sábado, 3 de dezembro de 2011

Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay

Ilustração: Julieta Arroquy

Reproduzimos, a seguir, a apresentação escrita por João Batista Libânio, SJ, mestre e doutor em Teologia e professor de Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte, para o livro "Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay", de autoria do padre James Alison, autor da "Carta de um padre católico a um jovem homossexual", que já publicamos aqui.

Os grifos são nossos.


Há apresentações de livro formais, comerciais e editoriais. Há aquelas que nascem da amizade. Há aquelas que se forjam baseadas no valor da obra. Distancio-me da primeira espécie para me fixar nas duas seguintes.

Conheci Alison quando fez teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, tendo-o como aluno. Recordo-me de que, certa vez, no final de uma exposição, que eu fizera, sobre a abertura fundamental do ser humano para a Transcendência, inspirado por K. Rahner, ele se voltou para mim e disse: “Pura poesia!”. Naquela hora falou o inglês empírico, mas sem ocultar certa pitada de poesia. Já naqueles idos percebia que ali jazia enorme potencial cultural, que se desabrochou em teologia tão criativa como aparece no livro. Vale dele naquele tempo o provérbio latino: ex digito gigans. Pelo dedo se conhece o gigante.

Neste livro encontrei um poeta. Não romântico, nem lírico, nem elegíaco, mas aquele que deixa aflorar do profundo do ser experiências existenciais densas e as retrata num discurso impregnado de beleza, liberdade e sem ressentimento ou acidez polêmica.

Ele consegue, como poucas obras, já no título apresentar as teses fundamentais desenvolvidas. Quatro blocos: fé, além do ressentimento, fragmentos católicos, voz gay. Todos coerentemente articulados, profundamente elaborados, formam conjunto valioso.

É um livro que brota da fé. Alison trabalha com imensa originalidade textos e contextos bíblicos do Primeiro e do Segundo Testamento. Consegue, sem forçar a exegese, conduzir o leitor à profunda compreensão da passagem bíblica. Logo no primeiro capítulo, nos surpreende com releitura extremamente original e fecunda da cura do cego de nascimento. Escapa das interpretações comuns e conhecidas, introduzindo o leitor, com sutileza, em novo campo hermenêutico.

Recorre com frequência a João, a Paulo e a outros textos bíblicos para levar à reflexão. Entremeia com delicada fineza, leveza e sutileza elementos autobiográficos do processo de integração humana e espiritual de sua condição de homem gay com perspicaz leitura de textos bíblicos. Evita gerar no leitor extremos do sentimento de rejeição da condição gay ou de compaixão pela vítima ou de revolta contra o sistema social ou contra a máquina eclesiástica. Atravessam-lhe a obra transparência e honestidade do relato. Em qualquer situação existencial, gay ou não, o leitor se toca. A pessoa gay certamente encontra uma palavra de libertação, não pela via barata da contestação, mas por honesto processo reestruturante interno, baseado fundamentalmente na ação criativa e bondosa de Deus e apoiado por inúmeras passagens da Escritura feita em voz gay. (...)

Outro toque de genialidade está na postura básica de Alison. O livro desarma os batalhões que porventura viessem a formar-se em torno dele. Por ser tema delicado e de difícil manuseio no mundo eclesiástico, seria previsível que se travasse em volta do livro a batalha entre os que o atacariam como desrespeitoso das normas eclesiásticas e os que o defenderiam precisamente por isso. No entanto, Alison toma distância dessas duas posturas como situações a serem superadas por profunda conversão evangélica. Ambas cairiam na mesma armadilha. Não se trata de fazer das pessoas gays vítimas e cerrar fileiras ao seu lado contra o aparato eclesiástico, nem também de posicionar-se como defensor deste em nome da lei e da norma, sem alcançar o espírito íntimo do cristianismo.

Ambas as posturas refletem ressentimento. E a opção de base de Alison reside precisamente na superação do ressentimento. Já o pratica na própria maneira de conduzir o tema e na releitura de suas experiências de vida, não raro duras, pesadas e traumáticas. E ele o faz, não por uma simples terapia de autoconfiança e de relativização da posição do outro, mas por lento trabalho interior de reconstrução dos escombros da vida pela força da experiência de Deus, que cria e ama. Logo no início, faz tocante leitura de José, do Egito, vendido por seus irmãos e naturalmente posto em situação de ressentimento, e de como ele a superou por generosidade bem arquitetada para proteger os irmãos criminosos em relação a ele. Aparecem já as primeiras intuições sobre essa categoria básica do livro.

Ressentimento não se supera com luta, com batalhas contra ou em defesa de alguma posição julgada errada tanto pelos que rejeitam o mundo homossexual quanto pelos que o defendem. Não vai por aí. Mesmo o mais intransigente inquisidor se sente tocado e questionado pelo livro. Solapa-lhe a base inquisitorial.

Alison conhece profundamente o pensamento de René Girard. Mais.

Girard se lhe transformou num companheiro de caminhada pelos meandros da fé cristã. Fê-lo perceber como, entre nós, funciona uma lógica de culpar a vítima. Jesus fez explodir o ciclo vitimário. Alison, no caso tratado, evita que tanto a pessoa gay como o conjunto eclesiástico sejam vistos como vítimas de ataques opostos. A reflexão vai na linha da superação de tal lógica, nada evangélica. Pelo contrário, Jesus procura inserir a todos na fraternidade inclusiva, universal de filhos de Deus. Só nessa perspectiva se vence esse jogo perigoso. A essa fraternidade se opõe uma fraternidade excludente, fratricida, de Caim a respeito de Abel, que reivindica uma paternidade exclusiva e excludente. Esta se baseia no biológico, no cultural, enquanto a de Jesus, na gratuidade do dom de Deus que nos quer todos irmãos. Com efeito, existe uma natureza fratricida na cultura humana, que atua por meio de muitas instâncias particulares, de que a máquina eclesiástica não se faz exceção. Sob essa ótica, Alison analisa várias das discussões de Jesus com os judeus, como nos relatam João e outras passagens da Escritura, como a saga de Jacó e José, a história de Jonas etc. E ele vê como tarefa cristã começar a desmontar os efeitos da fraternidade violenta em nossa vida e na dos outros. Implica a capacidade de ir mais além de uma montanha de coisas que nos pareciam sagradas e paternas no nosso ambiente familiar, cultural, geográfico, político e religioso. A libertação vem da dupla experiência de sentir-se filho amado de Deus e de poder dizer “nós” numa comunidade de irmãos em Igreja, sinal de um Reino apenas imaginável.

O discurso eclesiástico, que considera algum grupo de pessoa como “os outros”, separando-os do corpo eclesial, gera vítimas. Deus criador de todos, a quem ama incondicionalmente e que nos fala como a irmãos em seu Filho Jesus, refuga os mecanismos geradores da exclusão em nome da inclusão querida por ele. Alison chega a afirmar que “o que é pecado é a própria participação no mecanismo de exclusão, e não o defeito que provoca essa exclusão”. Nessa dinâmica se situa o livro.

O subtítulo fala de fragmentos católicos. Sinaliza a natureza das considerações expostas. Alison considera que corresponde à teologia do atual milênio um caráter fragmentário. Os sistemas poderosos, bem construídos e fechados, cederão espaço a estudos a partir de óticas muito diferenciadas. Nenhuma delas conseguirá impor-se na sua exclusividade e totalidade, mas contribuirá com parcela de uma contínua busca do projeto salvador de Deus.

O adjetivo “católico” não pareceu a Alison algo evidente. Duvida se lhe cabe a categoria de “católico romano” ou simplesmente de cristão. Teologicamente falando, parece correto afirmar que todo elemento cristão tem cidadania no mundo católico, se não por convicção da instituição eclesiástica, ao menos por força da vontade de Jesus. Quem está com Jesus não deveria sentir-se fora da casa católica. No entanto, sabemos que o termo “católico” se restringe, não raramente, ao universo institucional, que não consegue fidelidade absoluta ao evangélico e por isso pode pecar pelos dois lados. Ora afirmar como evangélico o que não é, ora rejeitar como não evangélico o que é. Por isso, reflexão como esta de Alison ajuda a purificar o termo “católico” do peso institucional para lhe dar a leveza evangélica.

No discurso, essa afirmação goza de unanimidade. Quando o Concílio Vaticano II afirma a realidade da Igreja como santa e pecadora, no fundo, está dizendo o mesmo. Como santa, cabe-lhe perceber a realidade evangélica. Como pecadora, falha na dupla percepção aludida. Com a pluralidade de discursos teológicos, supera-se o quadro rígido que impõe única regra e medida da verdade e busca-se a fraternidade dos irmãos. A verdadeira natureza de Deus se descobre não por meio da verticalidade de uma paternidade que se impõe, mas pela horizontalidade de uma fraternidade que se vive. Essa ideia volta sob muitos aspectos como fundamental da leitura cristã de Deus.

“Em voz gay” oferece a maior originalidade e coragem da obra. Quando a teologia da libertação levantou a pretensão de produzir uma teologia diferente da teologia europeia, até então considerada “a teologia”, houve mal-estar, que perdura até hoje, em círculos acadêmicos e eclesiásticos. Alison ousa mais. Escolhe a voz gay para ler textos e passagens bíblicas, para analisar situações concretas. Enfrenta a posição moral tradicional da ordem da criação, que exclui todo comportamento que a contrarie como heterodoxo, em nome de outra compreensão de Deus e da criação em Cristo.

Ele o faz sem ressentimento, sem radicalismo. Impressiona a lucidez das reflexões. Questionam a todos, inclusive os próprios defensores ardorosos e reivindicadores da causa gay contra certa moral e práxis eclesiástica tradicional. O livro não entra por esse caminho. Ele trabalha a dinâmica eucarística da fé católica que evolui de uma concepção corporativa excludente dos estranhos, passando por um momento de ressentimento antifarisaico em relação aos sujeitos da exclusão, até sua superação, e a da distinção entre nós e os outros numa igualdade de coração em força do amor recriador de Deus manifestado em Jesus.

Em relação às pessoas gays, oferece-lhes o reencontro com uma dignidade que, em última análise, lhes vem de Deus e que ninguém tem o direito de negar. Teme que a vida da maioria das pessoas gays esteja inundada de vergonha e orgulho. A vergonha leva-as a fugir de si mesmas antes do tempo, e o orgulho obriga-as a exibir-se antes do tempo. Quando se está em luta consigo mesmo e com os demais, projeta-se essa violência sobre os outros. Aos opositores, Alison mostra-lhes a pouca percepção de exigências profundas da Escritura. Não os combate. Analisa os pressupostos, os mundos subterrâneos, inconfessados e não falados, para lançar luzes oriundas da própria Palavra de Deus.

