Mostrando postagens com marcador estudos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador estudos. Mostrar todas as postagens

sábado, 17 de maio de 2014

17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia (2)


Acaba de sair um número temático da Revista Vida Pastoral sobre homoafetividade e fé cristã. Parabéns à Editora Paulus e ao padre Jakson Alencar pela coragem de abordar este assunto. A revista é de distribuição gratuita nas livrarias Paulus e Paulinas, basta pedir no balcão - e, a partir do segundo exemplar, paga-se R$ 1,00 por cada um. Futuramente, será disponibilizada também on-line.

Como bem assinalou Miguel Ferraz, citado pelos nossos amigos da página Católicos LGBT's:
"Novos tempos! Novos tempos! A consagrada revista Vida Pastoral faz sua capa e seus artigos principais sobre a fé cristã e a sexualidade homoafetiva! Tempos de coragem nos dado por Francisco! Pode-se dizer o que se vai na mente e coração!"

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Perguntas e respostas sobre Jesus e os homossexuais


Um livro que parece ser uma longa carta ao Papa Francisco sobre a questão homossexual depois da famosa frase:"Quem sou eu para julgar um gay?". A pergunta da qual se parte: o que é a violência para Jesus? "Violência, para Jesus, é imputar aos diferentes, aos rejeitados e aos oprimidos que eles são constitutivamente negativos, colocando no coração da sua autoconsciência a culpa e o desprezo por serem o que são, mesmo não tendo feito mal a ninguém".

A resenha é da filósofa e jornalista italiana Delia Vaccarello, vencedora do prêmio For Diversity Against Discrimination, da União Europeia. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 07-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto (obrigado pela dica!), aqui reproduzido via IHU.

Se a violência é induzir os "diferentes" a punirem a si mesmos com as próprias mãos, assimilando os ditames de uma doutrina segundo a qual a condição homossexual é uma tendência de "desordem objetiva", torna-se evidente a contradição entre o anúncio de salvação de Jesus e a condenação do amor gay e lésbico por parte da doutrina oficial católica.

Essa é a tese na base do livro de Paolo Rigliano, a partir do dia 12 de maio nas livrarias, intitulado Gesù e le persone omosessuali (ed. La meridiana), que abre à esperança. Com a carta-livro, Rigliano (autor, dentre outros, de Amori senza scandalo, Ed. Feltrinelli; Curare i gay?, Ed. Cortina) reúne entrevistas realizadas ao longo de quatro anos com personalidades de destaque entre as quais aparecem Alberto Maggi, Vito Mancuso, Franco Barbero, Elizabeth Green.

A questão dirigida a todos é: "como seguir Jesus?". E ela é formulada a partir deste princípio: "Para Simone Weil, violência é impor aos outros – os oprimidos – que sonhem e realizem o sonho do dominador, egocêntrico e exclusivo. A mensagem de Jesus nega na raiz essa violência, toda violência: compromete a criar as condições interiores e exteriores para que floresça o desejo e o sonho de cada um – dos diferentes e dos rejeitados em primeiro lugar".

A pergunta, então, torna-se uma vara divinatória que busca uma solução capaz de promover uma "relacionalidade nova" reconhecida pela doutrina: "Eu perguntei aos meus interlocutores como seguir Jesus e, portanto, dialoguei com eles sobre por que e como realizar uma acolhida integral da vida e do amor das pessoas lésbicas e gays: como fundamentá-lo e anunciá-lo, como antecipá-lo e suscitá-lo".

Das respostas de Elizabeth Green, vem à tona que Jesus não fala de homossexualidade porque isso não lhe interessa, porque o Evangelho "nos liberta da necessidade de criar categorias como 'homossexuais', 'mulheres', 'imigrantes', das quais eu tenho que me separar e que eu tenho que excluir para conseguir ser eu mesmo ou eu mesma".

Para Green, a "grandeza de Jesus está no fato de que ele se faz próximo de todos e de todas, vai ao encontro de todos e de todas", enquanto a oposição heterossexualidade/homossexualidade enrijece, multiplica as exclusões, engessa a sexualidade.

