir pela tangente, evitando as árduas controvérsias suscitadas por pessoas com tendência homossexual comportamentalmente estabelecida.

Os pastores, segundo Vidal (1985, p. 110), precisam aprender a adotar uma “atitude de provisoriedade” relativamente ao que é divulgado como resultados (biológicos, genéticos, neurológicos, psicológicos e antropológicos) proclamados definitivos e seguros, venham eles de setores “progressistas” ou de arraiais “conservadores”. Os dados científicos de que dispomos não podem ser vistos dessa forma simplista. Logo, tampouco o juízo ético e a atitude pedagógica ou pastoral devem ser categóricos quando se observam os critérios e valores teológico-pastorais nos quais a Igreja julga seu dever insistir também em nossos dias. Assim sendo, continua Vidal (1985, p. 110), a avaliação moral e pastoral-pedagógica da homossexualidade “deverá ser formulada em uma chave de busca e de abertura”.A finalidade última que o moralista, o educador e o pastor devem ter em mente deveria ser libertar-se e libertar as pessoas e o meio em que atuam “de falsas compreensões e das injustas normas sociojurídicas em que a mentalidade dominante (acrítica e ideológica) a encarcerou”. É função da educação e da ética “ser uma força mais interna… (na) emancipação humana, nesse âmbito da condição homossexual” (VIDAL, 1985, p. 125).

Portanto, o padre e o educador cristão devem saber integrar a avaliação e a ajuda formativa aos indivíduos de tendência homossexual em um projeto ético mais amplo e mais articulado com toda a sexualidade humana e com cada ser humano em sua unicidade e totalidade de seu ser-assim.

5.3. A história da moral cristã – seja da católica, seja da protestante (cf. Maspoli, 2006) – mostra especial dificuldade em situar o lugar antropológico e ético do prazer sexual. São maneiras de ver a sexualidade eivadas de elementos antropológicos e filosóficos que se inspiram no dualismo maniqueu e na tendência neoplatônica, popularizada por Agostinho, de negar qualquer espaço e valor ao prazer sexual.

A interpretação tradicional das passagens bíblicas relacionadas à homossexualidade está sendo questionada e superada pelos conhecimentos da exegese contemporânea; representa uma visão minimalista dos dados bíblicos, assim como estes aparecem nas Escrituras e, mais ainda, nas atitudes de Jesus.

A própria teologia da sexualidade e do matrimônio, bem como a nova visão da pessoa, está levando ao questionamento de conceitos e práticas tidas, durante séculos, como as únicas compatíveis com a fé e a santidade cristãs.

À medida que o conhecimento sobre a homossexualidade foi avançando, a Igreja sentiu a necessidade de rever posições já não justificáveis, sem se afastar, contudo, da experiência humana e cristã de quem funda seu comportamento no evangelho e nos valores do Reino. Entre os pontos revistos, podem ser listados os seguintes:

Reconhecer que houve uma redução indevida da sexualidade homossexual à sua dimensão genital e, em consequência, a uma visão moral e pastoral dependente mais do biológico do que do pessoal;
Reconhecer que não tem fundamento a suposição de que a homossexualidade seja uma condição reversível, dependente apenas da vontade da pessoa homossexual e não de outros fatores complexos;
Reconhecer o caráter machista, “androcêntrico” e antifeminista de suas posições no passado. A visão, por exemplo, da mulher como “um macho mutilado” colaborou muito para uma condenação a priori da homossexualidade e do homossexual e do surgimento de um clima homofóbico que caracterizou certos ambientes conventuais;


Reconhecer a unilateralidade de uma visão que tem a procriação como condição única para o exercício moralmente permitido da sexualidade. Tal critério era aplicado universalmente e teve um peso determinante no que concerne à homossexualidade, fazendo que os atos homossexuais fossem vistos fora de uma visão de conjunto mais ampla, que poderia lhes conferir outro significado humano. A valorização exagerada da finalidade procriadora da sexualidade deixava na penumbra outros possíveis critérios, como, numa palavra, a philia e o próprio ágape cristãos, enfatizados por Bento XVI em sua primeira encíclica.


Em suma, os pronunciamentos da Igreja sobre a homossexualidade não representam um ponto final das discussões. Devem ser encarados como um alerta que baliza o debate, um juízo emitido com o objetivo de salvaguardar o que é essencial, do ponto de vista da dignidade das pessoas, da sexualidade humana e do modo cristão de viver a sexualidade como dom e responsabilidade de vital importância para a humanidade. Nesse sentido, é normal que o conhecimento que a humanidade adquire sobre a sexualidade afete, até certo ponto, as concepções e os modos de comportamento relativos a essa dimensão fundamental para a realização humana, propiciando um amadurecimento cada vez mais pleno das pessoas.

[Continua amanhã]

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 2 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes (a primeira está aqui). Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a segunda parte do artigo:

2. Pronunciamentos da Santa Sé sobre a homossexualidade

Até aqui, apenas contextualizei rapidamente alguns aspectos do estado da questão. Propositadamente, não mencionei o que se passa nos arraiais do clero (sobre esse ponto, cf. Nasini, 2001). Passarei, a seguir, a expor o que os documentos e pronunciamentos da Santa Sé têm reafirmado sobre o tema e indicarei, em rápidas pinceladas, a recepção deles pelos teólogos e pastoralistas da Igreja.