No decorrer do livro, o leitor detecta como muitas atitudes e escritos eclesiásticos não respondem a gestos, palavras e atitudes de Jesus. Alison o mostra por fidelidade à mensagem evangélica e não em nome de algum confronto. Um dos pontos fundamentais dessa obra consistiu em pensar teologicamente em voz gay, sem ressentimento nem proselitismo, mas de maneira serena, fina e profunda. Se há algo duro, não vem do discurso, mas da própria objetividade da realidade.

É um livro inaugural. Leva-nos todos a pensar. Tira-nos do clima ainda reinante em muitos lugares de polêmica e de combate quando se trata dessa questão de homossexualidade. Não o faz por nenhum laxismo moral, mas com a fineza de quem mostra traços evangélicos iluminadores. O leitor tem o direito de discordar, naturalmente, da posição pessoal do autor, mas dificilmente deixará de reconhecer a possibilidade hermenêutica da voz escolhida e sua capacidade de, a partir dela, trazer pontos importantes da compreensão da mensagem evangélica.

Na antítese de tal mensagem está a violência física e simbólica. Esta tem atravessado a polêmica sobre a sexualidade de ambas as partes. Os que acusam criam as vítimas, executam-nas física ou simbolicamente, e os que se associam a elas ou elas mesmas o fazem em linha oposta. Alison persegue precisamente uma reflexão que supere essa violência e possibilite um lugar de encontro em vez de rivalidade. Textos escriturísticos que, à primeira vista, pareceriam secundar tal violência, relê-os noutra perspectiva, mostrando inesperado sentido não explorado. Tece uma imagem de Deus fora do reino da violência, da reivindicação, da vingança, do “toma lá dá cá”, da rivalidade, do “olho por olho”. Um Deus situado nesse universo seria mesquinho. Muito próximo de nós, mas pouco Deus. Pelo contrário, Ele é aquele que preconiza a gratuidade e aspira à vida integrada dos seres humanos, e não excluída, vitimada, separada.

Nesta introdução expus algumas poucas ideias-chave de Alison, deixando ao leitor a oportunidade de avançar nelas e enriquecer-se com a leitura do livro. Não o compreenderá quem já se posicionou rígida e ortodoxamente num dos dois campos de batalha, tanto na vitimização das pessoas gays quanto na defesa ressentida de tanta discriminação. Não teria entendido o livro alguém que o interpretasse como uma defesa de qualquer prática sexual ou da relativização do crime de pedofilia que tem agitado tanto a imprensa mundial. Está em questão a dignidade das relações humanas de amor, possíveis no duplo mundo heterossexual e gay, como o contrário também. O livro faz jus ao título: “fé além do ressentimento”. O mínimo que se pode dizer desta obra é que foi escrita por alguém de trabalhada e profunda maturidade humana unida à experiência de fé livre e sempre aberta a caminhar. A todo o texto preside a convicção vivida de que o amor de Deus excede a todo desenho humano e não há diferença que esteja fora do longo e amoroso olhar de Deus.

Eclesiastes: o leve sussurro no grande silêncio de Deus


Qohelet, autor do Eclesiastes, é o testemunho de um Deus pobre que está perto de nós, não em virtude da sua onipotência, mas da sua "encarnação", e é nessa fraternidade que ele salva e se revela.

A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 25-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Um pseudônimo hebraico, Qohelet, remete ao vocábulo qahal, "assembleia", em grego ekklesia, de onde o greco-latino Eclesiastes se tornou a titulação comum no Ocidente cristão de uma obra objeto de diversas decifrações ainda.

Interpretado como texto pessimista, cético, considerado expressão da ideologia da aurea mediocritas, influenciado pela filosofia grega do século III a.C., considerado um guia ascético de desapego e desprezo do mundo à parte da tradição cristã, ele foi, nas últimas décadas, reportado por alguns exegetas ao leito reconfortante do otimismo por causa de algumas passagens, sendo específico, sete (2, 24-25; 3, 12-13; 3, 22; 5 ,17; 8, 15; 9, 7-9; 11, 7-10), das quais surgiria um apelo ao sereno gozo das escassas alegrias que a vida reserva.

A essa interpretação também se aproximaria, paradoxalmente, o escritor francês Albert Camus, quando, no Mito de Sísifo, vê em Don Giovanni "um homem nutrido pelo Eclesiastes", "um louco que é um grande sábio", porque "esta vida o satisfaz" (...)

O tom dominante é o da inconsistência, emblematicamente encarnada no vocábulo caro a Qohelet, hebel/habel, que ressoa 38 vezes, às vezes na forma superlativa habel habalîm, o célebre vanitas vanitatum da versão latina da Vulgata: o termo alude à fumaça, ao vapor, ao sopro e, portanto, define a realidade como vazio, vacuidade, caducidade irreversível. (...)

A rachadura que revela a presença do hebel no ser e no existir se encontra também na inteligência humana. Qohelet é um sábio, um escriba, um intelectual (12, 9-10); despreza estupidez, em 85 vezes introduz as suas reflexões em primeira pessoa, consciente de uma originalidade do seu pensamento. Porém, o resultado final do conhecer é áspero: grande sabedoria é grande tormento, quem mais sabe mais sofre (1, 13-18).

"Até o filósofo que acredita guiar o mundo" – escreve um comentarista, Daniel Lys – "não guia mais do que o vento. O paradoxo da sabedoria é que a sabedoria suprema consiste em saber que a sabedoria é vento quando pretende ser suprema".

Não há, então, nenhuma diferença entre sabedoria e estupidez? Não, responde Qohelet, há uma diferença e é terrível: o sábio é atormentado, o ignorante é hilário na sua vulgaridade. Só o inteligente vê o vazio que corrói o ser e a morte que permeia todo ato que se realiza debaixo do sol. (...)

O Deus de Qohelet é um Deus absconditus: "A imensidão de Deus não tem, para Qohelet, nada de emocionante; maravilha em si, permanece pura impenetrabilidade" (Horst Seebass).

Os bons motivos que Deus – chamado 32 vezes de 40 de ha-'elohîm, isto é, "o Deus", de modo frio e distante – pode ter são para nós isentos de incidência, porque permanecem desconhecidos para nós. A sua obra contém dentro de si uma incompreensibilidade tal que extingue qualquer interrogação e torna vã não só a contestação, mas também qualquer tentativa de decifrar o seu sentido (veja-se sobretudo 4 ,17 - 5, 6).

Nesse ponto, surge uma interrogação: como podemos, depois de ter lido todas as páginas desse autor de temas muitas vezes desconcertantes e até provocadores, definir Qohelet como "palavra de Deus"? Ou ainda, como fez o cânone das Escrituras judaicas, e, portanto, a comunidades judaica e cristã, acolher em seu próprio interior um texto aparentemente "escandaloso"?

Certamente, a interpretação "ascética", que usou a obra como se fosse um apelo ao desapego das coisas, ajudou na inserção de Qohelet nas Escrituras, ou, pelo menos, serviu para amortecer a provocação como, além disso, aparece no epílogo do redator final que reduz o ensino Qohelet à dogmática sapiencial clássica (12, 13-14).

Os rabinos, para "justificar" Qohelet, também recorreram aos seus sete apelos ao gozo das alegrias lícitas, apelos distribuídos na obra, ou ao fato curioso e alegórico de que a primeira e a última palavra do livro (respectivamente: dibrê, "palavras", e ra', "perverso, mau") encontram-se na Torá, isto é, a Lei!

Na realidade, há um caminho para compreender como essa teologia tão nua e pobre possa, em seu bom direito, fazer parte e ser coerente com a "Revelação" bíblica. Para a Bíblia, a palavra divina se encarna e se expressa através da história e da existência. Ela, por isso, também adquire míseros revestimentos, pode se fazer pergunta, súplica (Salmos), até imprecações (Jó) e dúvida (em Qohelet). Quer-se, assim, afirmar que, na própria crise do homem e no silêncio de Deus, pode-se esconder uma palavra, uma presença, uma epifania secreta divina. O terreno humano da interrogação amarga, assim como o de Jó, pode ser misteriosamente fecundado por Deus.

A Revelação, portanto, pode passar por meio das escuridões de um homem como Qohelet, desencantado e em crise de sabedoria, já perto da fronteira do silêncio e da negação. O silêncio de Deus e da vida não é, para a Bíblia, necessariamente uma maldição, mas é uma paradoxal ocasião de encontro divino ao longo de estradas inéditas e surpreendentes. Qohelet é, portanto, o testemunho de um Deus pobre que está perto de nós, não em virtude da sua onipotência, mas da sua "encarnação", e é nessa fraternidade que ele salva e se revela.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Despertos

Imagem: Doug Keyes

Esteja vigilante. Este é o ensinamento de Jesus no evangelho para o primeiro domingo do Advento - o tempo de preparação para o Natal.

(...) Na nossa vida pessoal também é frequente a guinada do sonambulismo para o despertar rude. Existe uma maneira de nos mantermos vigilantes, acordados? Podemos evitar os extremos que causam tanto sofrimento e confusão? Muitas vezes, quando estamos no nosso mais inflamado e hiperativo estado, na verdade estamos no sono mais profundo. (...)

Sabemos que estamos acordados quando mantemos o mesmo espírito de atenção através de todas as mudanças de atividades e sensações.

(...) Uma boa prática de lectio seria memorizar essas palavras do Evangelho e permitir que elas limpem a mente em momentos de estresse do dia, seja pela manhã, meio-dia ou noite:

"Vigiai, pois, visto que não sabeis quando o senhor da casa voltará, se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã. O que vos digo, digo a todos: vigiai!" (Marcos 13:34)

Com amor,

Laurence Freeman, OSB
Trecho da mensagem do autor para a primeira semana deste Advento.
Para saber mais, visite o site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil.

Homonormatividade. Porque gay também é limpinho

Imagem fornecida pela autora

Não, não é heteronormatividade, você não leu errado no título, é homonormatividade mesmo. Não é uma questão de se portar de um jeito a ser aceito pelos heterossexuais, mas o fato de que muitos gays sabem exatamente como todos os outros deveriam ser e se comportar. Impressiona a fórmula pronta, a estética fechada, a educação universal. Gay tem que ser viado, bicha nunca. Lésbica sim, sapatão jamais. Viado é jovem, atlético ou, no mínimo, com o corpo bem cuidado – em forma, pois viado que se preze sempre frequenta academia. Viado é educado, não usa palavras de baixo calão, não fala baixaria, não faz saliências em local público, não beija a boca de vários, não é promíscuo. Viado não tem voz fina, não tem trejeitos, não é caricato, não é espalhafatoso, não é chegado a bizarrices. E em bizarrices encontramos de tudo: ser “afeminado”, vestir-se de mulher, por seios, por silicone, pintar unhas, usar maquiagem, gostar de salto alto, ser transgênero e tudo o mais que fuja à imagem de um homem gay “equilibrado”. E o mesmo para as lésbicas. Lésbica também é pura feminilidade, não é como um sapatão. Sapatão parece homem, não cuida das unhas nem do cabelo, não usa saia nem vestido, é agressiva, não é delicada como uma mulher. Fala com voz grossa, anda de um jeito pesado, é uma figura caricata. E o que dizer quando é trans? Gente que retira ou põe seios e pênis. Tudo muito estranho.

