sábado, 24 de maio de 2014

(Re)leituras do Gênesis


Saiu hoje no jornal O Globo uma matéria sobre uma nova tradução do Gênesis que está sendo lançada no Brasil do ponto de vista da tradição judaica (o primeiro livro do nosso Antigo Testamento é o primeiro livro da Torá judaica). A reportagem nos pareceu preciosa por seus esclarecimentos acerca do método judaico de leitura e interpretação das Escrituras, baseado na permanente reflexão e atualização críticas à luz do tempo presente. E pensar que só há pouco mais de um século nós, cristãos, e especialmente católicos, começamos a vislumbrar as possibilidades do método histórico-crítico, que só em meados do século XX se tornou oficialmente o método preferencial para leitura e exegese da Bíblia adotado pelos católicos - e que, com o recrudescimento do fundamentalismo entre católicos e reformados, ainda há tantos que defendem leituras literais e descontextualizadas dos textos bíblicos e da Tradição. E, no entanto, talvez o que mantenha a Bíblia viva e sagrada através dos séculos seja justamente sua permanente reatualização à luz dos tempos que correm...

Aliás, é o que mantém a Igreja viva através dos tempos, como bem lembrou esta semana o secretário-geral da CNBB, D. Leonardo Steiner, ao comentar que "A Igreja muda sempre; está em mudança. Ela não é a mesma através dos tempos. Tendo como força iluminadora de sua ação o Evangelho, a Igreja busca respostas para o tempo presente. Assim como todas as pessoas, a Igreja sempre procura ler os sinais dos tempos, para ver o que se deve ou não mudar" (aqui). :-)

Segue a matéria do Globo. Que proporcione reflexões instigantes! Boa leitura! :-)

Narrativa fundamental para o povo judeu, a Torá está longe de ser um texto estático, como muitos podem imaginar. Ao contrário, a tradição judaica é calcada justamente na interpretação dos fundamentos religiosos, o que acaba por aproximá-los da realidade contemporânea, legando um retrato histórico da realidade de cada época. Nesse espírito, chega ao mercado editorial brasileiro uma nova tradução da primeira parte da Torá (Gênese), da Ed. Exodus, de autoria do psicanalista e estudioso do judaísmo Davy Bogomoletz, que pode interessar não apenas aos religiosos, mas também ao público em geral. Ela foi feita com base no texto original e na tradução do rabino argentino Marcos Edery, e traz uma gama variada de interpretações.

A Torá (ou Pentateuco, parte inicial da Bíblia hebraica e que corresponde também aos cinco primeiros livros do Velho Testamento para os cristãos) é o conceito central da tradição judaica. O termo significa “instrução” e oferece aos seus seguidores regras para viver de acordo com as obrigações religiosas e a lei civil. Em geral, o livro vem acompanhado de comentários feitos por rabinos ao longo dos tempos, interpretando e atualizando as leis divinas. Essa tradição de releituras faz com que, por exemplo, inovações médicas sejam mais bem aceitas hoje - mesmo temas considerados polêmicos para outras religiões, caso das pesquisas com células-tronco.

- Novas traduções da Bíblia existem muitas, mas traduções do Pentateuco por autores judeus só havia a do rabino Masliach, bem antiga; a de Jairo Friedlin e David Gorodovitz, mais recente, que traduziram a Bíblia Hebraica integral; e esta, do rabino argentino Mordechai (Marcos) Edery - explica Bogomoletz. - Enquanto as traduções anteriores ou eram destituídas de comentários, como a do Jairo Friedlin e David Gorodovitz, ou traziam muito poucas interpretações, como a do rabino Masliach, esta (do rabino Edery) tem sua força justamente nos comentários, uma coleção enorme de interpretações dos mais variados exegetas judeus, desde o gênio medieval Rashi até comentaristas atuais como Adin Steinzalz.

Muitas interpretações reunidas

Essas variadas interpretações, nas palavras de Bogomoletz, são justamente o grande diferencial desta nova edição, que mantém a atualidade das escrituras.

- Levando-se em conta que os judeus não leem a Bíblia (o Antigo Testamento) sem alguma interpretação da mesma, fica clara a importância desta edição - afirma o especialista. - Para os leitores não judeus, e para muitos judeus também, trata-se de um primeiro contato com a antiga arte judaica de interpretação do texto bíblico.

A ideia, de acordo com especialistas, é trazer o texto divino para o mundo real, como explica o psicanalista Paulo Blank, do Programa Transdisciplinar de Estudos Avançados da ECO-UFRJ, em análise sobre a nova tradução: “A tradição judaica preferiu trazer o texto bíblico ao mundo dos homens, que nele interferem através da linguagem que produz pensamento. Sem essa característica interpretativa, as narrativas bíblicas teriam se transformado numa ordem engessada pela sacralização da escritura.”

- Os judeus sempre interpretaram os textos bíblicos. “Toda geração tem seus intérpretes”, diz um célebre aforismo judaico. E o fato é que, a cada geração, surgem novas descobertas sobre sentidos de versículos e significados de palavras no mesmo texto - explica Bogomoletz. - Não se trata aqui de uma “diferença” entre as interpretações. Cada intérprete estudou a obra de seus antecessores e acrescenta as suas inovações.