Alberto Maggi convida a buscar novas respostas: "A grande força que Jesus deu ao Evangelho é quando ele diz: 'O Espírito os acompanhará nas coisas futuras'. Ou seja, a comunidade tem a capacidade, graças ao Espírito Santo, de dar novas respostas às novas necessidades. Não se pode dar respostas velhas para as novas necessidades, portanto não se pode buscar nas Escrituras respostas a essa problemática".

Maggi se mostra confiante nas capacidades da Igreja de encontrar caminhos para evitar a exclusão, justamente porque os fechamentos sobre a sexualidade são e foram muito fortes, a ponto de serem paradoxais, e a reflexão está em andamento: "Ora, o pecado do divórcio é pior do que o de homicídio - diz o padre de Marche –, porque, se você matar a sua esposa e depois se arrepender, você retorna novamente à comunhão da Igreja. Mas se você se divorciar, não há mais perdão para você. É possível que seja mais grave se divorciar de um cônjuge do que matá-lo? Portanto, há comissões estudando isso, também o divórcio e a condição homossexual".

A propósito de "lei natural", com base na qual a homossexualidade é definida como "contra a natureza", Vito Mancuso fornece uma leitura alta disso, alinhada com os Evangelhos: "A lei que vivifica a natureza é a lei da relação. Tudo o que favorece a relação está em conformidade com a lei natural; tudo o que impede a relação é contrário à lei natural". E o Evangelho é "relação que busca alimentar os outros a ponto de se fazer alimento, relação que se esvazia para saciar os outros". Portanto, argumenta Mancuso, o Evangelho diz "que esses afetos que você desenvolve em nível físico devem poder ser vividos sob a insígnia da relação total harmoniosa".

Com uma prosa discursiva, o livro, através dos diálogos, mostra como o livre pensamento está presente dentro da Igreja. Ele oferece aos fiéis homossexuais uma nova forma de ler a própria experiência, colocando em primeiro lugar não a lei que exclui, mas sim a relação e o amor de Deus. Ele se inscreve no rastro da interrogação traçada pelo Papa Francisco.

Fonte

terça-feira, 12 de junho de 2012

A graça da dúvida de si

Foto: Takeshi Suga


O papa e o Vaticano estão cada vez mais defendendo a ideia de uma Igreja remanescente – uma Igreja pequena e pura que se vê muitas vezes em oposição ao mundo ao seu redor. Parece como se as autoridades da Igreja não estão nada preocupadas com aqueles que deixam a Igreja. Qualquer outra organização tomaria medidas fortes para remediar a perda de um terço de seus membros.

A opinião é do teólogo norte-americano Charles E. Curran, professor da cátedra Elizabeth Scurlock de Ética Cristã daSouthern Methodist University. O artigo foi publicado no sítio do jornal National Catholic Reporter, 06-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


A condenação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé ao premiado livro da Ir. Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, Just Love: A Framework for Christian Sexual Ethics, não é nenhuma surpresa. A Congregação insiste que o livro "não pode ser usado como uma expressão válida da doutrina católica" porque discorda do magistério hierárquico sobre masturbação, atos homossexuais, uniões homossexuais, indissolubilidade do casamento, divórcio e segundo casamento.

Há uma longa lista de teólogos morais católicos cujas obras sobre ética sexual, em um veio semelhante, foram condenados ou censurados pela Congregação para a Doutrina da Fé ao longo dos últimos 40 anos. O Papa João Paulo II escreveu a sua encíclica Veritatis splendor, em 1993, por causa da discrepância entre o ensino oficial da Igreja sobre questões morais e o ensino de alguns teólogos morais, até mesmo nos seminários. Segundo o papa, a Igreja está "enfrentando o que certamente é uma crise genuína, que não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do patrimônio moral".

Todos têm que reconhecer que há uma crise real como essa na Igreja hoje. Mas a crise não é apenas uma crise na teologia moral: ela envolve uma crise na Igreja como um todo e na nossa própria compreensão da Igreja Católica. De acordo com o respeitado Pew Forum on Religion & Public Life, uma em cada três pessoas que foram educadas como católicas romanas nos Estados Unidos já não é mais católica. A segunda maior "denominação" nos EUA é de ex-católicos. Uma em cada 10 pessoas nos EUA é ex-católica. Todos nós temos experiência pessoal daqueles que deixaram a Igreja por causa do ensino sobre questões sexuais. Questões relacionadas, incluindo o papel das mulheres na Igreja, o celibato para o clero e o fracasso das lideranças eclesiais em lidar com o escândalo dos abusos infantis e o seu encobrimento, também foram reconhecidas como razões pelas quais muitas pessoas abandonaram a Igreja Católica.