Mas deveria existir um padrão de comportamento gay? E quem não se enquadrasse, deveria ser considerado inadequado? Ora, em todos os grupos sociais, existe todo tipo de pessoa. Por que com gays deveria ser diferente? Isso é mais uma pecha jogada em nossos ombros que não nos cabe. Esse é mais um discurso opressor que devemos tomar cuidado para não internalizar. Quem nos oprime é que usa isso: essa moral única, essa normatividade, estes tais valores que são ditos e tratados como se fossem universais: isso pode, aquilo não, pode agir assim, daquele outro jeito não, pode se vestir assim, daquela forma, não. Considero muitíssimo lamentável esses julgamentos sobre o jeito "do outro", quando a própria pessoa não tem controle sobre seu próprio gestual. Ela apenas é o que é - nos gestos, no modo de andar, na voz, no jeito de falar etc. e, com certeza absoluta, seus modos e suas falas são absolutamente reprováveis por outros - também se enquadram em um estereótipo. Todos nós nos enquadramos. E todos somos achincalhados por outro grupo social, ainda que não saibamos. Mas quando é conosco, queremos que compreendam que é apenas o que somos. Então, por que quando é com o outro quero que ele se "endireite"? Este não é o justamente o discurso de quem nos oprime? Defender ideias conservadoras e moralistas, ditando um padrão de comportamento idealizado, serve apenas para promover a exclusão de quem não se enquadra. E o que nós sofremos com a heteronormatividade senão exigências, pressões e desqualificações para que vivamos limitados a determinadas regras de conduta social? Um moralismo tosco que estigmatiza e marginaliza, sem respeitar diferenças? Então, excluídos que somos também seremos agentes de exclusão? E de nossos próprios pares? Eu tento não ser, pois, afinal, não é por diversidade que lutamos? Pelo respeito às diferenças?

Quem considera se esta ou aquela postura ou linguagem é chula são os conservadores, os moralistas, que dizem o que é certo ou errado, como as pessoas devem ou não se comportar, como se houvesse uma moral única, imutável e unânime, inclusive, são os mesmos que não reconhecem travestis e transexuais, o que dizem as razões para que tais pessoas não devessem existir. Portanto, sim, é reprodução do discurso opressor, mas frente a outro grupo. E devemos tomar muito cuidado para não assimilarmos o discurso opressor nem resquícios dele, pois chulo mesmo é ser preconceituoso quando se é alvo de preconceitos. Chula é a linguagem que exclui, que estigmatiza, que rotula, que aparta. Chulos são os gestos de exclusão, de agressão. Escandalosos são os crimes cometidos contra nós. Escandalosas são as agressões que sofremos e nossas cidadanias diminuídas. Escandaloso é ter nossos direitos usurpados. Chulos e escandalosamente imorais são aqueles que querem nos manter invisíveis e à margem da sociedade que cotidianamente também ajudamos a construir e manter, nos relegando a ter somente todos os deveres, mas não todos os direitos. O restante é diversidade. Apenas diversidade. A questão é saber olhar e respeitar o diverso, ainda que não o compreendamos, assim como queremos que nos vejam e nos respeitem.

- Ivone Pita
Publicado originalmente no Gay1 - Politicativa

Igreja: rigidez e flexibilidade, o ar infalível do Espírito Santo que lhe confere vida eterna

Foto: Caras Ionut

É com imensa alegria que ganhamos esta semana um novo colaborador: nosso querido Marcelo Moraes Caetano, que já havia nos brindado há pouco tempo com um comentário que virou post esta semana ("Aqueles que são bem ditos", aqui). Neste texto, ele comenta algumas questões muito presentes recentemente em nossas discussões.

Eu hoje queria tratar de dois aspectos da Igreja Católica que a acompanham desde a sua fundação, feita pelo próprio Cristo.

Gostaria de falar da sua rigidez, porquanto perfeitamente fiel à vontade do Pai, anunciada por Jesus, e da sua flexibilidade, aparentemente paradoxal àquela primeira característica aludida, a rigidez.

Não vou retroceder aos tempos dos primeiros cristãos, dos catecúmenos. Prefiro restringir-me aos dias mais recentes, e observar como as duas características da Igreja, em vez de se oporem, se interpenetram e se complementam.

Antes de tudo, erra quem acredita que o dogma da infalibilidade significa que algo que foi postulado ou dito não poderá jamais ser revogado. O Papa é infalível; seus bispos, ministros, sacerdotes, todo o clero é infalível. Cremos nisso, com devoção e amor; se não crêssemos, não seríamos católicos, e não estaríamos aqui discutindo em prol de nossa vivência completa no catolicismo: simplesmente estaríamos fazendo o que bem nos aprouvesse e não debateríamos sobre os sacramentos e os dogmas da Igreja de Cristo, que amamos, e de que queremos participar sem sermos “invisíveis”.

Toquei no ponto da infalibilidade para voltar àquela dicotomia acima: rigidez X flexibilidade. E para refletir sobre a questão do ar insuflado no coração eclesial. Com efeito, “ar” é palavra que em grego é polissêmica, e significa ao mesmo tempo “alma”, “espírito” e “vento”, “fôlego” (cf. “ar”, do grego: “pneuma”; essa mesma polissemia ocorre em hebraico, cf: “ruach” = “ar” e “espírito”). O próprio Messias utiliza um trocadilho com essa polissemia, para ser instrutivo a seus discípulos: “Vede, o vento sopra onde lhe apraz, e vós ouvis a sua voz, porém não sabeis nem de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece para quem nasce do Espírito” (Evangelho de São João). Jesus usou também um trocadilho quando usou a palavra “sefas”, que significa “pedra”, para dizer justamente a “Pedro” que lançasse a “pedra” fundamental de Sua Igreja, pondo-o como o seu apóstolo paráclito e pioneiro.

O ar da igreja, seu Espírito, é ao mesmo tempo causa e consequência (nesses aparentes paradoxos que só Deus pode solucionar) de sua infalibilidade, que por sua vez, sustenta-se no equilíbrio (como as asas de uma Divina Pomba, como a pomba que volta do dilúvio com o ramo de oliveira entre o bico, profetizando a nova aliança) entre rigidez (a pedra) e flexibilidade (o voo, o ar).

A Igreja precisa ser rígida, antes de tudo, porque sua fidelidade à Voz de Deus não lhe permite meias palavras, meios-termos. Outra razão é o fato de que a Igreja precisa manter a sua tradição, porque, se não a mantiver, os fiéis vão se indagar: “Por que frequentar uma instituição que não difere em nada do mundo aqui de fora?” Nós, fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana, vamos a ela, frequentamo-la, antes de tudo, porque sabemos que, ali dentro, em comunhão com o Cordeiro de Deus, “estamos dentro do mundo, mas completamente fora dele”, como diz São João da Cruz. “Abraçar a cruz é uma loucura”, como dizia Santo Agostinho. É uma loucura porque significa estar no mundo e fora dele... O Bispo de Hipona usou a palavra “loucura” com esta intenção: “nadar contra a correnteza”. E, se vamos à Igreja, é porque necessitamos de seu ar, de seu Espírito.

Repito, pois: se a Igreja aceitar todas as modernidades, tudo o que é modismo, o que entra e sai da voga como um produto descartável qualquer, vai perder seu sentido, antes de tudo porque não estará mais anunciando a Lei de Deus, e, em seguida, porque seus fiéis não sentirão necessidade de comungar com o céu se este céu tiver se tornado mundano. Quem vai à igreja vai ao céu, está no céu. São Leonardo de Porto Maurício dizia que ser católico "...consiste em irdes à Igreja como se fôsseis ao Calvário, e de vos comportardes, diante do altar, como o faríeis diante do trono de Deus, em companhia dos Santos Anjos. Vede, por conseguinte, que modéstia, que respeito, que recolhimento são necessários para receber o fruto e as graças que Deus costuma conceder àqueles que honram, com sua piedosa atitude, mistérios tão santos".

A Igreja é – e precisa ser – rígida, tradicional. Esta é a sua infalibilidade. Sua infalibilidade existe porque tudo o que Pedro atar na Terra será atado no céu, e tudo o que ele desatar na Terra, assim o será no céu.

Mas, há a outra asa do Divino Espírito Santo, sem a qual a infalibilidade da Igreja não se sustentaria: a sua flexibilidade. Examinemos como isso se dá. Dizer que a Igreja não muda nunca, que nunca mudou, está muito distante da verdade, uma distância de côvados intermináveis, de estádios inteiros. Pedro mesmo aconselhou-nos que fôssemos tolerantes uns com os outros e que compreendêssemos uns aos outros. Jesus disse: Antes de chegardes ao altar e vos apresentardes para o Pai, ide até vosso irmão com quem vos desentendestes, e reconciliai-vos.

Duas palavras eu retiro daqui: ide e reconciliai-vos.

Cristo não disse: “Ide e julgai”.

Ide. Reconciliai-vos. Sede tolerantes. Compreendei-vos mutuamente.

A Igreja, como o Corpo de Cristo, também vai e se reconcilia com seu rebanho. Se não fizesse isso, não seria a nossa Igreja. É esta, precisamente, a marca do apostolado que levamos ao nos sabermos, de coração e alma, católicos, apostólicos, romanos. É esta, precisamente esta, a flexibilidade a que aludo. A legitimidade sobrepujando a legalidade. Os dons do Espírito soterrando a força por vezes aterrorizante de leis arcaicas e enferrujadas. Reconciliação. Se a Igreja fosse apenas rígida e tradicional, e se não buscasse a reconciliação, por meio de uma incrível flexibilidade ao longo de mais de 2000 anos (a instituição mais antiga do planeta), simplesmente não teria sobrevivido às intempéries históricas abjetas e hediondas às quais sobreviveu – fortalecida.

Os gays poderíamos estar em muitas outras religiões ou denominações cristãs que aceitam os gays, mas, com todo o respeito, profundo, que nutrimos por elas, por que preferimos nos manter católicos?

Exatamente porque confiamos na infalibilidade do nosso clero, cujo Pastor Divino é o nosso amado Papa. Palavra que é acróstico de “Petrus Apostolus, Princeps Apostolorum” (P.A.P.A.): “Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos”. Nosso Papa é, sim, o Príncipe dos Apóstolos e o Sucessor legítimo e legal de São Pedro.

Por isso, como ensinou Pedro: “Sede tolerantes e buscai a compreensão mútua”.

A Igreja, então, muda, sim, para se reconciliar. Ela obedece a Cristo quando disse: “Ide e reconciliai-vos”. Ela não poderia fingir que esse mandamento não foi ordenado.