Um paraíso sem maçãs

Neste primeiro volume, do Gênese, Bogomoletz cita exemplos de interpretações que, por conta das várias análises, trazem visões diferentes das cristãs. Eva, na tradição judaica, é criada a partir de um dos lados de Adão, não de sua costela. Ela é criada, como explica Bogomoletz, para defrontar-se com Adão, não para servi-lo. A costela, segundo ele, vem do folclore cristão. Tampouco há maçã no paraíso. Na tradição judaica, o “fruto proibido” não é nomeado. Da mesma forma, não existe o “terrível” pecado sexual pelo qual o cristianismo explica a expulsão do casal do céu. O pecado, na tradição judaica, é estritamente político, diz o tradutor, isto é, constituiu-se de uma desobediência.

- A sexualidade não teve nada a ver com isso - garante Bogomoletz. - Ao contrário, a sexualidade é explicitamente estimulada no texto, desde o famoso “Crescei e multiplicai-vos” até as inúmeras bênçãos que prometiam muitos filhos a quem as recebia.

Por conta dessa tradição das releituras e interpretações múltiplas, segundo a historiadora Mônica Selvatici, especialista em identidade judaica e cristã da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, o judaísmo tende a ser mais dinâmico, mais aberto a mudanças e inovações do que outras religiões.

- A tradição de múltiplas interpretações, de estudo contínuo do texto bíblico, me parece que torna o judaísmo mais aberto, sim. Ele não se fecha numa única verdade, numa única doutrina - afirma Mônica. - E é interessante essa tradução com os diversos comentários ao longo dos tempos, porque permitirá trabalhos variados sobre diferentes leituras históricas.

Bogomoletz concorda. E fala sobre a adaptação das religiões a questões que surgem com a vida moderna.
- Falando como judeu, o judaísmo acredita que Deus nos deu a vida, mas a medicina dos homens está aí para servir à Sua vontade de preservar a vida. Então toda inovação médica é bem-vinda, do ponto de vista dos rabinos, porque representa mais um instrumento a serviço do Criador. O judaísmo não proíbe o aborto, mas põe condições à sua realização (principalmente quanto ao tempo de vida do feto) - enumera. - Já o casamento gay é outra coisa; tem a ver com escolhas individuais, não com o salvamento de vidas em perigo. No entanto, há mais de 15 anos venho ouvindo falar de sinagogas para gays (nos Estados Unidos), e Tel Aviv, a principal cidade de Israel, é quase uma Capital Mundial do movimento gay, apesar de os ortodoxos rangerem os dentes contra.

Para os especialistas, a Torá é essencial também na construção da identidade judaica, como lembra o psicanalista Paulo Blank em sua análise da tradução do primeiro volume do livro. “Amos Oz, o escritor israelense bem conhecido do público brasileiro, publicou em 2012 pela Yale University Press um ensaio intitulado “Jews and Words” (Judeus e Palavras). Apesar de seu ateísmo declarado, ele identifica na adesão milenar às narrativas hebraicas da Bíblia e ao seu estudo — que manteve viva a língua original — o verdadeiro traço identitário dos que hoje se definem como judeus.”

Uma identidade em um texto

A historiadora Mônica Selvatici tem opinião semelhante.

- Os textos que formam o Pentateuco (a Torá) foram escritos em épocas bem distintas - explica Mônica. - No entanto, a edição final desse conjunto unido ocorreu no século VI a.C., quando Nabucodonosor destrói Jerusalém e leva parte da elite judaica para a Babilônia. Neste contexto do exílio, surge a necessidade de se fixar um texto que conferisse essa ideia, essa unidade, uma tentativa de fixação de um povo por meio de um texto.

Mesmo para quem não é religioso, a Torá tem um papel importante na construção da identidade judaica.

- Os religiosos judeus leem a Bíblia Hebraica como ela “foi entregue no Sinai” e acreditam inteiramente que ali está a História do Povo Judeu - explica Bogomoletz. - Já os leigos têm, cada qual, sua opinião mais ou menos fundamentada. Posso dizer que, embora muitas coisas (principalmente as mais antigas, anteriores à fundação do primeiro reino hebreu) possam ser consideradas lendas pelos leigos, não há muita dúvida de que tais lendas se basearam, muitas vezes, em tradições orais bem anteriores.

Professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, Maria Clara Bingemer defende a ideia de que a Torá é importante para todas as religiões, não apenas a judaica:

- Sobretudo para as monoteístas. Na verdade, o judaísmo transformou o mapa religioso da Humanidade ao inaugurar a fé em um Deus único e pessoal - diz a teóloga. - Claro que isso foi um processo longo que teve etapas e fases até chegar ao monoteísmo tal como é vivido hoje pelo povo de Israel. E esse monoteísmo foi construído a partir da experiência do povo com a escuta de seu Deus, que foi registrada em uma escritura. Nessa escritura, a Lei de Deus (a Torá) tem uma importância fundamental por demonstrar que Ele está ligado à vida do fiel como indivíduo e à do povo como coletivo. A Torá significa esse registro escrito e permanente de um Deus pessoal que fala ao ser humano e lhe dá orientações de conduta para viver a verdadeira adoração e praticar a verdadeira justiça.