A reação de papas e bispos até teólogos morais revisionistas é apenas uma parte de uma realidade crescente em nossa Igreja hoje. Há uma ladainha de outras ações similares tomadas pelo Vaticano – as restrições impostas à Leadership Conference of Women Religious (LCWR); o controle sobre as atividades da Caritas Internationalis, a agência da Igreja dedicada à ajuda aos pobres; a reação muito negativa das associações de padres na Áustria e na Irlanda; a remoção de Dom William Morris, bispo de Toowoomba, na Austrália, por ter meramente incentivado a discussão sobre o celibato e o papel das mulheres; a nomeação apenas de clérigos muito seguros como bispos etc. E a lista continua.

O que está acontecendo aqui é que o papa e o Vaticano estão cada vez mais defendendo a ideia de uma Igreja remanescente – uma Igreja pequena e pura que se vê muitas vezes em oposição ao mundo ao seu redor. Parece como se as autoridades da Igreja não estão nada preocupadas com aqueles que deixam a Igreja. Qualquer outra organização tomaria medidas fortes para remediar a perda de um terço de seus membros. Mas a Igreja remanescente se vê como uma Igreja forte de fiéis verdadeiros e, portanto, não está preocupada com essas partidas.

Esse conceito de Igreja opõe-se à melhor compreensão da Igreja Católica. A palavra "católico", em sua própria definição, significa grande e universal. A Igreja abraça tanto santos e pecadores, ricos e pobres, homens e mulheres, e conservadores e liberais políticos. Sim, há limites para o que significa ser católico, mas a compreensão de "católico" com "c" minúsculo insiste na necessidade de ser o mais inclusivo possível. Muitos de nós ficaram profundamente impressionados com os gestos do Papa Bento XVI no início do seu papado, ao ir ao encontro em diálogo com Hans Küng e de Dom Bernard Fellay, chefe do grupo originalmente fundado pelo arcebispo Marcel Lefebvre. Infelizmente, hoje, o diálogo ainda está em andamento com Dom Fellay, mas não com Hans Küng.

O problema básico de tudo isso é a compreensão e o papel da autoridade na Igreja Católica. Essa questão é muito vasta e complicada para ser discutida aqui com detalhes, mas três pontos deveriam orientar qualquer consideração sobre a autoridade na Igreja.

Primeiro, a principal autoridade na Igreja é o Espírito Santo, que fala de diversas maneiras; e todos os outros na Igreja, incluindo os detentores de cargos, devem se esforçar para ouvir e discernir o chamado do Espírito.

Segundo, a Igreja precisa dar corpo à compreensão de Tomás de Aquino de que algo é mandado e ordenado porque é bom, e não o contrário. A autoridade não faz algo certo ou errado. A autoridade deve se conformar ao que é verdadeiro e bom.

Terceiro, o perigo para a autoridade na Igreja é alegar uma certeza muito grande para o seu ensino e propostas.Margaret Farley desenvolveu esse ponto em um ensaio muito significativo, Ethics, Ecclesiology, and the Grace of Self-Doubt [Ética, Eclesiologia, e a Graça da Dúvida de Si]. A pressão por certeza fecha muito facilmente a mente e às vezes também o coração. A graça da dúvida de si permite a humildade epistêmica, condição básica para o discernimento moral comunitário e individual.

domingo, 6 de maio de 2012

"Sexualidade e Condição Homossexual na Moral Cristã"


É com grande alegria que publicamos aqui a resenha elaborada para nós pelo leitor Jônatas de Davi, após uma rica troca de ideias nos comentários de um post aqui no blog.

Interessante notar que o livro aqui apresentado por Jônatas foi cassado na Argentina, enquanto no Brasil não houve nada. Essa diferença de tratamento pode ter sido motivada, em primeiro lugar, pela capa escolhida para a edição de lá - no Brasil, é Adão e Eva nus; na Argentina, era um casal vestido, mas gay - o que pode ter chamado mais a atenção. Além disso, a censura lá ocorreu logo depois da proibição de um outro livro (este aqui), e pode ter sido influenciada pela necessidade política de apaziguar os ânimos conservadores mais exaltados por lá.