Para dar um primeiro exemplo: o Beato João Paulo II, em seu Pontificado, pediu perdão publicamente pelas omissões da Igreja durante o nazismo.

O Papa que estava naquele momento em sua missão pontifícia, Pio XII, foi “falível”?

Não! Ele não foi falível, mas a Igreja, ecclesia sancta et meretrix, igreja santa e pecadora, reconheceu uma omissão grave contra os seres humanos (nem os católicos, mas os judeus, ciganos, homossexuais e outras vítimas da sanha do Führer alemão), e, com a humildade de Cristo, pediu perdão ao seu pecado, confessando-se no sacramento da penitência, ao povo de Deus, Urbi et Orbi, a Roma e ao Mundo, frase dita por um sumo-Pontífice ao dirigir-se ao seu rebanho em bênçãos especiais, como a de Natal, de Páscoa e até mesmo, em alguns casos, a do início do compromisso como sucessor de São Pedro.

O Papa pediu perdão não porque seu predecessor tenha “errado”, mas porque, como Deus é o Senhor do tempo, ille tempore, ele viu que seu predecessor não estava vendo (ou até mesmo não estava conseguindo executar) algo crucial à manutenção do rebanho de Deus: a prática irrestrita da misericórdia a todos.

O Papa Pio XII não era nazista, como alardearam alguns livros mal informados. Sabe-se que ele escondeu milhares de judeus, homossexuais e perseguidos nos subsolos do Vaticano. Ajudou-os a fugir com a anuência de diplomatas, inclusive brasileiros, como Sousa Dantas (na França) e Guimarães Rosa e sua esposa, Aracy Guimarães Rosa (na própria Alemanha). Há um detalhe: o governo brasileiro na época era a favor do nazismo, e, ainda assim, esses e outros diplomatas brasileiros na Europa, junto com o Papa Pio XII, arriscaram não apenas seus cargos, mas suas vidas ao fazerem migrar judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, comunistas e outros perseguidos para solos simpatizantes ao nazi-fascismo, como o era o Brasil, repito.

O Papa Pio XII foi um Pastor de valentia comparável à de um Santo Inácio de Loyola, e, embora diplomático (o que faz com que alguns o tenham na conta equivocada de omisso), lutou com todas as suas forças e poderes e hierarquias contra o nazismo.

Mas, ainda assim, João Paulo II pediu perdão pelas omissões cometidas por todo o clero durante o regime de Hitler. Porque houve omissões. Ou ao menos o Papa João Paulo II assim o sentiu, e, obedecendo ao seu coração, veio a público pedir perdão.

Houve, para dar continuidade à questão, outros membros do clero, padres, freiras, e até leigos valorosíssimos a favor dos direitos humanos em todos os momentos da História. Houve padres que foram a favor da Inconfidência Mineira (e morreram por causa disso), da Conjuração Baiana (Soror Joana Angélica morreu fuzilada e martirizada ao impedir, sozinha, que um exército invadisse seu convento). O Padre Fernando Bastos d´Ávila, e tantos outros, lutaram aguerridamente contra os abusos e desmandos da ditadura militar, recente no Brasil, pondo suas próprias vidas em risco para socorrer os perseguidos pelo status quo, pelo establishment terrível e iníquo que grassava. E os exemplos pelo mundo seriam praticamente infinitos.

Então voltando ao caso do Santo Padre João Paulo II, ele pediu perdão ao mundo. Ele foi e se reconciliou.

Foi uma atitude de humildade, e de flexibilidade. Ele não se constrangeu de admitir uma omissão grave por parte do clero e da sua então atitude enregelada, legalista, farisaica, omissa, condescendente. Antes, com total sinal de contrição, foi a público pedir perdão por um erro do qual ele, como Pontífice, seria co-responsável se não se confessasse. E, com isso, redimiu toda a Santa Igreja de um pecado que ela cometeu, sim, num passado bastante recente.

Assim, tempo chegará, certamente, em que a Igreja inteira há de perceber o equívoco que há em se banir um homossexual pelo simples fato de ele ser homossexual, e não por supostos frutos indevidos de sua videira, ou em exigir que esse homossexual se esconda da sociedade e se abstenha da sexualidade, do sexo, a não ser que ele tenha sido chamado, por Deus, em Jesus e no Espírito Santo, e só pela Santíssima Trindade, por mais ninguém, à vida em celibato e em castidade.

Não se julga uma árvore senão pelos seus frutos. Não se pode julgar um grupo de pessoas (todas as vezes que se fez isso, que qualquer instituição fez isso, inclusive a Igreja, errou; a diferença é que a Igreja reconhece seus erros e pede perdão por eles), não se julga um grupo inteiro, sem se atentar para as individualidades e singularidades que compõem este grupo. Não se diz “os homossexuais estão errados”, “as mulheres estão erradas”, “os negros estão errados” etc. Será que só há figueiras estéreis nesses grupos olhados de maneira tão truculentamente panorâmica? Einstein definia “estupidez” como a faculdade de não discernir. Nomear grupos e dar a todos que ali estão inseridos uma mesma característica – boa ou má, pecador ou santo – é estupidez, isso para ficarmos no campo do eufemismo.

Julga-se alguém – Deus julga alguém, fique bem claro – pelas suas obras, por seus frutos. Na parábola do joio e do trigo, Jesus deixa isso claro: o joio e o trigo, na aparência inicial, são idênticos; mas, ao crescerem, diferem um do outro; então – ensina o Salvador – deve-se atar o trigo para o pão num feixe o joio será amarrado e queimado. Onde haverá choro e ranger de dentes. Deus julgará a cada um de nós, independentemente dos “grupos” a que pertencemos, pelas nossas obras, nossos frutos, se fomos ou não capazes de multiplicar os talentos que ele nos deu, se, enfim, somo joio ou trigo.

Essa é a interpretação da misericórdia do Julgamento de Deus nos Dies Irae.

Por não se ter pensado assim, no passado, já se usou a Bíblia para se justificar a escravidão dos negros todos, um grupo (supostamente descendentes de Sem, filho enjeitado de Noé, o que também gerou o antissemitismo, pois os semitas seriam descendentes do mesmo Sem); a completa submissão das mulheres, todas elas, por causa do pecado original de Eva; o desprezo aos deficientes físicos, sem exceção, inscrito em Levíticos, que prescreve que eles não poderiam sequer se aproximar das proposições; e vários outros livros. Mas Cristo veio para redimir a todos esses “desterrados”. Cristo veio e salvou as prostitutas, os leprosos, os deficientes físicos de todo tipo, os publicanos, as mulheres, os samaritanos... Enfim, o médico veio por causa dos doentes, e não por causa dos sãos.

O médico veio para discernir. Para separar o joio do trigo. Para secar a figueira estéril e comer o fruto da figueira fértil. Ambas eram figueiras – do mesmo “grupo” – mas Cristo não julga “grupos”, julga indivíduos.

Cristo teria, então, vindo para remendar o Antigo Testamento? De jeito nenhum: ele veio para dar a chave da CORRETA interpretação do Antigo Testamento – o amor. Sem o amor, o verbo não teria se feito carne, e nem habitado entre nós. “Ainda que eu fale a língua dos homens, e que eu fale a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria” – ensinou Paulo. Cristo veio confirmar a Lei, mas a sua confirmação é esta: ser lida em Espírito, em amor, e não em formalidade, em farisaísmo.

O homossexual vive uma vida de dores e alegrias exatamente igual à dos heterossexuais. Simone de Beauvoir, em seu livro “O segundo sexo”, diz algo que parafraseio aqui: “Homens, mulheres, homossexuais, todos gozam alegrias e padecem dores iguais; todos caminham na estrada da consciência da vida, e suas éticas não estão, de forma alguma, ligadas às suas manifestações íntimas”.

Portanto, ser infalível não significa dizer que o tempo não revelará que as atitudes tomadas em dado momento estavam incorretas. Ou melhor: as atitudes estavam corretas PARA AQUELE momento, mas isso não significa que não tenham de ser revistas, reconciliadas, e, em muitos casos, alvo de pedido de perdão público até mesmo de um Papa, que, exatamente por ser um Papa, sabe que o sacramento da penit~encia pode ser necessário à Igreja como um todo, porque ela, instituição que também é formada por seres humanos, pode pecar.

Ser infalível significa que o clero age com a mais perfeita intenção, inspirado, sim, pelo Espírito Santo. E disso, nenhum de nós duvida.

Mas ser infalível também significa que, inspirado pelo mesmo Espírito Santo, o mesmo clero, em tempo vindouro, poderá reconhecer que 1) poderia ter feito mais do que fez, ou que 2) não deveria ter feito algo que fez, ou que 3) deveria ter feito algo que não fez.

Particularmente, eu, como católico praticante, em muitos momentos já me indispus com atitudes do clero que eu considerava demasiadamente farisaicas, e, como sempre faço, expressei-me publicamente acerca de minha indignação. Hoje, no entanto, compreendo exatamente a dicotomia da infalibilidade, que reside, como foi dito, na rigidez necessária e na flexibilidade, cujo tempo de maturação pertence a Deus, Senhor dos Plantios e das Colheitas.

Todos nós, católicos, quer outros católicos nos aceitem, quer não aceitem e resistam em nos apedrejar, todos nós, sem exceção, somos o corpo de Cristo. Cristo, na missa, está na Palavra, na Hóstia e na Assembleia, isto é, em nós todos. Para Cristo, não faz diferença que sejamos condenados por outros católicos: o que importa é o nosso coração ali presente. O que Deus vê é o coração – sursum corda – corações ao alto. Deus não olha os nossos pecados, mas a fé que anima a Sua Igreja. Nossa prestação de contas é no sacramento da penitência. Não somos obrigados, nem mesmo do ponto de vista civil (há leis civis que nos protegem) a sermos achincalhados, hostilizados pelo que quer que sejamos.

Somos singulares, a nossa prestação de contas a Deus será individual. Cristo disse que veio e separará, da mesma FAMÍLIA (mesmo grupo) pai de mãe, filho de filha, irmão de irmã. Por Cristo discerne, não juga a FAMÍLIA, o GRUPO, mas a PESSOA, o FRUTO, os TALENTOS

O Papa Bento XVI disse, na Homilia pelo início do seu Ministério Petrino, em 24 de abril de 2005: "Queridos amigos, neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos."

Não teremos nós, tampouco, medo de lobos astuciosos, que se escondem sob pele de cordeiro, que odeiam nossas singularidades, ressaltadas pelo Santo Padre em sua primeira oração e exortação pública; lobos que são “modelos sociais”, “padrões”, mas que, no íntimo, tramam, quiçá, contra seus semelhantes, com um coração imundo, coração este que Deus sonda, observa, conhece, muito mais do que rostos contritos e convolutos em pé diante do altar, nas primeiras fileiras e nos lugares de honra dos banquetes, comendo o pão de Cristo como Judas Iscariotes comeu, com o coração doloso, intentando o mal, eretos, pomposos, augustos, junto aos escribas e doutores da lei...