Fonte

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Secretário geral da CNBB diz que uniões entre pessoas do mesmo sexo precisam de amparo legal


Desde que assumiu a liderança da Igreja Católica, o Papa Francisco vem tocando no assunto com cautela, mas tem assinalado uma disposição da instituição em aceitar os fiéis gays. Em um movimento inédito de abertura, o Pontífice disse, logo após sua passagem pelo Brasil, em julho do ano passado, que os homossexuais não devem ser marginalizados: “Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?”. Em entrevista ao GLOBO, o bispo auxiliar de Brasília e secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner, reitera a afirmação do Papa: “pessoas do mesmo sexo que decidiram viver juntas necessitam de um amparo legal na sociedade”.

A declaração pode ser interpretada como uma mudança de tom da CNBB. Há cerca de um ano, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução determinando que os cartórios brasileiros deveriam celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a CNBB se posicionou contra a medida, que vinha a reboque de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011.

O GLOBO: Recentemente, o Papa Francisco disse: “Quem sou eu para julgar um homossexual que procura Deus?”. Hoje, a Igreja Católica está aberta a aceitar seus fiéis homossexuais?
Dom Leonardo Steiner: Pode-se dizer que o Papa faz eco ao que o Catecismo da Igreja Católica diz a respeito das pessoas homossexuais: “Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta”. Entende-se que acolher com respeito, compaixão e delicadeza significa caminhar e estar junto da pessoa homossexual e ajudá-la a compreender, aprofundar e orientar a sua condição de filho, filha de Deus.

É importante que a Igreja Católica não marginalize os homossexuais?

A acolhida e o caminhar juntos são necessários, para se refletir sobre o que condiz ou não com a realidade vivida pelas pessoas homossexuais, e o que, de fato, lhes é de direito, para o seu próprio bem e o da sociedade.

O Papa também quer estudar as uniões homossexuais para entender por que alguns países optaram por sua legalização. Isso representa o início de um diálogo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo?

É importante compreender as uniões de pessoas do mesmo sexo. Não é um interesse qualquer quando se trata de pessoas. É necessário dialogar sobre os direitos da vida comum entre pessoas do mesmo sexo, que decidiram viver juntas. Elas necessitam de um amparo legal na sociedade.

A CNBB, porém, se declarou contra a resolução do Conselho Nacional de Justiça que determinou que os cartórios devem celebrar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por quê?

Ao dar reconhecimento legal às uniões estáveis como casamento civil entre pessoas do mesmo sexo em nosso país, a Resolução do CNJ interpreta a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011. Certos direitos são garantidos às pessoas comprometidas por tais uniões, como já é previsto no caso da união civil. A dificuldade está em decidir que as uniões de pessoas do mesmo sexo sejam equiparadas ao casamento ou à família. A afirmação mais forte em relação à decisão do Conselho nacional de Justiça foi de que tal decisão não diz respeito ao Poder Judiciário, mas, sim, ao conjunto da sociedade brasileira, representada democraticamente pelo Congresso Nacional, a quem compete propor e votar leis, após aprofundado debate; o que não existiu.

A Igreja deve passar por mudanças para se adaptar aos novos tempos?

A Igreja muda sempre; está em mudança. Ela não é a mesma através dos tempos. Tendo como força iluminadora de sua ação o Evangelho, a Igreja busca respostas para o tempo presente. Assim como todas as pessoas, a Igreja sempre procura ler os sinais dos tempos, para ver o que se deve ou não mudar. A verdades da fé não mudam.

Fonte

Todos irmãos: somos um só corpo no amor de Cristo




Um breve comentário a propósito da nossa postagem recente sobre o trabalho de nosso amigo, o diácono Marcos Lord, e seu alter ego, Luandha Perón (leia nossa postagem original aqui, e uma nota de esclarecimento do próprio Marcos sobre o trabalho da Betel e a presença da ICM no Brasil, aqui):

Temos muito orgulho dos laços de parceria e inquebrantável amizade que nos unem a nossos irmãos da Comunidade Betel - ICM Rio. Somos integralmente adeptos da atitude ecumênica e do diálogo inter-religioso defendidos e vividos pela Igreja Católica desde pelo menos o Concílio Vaticano II, ocorrido o começo da década de 1960. Acreditamos firmemente, como prega a doutrina católica, que todos os cristãos, católicos ou reformados, somos todos irmãos em Cristo e filhos de uma única e mesma Santa Madre Igreja. Para quem tiver interesse em se aprofundar no tema, indicamos a leitura do texto abaixo e dos documentos conciliares ali citados.