De todo modo, é um livro riquíssimo, que merece ser lido e discutido - jamais silenciado.


O livro Sexualidade e Condição Homossexual na Moral Cristã está na terceira edição brasileira publicada pela Editora Santuário. Trata-se de uma obra escrita por um influente catedrático de Teologia Moral da Universidade Pontifícia Comillas (Madrid) que revela por meio de repasses bibliográficos as interferências culturais nas revelações bíblicas, como a influência estoica, doutrina patrística, pensamento agostiniano, neoplatonismo, movimentos extremistas e teologia escolástica. Esses pontos de partida resultaram numa compreensão antropológica pessimista, construções míticas, travas tabuísticas e/ou tabus sexuais de uma moral ascética e abstencionista.

Preciso no método científico, o acadêmico é, por consequência, rigoroso ao evitar o “pecado” do anacronismo, embora não se detenha sobre todos os recortes bíblicos que denotem alguma brecha para interpretações fundamentalistas. Ainda assim, ao fazer uma abordagem sistêmica sobre a moral sexual, o teólogo expõe posições críticas de outros teólogos que apontam a necessidade de renová-la de forma que o modelo moral para o comportamento afetivo-sexual possa ser efetivamente inclusivo sem, contudo, comprometer a vivência segundo o Evangelho. A compreensão sobre essa renovação não deixa margens para a consagração do hedonismo, justificativa usada por aqueles que são contrários à afirmação da totalidade da pessoa, pois a união permanente com outro ser humano impede a clausura no próprio eu, favorece a capacidade de amor e a oblatividade do espírito, assim como o desnarcizamento das alegrias da carne. Os repasses incluem a conclusão de que a maturidade pessoal e a personalidade sadia devem estar integradas a uma sociedade aberta e pluralista.

Marciano Vidal acompanha a evolução teológica-moral da doutrina católica oficial relativa à ação pastoral e compreensão da homossexualidade. As reformulações deixam latentes uma notável crise de credibilidade de publicações precedentes face ao avanço metodológico acerca da compreensão da condição sexual que considera, entre outras, a concepção holística da complementariedade humana, o diálogo, os dados antropológicos, as urgências pastorais e dados da psicologia. Assim, face à cosmovisão cristã sobre a dignidade de toda pessoa e da indissolubilidade do selo pessoal, vários teólogos propõem um novo alcance dos afetos relacional e agápico, a fim de ampliar a fecundidade no Senhor e a vivência eclesial. Não deixa de ser menos importante que bispos americanos considerem que a extensão de direitos civis aos homossexuais contempla a dignidade intrínseca de toda pessoa.

A linguagem acadêmica utilizada com sensibilidade é uma particular surpresa deste livro atualizado e bem fundamentado.

- Jônatas de Davi, leitor do blog

sábado, 24 de setembro de 2011

Quem tem medo de Simone de Beauvoir?



Tá aí, uma mulher que gosto muito e que sem dúvida falaria melhor sobre as mulhes na Onu que a Dilma, rs.

Engraçado, em tempos em que nós LGBT's temos um grito contra hegemônico, é legal olhar como eles foram dados por outras pessoas em outras épocas. Já que propomos liberdade de consciencia, responsabilidade e independencia em meio a nossas angustias, sofrimentos, medos e frustrações.

Vale a Leitura:

Recentemente, tenho lido e ouvido muitos julgamentos, de teor e tom questionáveis, a Simone de Beauvoir. E essas acusações suscitam uma pergunta: por que sua figura e seu pensamento incomodam tanto? Sua bissexualidade, vários e várias amantes, a recusa do casamento e da maternidade, a liberdade e independência em um mundo cada vez mais conservador poderiam ser uma resposta. Mas a considero simplista e insatisfatória.

Simone de Beauvoir nasceu há 113 anos. Suas obras mais influentes foram escritas entre os anos 1940 e meados dos anos 1970. O Segundo Sexo, seu livro mais importante, foi publicado em 1949. Lá se vão mais de 60 anos. Mas tantas décadas parecem não ter sido suficientes para que sua obra fosse compreendida e criticada com propriedade. Ainda hoje, muitas pessoas se recusam a ler Simone de Beauvoir porque ela era “uma libertina”. E repetem-se afirmações forjadas para atribuir a ela tudo aquilo contra o que ela lutou no plano das ideias e no plano da ação. Acusam-na de submissão, de dependência, de pregar o feminismo para as outras mulheres e não praticá-lo.