Aquela mesma lei que mataria... se o Ar do Espírito não a vivificasse...

A infalibilidade da Igreja lhe concede, pois, o anúncio da Vontade de Deus, com a rigidez que isso venha a requerer, e o reconhecimento das próprias faltas e pecados, numa flexibilidade que lhe permite pedir perdão não como um ato ignominioso ou vexatório, mas, antes pelo contrário, como uma atitude digna de quem se comprometeu completamente ao Ministério de Cristo: a Piedade e o Perdão, inclusive a si mesmo, pelas faltas cometidas no passado.

Não nos enganemos com falsos messias que vêm bradando a palavra seca da Bíblia como navalha. O mundo está cheio de seitas que se arrogam cristãs e cujo artifício de sedução (seduzir é a arma do demônio, que é o pai da mentira, como ensina São João Evangelista) é exatamente o uso da Bíblia como um gládio, um punhal, uma mortalha de chumbo sobre os ombros, um discurso histérico e fundamentalista que insiste na “leitura” formalista e farisaica das Sagradas Escrituras, sem admitir nenhuma possibilidade de que aquela interpretação, dada por seres humanos, possa sequer estar errada. São pessoas que, ao que parece, acham-se Deuses – ou o próprio Deus? – na Terra.

Não é essa a Igreja que conhecemos. Não é essa a Igreja que amamos.

Cristo, nossa cabeça, está dirigindo o corpo eclesial, do qual nós todos fazemos parte, quer nos aceitem, quer nos repudiem. (Aliás, se nos repudiarem, em nome de Cristo, seremos exatamente aqueles últimos que virão a ser os primeiros.) E é essa cabeça, só essa, que tem o poder de julgar quais os corações que contêm impurezas e quais aqueles que se apresentam diante do altar com o coração sedento de Deus e de Misericórdia. INDEPENDENTEMENTE DA FAMÍLIA, GRUPO, ORIGEM ÉTNICA, SOCIAL, CULTURAL, SEXUAL. Deus não julga grupos: Deus julga pessoas. Até no dilúvio, Deus salvou quem merecia ser salvo. Até Lot foi salvo, enquanto sua própria esposa se tornava uma estátua de sal no extermínio de Sodoma. Deus salvou quem tinha de ser salvo. Até entre os samaritanos, havia um que se curvou para socorrer seu rival, o bom samaritano. Até entre os centuriões houve um sobre cuja fé Jesus afirmou nunca ter visto outra semelhante, que lhe disse: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Até entre os dois bandidos que foram crucificados com Jesus houve discernimento. Jesus não julgou a “categoria”, o “grupo” dos bandidos: ao contrário, um deles foi salvo (São Dimas, o primeiro santo canonizado na Igreja Católica) e outro não. Até entre os apóstolos de Jesus, seu próprio “grupo”, houve uma PESSOA que o traiu: Judas Iscariotes.

Se Deus julgasse grupos e não pessoas, não poderia haver um Judas Iscariotes exatamente no grupo de Seu Filho Unigênito.

(A propósito, São Tomás de Aquino e São Gregório Magno afirmam que a perdição de Judas não se deu no ósculo detrator, mas, antes disso, quando Judas Iscariotes comeu do pão e bebeu do vinho da Santa Ceia já com o coração mal-intencionado. Um alerta, avisam-no-lo os dois santos escolásticos, àqueles que participam da Eucaristia da Missa com o coração cheio de intriga e dolo em relação ao seu semelhante.)

Eu obedeço ao Papa, a quem amo profundamente, pois sei que o Santo Padre Bento XVI é um enviado de austeridade e transparência inigualáveis, discreto, atento, sensível, erudito, inspirado, rígido e flexível, como todo Pai deve ser, e faço o que ele manda: rezo por ele, para que, como ele nos exortou, ele “aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho, a Santa Igreja, cada um de nós singularmente e todos nós juntos.”

Rezo por vós, meu amado Papa, “para que vós não fujais, por receio, diante dos lobos”.

Por isso, eu repito que, na rigidez e na flexibilidade, frutos sagrados da infalibilidade com que o próprio Cristo dotou Sua Igreja, reside a pedra fundamental e o ar do Espírito Santo que conferem a essa mesma Igreja o Sopro de Vida da Eternidade. Pelos séculos dos séculos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

É possível derrotar a Aids


Desde a descoberta do HIV, há três décadas, e após o surgimento, há 15 anos, do coquetel de medicamentos que permite uma vida normal, o mundo espera notícias capazes de alterar os rumos da epidemia de Aids, que até hoje impõe sofrimento e perdas humanas.

Só no Brasil, a cada ano, são mais de 12 mil mortos, 35 mil novos doentes e incontáveis infecções.
Se uma vacina eficaz ainda é uma ilusão e a eliminação total do HIV no corpo da pessoa infectada parece distante, há, em contrapartida, a perspectiva da cura funcional da Aids, com a busca incessante de meios de destruir o poder de replicação do vírus, mantendo a boa qualidade de vida do paciente com um sistema imunológico forte, sem necessidade de tomar medicamentos diariamente.

Enquanto isso, a melhor novidade de 2011 é a evidência cabal de que o tratamento anti-Aids, iniciado no momento certo e seguido corretamente pelo paciente, praticamente impede a transmissão do HIV a um parceiro sexual. Além dos benefícios individuais, o tratamento passa a contribuir decisivamente com a prevenção coletiva.

Ao mesmo tempo, crescem as possibilidades do uso dos medicamentos por pessoas HIV negativas, antes ou logo depois da possível exposição ao risco.

Derrotar a Aids tornou-se cientificamente possível, mas o tratamento como prevenção também é capaz de acionar interesses comerciais, relaxar o uso de preservativos e fazer explodir os custos dos programas de Aids.

Quanto mais pessoas tomam os remédios inadequadamente, mais aumentam as chances de resistências. E muitas das transmissões são recentes, antes de o indivíduo com HIV iniciar o tratamento.

Pioneiro no fornecimento dos antirretrovirais, o Brasil terá que decidir as melhores maneiras de frear a epidemia usando essa valiosa ferramenta de que dispõe, obviamente sem diminuir o papel prioritário da camisinha, dos insumos e das ações de prevenção. O caminho não será fácil, pois aqui as drogas que salvam vidas não chegam a todos os que precisam, já que milhares de pessoas não tiveram acesso ao diagnóstico e não sabem que têm o vírus.

O Brasil nem sequer conseguiu eliminar o HIV em crianças, como fizeram muitos países. A demora em financiar decentemente o SUS, as falhas de gestão que levam a episódios de desabastecimento de medicamentos, o alto custo e a falta de transparência da política nacional de genéricos anti-Aids, que decidiu abrir mão da quebra de patentes, complicam o cenário.

Outro problema é a ênfase dos programas governamentais na vulnerabilidade universal, o conceito de que todos são igualmente afetados pela Aids, o que tem produzido equívocos, como as campanhas de incentivo ao teste anti-HIV dirigidas à população em geral, que geram mídia, sim, mas que identificam poucos novos casos.

A infecção pelo HIV no Brasil tem impacto maior em alguns grupos, prioritários para diagnóstico precoce e eventual tratamento.

São pessoas que já sofrem intensa discriminação e têm negligenciadas suas necessidades de prevenção em Aids. É o caso do jovem gay, que tem 13 vezes mais chance de se infectar do que o heterossexual e que nunca foi alvo de campanha do Ministério da Saúde.

Ou o Brasil elimina o preconceito, para zerar a transmissão, ou se distanciará do sonho possível de vencer a Aids.

- Caio Rosenthal (médico infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas) e Mário Scheffer (comunicador social e sanitarista, doutor em ciências pela Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Grupo pela Vidda São Paulo)
Reproduzido via Conteúdo Livre

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A Folha de S. Paulo publicou hoje, Dia Mundial de Luta contra a Aids, uma matéria relevando que, para 20% dos paulistanos, só gays e prostitutas pegam Aids. Por falar em preconceitos...

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Caso se interesse pelo assunto, há um bom texto no Blogay: "Alguns erros e acertos em relação ao vírus HIV"

"Sou o que sou e isso basta para mim"


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Tudo na minha vida foi feito com muita certeza, nunca quis culpar ninguém pelos meus atos. Desde muito novo, eu já era super responsável e, como alguns amigos dizem, "um novo velho"! Bom, comecei a frequentar a Igreja com 13 anos, com 14 fiz a Primeira Comunhão, com 15 a Crisma, e com 16 já era dirigente de um grupo de jovens, o que perdurou até os meus 22 anos. Me identifiquei com o estilo de oração e vivência do movimento Renovação Carismática (RCC), e lá fiquei por muito tempo.

Nunca tive atração, ou desejo de ficar com homens na minha adolescência, e nem na juventude, até fazer (como eu gosto de brincar) 23 anos e 10 meses. Neste período comecei a olhar diferente para homens, e lembro de um episódio em que minha namorada (na época) me disse que eu tinha olhado diferente para um cara, e (segundo ela), eu era bissexual. Depois de um bom tempo, terminamos, mas as palavras dela começaram a rondar meus pensamentos e eu estava diferente mesmo. Me relacionei com uma garota da faculdade, mas não foi para frente... enfim, eu começava a querer entender o que estava acontecendo comigo. Muitas coisas vinham à minha mente ao mesmo tempo, comecei a ficar sem paz interior. Dúvidas, dedos (os meus) apontados para mim e uma série de questionamentos começaram a me deixar mal, bem mal!

O mais difícil pra mim, foi ficar sem Eucaristia, sem o "meu Jesus" (É bom deixar claro que EU me afastei...)

Lembro que quando eu comecei a entender certas coisas, já fazia anos que eu não comungava, e foi tão libertador receber Jesus, Hóstia Viva, depois de anos, que não aguentei, chorei copiosamente. Hoje, só não comungo mesmo quando eu preciso confessar, algo que voltei a fazer com frequência depois de longos anos de afastamento.

Procuro não me definir, sou o que sou e isso basta para mim! Tanto com homem, quanto com mulher, sou eu! Isso é um assunto complicado no meio gay também, e eu prefiro não começar uma discussão. Importa é que hoje eu me aceito como sou, e sei que não escolhi nada. Não foi uma opção, algo pensado e/ou planejado, me vi assim e assim eu vivo. Sei que meu Deus continua presente em minha vida, como sempre esteve, e que vou (com sua graça), ser sinal dEle neste mundo.

Louvo muito a Deus por ter encontrado pessoas que vivem como eu, e se juntam de 15 em 15 dias, para celebrar a vida e a Eucaristia.

Amo-vos queridos Divers@s.

Pax et Bonun,

Ed.

A casa de Jesus

Imagem fornecida pelo autor

A leitura que a Igreja propõs no último domingo foi o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 13, 33-37, que corresponde ao 1º Domingo do Tempo de Advento, ciclo B do Ano Litúrgico.