Tomarei como referência os textos que, em minha avaliação, marcam o surgimento de um enfoque até certo ponto novo na abordagem da homossexualidade pela Igreja oficial. Comentarei especialmente dois deles: o de 1975, publicado no Brasil em 1976, e o outro, de 1985. Ambos têm como destinatários “os bispos da Igreja Católica”, o que os caracteriza como textos também de natureza pastoral, ou seja, não dirigidos ao público externo, mas sim aos que devem conduzir a ação evangelizadora na Igreja. É importante frisar essa origem e esses destinatários dos textos para não buscar neles o que não pretendem nem podem oferecer.

O documento de 1976 leva o nome de Declaração sobre alguns pontos da ética sexual. Foi elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé, o que me parece ser sintomático, por deixar claro que, para a autoridade eclesiástica, se tratava basicamente de uma questão de doutrina. O outro foi publicado dez anos mais tarde, em 1986. Procede da mesma fonte, mas é redigido na forma de uma carta Sobre o cuidado pastoral de pessoas homossexuais.

O objetivo de ambos os documentos é esclarecer tanto princípios de doutrina quanto de pastoral afetados pela discussão pública, cada vez mais acesa, em torno da homossexualidade. Há, provavelmente, por trás do documento de 1986 uma decisão pessoal do papa João Paulo II, que, àquela época, imprimia às diretrizes da Cúria Romana uma orientação católico-conservadora, centrada na defesa do pensamento católico sobre a família, o aborto, as políticas de controle de natalidade, as reivindicações do feminismo e as legislações liberais relativas à homossexualidade que começavam a aparecer nos parlamentos dos países ocidentais, secundando costumes cada vez mais disseminados no Ocidente secularizado. Aliás, essa preocupação quanto ao aspecto “teológico-doutrinal” foi uma constante também de outros pronunciamentos do pontificado de João Paulo II. Sabe-se, além do mais, que nos dicastérios e secretariados mais diretamente responsáveis pelas tomadas de posição normativas estavam alguns dos cardeais e teólogos mais conservadores da Cúria Romana.

Apesar de os documentos apresentarem avanços – o que é necessário valorizar –, encontraram igualmente rejeições e críticas, como era de esperar.[3] Em muitos ambientes, a repulsa foi quase total, o que, provavelmente, fez que leitores e comentaristas engajados não valorizassem devidamente os avanços e pistas novas constantes dos textos. Naturalmente, havia também o outro lado, o partido dos conservadores, que criticava os escritos por terem cedido demasiado à pressão da opinião pública liberal.


2.1. A Declaração sobre alguns pontos de ética sexual, de 1976

O documento de 1976 parte de um posicionamento claro da Santa Sé e marca um distanciamento do magistério em relação à opinião de teólogos católicos e protestantes – mesmo de Igrejas – mais abertos ao diálogo. Considera com extrema preocupação “a tendência a julgar com indulgência e até mesmo a desculpar completamente as relações homossexuais em determinadas pessoas”. E argumenta afirmando que esse modo de pensar fere “o constante ensino do magistério… e o sentir moral do povo cristão”.

2.1.1. Aventa, em defesa de sua posição bastante severa, dois argumentos principais. Um é bíblico. A declaração afirma de modo categórico que, para a Bíblia, “os atos[4] de homossexualidade são intrinsecamente desordenados [...] não podem, em hipótese alguma, receber qualquer aprovação”. No entanto, abre uma brecha que evita uma leitura taxativamente negativa e condenatória dos textos do Antigo e do Novo Testamento, ao sublinhar que a Bíblia “não permite [...] concluir que todos aqueles que sofrem de tal anomalia sejam por isso pessoalmente responsáveis”. Um segundo argumento é tirado da ordem natural das coisas, um argumento de enorme peso na teologia medieval e na patrística, bem na linha existente já na Bíblia judaica. De acordo com essa interpretação, existe uma “ordem moral objetiva” segundo a qual “as relações homossexuais são atos destituídos da sua regra essencial e indispensável” que é a procriação, ditada pela natureza criada por Deus.

Apesar dessa avaliação moral “objetivista e extrínseca”(expressões usadas por Azpitarte, 1997), a declaração apresenta vários elementos que podem ajudar a contextualizar, de maneira diferente, a homossexualidade. São conceitos que aparecem, sobretudo, no momento em que a declaração abandona a chave doutrinal e passa a tratar a questão à luz de um sentido pastoral e pedagógico. Mas mesmo esses parágrafos benévolos são precedidos por uma reprovação de todo e qualquer “método pastoral que reconheça uma justificação moral desses atos (homossexuais) por considerá-los conformes à condição dessas pessoas”.

Em outro parágrafo, o documento acentua que os que padecem de tal “anomalia”não são necessariamente responsáveis por ela, uma vez que não o fazem por escolha própria. Este é um ponto fundamental, no qual insistem quase todos os moralistas contemporâneos. Azpitarte, por exemplo, diz:

o simples fato de apresentar tendências homossexuais, de sentir atração pelo próprio sexo, é um fato que não entra no campo da moralidade. Ninguém é bom nem mau por experimentar tendências e sentimentos que não pode afastar de si e que, inclusive, experimenta como um destino imposto à margem de sua vontade, algo assim como faz com que nasçamos homem ou mulher. Na medida em que a homofilia não se baseia em uma opção escolhida, não há lugar para culpa. O pecado tem outras categorias, que não radicam na existência pura e simples de um fenômeno psicológico, mas sim na aceitação livre e voluntária das práticas homossexuais (1997, p. 78).