Com relação ao trabalho de Marcos como drag queen, a repercussão que teve a notícia constitui, a nosso ver, uma maravilhosa oportunidade para ampliar o entendimento e celebração da diversidade. Para nós, antes de podermos falar em definições de sexo biológico (
homem/mulher), identidade de gênero (masculino/feminino) e orientação sexual (homossexual, heterossexual ou bissexual) e todas as diferentes maneiras como os seres humanos, na magnífica diversidade com que o Pai nos criou (reflexo exuberante da Sua própria riqueza), transitamos entre essas diferentes instâncias - antes de podermos falar dessas identidades (e para que nenhuma delas se transforme em rótulo, estigma nem prisão), há algo que nos une e dignifica a todos, que é o fato de sermos, todos, Filhos Amados do mesmo Pai e irmãos em Cristo.

A esse respeito, uma boa leitura a respeito é o artigo "Imagem de Deus e Diversidade", aqui.

Um fraterno e caloroso abraço a todos! :-)

Equipe Diversidade Católica
 
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O Concílio Vaticano II e o Ecumenismo

1. A forma como a Igreja católica vê hoje a tarefa ecuménica, considerando-a uma opção “irreversível” e “prioritária”, é impensável sem o Concílio. Por outro lado, o alcance do Vaticano II só se entende olhando para o peso que a consciência do problema ecuménico teve no decurso do processo conciliar.

A questão ecuménica esteve presente logo na intenção de convocar o Concílio (anunciada no último dia do Oitavário pela Unidade - 25.1.1959). Ainda antes do seu início, João XXIII criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos (15.6.1960), que veio a ter uma importância fulcral na forma como muitos temas foram refletidos. Finalmente, a 19.10.1962 (pouco depois do início da 1ª sessão), João XXIII elevou o Secretariado ao nível de Comissão conciliar, colocando-o em igualdade com as outras Comissões.

2. Do ponto de vista ecuménico, o Concílio representou um profundo salto qualitativo na consciência católica. Pode falar-se mesmo de uma “transformação epocal”, no sentido de que o Concílio marcou “o princípio do fim” de uma mentalidade de “Contra-Reforma”, que condicionou a identidade católica desde Trento até aos nossos dias, conduzindo-a a estreitezas confessionalistas limitadoras da sua catolicidade. Para essa mudança foi estimulante a presença de observadores não católicos.

3. Em termos de conteúdos, a importância ecuménica do Vaticano II encontrou expressão direta no Decreto Unitatis redintegratio (UR), votado a 19.11.1964, no mesmo dia da Lumen Gentium (LG). A coincidência de datas não é casual: o Decreto sobre o Ecumenismo tem de ser lido em estreita ligação com a Constituição sobre a Igreja. Todos os aspetos da renovação eclesiológica operada pelo Concílio são de relevância ecuménica: desde o novo sentido do mistério da Igreja à visão da Igreja como “Povo de Deus”; desde as bases de uma eclesiologia de comunhão à valorização, ainda que incipiente, da realidade das Igrejas Locais.

A abertura ecuménica na Lumen Gentium emerge sobretudo na perceção da comunhão que já existe entre todos os cristãos, comunhão essa assente em bens que edificam a Igreja: a Palavra de Deus escrita; a fé trinitária; a vida da graça; a fé, a esperança e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo, etc. (LG 15). Por isso, reconhece-se que a “Igreja de Cristo” não se identifica pura e simplesmente com a “Igreja católica”, mas “subsiste” nela. Ou seja: fora do espaço visível da Igreja católica há elementos de santificação e de verdade, há eclesialidade (LG 8).

4. Dois outros documentos são de grande significado ecuménico. Em várias das suas perspetivas – por exemplo, na conceção da Revelação ou na visão da relação entre Escritura e Tradição – a Constituição Dei Verbum coloca sob outros pressupostos o diálogo com os cristãos provenientes da Reforma. Não menos relevante é a Declaração Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa como um direito social e civil, individual e comunitário, a reconhecer pelo Estado em todas e quaisquer circunstâncias.

5. O Decreto sobre o Ecumenismo foi um dos documentos que requereu maior disponibilidade mental para a mudança (a sua aprovação exigiu grande capacidade de diálogo interno). Destacam-se algumas das suas afirmações: os cristãos não católicos são vistos como “irmãos no Senhor” (UR 3); há bens de salvação nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais (UR 3); os católicos também foram responsáveis pelas divisões (UR 3 e 7); o ecumenismo exige disponibilidade para uma renovação permanente (UR 3 e 6); no centro da tarefa da unidade está o ecumenismo espiritual (UR 7 e 8); há uma legítima pluralidade na expressão da verdade cristã (UR 4, 9); importa atender à “hierarquia das verdades” da fé (UR 11).

6. A receção ecuménica do Concílio tem sido marcada por avanços e recuos (o que não acontece só na Igreja católica). De qualquer forma, avançou-se mais em quase 50 anos do que nos últimos cinco séculos. Basta ler a Encíclica Ut Unum Sint (1995) enquanto receção criativa do Concílio, a Declaração católico-luterana sobre a Justificação (1999) ou o documento católico-anglicano sobre Maria (2005) para confirmar isso.