O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.


Jesus está em Jerusalém, sentado no monte das Oliveiras, olhando para o Templo e conversando confidencialmente com quatro discípulos: Pedro, Santiago, João e André. Vê-os preocupados por saber quando chegará o final dos tempos. A Ele, pelo contrário, preocupa-O como viverão os Seus seguidores quando já não O tenham entre eles.

Por isso uma vez lhes apresenta a Sua inquietação: “Olhai, vivei despertos”. Depois, deixando de lado a linguagem terrorífica dos visionários apocalípticos, conta-lhes uma pequena parábola que passou quase desapercebida entre os cristãos.

“Um senhor foi de viagem e deixou a sua casa”. Mas, antes de se ausentar, “confiou a cada um dos seus criados a sua tarefa”. Ao despedir-se, só lhes insistiu numa coisa: “Vigiai, pois não sabeis quando virá o dono da casa”. Que, quando venha, não vos encontre adormecidos.

O relato sugere que os seguidores de Jesus formarão uma família. A Igreja será “a casa de Jesus” que substituirá “a casa de Israel”. Nela todos são servidores. Não há senhores. Todos viverão à espera do único Senhor da casa: Jesus Cristo. Não o esquecerão jamais.

Na casa de Jesus ninguém deve permanecer passivo. Ninguém tem de se sentir excluído, sem responsabilidade alguma. Todos são necessários. Todos têm alguma missão confiada por Ele. Todos estão chamados a contribuir para a grande tarefa de viver como Jesus, sempre dedicado a servir o reino de Deus.

Os anos vão passando. Será que se manterá vivo o espírito de Jesus entre os Seus? Continuarão a recordar o seu estilo de Serviço aos mais necessitados e desvalidos? Irão segui-lo pelo caminho aberto por Ele? Sua grande preocupação é que a Sua Igreja é que venha a adormecer. Por isso insiste até três vezes: “Vivei despertos”. Não é uma recomendação aos quatro discípulos que o estão a escutar, mas sim um mandato aos crentes de todos os tempos: “O que vos digo, digo a todos: velai”.

O traço mais generalizado dos cristãos que não abandonaram a Igreja é seguramente a passividade. Durante séculos, temos educado os fiéis para a submissão e obediência. Na casa de Jesus só uma minoria se sente hoje com alguma responsabilidade eclesial.

Chegou o momento de reagir. Não podemos continuar aumentando mais ainda a distância entre “os que mandam” e “os que obedecem”. É pecado promover o desafeto, a mútua exclusão ou a passividade. Jesus queria ver-nos a todos despertos, ativos, colaborando com lucidez e responsabilidade.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via IHU, com grifos do autor

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

“Aqueles que são bem ditos”



Já há algum tempo temos aqui no blog uma sessão de depoimentos dos membros que freqüentam nosso grupo de leigos, o Diversidade Católica.

No post da semana passada (Ser Gay pra mim é uma Benção), houve uma rica troca de experiências de igual valor nos comentários, que merece ganhar relevância por nós.

Também membro do Diversidade, para os íntimos DC, Marcelo Moraes Caetano, fez uma rica explanação que vale a leitura:


Queridos companheiros de jornada, sou um participante um tanto bissexto, tanto nos meus comentários aqui no Blog, quanto nas minhas idas às (fantásticas) reuniões do Diversidade Católica, aonde fui levado por um amigo de muitos anos. Minha pouca assiduidade, no entanto, não é por falta de interesse, mas de tempo, pois, se eu pudesse, pela grandeza e importância que vejo no trabalho desse grupo tão verdadeiramente cristão, seria um ativista ávido e perene das reuniões e das leituras desta página.

Como fui chamado (nem digo apenas "convidado"), no "informe" do DC, a ler e dialogar com o testemunho desta semana, eis-me aqui.

O que o Rodolfo passou, assim como o ocorrido com a Lorena, é, sem dúvida, um dos grandes conflitos que nos assolam. Muitos de nós (não posso dizer "todos") não aceitam a situação de mascarar a própria orientação sexual e continuar indo à igreja como se aquela orientação simplesmente não existisse. E é nesse grupo de pessoas - nós, que aqui dialogamos - que nasce o conflito entre ser gay e ser católico. Muitos não aceitam a aludida "vida dupla", que o Rodolfo citou. É, sem sombra de dúvida, uma fase de verdadeiro suplício interno, estertores psíquicos indescritíveis, uma tortura na alma. Só nós que passamos por isso sabemos exatamente o tamanho e a amplitude da dor.

O que quero dizer é simples, assim como Cristo é simples, e claro, assim como Cristo é claro. "A casa de meu Pai tem muitas moradas". Somos, sim, abençoados exatamente como somos. Deus não nos fez gays por um "erro". Deus não erra. Que redundância dizer isso, não é mesmo? Não, não é redundância não. Há muitas pessoas que, indiretamente, ainda acham que Deus erra. Que nós, gays, por exemplo, somos um erro de Deus. Na melhor das hipóteses porque Deus teria feito homens e mulheres que não "serviriam" para suas únicas funções: a procriação. Por analogia, Deus também errou quando criou homens e mulheres estéreis. Por analogia, Deus também errou quando chamou vocacionados ao celibato... Etc.
Deus não erra. Essa frase tão tola e - redundante! deveria ser óbvia. Mas não é para muitos.
Nós, gays, não somos um erro de Deus. Nem os que não podem gerar filhos biologicamente. Nem os que abraçaram com amor o celibato.

"A casa de NOSSO Pai tem muitas moradas". Paulo de Tarso ainda cita um versículo do Livro dos Reis: "Cada um se apresente ao Pai na forma como foi concebido e chamado".Pode haver maior clareza? Infelizmente há pessoas que abominam a luz de tal forma, que a clareza e a simplicidade de Jesus, em vez de iluminar e limpar, ofusca e arranha.

Que a Virgem Maria tenha compaixão de todos nós, incluindo os que nos batem na face, e que eles sejam perdoados, Pai, porque não sabem o que estão fazendo...

Para terminar, sou Franciscano da Ordem Terceira, e sempre cito São Francisco, "O pobre de Deus". Quando ele fundou sua ordem, tendo tido uma revelação de São Damião para restaurar as ruínas da Porciúncula, e em seguida do próprio Cristo, que lhe disse - "Vai, Francisco, e restaura toda a minha Igreja" -, Francisco foi procurar o Papa, que sofreu todo tipo de pressão contrária à criação da ordem monástica dos franciscanos e subsequentemente das clarissas, por Santa Clara de Assis. Francisco e Clara foram, portanto, excluídos da Igreja por um tempo, bastante grande. Andaram mendigando e por conta própria, sem apoio da igreja, por muitos anos. Assim como nós, os gays.

Mas, em vez de desistirem ou de virarem as costas à Igreja de Cristo, insistiram na fé e na fidelidade, e foram até o sucessor de São Pedro até conseguirem sua bênção. Francisco diz, no seu "Cântico às criaturas": "Eu não deixarei jamais de mar a Igreja do Salvador, ainda que ela me torturasse e me queimasse". E quantos mártires e santos conhecemos que tiveram exatamente a mesma atitude? Mesmo torturados e queimados, não viraram as costas à Igreja, não deixaram de amá-la nem por um instante. Somos gays, mas antes de tudo somos cristãos. E temos de aceitar quando alguém nos vira as costas, porque essa pessoa ou instituição está na ignorância e merece misericórdia. Foi o ensinamento de Cristo, de Francisco, da Virgem Maria, de todos os santos e santas, que morreram, todos, por nós, por nossos pecados, e para nos dar seus próprios corpos como lição maior, como exemplo irretorquível.

Eu, em muitos momentos da minha vida, lembrando de São Francisco, já me disse: "Eu amo a Igreja, APESAR de ela estar fazendo isso comigo". Mas, amigos, me parece que as coisas vêm mudando. Já não é mais necessário viver "vidas duplas" (infelizmente para algumas famílias ainda o é), e como diz o Rodolfo, já podemos nos sentir, sim, abençoados.

Esse verbo ("abençoar") vem do substantivo "bênção", que, por sua vez, vem do latim "benedictĭo", que é um particípio depoente, que significa "aquele que é bem dito". Somos benditos como Deus nos fez. Somos amados, amamos a Deus sobre todas as coisas e ao nosso semelhante como a nós mesmos, respeitando, pois, as duas ÚNICAS leis que Jesus nos mandou seguir.

Não temos que ter nenhuma vergonha de sermos o que Deus quis que fôssemos. Se Ele não nos quisesse assim, seríamos diferentes.

Somos benditos.

Que Nossa Senhora continue nos protegendo: benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Jesus.

Abraços, queridos,

Marcelo

Vigilância e oração

Foto: Rebeca Cygnus

A cada uma das quatro semanas do Advento é proposto um tema central. À primeira, cabe a Vigilância. Sendo esse um período em que a Igreja chama à conversão, à oração e à penitência, o chamado a vigiar soa como um convite para fazer a leitura daquilo que é preciso abandonar de modo que se possa celebrar o Natal em toda a sua plenitude.

Jesus nos adverte para o fato de que ninguém sabe o dia ou a hora em que Deus chegará. Assim se deu nos tempos de Noé, em alusão que faz ao dilúvio enviado por Deus como sinal da necessidade de conversão. Assim se dá também em nossos dias. Talvez não com um dilúvio, nem como grandes tragédias, mas pequenos sinais diários em que Deus nos mostra o caminho a seguir.

Vigiar é a atitude daquele que deseja encontrar algo, daquele que busca, daquele que guarda um tesouro e não quer se ver aviltado. Quando Jesus nos adverte para a necessidade de vigilância, não quer nos apresentar um Deus castigador, que pune o ímpio. Ao contrário, quer nos mostrar Sua grande misericórdia, que mesmo diante de tantas ingratidões que cometemos, é capaz de a cada minuto nos oferecer novas e novas oportunidades. Vigiar é buscar encontrar os sinais da Vida em nossas vidas, é cuidar para que nosso corpo e nosso espírito sejam inteiros direcionados para o Senhor, é lutar pela preservação da vida, dom maior de Deus.

A oração é o caminho de encontro com o Senhor. A porta por onde nos é comunicada a graça de Deus e que, no silêncio de um quarto, pode aclarar e acalmar nossos corações para o verdadeiro encontro de Deus. Assim, vigilância e oração caminham juntas no dia-a-dia daqueles que esperam em Deus, daqueles que desejam firmemente encontrá-Lo e poder contemplar Suas maravilhas em um mundo nem sempre disposto a mostrá-las.

A caminhada rumo a Belém começa, pois, com esse apelo à abertura de sentidos para o verdadeiro encontro com Aquele que traz em si todo o sentido da verdadeira Vida: vigilância, oração, misericórdia...