De tal raciocínio decorrem sérias consequências para a consideração do comportamento relativo à pessoa do homossexual. Ao lado do rigor quanto às questões de princípio, surge, na moral católica e nos textos da autoridade eclesiástica, evidente interesse em favorecer uma atitude de maior acolhida na ajuda às pessoas de tendência homossexual. Isso é expresso claramente em frases da declaração como a seguinte:

Indubitavelmente, essas pessoas homossexuais devem ser acolhidas, na ação pastoral, com compreensão, e devem ser apoiadas na esperança de superar suas dificuldades pessoais e sua inadaptação social. Também sua culpabilidade deve ser julgada com prudência.

2.1.2. Após essa breve apresentação do documento de 1976, chamo a atenção do leitor para uma observação que reputo importante. Há indícios de que no texto existe uma concomitância entre uma “linha dura” e outra, mais branda, no que diz respeito ao acolhimento da pessoa homossexual. João Paulo II, em um discurso aos bispos norte-americanos, reafirmou essa posição, assinando em primeira pessoa o que a Santa Sé e também alguns episcopados já haviam afirmado sobre o mesmo assunto.[5] Esse discurso do papa antecipava, de alguma maneira, um texto mais denso, publicado dez anos depois pela Congregação para a Doutrina da Fé, em 1986. Dada a tumultuada recepção[6] da declaração de 1976 por parte da opinião pública mundial, parece que era dupla a intenção do papa com esse discurso pronunciado no país onde a polêmica se fazia mais agressiva: manter o rigor doutrinário, mas, simultaneamente, ressaltar a dignidade fundamental e os direitos do homossexual como pessoa. De alguma forma, João Paulo II pretendia, assim, afastar da Igreja a pecha de hostil à sexualidade e de preconceituosa quanto aos homossexuais e suas reivindicações políticas e sociais.

2.2. Carta de 1986 sobre o atendimento das pessoas homossexuais

2.2.1. A carta se apresenta de maneira modesta ao afirmar que não quer nem pode ser “um tratado exaustivo”, admitindo, assim, que também a Igreja sabe que está diante de uma questão de grande complexidade. Nesse sentido, a carta procura se fundamentar “nos resultados seguros das ciências humanas”. Mas, além do que as ciências ajudam a trazer à luz, a Igreja procura em seu horizonte próprio, que é o da fé, sabendo que esse ângulo, muito especialmente em questões de moral sexual, não pode prescindir de um “estudo atento, empenho concreto e reflexão honesta, teologicamente equilibrada”,sobre o fenômeno homossexual.

O texto, porém, causa a impressão de ser doutrinariamente ainda mais restritivo que o anterior. Já em seu terceiro parágrafo, ele volta à questão dos atos homossexuais como atos “privados de sua finalidade essencial e indispensável” e expressa taxativamente:

a particular inclinação da pessoa homossexual, apesar de não ser em si mesma um pecado, constitui um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada.

Esse discurso duro e direto permeia quase toda a carta e se faz notar, especialmente, nos seguintes itens: na caracterização dos atos homossexuais; na interpretação teológica dos textos bíblicos; na reação às contestações, críticas e manipulações políticas recebidas pelo documento de 1976 e na condenação de algumas “interpretações excessivamente benévolas”que certos teólogos quiseram dar à condição homossexual etc.

Nos Estados Unidos, a afirmação que causou mais polêmica na imprensa e na militância gay foi a que reiterava a noção de “desordem objetiva”como inerente à homossexualidade e, ao menos indiretamente, também à pessoa do homossexual. Sou da opinião que a intenção da carta não era diminuir os homossexuais, mas foi assim que ela foi lida, como uma tentativa de brecar a luta por seus direitos. Em vários passos, porém, guardando um tom pastoral, o documento afirma o valor e a dignidade dos homossexuais. Eles são descritos como pessoas “frequentemente generosas e que se doam” (n. 7); como investidos de “uma dignidade natural… (que)… deve ser sempre respeitada em palavras, em ações e nas leis” (n. 10); como detentores de uma “liberdade fundamental que caracteriza toda pessoa humana e lhe confere dignidade” (n. 11); como tendo especial “direito” ao cuidado pastoral da Igreja (n. 13-17).

2.2.2. Do lado católico, destacaram-se os posicionamentos do bispo norte-americano Mons. John R. Quinn. Em um artigo influente, ele encarou o controvertido ponto da “homossexualidade como desordem e doença”, depreendido da leitura da carta. Quinn se situou na linha da Associação Americana de Psiquiatria, que, em seu famoso DSM (Diagnostic and Statistical Manual), havia abandonado a classificação da homossexualidade como enfermidade ou desordem psicológica, passando a considerá-la como uma modalidade normal de comportamento. Em que pese o fato de os textos de Roma insistirem em usar a expressão “desordem intrínseca”, dando quase a entender que à homossexualidade se associa necessariamente algo doentio, na opinião de Quinn, o texto da Congregação para a Doutrina da Fé não tinha nem poderia ter a intenção de dirimir um problema de natureza médica e psiquiátrica. Não competiria ao magistério abordar tecnicamente esse problema, do âmbito da ciência médica e psicológica. É interessante notar que o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da congregação que preparara o texto, escreveu uma carta pessoal a Mons. Quinn, agradecendo sua “cuidadosa análise”e as “pertinentes orientações… que mostravam claridade e sensibilidade pastorais”.