Naturalmente, persistem tarefas bem complexas a enfrentar. A busca da unidade é questionada por novos problemas e frequentemente contraditada na prática concreta. Um problema fulcral é que muitos membros da Igreja (também hierarcas e teólogos) ainda não interiorizaram o que a tarefa ecuménica exige em termos de transformação de mentalidade e de abertura à ação criativa do Espírito.

- José Eduardo Borges de Pinho, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

Fonte: Agência Ecclesia

quarta-feira, 21 de maio de 2014

A casa do Pai tem muitas moradas



O Diácono Marcos Lord, Líder Pastoral da Icm Betel Rio, foi notícia neste fim de semana no jornal O Globo, que fez uma matéria (leia aqui) sobre ele e seu alter ego, a drag queen (e também pastora) Luandha Perón. A reportagem ficou entre as mais lidas do site do jornal por pelo menos dois dias, trazendo, para nossa alegria, uma grande visibilidade ao lindo trabalho realizado pelos nossos amigos e parceiros da ICM Betel. (Leia nota de esclarecimento do próprio Marcos sobre o trabalho da Betel, aqui.)

Aproveitando a ocasião, divulgamos aqui um depoimento (público) que recolhemos no Facebook (aqui) e que nos emocionou profundamente. Porque Luandha tem razão: a casa de nosso Pai, onde Ele nos espera de braços e coração abertos, tem muitas moradas, e há lugar para todos - sem exceção nem condições.

NUNCA FUI TÃO PROFUNDAMENTE TOCADO POR JESUS como aconteceu hoje em minha vida.
Tudo começou quando decidi almoçar, no domingo, com os irmãos da Igreja Cristã Metropolitana da Baixada. Não queria participar do culto que antecederia, pois me recusava a participar de qualquer culto evangélico. Por este motivo aguardei que terminassem do lado de fora do local... Ao final, ouvi a música “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque de Hollanda, que me fez lembrar o musical “A Ópera do Malandro”, cuja canção fora feita para o Genival que tinha Geni como seu “nome de guerra”. Já neste momento lembrei-me da Susan Kidman, que muitos dos meus amigos conhecem muito bem... Ali soube que o Pastora Luandha Perón ministraria o culto de mais tarde. Achei incrível e queria muito estar neste momento, tirar fotos e postar pra qualquer irmão cristão de outras denominações o que é, de fato, ousadia, só para que estes pudessem comentar negativamente. Mesmo os que não comentam, costumam fazer seus julgamentos (como sempre) dentro de seus corações “puros”.
Cheguei cedo para o culto. Muitos membros sequer haviam chegados. Fiquei ansioso e torcendo para saber da repercussão que causaria após ser publicado na mídia. Fui me controlando até que ela surge para explicar a Palavra de Deus. Parecia que Deus falava comigo através dela. Senti a emoção tomando conta de mim aos poucos. Quando ouvi as seguintes palavras: “EU TE AMO! NA MINHA CASA TEM MUITAS MORADAS. VENHA MORAR COMIGO”, tive de me retirar e desabafar toda a amargura que estava em meu peito, no banheiro. No momento da ceia, já estava tão nervoso que quase derrubei o cálice da mão da pastora. Saí novamente e minha oração se resumiu em mais um choro doído. Ao final do culto, totalmente aquebrantado, decidi participar da singela homenagem feita aos amigos que partiram vítimas da AIDS.

Pensei comigo (o tempo todo reflito e questiono as coisas): “Maior que ser vitima da AIDS é ser vítima do preconceito”. E lembrei-me do amigo Luis Phellipe que partiu este ano... Então respirei fundo e entrei na fila para acender uma vela e ajudar a formar a cruz que se criava no chão. Ao chegar a minha vez, não consegui colocar a vela de pé. E ali, curvado em frente ao altar do Senhor, tive outra crise que não pude evitar. Minhas lágrimas saíram azedas como o vinagre que Jesus foi obrigado a tomar em seu sacrifício. Tirei os óculos e pus no chão, e tremia, num misto de tristeza, vergonha e alívio. Do meu coração parecia sair os pregos cravados por muitos evangélicos e homofóbicos que existem nas Igrejas... Neste momento pude ver as Mãos do Senhor me ajudando através de mãos cujas unhas eram pintadas e tinha um anel enorme em um de seus dedos. Deus estava ali, eu sei. Eu senti. Os cuspes e pedras que haviam me atirado estavam sendo limpos e retirados por uma Drag Queen. Então, sai dali para tentar entender o que estava acontecendo...

Sou como uma samaritana, inconformada por ser tão discriminada por esta sociedade machista, porém que fora acolhida nos braços de Jesus. Sou como o mendigo Lázaro, que retornou da morte por meio Jesus. Sou como a mulher impura, que apenas ao tocar nas vestes de Jesus, foi curada de seu mal. Sou como aquele que está à porta de muitas Igrejas, esperando um convite para entrar e permanecer como é...
Enfim, neste período pascal, Ele ressurgiu em minha vida, e por isso, sinto-me lavado e impulsionado a sair do meu comodismo pra fazer diferença neste mundo, com pessoas tão injustas e preconceituosas. Ele deseja que sejamos Sal que dá gosto à vida daqueles que não veem razão pra viver; quer que sejamos luz para os que vivem à marginalidade desta sociedade; quer também que caminhemos até Ele como somos e estivermos, entretanto sem máscaras. Porque estas, como maquiagem, já são usadas em muitas Igrejas.