Texto para oração
Mc 13, 33-37

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Ser amado e amar



"Ser profundamente amado por alguém nos dá força; amar alguém profundamente nos dá coragem."

- Lao-Tse

O adeus de Francisco


Reproduzimos esse belo testemunho do blog Por causa da mulher. Porque há momentos em que as perdas conduzem a reflexões profundas e grandes graças.

E foi aí que eu percebi qual deveria ser a natureza da luta política, em especial no que se refere a questões em que as gerações passadas estão majoritariamente contra as gerações mais novas. Havia um enterro ali, famílias a lamentar uma pessoa querida que se ia, algumas conversas. Gentes de cores, que afinal para essas coisas não há -ismos.

E então, um padre.

Branco.

E então Jesus, evangelho, mansão de deus, paz, as lembranças, a vida, o eterno.

E toda a gente, que não poderia se identificar etnicamente com o jesus branco que sempre lhes fora metido goela abaixo e-ou vendido, escutava atentamente as bonitas palavras do padre, e lhe perdoava a dificuldade na pronúncia do nome nipônico de quem causara aquela reunião.

Considerando ocasiões como esta, e em como a religião cumpre uma função amenizadora de dores, como eu poderia fazer a problematização da influência colonial, exercida de maneira frequentemente desumana, diante de palavras tão sensatas sobre perda, sobre esperança, sobre saudade?

Creio que o caminho está em estabelecermos uma separação, em nossos pensamentos e em nossa retórica (esta, o fuzil d@s que lutam com ideias), entre a porção útil e a porção problemática das ideias forçosamente herdadas. Devemos construir junt@s a vitória contra as ideias do colonizador e opressor vivendo dentro de nós, impingida através de gerações, sem deixar de atentar aos usos que @s oprimid@s dão a essas ideias numa busca por conforto, por consolo, por vida.

É uma linha tênue, sem dúvidas, mas o risco do exagero, de se criticar religiões e normatividades em excessiva acidez, é o da perda de aliad@s potenciais. Por outro lado, há o risco do deixa-disso, tão folcloricamente nosso, e que deixa os conflitos mornos e irresolvidos — até que a corda arrebente em assaltos violentos e sequestros, gerando datenices e insípidos movimentos cansados e brancos.

Acredito no questionamento incessante e cotidiano, sarcástico, irônico e lírico, que aponte as ridículas contradições em que eventualmente incorremos, imers@s que estamos nestas normas racistas, classistas, sexistas, generistas, teístas, culturistas, etc. Algo que deve ser feito com cuidado, e com o objetivo máximo de evitar arrebentares de corda que, ao final, conduzirão às batalhas finais, com a graça das tecnologias que reforçam nosso especismo pouco questionado.

E eis que Francisco, ali, inerte, tio-avô lembrado em memórias um tanto fora de foco, me conduzia a essas reflexões. E talvez fosse a gratidão por tudo isso que tornasse sua morte, perda indefinível a tantas pessoas, uma emanação de boa energia, desconstrutora da negatividade do fim da vida. Porque seu descanso era também oportunidade de gerações filosóficas.

Adeus, tio Francisco. E obrigada (embora você jamais me houvesse conhecido como Viviane).

- Viviane
Publicado originalmente no blog Por causa da mulher, de "relatos e pensamentos de uma garota transgênera que busca compreender o feminino (incluindo a própria feminilidade)", como descreve a autora.

Por que ainda ser cristão hoje?


A última edição de 2006 da revista da IHU On-Line procurou, através de diversos depoimentos, responder o título desta entrevista: Por quê ser cristão hoje? Uma das vozes ouvidas foi a do teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga. Ele respondeu as questões que seguem por e-mail para a IHU On-Line.

O Prof. Dr. Andrés Torres Queiruga é professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. Ele é licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha, é doutor em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Entre suas obras publicadas em português, citamos "Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano" (São Paulo: Paulinas, 1993); "O cristianismo no mundo de hoje" (São Paulo: Paulus, 1994); "A revelação de Deus na realização humana" (São Paulo: Paulus, 1995); e "Repensar a ressurreição" (São Paulo: Edições Paulinas, 2004).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.


IHU On-Line - Por que ainda ser cristão hoje? Quais as razões de ainda ser cristão numa sociedade mediada pela técnica e pela ciência, ante a secularização que é característica da pós-modernidade?
 Andrés Queiruga -
No fundo, pelas mesmas razões de sempre. É todo o nosso ser que clama pela Transcendência. Há épocas que o tornam mais difícil: épocas de “eclipse de Deus”, como disse Martin Buber (não de “silêncio de Deus”, como se diz às vezes com demasiada alegria e pouco respeito por seu amor incondicional!). A secularização aponta a um desses eclipses. Porém não é um eclipse total. O que nos pede é um esforço por reencontrar e repensar Deus na nova circunstância, primeiro em nós, os e as crentes; e logo, para saber poder anunciá-lo de maneira crível aos demais. Morreu um cristianismo pré-moderno. Porém diante de nós está todo o futuro de Deus, se soubermos ser fiéis aos novos apelos.

IHU On-Line - Por que crer em Jesus? Quais os seus argumentos para a fé, nos dias atuais, no Deus uno e trino, na ressurreição e na segunda vinda de Cristo?
 Andrés Queiruga -
Cremos, ou, concretizando, creio pessoalmente em Jesus, porque nele encontro expressa em palavra e, sobretudo em obra e vida, essa abertura fundamental à presença de Deus. Jesus não foi, por sorte, o único na história humana em expressar essa Presença. Mas é aquele em quem encontro a maior e, em definitivo, insuperável manifestação do que nosso coração e nossa história estão buscando. Porque ele nos abriu o Mistério definitivo: o de um Deus que ama sem reservas – bons e maus! - e perdoa sem condições. Um Deus que, entregando-se em seu amor salvador, faz-nos viver de sua vida e de seu Espírito, fazendo-nos filhos e filhas no Filho. Por isso, em Jesus compreendemos de maneira plena e integral o que, em seu amor de Abbá, Deus estava realizando desde o começo da humanidade: que Ele não nos deixa cair na morte, que nos ressuscita. A segunda vinda de Cristo é assim um símbolo da esperança final: ressuscitando-nos a todos, no final, quando acabar o tempo – não sabemos como – nos encontraremos reunidos na grande família de filhos com o Filho. Então, segundo a magnífica visão de são Paulo, Deus “será tudo em todos”.

IHU On-Line - Em que medida os valores do cristianismo nos ajudam a conviver melhor com os outros seres humanos, com os animais e com a sociedade em que vivemos?
Andrés Queiruga -
Só podemos levar a sério a nossa filiação, só creremos sem hipocrisia em Deus como Pai/Mãe, se vermos e tratarmos os demais como irmãos e irmãs. E não “de palavra e de boca, senão com obras e em verdade”. De fato, esta intuição, inclusive oculta e bastante deformada pelos defeitos da cristandade, fecundou a história, como apareceu nos ideais da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. O que se nos pede hoje, insistindo principalmente na fraternidade, é encarnar este ideal – que confessamos em teoria – numa práxis conseqüente que busque alcançar os excluídos e marginalizados. E, se à idéia de criação por amor unirmos hoje a consciência evolutiva, compreenderemos que a criação é universal: somos constitutivamente solidários de todo o cosmo, desde o último átomo ao animal mais elevado. Nela vivemos e vamos construindo a nossa vida. Toda a criação é nosso “corpo”: somos graças a ela e ela alcança em nós a consciência, a liberdade e o amor. Isso, se se quer, é antropocentrismo. Porém antropocentrismo solidário e fraternal. Não é preciso igualar tudo ou ignorar que a humanidade é a “flor da evolução”, para compreender que, justamente por isto, devemos olhar com profundo agradecimento, respeito e amor todas e cada uma das criaturas.

IHU On-Line - Fé e razão são incompatíveis ou complementares? Como podem os ensinamentos de Jesus conviver com o discurso da ciência?
Andrés Queiruga -
Fé e razão são dois modos ou intencionalidades distintas de nossa relação com o mundo, com o único e idêntico mundo. São visões complementares, pois respondem a distintas necessidades da mesma humanidade. O processo cultural pôs a descoberto sua diferença. Porém somente uma má interpretação pode traduzir a diferença por antagonismo. Estamos hoje em condições de compreender que a diferenciação cultural é um ganho para todos, desde que renuncie ao imperialismo da própria visão, evitando invadir as competências alheias. A Igreja teve que aprendê-lo duramente, quando, a partir de uma falsa leitura da Bíblia, invadiu o terreno da ciência. Hoje também a ciência deve aprender a lição: também ela não deve invadir o terreno da religião (nem o da filosofia). Com relação ao princípio e à lucidez histórica, a batalha da justa compreensão está ganha. Mas, na prática, nem todos a compreenderam ainda. Karl Rahner fez a advertência de que convivemos com pessoas que estacionaram no século 19. Se o dizia aos teólogos, vale igualmente para os cientistas. Controvérsias como as do Criacionismo vs. Evolucionismo são, neste sentido, um espetáculo triste... e anacrônico. Eles agem com positivismos cientificistas indignos da ciência atual e com literalismos fundamentalistas que são uma vergonha para a teologia.

IHU On-Line - Qual é a interferência de Paulo de Tarso nos ensinamentos transmitidos por Jesus Cristo?
Andrés Queiruga -
Paulo não tratou diretamente com Jesus de Nazaré. Isso lhe permitiu meditar teologicamente sobre o significado de sua vida e de sua mensagem. Isso lhe permitiu igualmente explicitar aspectos e abrir profundidades que antes não se haviam percebido com clareza. Como dizia Blondel, no que se vive imediatamente – no l’implicit vecu – há sempre riquezas que não se percebem nem podem fazer-se conscientes de imediato. Junto com outros autores do Novo Testamento, Paulo foi um grande explicitador e um eficaz organizador. Porém, como em todo o humano, também isso teve seu preço: concentrou sua teologia no final da vida de Jesus. Ademais, interpretou sua morte-ressurreição de uma maneira excessivamente pontual e sacrifical. Isso pode levar ao mal-entendido de converter numa espécie de ato cúltico (realizado na Cruz, para reconciliar-nos com Deus) tudo o que em Jesus foi o processo e o exemplo de sua vida inteira, de sua atividade e de sua palavra. É preciso superar esse perigo de unilateralidade, completando a profundeza da morte-ressurreição com uma dialética integradora que recupere toda a riqueza da vida de Jesus, pois é ela que lhe dá fundamento e sentido. De fato, foi isso que, no fundo, levou a escrever os Evangelhos que, por isso, têm o caráter de uma biografia – embora seja no estilo de então – que ensina ser seu inteiro destino o que constitui tanto a revelação de Deus, como o modelo integral da vida cristã.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios do cristianismo no século 21?
Andrés Queiruga -
Do ponto de vista teórico, o desafio é repensar todos os grandes temas da teologia, ultrapassando fundamentalismos e tradicionalismos, e recuperar seu significado para a vida cristã. Já do olhar eclesial, é desafiador democratizar profundamente o governo da Igreja, superando toda discriminação interna – sobretudo, a da mulher – e eliminando o autoritarismo, em direção a uma comunidade inclusive “mais que democrática”. Isso o quis e o mandou Jesus de maneira explícita: “Sabeis que os chefes das nações as dominam como senhores absolutos, e os grandes as oprimem com seu poder. Não há de ser assim entre vós, senão que, quem queira ser grande entre vós, será vosso servidor, e quem queria ser o primeiro entre vós, será vosso escravo”. Com relação à missão no mundo, o desafio é gerar sentido e esperança, mostrando-o principalmente no serviço comprometido com os mais pobres e abrindo-se, com generosidade fraternal, ao diálogo e à colaboração com as demais religiões.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Está na hora



O vídeo "It's Time" ("Está na hora"), produzido pela organização australiana GetUp!, que estimula a população do país a tomar atitudes sociais e efetivas sobre diversos assuntos pertinentes à sociedade, retrata a vida de um jovem, desde o dia em que ele conhece uma pessoa especial, passando por diversos momentos da rotina de um casal - viagens, conhecer os pais, passeios e momentos difíceis - até o pedido de casamento. É quando descobrimos que a outra metade do casal também é um homem. O vídeo encerra com a frase "Está na hora. Acabe com a discriminação contra o casamento".