2.2.3. No tocante à discriminação e violência de que os homossexuais foram vítimas no passado e sofrem também hoje, a carta se expressa sem meias palavras:

é de se deplorar firmemente que as pessoas homossexuais tenham sido, e sejam ainda hoje, objeto de expressões malévolas e de ações violentas. Semelhantes comportamentos merecem a condenação dos pastores da Igreja, onde quer que aconteçam. Eles revelam uma falta de respeito pelos outros, que fere os princípios elementares sobre os quais se alicerça uma sadia convivência civil.

O que acontece é que, mesmo quem não está envolvido pessoalmente com a causa homossexual, ao esbarrar com conceitos como “desordem objetiva”, se pergunta sobre a possibilidade de coadunar expressões de apreço pela pessoa do homossexual, presentes em alguns outros trechos desses documentos, com julgamentos tão taxativos quanto o de “desordem objetiva”, à qual, segundo o texto, a homossexualidade estaria sempre e necessariamente associada.

2.2.4. Preparando a parte mais inovadora e positiva – a relativa ao acolhimento das pessoas –, a carta retoma alguns aspectos que já apareciam na Declaração de 1976. Podemos enumerar os seguintes: a referência ao dever dos pastores de procurar melhor compreensão da condição homossexual; a necessidade de julgar com prudência sua possível culpabilidade moral; a distinção entre “a condição ou tendência”, de um lado, e os “atos homossexuais”, de outro. Em sua parte conclusiva, a carta se estende sobre a verdade, a libertação, o amor e a misericórdia, considerados como dimensões integrais do acolhimento pastoral devido a todos os cristãos sem discriminação alguma.

A carta, dando um passo não suficientemente definido no documento de 1976, reconhece a capacidade do homossexual de ser sujeito de suas decisões. Quando cristão, essa dignidade, que lhe vem de sua capacidade de optar e se autogerir, abre-lhe a possibilidade e o dever de viver o que a fé cristã exige de qualquer batizado em termos de santidade, vivência do amor e observância dos mandamentos. Nesse particular, um homossexual não difere, portanto, de um heterossexual. Todos, para lá das orientações que sua sexualidade pode experimentar, são chamados ao mesmo caminho de crescimento humano e plenitude espiritual em Cristo.

[Continua amanhã]

terça-feira, 17 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 1 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes. Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a primeira parte do artigo:


O artigo expõe o pensamento ético da Igreja Católica sobre a homossexualidade, assim como sua forma de apresentação nos documentos emanados da Santa Sé. Ao mesmo tempo, faz breve resenha das posições de alguns moralistas contemporâneos e de contribuições da psicologia e da pedagogia para um melhor manejo da questão da homossexualidade por parte da Igreja.

Introdução

Minha experiência de contato direto com boa parte do clero do Brasil me mostrou que, entre nós, presbíteros, há um desconhecimento bastante generalizado do que a Igreja Católica tem dito e repetido sobre a ética sexual em geral e, mais especificamente, sobre a homossexualidade. O que a gente geralmente escuta são generalizações imprecisas (pró e contra) que dão a entender que a Igreja Católica continua a considerar a homossexualidade apenas como uma anomalia ou desvio patológico que ofende a lei natural e é sempre e necessariamente um pecado, o que de fato não corresponde nem ao que a Igreja ensina nem aos fatos.

1. Caminhando para nova compreensão teológica e pastoral

Um bom exemplo da abertura da Igreja acha-se sintetizado na declaração feita pela Congregação para a Doutrina da Fé em 29 de dezembro de 1975, um dos momentos em que, na Cúria Romana, se dá um endurecimento doutrinário e disciplinar. Lê-se aí um parágrafo que representa uma abertura em parte brecada, mas não desmentida:

A pessoa humana, segundo os dados da ciência contemporânea, está de tal modo marcada pela sexualidade que esta é a parte principal entre os fatores que caracterizam a vida dos homens. Na verdade, no sexo radicam as notas características que constituem as pessoas como homens e mulheres no plano biológico, psicológico e espiritual, tendo assim muita parte em sua evolução individual e em sua inserção na sociedade.[1]