Com carinho, para Marcos Lord.
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ATUALIZAÇÃO EM 22/05/14:

Não deixe de ler nosso comentário a respeito da repercussão desta postagem, aqui, e a nota de esclarecimento do próprio Marcos, aqui :-)

terça-feira, 20 de maio de 2014

O cardeal de Viena felicita a “drag queen” Conchita Wurst, vencedora do Festival Eurovision


O cardeal de Viena e presidente da Conferência Episcopal da Áustria, Christoph Schönborn, felicitou a “drag queen” barbada Conchita Wurst por sua recente vitória no Festival Eurovision da canção.

A reportagem é publicada por Noticiero Digital, 16-05-2014. A tradução é de André Langer, aqui reproduzida via IHU.

“Alegro-me muito por Thomas Neuwirth, que teve tanto sucesso com sua atuação como Conchita Wurst”, escreve o cardeal em sua coluna semanal publicada na sexta-feira, dia 16 de maio, pelo jornal gratuito Heute, um dos mais lidos da capital austríaca.

“No colorido jardim de Deus há uma variedade de cores. Nem todos os que nasceram como seres masculinos sentem-se como homens, e o mesmo acontece do lado feminino. Merecem como pessoas o mesmo respeito que todos nós”, acrescenta Schönborn.

A tolerância, o principal lema da atuação de Conchita Wurst [que costuma repetir "Seja a melhor versão de você mesmo, em vez de uma cópia mal feita de outra pessoa"], “é um tema real e grande”, explica o cardeal de Viena.

E ser tolerante significa “respeitar o outro, embora não se compartilhe suas convicções”, assegura o líder da Igreja austríaca.

“Rezo por ele (Thomas Neuwirth) para que sua vida seja abençoada”, conclui Schönborn, considerado um dos cardeais mais influentes da Europa.

Neuwirth, um cantor homossexual de 26 anos, causou furor em todo o mundo com a figura de Conchita Wurst ao vencer o recente Festival Eurovision, em Copenhague, com a música “Rise like a Phoenix”.

Em tempo: apesar de o cardeal se referir a Conchita pelo nome Thomas e no masculino, há que se reconhecer o quanto é significativo ele ter decidido livremente abordar o assunto em sua coluna semanal (em vez, por exemplo, de ter se limitado a comentar caso lhe tivessem perguntado), sobretudo quando se leva em conta a forte reação conservadora e moralista que se seguiu à vitória de Conchita, principalmente na Rússia, onde se organizou uma campanha em que homens postaram na internet fotos e vídeos raspando a barba por esta "não representar mais um símbolo de masculinidade". Schönborn já havia mostrado antes uma postura respeitosa e acolhedora em relação aos gays, "mesmo não compartilhando de suas convicções", como ele diz - tal como demonstrou no episódio em que confirmou a escolha de um jovem gay eleito para o conselho de sua paróquia (como contamos aqui), tendo depois convidado o rapaz e seu marido para almoçar (como comentamos aqui).

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O modelo das igrejas: Cristo ou Feliciano?



A propósito da aprovação, em 16 de outubro de 2013, do projeto de lei 1.411/11, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (então presidida pelo Deputado Pastor Marco Feliciano), vetando as igrejas de serem enquadradas em crimes de discriminação caso proibissem a presença de homossexuais em seus templos, a Revista Fórum publicou (em 22/10/13) uma entrevista com o historiador e cientista da religião Leandro Seawright Alonso, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador do grupo de trabalho sobre o papel das igrejas na ditadura civil-militar brasileira da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Como um bocadinho de reflexão crítica histórica e sociológica sempre é salutar, pareceu-nos oportuno reproduzir alguns trechos aqui, mas vale a pena ir à fonte (aqui) original para lê-la na íntegra.

"(...) Alonso acredita que o Brasil ser um Estado laico é um ideal, não é uma realidade. Autor do livro Entre Deus, Diabo e Dilma: messianismo evangélico nas Eleições 2010 (Fonte Editorial), o pesquisador observa ainda como a bancada evangélica busca promover uma instrumentalização do voto religioso, em ascensão no Brasil, e a demonização das esquerdas no País." Com a palavra, Leandro Seawright Alonso:

"Parto da premissa fundamental para quaisquer democracias que a humanidade tem triplo direito: tem direito ao conservadorismo, ao progressismo e à moderação apaziguadora. Na prática, significa dizer que os membros das igrejas protestantes históricas e pentecostais têm o direito de discordar de 'culturas sexuais' alternativas ou das práticas homossexuais propriamente ditas. E têm o direito de fazê-lo com base na Bíblia Sagrada (que na maior parte das vezes carece de melhor interpretação), e em outros pressupostos de fé, de doutrina, de tradição religiosa.
Sobre o projeto de lei 1.411/11, entretanto, considero-o tanto inconstitucional, quanto democraticamente vulgarizador e indiscernível do ponto de vista de um 'espaço aberto ao público'. Porque um templo é lugar de espaços compartilhados com aqueles que não são necessariamente membros da comunidade local. Caso contrário, as igrejas fundamentalistas poderiam funcionar de portas fechadas ao público e renegar os princípios da 'evangelização dos povos'. Sociologicamente, uma igreja requer diálogo com a comunidade ao redor, mas uma seita busca determinado isolamento imaginário em uma 'sociedade dos salvos' intocáveis e sem nenhum interesse de 'conversar' com os seus avessos democráticos naturais."



"Essas atitudes fortalecem convicções religiosas farisaicas de muitas pessoas que acorrem às igrejas evangélicas como atitude de resistência à modernização moral do país. Evidentemente, esse projeto de lei ratificou os princípios fundamentalistas, autoritários e preconceituosos de comunidades religiosas que sustentam certo arcaísmo transplantado de outros tempos para os nossos. Conheço muitas denominações protestantes históricas sérias e éticas (batista, metodista, presbiteriana, etc…), que, embora não concordem doutrinariamente com 'culturas sexuais' alternativas, respeitam profundamente – com raras exceções – os seres humanos com outras orientações sexuais."



"Em uma democracia, em um Estado laico, cabe-nos aceitar as diferenças e conviver em sociedade com as mais variadas formas de pensamentos, de filosofias, de confissões, de crenças, de descrenças. Reconheço que o Estado é pretensamente laico e as pessoas nem sempre são. Nem por isso elas devem legislar em nome do Estado de direito, utilizando-se das suas crenças e descrenças como procura fazer o Feliciano. Se isso acontece é porque os políticos semelhantes ao Feliciano representam milhares de brasileiros com as mesmas visões e intolerâncias. 'Pecamos' também na formação política, no diálogo e na redemocratização das ideias."



"Revista Fórum – O relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil com dados referentes a 2012, divulgado em junho deste ano pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), aponta que os casos de violações (que inclui violência física, psicológica e discriminação) contra homossexuais no Brasil cresceram 46,6% no ano passado. Propostas como essa e a própria atuação da Comissão de Direitos Humanos, com o pastor Marco Feliciano a frente, prejudicam o combate à violência contra a população LGBT?

Leandro Alonso – Prejudicam. (...) uma igreja cristã – que tem logicamente liberdade de crença, de discordância, de ortodoxia – precisa desenvolver uma pastoral eficaz para cuidar de gente, cuidar de seres humanos. Isso inclui o combate a qualquer forma de violência contra os seres humanos – independentemente de cor, credo, orientação sexual. Não existe escolha além do amor cristão. Não foi isso que o Cristo disse? 'E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo [...]' – Marcos 12: 29: 31. (...) uma parcela dos religiosos aderiu à 'apologia da inação', ou seja, à falta de atitude diante das atrocidades cometidas no Brasil contra grupos suscetíveis à violência, tais como as mulheres, os homossexuais, os moradores em situação de rua e outros grupos de seres humanos. Muitos têm medo de se posicionar. Porque existe sempre um risco de má interpretação por suas comunidades locais ou por suas denominações, mas não existe o que temer: cuidar de gente não é o mesmo que concordar com as suas opiniões diversas. Os atos do Feliciano afetaram os números que não são apenas números, mas pessoas que deveriam ser protegidas pelo Estado de direito."



"Grande parte das igrejas evangélicas precisa se “converter” ao cristianismo do Novo Testamento. Sinto-as historicamente distantes dos fundamentos teológicos da Reforma Protestante. Precisam resgatar a concepção do 'protestantismo' em sentido mais amplo que mera contestação moralista herdada do 'american way of life' (estilo americano de vida). (...) Segundo as histórias bíblicas fundantes, Jesus Cristo andou entre todos os seres humanos, tornou-se amigo deles e camarada dos opositores aos fariseus. Ele comeu com os pecadores. Sentou-se à mesa com as prostitutas e sofreu críticas severas dos religiosos. Acusaram-no de 'comilão e beberrão'. Tornou-se 'preso político', foi torturado duramente e recebeu pena de morte. O Cristo irritou os religiosos, pois 'descumpriu' a lei ao quebrar as interpretações ortodoxas, por exemplo, ao 'curar' em um sábado – dia sagrado dos judeus. Digamos que Cristo não era um bom modelo para judeus religiosos. Cabe uma pergunta teológica, aqui: Quem é o modelo das igrejas, Cristo ou Feliciano? Lembre-se que Feliciano fez que o projeto de lei 1.411/11 fosse aprovado e, com isso, algumas pessoas homossexuais serão proibidas de entrarem em templos religiosos oficiais (sem punição para os clérigos protestantes ou católicos). Paradoxalmente, o Cristo disse: 'Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve' – Mateus 18: 38 – 30. Na mesma linha discriminatória, nos Estados Unidos – de outros tempos – algumas igrejas evangélicas colocaram plaquinhas nas portas dos templos: 'aqui não entra nem cachorro e nem negros'. Espero que as igrejas brasileiras não adiram aos 'ditadores evangélicos' e que não reescrevam plaquinhas com palavras semelhantes referindo-se aos mais variados grupos sociais díspares. O pastor batista Martin Luther King Junior, negro corajoso, ativista, compreendeu bem o sentido da luta contra as diferentes 'ditaduras do pensamento' e às multiformes discriminações sociais."