Essa resistência a Simone de Beauvoir esbarra em questões mais profundas sobre nossa sociedade: a condição da mulher, especificamente a mulher intelectual; a relação entre a experiência vivida e a escrita da memória com a subjetividade; as expectativas que recaem sobre os intelectuais. Tentarei abordar brevemente, e de forma não sistemática, alguns desses temas tendo como referência a figura de Simone de Beauvoir.

Experiência vivida, matéria-prima do pensamento

A grande maioria dos julgamentos feitos a Simone de Beauvoir, acredito, baseiam-se em erro primário para qualquer reflexão: desconsiderar o fato banal de que intelectuais vivem. Ou seja, toda vida, inclusive a de uma pensadora, é um emaranhado complexo de descobertas, conquistas, falhas, inseguranças, afirmações, sofrimentos, retrocessos, sucessos. E é em meio a essa complexidade que seu pensamento e sua ação no mundo se desenvolvem, obviamente transformando-se. É, portanto, pouco racional deixar de considerar que, aos 20 anos, aquela pessoa, como qualquer um de nós, ainda não tem o terreno de todo seu pensamento arado e cultivado. Como é pouco racional ignorar que esse trabalho exige esforço.

Assim, por exemplo, há quem queira invalidar o pensamento libertário e antissexista de Simone de Beauvoir baseado em sua relação com Sartre. Afirma-se que ela se submeteu a Sartre durante toda a vida e aceitou um modelo de relação que ele impôs. Isso é incorrer no erro mencionado. Então, vamos a alguns fatos sobre essa relação.

Simone de Beauvoir e Sartre tinham 20 e poucos anos quando firmaram um pacto que previa um relacionamento aberto, cada um dos dois podendo envolver-se com outras pessoas. Quem propôs este pacto foi Sartre. E Simone de Beauvoir o aceitou. Logo depois, eles foram nomeados para lecionar em cidades diferentes da França. O que unia a ambos: o relacionamento sexual, amoroso, e uma afinidade intelectual que provavelmente nenhum de seus críticos ou seguidores jamais experimentou com alguém. A convivência entre ambos era, ao mesmo tempo, afetiva e instigante. Desejavam estar próximos. Sartre propôs casamento a Simone. Ela recusou. (Muito antes de conhecê-lo, já estava decidida a não se casar e não se submeteu ao desejo dele ou à paixão.)

Simone de Beauvoir sempre desejou ser livre, algo que a vida em uma família burguesa empobrecida de Paris – origem que ela jamais negou – nunca lhe permitira. Liberdade de pensamento, que exercia em suas aulas a alunas do ensino médio (ela só deu aulas em universidades durante a guerra). Liberdade sexual, envolvendo-se em alguns relacionamentos pouco mais do que casuais com homens e mulheres. Liberdade intelectual, trabalhando em seus primeiros livros, que não foram finalizados.

Sartre, no início, chocou-se com a bissexualidade de Simone. Depois, se apaixonou por uma de suas amantes, Olga, e propôs, com veemência e insistência, um novo modelo de relacionamento, que eles chamavam “o trio”. Os três aceitaram. Foram jogados em uma situação em que precisaram rever seus preconceitos e moralismos burgueses, em um turbilhão emocional repleto de sofrimento, conflito, meias-verdades, raiva, inveja. O “trio”, ela relatou tanto em A Força da Idade e em A Convidada, foi um fracasso. Todos sofreram mais do que se divertiram, todos os limites de suas liberdades foram testados, em geral ferindo um dos três. Para dizer o mínimo: Sartre era rejeitado por Olga, que provocava ciúmes em Simone, que era invejada por Sartre por ser a preferida da garota. O terceiro elemento na relação, percebia Simone, instaurava inexoravelmente uma barreira à liberdade e ao desejo de um dos integrantes do “trio”. E todos sofriam, ora por si mesmos, ora por ver pessoas queridas sofrendo. A partir dali, Simone não integraria novos trios, negando-se a manter um arranjo. Os triângulos, tal qual no início do pacto, voltaram a existir, mas as relações a três, não.