Não é difícil perceber que o parágrafo supracitado traz algumas novidades que merecem aprofundamento. Primeiro, nele se diz, com todas as letras, que o ser humano é uma pessoa e, enquanto tal, tem sua vida e evolução social e psicológica marcadas e condicionadas pela maneira como é marcada sua vivência da sexualidade. Sublinha-se, assim, que não se pode falar da pessoa e de sua sexualidade em sentido abstrato e/ou puramente espiritualizante. Dizer “pessoa” implica afirmar sua qualidade de ser situado e datado, portador de um corpo sexuado, mas ao mesmo tempo – porque pessoa – livre e potencialmente desenvolvido em ao menos três planos essenciais de seu existir: o biológico, o psicológico e o espiritual. A sexualidade, portanto, abrange o todo do humano. Não cabe dualizar o existir. Há uma espécie de osmose entre sexualidade e existência. Nesse sentido, pode-se dizer que o indivíduo humano não tem um sexo; ele é sexo. O existir humano comporta e supõe uma maneira própria de ser no mundo e uma capacidade também racional de lhe dar sentido. Em outros termos, como dizia o papa Bento XVI[2] em sua primeira encíclica, ele não pode, em consequência, ser concebido sem a sexualidade, ou seja, sem o eros, que implica o corpo, a philia, a dimensão da amizade,eo ágape, que abre o ser humano para uma relação que transcende e complementa as duas primeiras. Um ser humano sexualmente adulto sem essas três dimensões é tão impensável quanto um homem sem sentimentos, sem inteligência e/ou sem vínculos pessoais que o impliquem responsavelmente. O problema, nesse campo tão ambíguo da vivência humana, concentra-se especialmente em saber falar sobre oeros e o prazer que propicia e saber lidar com eles. A dificuldade não está só ou principalmente na philia ou noágape. O problema, no dizer de Moreira (2006), é que, quando o assunto é o eros em sentido estritamente sexual, um dos assuntos mais explorados e lucrativos da nossa sociedade atual, aí o tema se torna um tabu para a Igreja e seus representantes ordenados, deixando a todos sem recursos para superar certos impasses. A Igreja, em tais circunstâncias, tende a ficar batendo, monotonamente, nas mesmas teclas (Moreira, 2006, p. 4). No caso da homossexualidade, pesam ainda preconceitos que datam de muitos séculos e são hodiernamente sentidos como ofensa a direitos humanos básicos. São temas difíceis que a Igreja, ultimamente, tem tentado enfrentar, até porque seus presbíteros têm sido insistentemente acusados de abusos e destemperos sexuais em diversos países do mundo.

Para a Declaração de 1975, a sexualidade relaciona-se com a capacidade que o ser humano tem de reciprocidade (de ser-com). Como tendência que tem um componente libidinal congênito, tal capacidade já está presente em algumas espécies inferiores, mas, na espécie humana, ela se faz dentro de uma relação “eu-tu”.

Sendo uma realidade tão fundamental e complexa, a sexualidade, especialmente no caso das homofilias, não pode ser definida apenas desde um único ponto de vista histórico, ético-cultural ou teológico-doutrinal, por importante que ele possa ser. Isso se tornou mais evidente devido aos notáveis avanços das modernas ciências biomédicas, sociais e psicológicas, óticas que exercem enorme influência na atual discussão sobre a homossexualidade. Para quem vem da psicologia, como eu, o fato de um texto como o da Declaração de 1975 iniciar com uma menção expressa à necessidade de ter presente o aporte das ciências representa um passo altamente significativo. De maneira muito clara, o texto diz que a teologia e a ética cristãs não podem voltar as costas às descobertas científicas. Eu acrescentaria que esse princípio tem validade mesmo quando as evidências científicas são altamente questionadoras de modos de ver, julgar e agir defendidos no passado pela Igreja, com ou sem o apoio da Escritura e da Tradição. Como encontrar caminhos que respondam a tais desafios das ciências e da sociedade sem, ao mesmo tempo, negligenciar ou deixar de lado o papel que cabe essencialmente à Igreja no exercício de sua missão evangelizadora no mundo contemporâneo? Acompanhando o que tem sido dito e feito pelo papa Francisco, tenho a impressão de ser essa a pergunta que ele nos faz em alguns de seus pronunciamentos esporádicos sobre o assunto. Entre moralistas católicos de clara fama, a reflexão parece caminhar na mesma direção. É o caso de Snoek (1981), Azpitarte (1997), Vidal (1985), Moser (2001), Cozzens (2001) e Forcano (1996) e de pastoralistas e psicólogos como Oraison (1976), Leers e Trasferetti (2002), Valle (2011) , dentre outros outros, que têm se debruçado sobre o tema da homossexualidade não sem suscitar suspeitas por parte das autoridades eclesiásticas e de setores mais conservadores da Igreja.

No presente texto não me aterei ao mérito teológico e doutrinário das argumentações. Minha perspectiva será a da psicologia social, com ênfase no cuidado psicoterapêutico e pastoral, procurando evitar polêmicas do tipo “ou tudo ou nada”. Evitarei, igualmente, entrar no debate científico mais específico das ciências biomédicas e demais ciências afins. No fundo, o que pretendo mostrar é que, na parte doutrinária, a Igreja se mantém coerente com os seus ensinamentos tradicionais, mas, no tocante à pastoral (isto é, ao acolhimento e acompanhamento das pessoas), sua atitude é de maior compreensão para a complexidade desse comportamento em cada um de seus múltiplos e distintos aspectos, tanto científicos quanto bíblico-teológicos e históricos (cf. ALISON, 2010;; BOSWELL, 1985;; CRAWFORD e ZAMBONI, 2005; DI VITO, 2005; MALINA, 2005 e outros). A transição processual das posições da Igreja está longe de ter chegado a resultados conclusivos, mas existe já uma vontade de entender e dialogar. Ao lado dessas inegáveis aberturas, aparecem, porém, resistências e fechamentos. Há grupos fundamentalistas de tendência quase diametralmente oposta, e nesse embate cabe à Igreja preservar dons e valores preciosos. Nos Estados Unidos, a dissensão é ainda mais veemente, devido à força política do movimento gay e também aos dolorosos escândalos comportamentais surgidos no seio do clero. Lá, hoje, o debate é escancaradamente público, tendo sido quebrada a maneira sigilosa com que, durante séculos, assuntos como a homossexualidade eram debatidos e as normas e medidas pastorais e disciplinares eram tomadas.