Emocionante e sensível, "It's Time" foi divulgado no último sábado, 26 de novembro, e já tem mais de 1,5 milhão de visualizações no YouTube - graças ao grande sucesso que obteve nas redes sociais.

Fonte: Somos LGBT

Como separar a Igreja do Estado

Twist bridge: West 8 Architect

De passagem por Buenos Aires, Micheline Milot contou como a Suprema Corte do Canadá vem marcando limites às tentativas de grupos religiosos para impor suas ideias. O aborto, o matrimônio igualitário, o véu das muçulmanas, o multiculturalismo.

A reportagem é de Mariana Carbajal e está publicada no jornal argentino Página/12, 21-11-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU.


“Cada vez que houve uma tentativa da Igreja católica de exercer um poder indevido sobre os indivíduos no Canadá, as sentenças da Suprema Corte sempre fizeram recordar que, em nome da igualdade, o Estado devia ser neutro”, destacou a socióloga canadense Micheline Milot, durante uma conferência em Buenos Aires sobre “Estado laico, religião e diversidade cultural” em seu país. Professora do Departamento de Sociologia da Universidade do Québec, em Montréal, Milot é membro do grupo Sociedades, Religião e o Laicismo do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, e especialista no tema no Conselho da Europa. De forma didática, deu exemplos dos limites que o Supremo Tribunal vem marcando às tentativas de grupos religiosos de impor seus valores ou preceitos morais em políticas públicas. E despertou no auditório um sentimento, talvez inesperado para ela: inveja. Além disso, Milot explicou as razões do sucesso do multiculturalismo no Canadá, onde – ao contrário da França – não se proíbe às mulheres muçulmanas de usarem o véu islâmico em espaços públicos como escolas e hospitais.

“Na França, a proibição de expor símbolos religiosos em espaços públicos se impôs com o argumento da laicidade e em nome da autonomia da mulher e de sua dignidade. No Canadá, em nome da autonomia e da dignidade, a mulher muçulmana tem o direito de usar o véu. O único lugar onde gera problemas é em Québec, onde uma parte da população gostaria de importar o modelo francês”, disse Milot.

Por que estar com o rosto coberto implica dignidade para uma mulher muçulmana? – perguntou-lhe o Página/12.

No Canadá não há mulheres que usem a burca como no Afeganistão. A maioria das imigrantes muçulmanas no Canadá são marroquinas, libanesas. Usam nikda, o véu islâmico. Para poder utilizar serviços em uma instituição pública como hospitais ou escolas elas têm que poder ser identificadas, têm que ser possível ver seu rosto, mas podem mostrar o seu rosto a outra mulher e não necessariamente a um homem. Mas um médico não tem o direito de negar atendimento a uma mulher que não quer tirar o véu. Há também imigrantes da Arábia Saudita e da Síria, que costumam ser muito instruídas, trabalham em bancos, mas não estão em contato com o público, com os clientes. A pergunta que se deve fazer é se o Estado pode se intrometer na forma como as pessoas se vestem, explicou.

No Canadá a resposta é um rotundo “não”.

Especializada em sociologia da religião, laicismo e multiculturalismo, a pesquisadora canadense esteve em Buenos Aires, e entre outras atividades, deu uma conferência sobre a experiência canadense de laicidade e diversidade cultural no marco dos 40 anos do Centro de Estudos e Pesquisas Trabalhistas (CEIL) do Conicet.

No Canadá, contou, os matrimônio entre pessoas do mesmo sexo estão autorizados. “Colocou-se um problema interessante: os manuais escolares incluíam ilustrações de famílias compostas por uma mãe e um pai, de duas mães e de dois pais. Um grupo de pais católicos e protestantes se opôs a que seus filhos fossem expostos a tipos de famílias contrárias aos seus valores e recorreram à Corte: defenderam que eram muito jovens para serem expostos a modelos de famílias tão diversos. Mas a Corte rechaçou todas as críticas e disse que não se pode impedir educar na tolerância, dado que devemos ensinar a viver em uma sociedade que inclua a diversidade”.

A laicidade é um pilar fundamental da sociedade no Canadá. Mas o Estado nunca teve que conquistar sua autonomia dos poderes religiosos, como no México e Uruguai. “Nenhuma Constituição no Canadá falou da relação das igrejas e o Estado. O Estado nunca teve que conquistar sua autonomia em relação às igrejas porque nenhuma Igreja estava ligada ao Estado”, detalhou durante a conferência. “O Québec é a única sociedade francófona e de tradição católica na América do Norte”, apontou. A primeira Constituição do Québec, de 1774, reconhece a liberdade de culto aos britânicos. “Foi o primeiro reconhecimento deste tipo no Império Britânico. Nessa Constituição não se impõe nenhuma exigência religiosa para o acesso a cargos públicos”, indicou. Como se instrumenta a laicidade em um país que nunca mencionou em seus instrumentos jurídicos aspectos sobre o conceito de laicidade? “A neutralidade do Estado se consegue a partir da separação do Estado e dos grupos religiosos. A neutralidade não é uma abstenção do Estado, mas uma intervenção que permite que se possa garantir os direitos da laicidade”, assinalou a especialista. “Não há uma laicidade perfeita ou ideal em relação à qual tender como sociedade”, acrescentou, e advertiu que “o regime de laicidade tem que se ajustar constantemente às novas situações que surgem nas sociedades”.

As pressões dos grupos religiosos majoritários existem. Mas “a diversidade de grupos religiosos fragiliza o poder de cada um deles”, explicou. Os tribunais, contou Milot, funcionam como fóruns democráticos: de outra forma “as vozes da minoria não poderiam ser ouvidas no foro político. Trata-se de uma justiça independente e autônoma que se torna um fórum onde podem ser debatidos temas controversos para proteger aquilo que Tocqueville chamava de tirania das maiorias”, assinalou durante a conversa.

“Cada vez que havia uma tentativa da Igreja católica de exercer um poder indevido sobre os indivíduos, as sentenças da Corte sempre fizeram recordar que em nome da igualdade o Estado devia ser neutro”, destacou. O Canadá se rege pelo Direito dos Costumes, a jurisprudência tem quase o poder das leis. “No século XVIII e XIX os padres diziam nas igrejas em que partido votar e ameaçavam os fiéis com tirar-lhes os documentos e verificavam no confessionário em quem tinha votado. Durante o século XIX são aprovadas leis que penalizam as pessoas que queiram influenciar outras em seu voto”.

O aborto foi despenalizado em 1998. “É uma questão muito importante no Canadá – destacou a especialista. Durante muito tempo as mulheres lutaram por esse direito. Quando não era legal, muitas mulheres morriam em decorrência de abortos clandestinos. Foi determinante a ação de um médico, Morgan Taylor, que levou o debate à Suprema Corte. Durante 30 anos trabalhou na abertura de clínicas que faziam abortos em condições sanitárias. Foi perseguido pela Justiça. Os cristãos colocavam bombas em suas clínicas. Este médico dizia que o problema real era que as mulheres morriam em decorrência das condições ilegais do aborto. Defendeu que o aborto não era uma questão ideológica, mas de saúde pública e a Corte invalidou a penalização do aborto. Mas, não basta despenalizar o aborto: é necessário que o Estado outorgue os meios para que todas as mulheres possam ter acesso a clínicas de qualidade. A partir desta sentença todas as mulheres têm direito a realizar um aborto em clínicas de qualidade”, explicou. Como consequência da despenalização e da legalização, a mortalidade por abortos foi eliminada no Canadá.

Na Argentina, grupos religiosos, fundamentalmente católicos, buscam obstruir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos e, entre outras ações, iniciaram demandas na Justiça para impedir a distribuição de anticoncepcionais, e pressionaram para que não se realizem abortos não puníveis. Há ações similares no Canadá? – perguntou-lhe este jornal, ao término da conferência.

Os grupos religiosos em todas as partes do mundo, no Canadá assim como na Argentina, se opõem à legalização do aborto. Mas o que faz a diferença – e analisei a situação em sete países – é a posição oficial que o primeiro-ministro (ou o presidente) adota. A Suprema Corte e o presidente têm um dever pedagógico com respeito ao seu país, que nem sempre é cumprido. O primeiro-ministro do Canadá disse na TV no momento em que foi aprovado o matrimônio homossexual (em 2005) que embora ele tivesse sido criado na tradição católica e que essa lei não tinha a ver com seus valores, a assinava porque o Canadá não tinha que se governar pelos valores do primeiro-ministro, mas se reger com os valores da igualdade – exemplificou Milot.

Outro pilar no Canadá é o multiculturalismo, assinalou a pesquisadora. “Angela Merkel, (Nicolas) Sarkozy, (David) Cameron proclamaram que a multiculturalidade fracassou. Esses países não impulsionaram leis para promover o multiculturalismo. Falaram sobre questões de fato. O multiculturalismo não significa que indivíduos vivam junto com outros. Pode-se falar de multiculturalismo quando há políticas explícitas ou instrumentos jurídicos que vão nessa direção”, indicou. Nesse sentido, o governo tomou como política a defesa do Estado multicultural em oposição a um Estado unicultural, como na França, por exemplo, disse. “Em 1988 foi adotada a lei do multiculturalismo, fala-se do reconhecimento e estima das diferentes culturas”, disse. Há dois idiomas oficiais (o francês e o inglês), recordou. “Mas há muitos fundos (do Governo) outorgados para que crianças que nasceram em outros países possam continuar a fazer cursos sobre o seu idioma de origem”, destacou, em mais um exemplo.
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