Há quem entenda o sofrimento de Simone como submissão. Considero uma percepção muito estreita do que é uma experiência de vida. O sofrimento faz parte das relações humanas. Simone nunca se esquivou dessa angústia. Afinal, primeiro como uma amante da liberdade e, depois, como existencialista, ela sabia que a angústia é inevitável. E também sabia que há uma responsabilidade a ser assumida em relação a si mesmo e aos outros.

A única vez que Sartre propôs casamento a outra mulher, sua amante norte-americana, Simone se retirou do relacionamento. Não queria submeter-se novamente aos conflitos e insucessos do “trio”. Ele desistiu do casamento. O amor necessário entre ambos sempre superou os amores contingentes. E isso não é resultado de uma magia romântica e cheia de coraçõezinhos que surgia no ar todas as vezes que um dos dois estava efetivamente envolvido em outras relações. Foram escolhas conscientes e livres de ambos.

Dizem também que Simone não conheceu o prazer sexual com Sartre e que logo ele se desinteressou sexualmente dela. Duas verdades. O que não é verdade é assumir que ela se submeteu a isso como uma vítima. Simone teve vários e várias amantes e encontrou o prazer sexual em várias relações. Quando o desejo sexual de Sartre deixou de existir, ela determinou que não precisariam mais relacionar-se por mera formalidade. Com o escritor Nelson Algren, foi confrontada com o amor romantizado e “tradicional” para sua época. Ele a pediu em casamento. Ela recusou. Muitos a condenam. Além de não estar disposta ao casamento e à maternidade – ele queria filhos –, Simone sabia que sua ligação, ainda que fosse apenas intelectual com Sartre, machucava Algren. Novamente, ela era confrontada com a fórmula do “trio”, em outro contexto. Melhor que cada um abraçasse sua liberdade.

Simone de Beauvoir escreveu milhares de páginas em romances, ensaios, memórias abordando esses e outros fatos. Considerada uma das maiores memorialistas do século 20, produziu quatro volumes bem recheados, nenhum deles com menos de 300 páginas. Somente quem ignora totalmente essa produção, ou quem tenha lido sem nada compreender, pode dizer isso.

Há poucos temas que ela não aborde em detalhes em suas memórias, um deles é o processo movido contra ela pelos pais de uma aluna com a qual se envolveu sexual e afetivamente. Nesses e em outros casos, ela opta por não entrar em detalhes pelo simples fato de que as pessoas envolvidas estavam vivas no momento da publicação dos livros, o que poderia criar mais escândalos.

Em cada página das memórias, a honestidade de Simone é invejável. Ela reconhece, por exemplo, as críticas mal-informadas que ela (e Sartre) fizeram a Freud, os enganos que cometeram em algumas avaliações a respeito de personagens e colegas durante a guerra, o fato de que, durante muito tempo, ela e Sartre, embora lutando contra os ideais burgueses, se submeteram totalmente e sem sequer perceber ao estilo de vida que abominavam.

Simone de Beauvoir acreditava que a matéria-prima do intelectual, além da capacidade de compreender e criticar as teorias, é a própria experiência. É a partir daí, pensava, que podemos construir nossa relação com o mundo, talhar nossa subjetividade e, assim, produzir uma obra relevante intelectualmente, capaz de abordar assuntos e aspectos ainda inéditos. Simone não se negava a experimentar nada novo ou diferente. Pagava um preço caro por isso: nos anos 1930, em que uma mulher desacompanhada nem sempre era aceita nem mesmo em um café, ela optava por estar só. A solidão era a chave de sua abertura para o mundo. Nos anos 1940 e 1950, era cobrada por não ter "agarrado" o amor de Algren.

Uma intelectual no tempo

Outra crítica comum a Simone de Beauvoir é de que ela era feminista em seus livros, mas não era feminista em seu relacionamento com Sartre. Dizem que ela pregava o feminismo para outras mulheres e não o praticava.

Em suas memórias, Simone de Beauvoir afirma que jamais foi feminista e que O Segundo Sexo, publicado em 1949, nunca foi concebido como um livro feminista. Por isso, quem cobra dela uma postura feminista em todos os episódios de sua vida age de má-fé, tentando invalidar seu pensamento e suas ações de forma falaciosa. Simone de Beauvoir só se alinha ao feminismo nos anos 1970, na última década de sua vida.