Não é nada fácil solucionar o impasse pastoral em que a Igreja se debate. O primeiro ano do pontificado do papa Francisco aponta, sem dúvida, para uma retomada do diálogo com a modernidade – ela mesma em crise –, mas persistem vacilações e dificuldades que não podem ser subestimadas. Uma delas reside no fato de o magistério eclesiástico continuar mantendo uma visão e um referencial unilateralmente patriarcais. Desse prisma, torna-se difícil para o magistério discutir padrões de comportamento sexual que há séculos a Igreja declara serem “contra a natureza” criada e desejada por Deus e o exercício de sexualidades alternativas é sempre visto e julgado só negativamente (NOLASCO, 1995; GREEN e TRINDADE, 2005, dentre outros. Ora, na realidade social e cultural contemporânea, a “minoria” homossexual já não vive no “gueto” cultural a que fora relegada (com o aval da Igreja). Hoje, ela se apresenta como legítima representante de uma luta libertária que tem como objetivo defender direitos proclamados elementares em sociedades democráticas. Nas Paradas do Orgulho Gay, esse movimento coloca milhões de simpatizantes e militantes nas grandes avenidas das capitais brasileiras. Conta, para tanto, com a ajuda interessada do “mercado” gay e da indústria do espetáculo (SIMÕES e FRANÇA, 2005). Nas telas da Globo, o beijo homossexual em uma novela recente foi recebido com aplausos por milhões de brasileiros, até por famílias inteiras, que encaravam com simpatia o itinerário de um dos principais personagens do enredo e de um grupo de parceiros seus. Além disso, no Congresso Nacional, seguindo uma tendência mundial, são aprovadas leis que legitimam os direitos dos cidadãos e cidadãs homossexuais. Os formadores de opinião e a imprensa caminham inequivocamente na mesma direção. Não existe, porém, unanimidade, pois, assumindo posições antagônicas, existe uma massa até certo ponto anônima, do meio da qual se destacam deputados e senadores ligados principalmente a Igrejas neopentecostais. Resulta daí crescente animosidade entre grupos homofóbicos, que perseguem e agridem homossexuais nas praças e ruas, e outros que, ao contrário, saem às ruas em defesa dos direitos dos homossexuais. Aos poucos, porém, surge e ganha consistência o que Castells (1983) chamou de “cultura identitária homossexual”.Em tal clima cultural, não é de estranhar que surjam desentendimentos de princípio também no seio das Igrejas cristãs, como a Católica.

Resumindo: a Igreja (a grande comunidade de fé) e os pastores (os que são postos à frente do povo de Deus) estão, sim, em busca de nova ética sexual, mas, ao mesmo tempo, veem-se presos a certas amarras que os impedem de lidar, de forma mais desimpedida, com a nova mentalidade existente especialmente entre os mais jovens. Os textos e pronunciamentos emanados da Santa Sé buscam indicar caminhos alternativos, novas atitudes e normas pastorais para o acompanhamento. Embora a lógica individualista, secularizada e permissiva que preside hoje a sociedade, a cultura e a política em todos os campos continue sendo rejeitada, é inegável a existência, na Igreja, da disposição de repensar perguntas de fundo antes descartadas e vistas como indignas de consideração. Eis algumas dessas perguntas: a) São as posições e normas tradicionalmente tidas como inquestionáveis corroboradas pelos conhecimentos que temos hoje da Bíblia e da teologia da sexualidade? b) São os posicionamentos e concepções adotados até bem recentemente compatíveis com os dados seguros das ciências que estudam a sexualidade humana? c) No caso da minoria de tendência homossexual, a Igreja mantém sua posição de respeito à pessoa humana em seus direitos e dignidade? d) Haveria caminhos pastorais alternativos mais aptos para ajudar os católicos e a humanidade a viver suas tendências sexuais – homo ou heterossexuais – na perspectiva dos valores essenciais da fé cristã? e) A motivação que leva a Igreja a falar de um modo mais aberto da homossexualidade teria sido “segurar” a onda da opinião pública, hoje largamente disseminada, segundo a qual os homossexuais teriam direito à plena cidadania na sociedade e na Igreja e seria seu modo de comportar-se “uma” das formas normais de viver a sexualidade humana? Tanto mais que a essa visão e prática se soma vasto movimento político-cultural em torno da “causa” homossexual, cujos objetivos últimos seriam a autorrealização da pessoa, a aplicação dos avanços do conhecimento científico nesse campo e a nova visão antropológica, ética e teológica que a humanidade vem desenvolvendo a respeito da sexualidade como um direito do indivíduo em sociedades livres, laicas e democráticas. Essa é uma polêmica complexa que está longe de chegar ao seu fim.