"As chamadas 'igrejas inclusivas' (...) possuem um significado importante na vida dos seus frequentadores. Mas essas igrejas são os abrigos dos excluídos. Perceba que a junção de excluídos não os torna mais incluídos por conviverem entre iguais. Pelo contrário, significa que precisaram se organizar para superar as angústias das violências e dos temores religiosos sofridos pela não aceitação."



"Para usar uma expressão de Antônio Flávio Pierucci, engendra-se um 'efeito fariseu' na política brasileira da 'bancada evangélica' que prega aquilo que não vive. (...) Por forte discurso religioso, os fundamentalistas trabalharam com a manipulação do imaginário religioso contra as 'hostes espirituais da maldade' política (...)

Sobre ser o Brasil um Estado laico, reafirmo que se trata de um ideal e não ainda de uma realidade. Se uma criança evangélica, na aula de religião de sua escola, aprender sobre a mitologia do Candomblé, sobre a poesia do sufismo, e mesmo sobre o catolicismo popular, qual deve ser a reação de sua família? Lembro-me que quando os primeiros missionários protestantes chegaram ao Brasil, eles, como minorias, não poderiam se casar e mesmo sepultar os seus mortos porque a Igreja Católica dominava não apenas os documentos do Império, mas também os cemitérios (nos quais não se poderia sepultar acatólicos). O pressuposto, e o ideal, de Estado laico vieram com a proclamação da República, mas não se pode negar que a presença protestante no País foi fundamental para se repensar as variáveis religiosas no Brasil.

Finalizo com uma reflexão incitada por Pierucci ao abordar em um dos seus textos sociológicos a seguinte passagem bíblica:

'Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado' – Lc 18: 10 – 14."

domingo, 18 de maio de 2014

As mãos que o papa beija


Nosso amigo Teleny mais uma vez se supera com este comentário lúcido e ponderado a respeito das repercussões do encontro, no último 6 de maio, do Papa Francisco com o padre salesiano italiano Michele De Paolis, um dos fundadores da Comunidade Emmaus (1978) e, segundo algumas fontes, cofundador do grupo italiano AGEDO (associação de amigos, parentes e pais de pessoas homossexuais e transexuais, fundada em 1992 na cidade de Milão).

Ainda marcando o Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia, celebrado ontem, vamos reproduzir aqui apenas alguns trechos do Pe. De Paolis, citados por Teleny em seu post, mas vale muito a pena ler seu comentário na íntegra, aqui. Com a palavra, o Pe. De Paolis:
"Aqueles que desejam transformá-los em 'heterossexuais', por assim dizer, estarão forçando-os a agir contra a sua natureza e tornando-os psicopatas infelizes. Precisamos colocar em nossas cabeças que Deus, nosso Pai, quer que nós, suas crianças, sejamos felizes e frutifiquemos com os dons que Ele colocou em nossa natureza! (...) Vocês têm o direito de procurar um parceiro. E não se preocupem: onde existe o ágape, existe Deus. Vivam a sua vida com alegria. E com a nossa mãe Igreja precisamos ter paciência. A atitude da Igreja com os homossexuais mudará. Neste sentido, inúmeras iniciativas já foram empenhadas."

"Estou espantado com o fato de que muitos homens da Igreja (...) ignoram completamente o fenômeno da homossexualidade, que a ciência já esclareceu de modo inequívoco: a orientação homossexual não é escolhida livremente pela pessoa. O rapaz e a moça se descobrem dessa maneira: trata-se de uma abordagem profundamente enraizada na personalidade, que constitui um aspecto essencial da própria identidade: não é uma doença, não é uma perversão. O rapaz ou a moça homossexual podem dizer a Deus: 'Você nos fez assim!'.

Algumas pessoas de Igreja dizem: 'Tudo bem ser homossexual, mas não deve ter relações sexuais, não podem amar uns aos outros!' Isso é a máxima hipocrisia. É como dizer a uma planta que cresce: 'Você não deve florescer, não deve dar frutos!'. Isso sim é contra a natureza.

Confesso a vocês que no começo eu também tinha meus preconceitos. Então, estudei e consegui. Sucessivamente tentei entrar na lógica do Evangelho; eu queria olhar para as coisas da parte de Deus. Entendo que o Pai não exclui do seu amor nenhum de seus filhos e não julga a pessoa com base em seus impulsos sexuais, que são atribuições da natureza e não de uma escolha voluntária."



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