Portanto, dizer que ela pregava o feminismo para as outras mulheres e não o praticava é, no mínimo, sucumbir a um banal anacronismo. Não, ela não podia viver a juventude de acordo com algo que ela só reconheceu e valorizou na velhice. Sim, os intelectuais mudam e se transformam ao longo do tempo, e isso não invalida seu pensamento. Quando passou a participar de ações do movimento feminista, ela mesma disse que isso demonstrava que suas ideias haviam se enriquecido e aprimorado.

A mulher e as divindades intelectuais

As críticas inadequadas a Simone de Beauvoir, na minha opinião, mostram como ainda é difícil – para pessoas que cultivam o pensamento pouco aberto a ideias inovadoras, diferentes e sempre em transformação – aceitar o papel de uma mulher intelectual nos dias de hoje. A mulher é sempre o Outro, lembra Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, o diferente. E o lugar do intelectual, nós sabemos, é o lugar do um, do poder, da dominação. Aceitar que uma mulher ocupe esse lugar implica superar um preconceito. A resistência ao reconhecimento do papel intelectual de uma pensadora é a expressão desse preconceito: só posso atribui-la ao sexismo que é, para dizer o mínimo, uma fraqueza intelectual em qualquer pessoa.

Entretanto, o julgamento que ataca Simone de Beauvoir não é apenas aquele forjado no sexismo. Há um outro substrato nas acusações levianas que enumerei aqui e em outras que não há espaço para detalhar. Esse substrato é a necessidade de fazer de intelectuais verdadeiros deuses, modelos de comportamento, pessoas infalíveis que têm soluções infalíveis e que não podem ser questionadas. Pessoas que sentem essa necessidade não estão em busca de ideias e propostas, muito menos de reflexão. Sua expectativa é de que os intelectuais lhes ofereçam fórmulas prontas. Se esses deuses falham – e os verdadeiros intelectuais sempre falham porque não são os donos da verdade nem das respostas certas, apenas pessoas honestamente dispostas a fazer perguntas – são invalidados, considerados ruins, incompetentes.

Há aí uma manobra ideológica e outra, inconsciente, por trás disso. Todas as vezes que acusamos veementemente alguém de ser aquilo que é indesejável, ruim, incompetente, negativo, criamos uma imagem positiva de nós mesmos. Somos exatamente o oposto daquilo que acusamos o Outro. Mas Freud já nos ensinou que, em geral, aquilo de que acusamos o Outro é aquilo que não suportamos constatar em nós mesmos.

Simone e Sartre construíram um sistema de pensamento que enfatiza: todos somos livres e a liberdade não traz soluções infalíveis, apenas nos confronta a cada segundo com a angústia de fazer escolhas e com o sofrimento de nos responsabilizarmos por elas. Esse é um pensamento radical que implica, a quem adotá-lo honestamente, viver na insegurança, na incerteza e em constante contato com sua própria falibilidade e a ambiguidade.

Acredito que essa é a principal causa a todas as críticas levianas feitas a Simone de Beauvoir (e a Sartre). Quando as pessoas se referem a ela (ou a ele) em termos como “rever o passado”, “desconstruir mitos”, “derrubar messias”, na verdade estão fazendo uso de termos ideológicos. Buscam desqualificar o pensamento libertário, radical, transformador que, por definição, se constrói com base na exploração de visões de mundo, atitudes e comportamentos fora dos padrões e na diversidade de ideias e de ação. Nesse sentido, criticar Simone de Beauvoir (e Sartre) é muito mais construir empecilhos para que os intelectuais de hoje se inspirem ou busquem referências em suas ideias e possam pensar algo novo e tão transformador como eles pensaram em suas épocas.

Quem resiste a pensadores como Simone de Beauvoir e Sartre teme que alguém possa continuar a trilhar os caminhos que eles abriram. Temem palavras como liberdade, ambiguidade, imperfeição, descoberta, independência e, principalmente, responsabilidade e consciência. Temem o debate de ideias. Buscam fórmulas que sustentem o status quo, o mainstream ou, para dizer de forma banal, "as coisas como elas estão". Talvez possam encontrar algo assim em alguma religião. Jamais encontrarão isso em pensadores livres e, felizmente, imperfeitos.