[Continua amanhã]

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Homoafetividade e evangelização: abrir caminhos (parte 2 de 2)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa, começando por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, que dividiremos em duas partes. A primeira foi postada aqui ontem. Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a segunda parte do texto:

2. A evolução histórica

A religião cristã se tornou hegemônica em muitos países, chegando a ser a religião do Estado. O homoerotismo foi classificado como sodomia e criminalizado. Para a Igreja, a sodomia era um crime horrendo: provocava a ira de Deus a ponto de causar tempestades, terremotos, pestes e fome que destruíam cidades inteiras. Era algo indigno de ser nomeado, um “pecado nefando”, que não se podia mencionar, muito menos cometer (Vide, 2007, p. 331-332). Tribunais eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados desse delito e entregavam os culpados ao poder civil para serem punidos, até mesmo com a morte.

Com o advento do Iluminismo e da razão autônoma independente da Revelação, a prática sexual exercida sem violência ou indecência pública não devia cair sob o domínio da lei. Começou uma crescente descriminalização da sodomia. A modernidade, impulsionada pelo Iluminismo, trouxe a separação entre Igreja e Estado, a autonomia das ciências e os direitos humanos, que restringem o poder do soberano sobre o súdito e ampliam a liberdade da pessoa em relação à coletividade. O termo sodomia foi substituído, no século XIX, por “homossexualidade”. A questão é trazida do âmbito religioso e moral para o âmbito médico. O que então era visto como abominação passa a ser considerado como doença. Por muitas décadas, pessoas homossexuais eram internadas em sanatórios. Chegou-se até mesmo ao uso do choque elétrico.

A partir dos anos 1970, houve progressiva “despatologização” da homossexualidade, impulsionada pelo crescimento do movimento gay. Nos anos 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças. E em 1999, o Conselho Federal de Psicologia declarou que a homossexualidade não é nem doença, nem distúrbio, nem perversão e proibiu os psicólogos de colaborar em serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Assim, algumas pessoas são homossexuais e o serão por toda a vida. Não se trata de opção, mas de condição ou orientação. Com isso, surgiu também novo campo jurídico: o direito homoafetivo, contemplando a população LGBT.

A modernidade, em suas grandes linhas, foi assimilada pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II. Além do novo enfoque da evangelização e da leitura da Bíblia, o concílio legitimou a separação entre Igreja e Estado e a autonomia da ciência e reconheceu a liberdade de consciência, o direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência e o dever de não agir contra ela. Nela está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se manifesta. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos às outras pessoas no dever de buscar a verdade e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social (Gaudium et Spes, n. 36 e 16). Nenhuma palavra externa substitui a reflexão e o juízo da própria consciência. O Catecismo da Igreja Católica aprofunda esse ensinamento e cita o cardeal Newman: “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (n. 1.778). É ela quem primeiro representa Cristo para o fiel.

3. O ensino atual da Igreja e as perspectivas pastorais

O papa Bento XVI, certa vez, afirmou que o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu por completo (BENTO XVI, 2006). É muito bom que um papa reconheça esse problema. Há ênfase demais na proibição, gerando ameaça de condenação eterna, culpa e medo que paralisam as pessoas. O ponto de partida do ensinamento cristão deve ser o seu elemento positivo que é boa notícia (evangelho). Francisco segue esse caminho e avança: “o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa”. Para ele, a prioridade da pregação deve ser curar todo tipo de ferida. Depois se pode falar de todo o resto. O anúncio, concentrando-se no essencial, é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús (Francisco, 2013c). A compreensão e a exposição do ensinamento da Igreja também devem seguir esse itinerário.

Uma carta pastoral afirma que nenhum ser humano é mero homo ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de sua graça, a qual o torna filho seu e herdeiro da vida eterna (CDF, 1986, n.16). A posição da moral católica deve se basear na razão humana iluminada pela fé e encontrar apoio também nos resultados seguros das ciências humanas (n.2). Toda violência física ou verbal contra pessoas homossexuais é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifique (n.10). Os atos homossexuais, por sua vez, são considerados intrinsecamente desordenados e, como tais, não podem ser aprovados em nenhum caso (n. 3). Sobre a culpabilidade da pessoa, porém, deve haver prudência no julgamento. São reconhecidos casos em que a tendência homossexual não é fruto de opção deliberada da pessoa e que esta não tem alternativa, mas é compelida a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, em tal situação, ela agiria sem culpa. Alerta-se para o risco de generalizações, mas podem existir circunstâncias que reduzem ou até mesmo eliminam a culpa da pessoa (n. 11). Nesta situação, não se pode dizer jamais que a pessoa está em pecado mortal e deve se afastar dos sacramentos.

A castidade, hoje, é definida primeiramente como a integração bem-sucedida da sexualidade na pessoa, na sua unidade de corpo e alma (Catecismo, n. 2.337). Essa integração é um caminho gradual, um crescimento em etapas marcadas pela imperfeição e até pelo pecado (n. 2.343). Não é o reino do tudo ou nada. É preciso levar em conta a situação em que a pessoa se encontra e os passos que ela pode e deve dar. Só há uma integração bem-sucedida se a pessoa viver em paz com a sua sexualidade, amando o seu semelhante e a si mesma.

O estudo crítico da Bíblia, a devida atenção aos resultados das ciências, a fidelidade à própria consciência e os matizes da moral são referências que tornam o ensinamento da Igreja um componente rico e dinâmico na vida dos fiéis. Não se deve buscar nesse ensinamento nem na Bíblia um manual de instruções próprio de um eletrodoméstico ou um código moral detalhado, universal e imutável. Muitas vezes se fazem citações descontextualizadas da Bíblia e simplificações indevidas da doutrina, com extrema rigidez e terrível ímpeto condenatório dirigido aos gays. A pregação, em vez de curar feridas e aquecer o coração, traz mais devastação; e a Palavra do Deus da vida acaba se tornando palavra de morte. Os gays jamais devem ser tratados como endemoninhados a ser exorcizados ou ser submetidos a orações de “cura e libertação” para mudarem a sua condição.

Sobre o reconhecimento legal da união homossexual, o ensino da Igreja faz severa oposição à equiparação dessa união àquela entre homem e mulher, bem como a mudanças no direito familiar que caminhem nesse sentido. No entanto, ainda que com ressalvas, afirma que se podem reconhecer direitos de pessoas homossexuais conviventes, com proteção legal para situações de interesse recíproco (CDF, 2003, n. 5 e 9). Esse passo é muito importante. Se não há nenhum reconhecimento social ou proteção legal das uniões homoafetivas, a homofobia presente na sociedade pressiona os gays a contrair uniões heterossexuais para fugirem do preconceito. Isso tem acontecido há séculos e traz muito sofrimento às pessoas envolvidas. É necessário que pare. O sacramento do matrimônio, nessas circunstâncias, é inválido (Código de Direito Canônico, Cân. 1.095, n. 3). Os fiéis precisam saber disso. O casamento tradicional não é solução para a pessoa homossexual.

Outra iniciativa é a dos bispos norte-americanos, que escreveram bela carta pastoral aos pais dos homossexuais. O título é oportuno e profético: “Sempre nossos filhos”. Os bispos afirmam que Deus não ama menos uma pessoa por ela ser gay ou lésbica. Deus é muito mais poderoso, mais compassivo e, se for preciso, mais capaz de perdoar do que qualquer pessoa neste mundo. Os bispos exortam os pais a amar a si mesmos e não se culpar pela orientação sexual de seus filhos nem por suas escolhas. Os pais não são obrigados a encaminhar os filhos a terapias de reversão para torná-los heterossexuais. Os pais são encorajados, sim, a lhes demonstrar amor incondicional. E, dependendo da situação dos filhos, observam os bispos, o apoio da família é ainda mais necessário (USCCB, 1997).

Uma forma de acolhimento que vem sendo aplicada por bispos católicos da Suíça se dá por meio das bênçãos. Conforme recomendações da Conferência Episcopal Suíça para a Igreja daquele país, pessoas homossexuais podem ser abençoadas, sem que isso denote qualquer semelhança com o matrimônio sacramental (CES, 2002, n. 3) e sem contrariar as normas da Igreja. No Ritual de Bênçãos, por exemplo, há bênção de uma residência, com orações pelos que nela residem, bênção do local de trabalho e bênçãos para diversas circunstâncias.

Há muitas famílias que têm filhos gays e sofrem imensamente com isso. Os pais frequentemente culpam a si mesmos e não sabem o que fazer. Essa mensagem é muito oportuna também na realidade social e eclesial do Brasil. Os bispos norte-americanos também trataram da pastoral com homossexuais. Nesse trabalho, os ministros religiosos são convidados a ouvir as experiências, as necessidades e as esperanças dessas pessoas. Assim se manifesta o respeito à dignidade inata e à consciência do outro. Gays e lésbicas podem, dependendo das circunstâncias, revelar a sua condição a familiares e amigos e crescer na vida cristã (USCCB, 2006).

As iniciativas em favor do acolhimento são corroboradas pelo papa Francisco: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?… Não se devem marginalizar essas pessoas por isso” (Francisco, 2013b). Em vez de julgá-las ou marginalizá-las, deve-se fomentar na Igreja um ambiente acolhedor no qual pessoas gays possam buscar a Deus. Que a Igreja seja um lugar onde suas feridas sejam curadas e seus corações aquecidos. Um lugar onde sintam o jugo leve e o fardo suave oferecidos por Jesus.

Bibliografia

CDF (Congregação para a Doutrina da Fé). Homosexualitatis problema. Roma, 1986. Disponível em: .
______. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. Roma, 2003.
CES (Conférence des Évêques Suisses). Note pastorale 10. Friburgo, 2002. Disponível em: .
BENTO XVI. Entrevista de Bento XVI em previsão de sua viagem à Baviera (I). Zenit, 16 ago. 2006.
FRANCISCO. Solenidade de Pentecostes. Roma, 19 maio 2013a. Disponível em: .
______. Encontro do santo padre com os jornalistas durante o voo de regresso do Brasil. 28 jun. 2013b.
______. Entrevista exclusiva do papa Francisco às revistas dos jesuítas. Brotéria,19 ago. 2013c.
USCCB (United States Conference of Catholic Bishops). Always our children. Washington, 1997. Disponível em: <www.usccb.org>.
______. Ministry to persons with a homosexual inclination. Washington, 2006. Disponível em: <www.usccb.org>.
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Brasília: Senado Federal, 2007.


Luís Corrêa Lima, SJ
Padre jesuíta, doutor em História e professor da PUC-Rio. Trabalha em pesquisa sobre história da Igreja, modernidade e diversidade sexual. Colabora na Paróquia N. Sra. da Boa Viagem, na Rocinha, e atua no aconselhamento espiritual de pessoas homossexuais. E-mail: lclima@puc-rio.br
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