Fonte:
O Pensador Selvagem

Os grifos são meus mesmo, rs!

Rodolfo Viana

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Conversa Franca sobre Sodoma






Há muitos séculos se tem atribuído a destruição de Sodoma e Gomorra à homossexualidade. Porém, um estudo atento do texto bíblico tem muito a nos revelar sobre as reais transgressões dessas duas cidades antigas. Nesse caso, a regra de ouro da hermenêutica (a Bíblia explica a própria Bíblia) será nossa principal ferramenta de análise e interpretação. Atualmente, uma lista de respeitados teólogos defendem que o pecado de Sodoma nada tem a ver com homossexualidade, mas com falta de hospitalidade, xenofobia, orgulho, crueldade e egoísmo. Ao longo do artigo, você poderá conferir alguns nomes.








Walter Wink
Professor do Seminário Teológico,
Doutor em Teologia (Th.D)

do Union Theological Seminary

de Nova York;




Quanto ao termo, é importante ressaltar que o uso da palavra sodomia como referência a atos genitoanais data da Idade Média e foi um conceito consagrado pelo teólogo Tomás de Aquino.

Vejamos o que nos diz o mais conhecido e utilizado relato sobre Sodoma e Gomorra. As partes em negrito merecem destaque:

1) Ao anoitecer, vieram os dois anjos a Sodoma, a cuja entrada estava Ló assentado; este, quando os viu, levantou-se e, indo ao seu encontro, prostrou-se, rosto em terra. 20) E disse-lhes: Eis agora, meus senhores, vinde para a casa do vosso servo, pernoitai nela e lavai os pés; levantar-vos-eis de madrugada e seguireis o vosso caminho. Responderam eles: Não; passaremos a noite na praça. 3) Instou-lhes muito, e foram e entraram em casa dele; deu-lhes um banquete, fez assar uns pães asmos, e eles comeram. 4) Mas, antes que se deitassem, os homens daquela cidade cercaram a casa, os homens de Sodoma, tanto os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados; 5) e chamaram por Ló e lhe disseram: Onde estão os homens que, à noitinha, entraram em tua casa? Traze-os fora a nós para que abusemos deles. 6). Saiu-lhes, então, Ló à porta, fechou-a após si 7. e lhes disse: Rogo-vos, meus irmãos, que não façais mal; 8- tenho duas filhas, virgens, eu vo-las trarei; tratai-as como vos parecer, porém nada façais a estes homens, porquanto se acham sob a proteção de meu teto. 9) Eles, porém, disseram: Retira-te daí. E acrescentaram: Só ele é estrangeiro, veio morar entre nós e pretende ser juiz em tudo? A ti, pois, faremos pior do que a eles. E arremessaram-se contra o homem, contra Ló, e se chegaram para arrombar a porta. (ARA) – Grifo do autor.



****











Theodore W. Jennings
Professor-assistente no Chicago
Theological Seminary;




1º ponto a se considerar
: o texto bíblico diz que todos os homens de Sodoma cercaram a casa de Ló. Ora, em qualquer sociedade, os homossexuais são minoria, portanto, aqueles homens, definitivamente, não eram homossexuais. Sodoma não seria uma cidade tão numerosa e próspera se ali houvesse apenas homossexuais, na verdade, tal cidade nem subsistiria!

Para refletir: Já conheceu alguma cidade em que todos os habitantes fossem homossexuais?

2º ponto: Eles exigiam que os estrangeiros (anjos em forma humana) que ali estavam fossem postos para fora a fim de que fossem abusados (v. 5); Sua intenção era fazer o mal, humilhando os visitantes da forma mais vil possível:

“...Não se pode imaginar desprezo maior das práticas orientais de hospitalidade do que submeter hóspedes de sexo masculino a estupro por outros homens.” Comentário Bíblico, Editora Vida Nova, SP, 2010, p.123

Para refletir: Por que os homens de Sodoma queriam ser apenas ativos na relação sexual? Por que isso é incompatível com a realidade dos homossexuais de fato?


Para refletir: já presenciou algum grupo de homossexuais que tenha invadido alguma casa com a intenção de violentar sexualmente algum visitante? Se a resposta for NÃO por que acha que alguns insistem em dizer que os habitantes daquela cidade eram homossexuais?










Robert K. Johnston

Ph.D., professor de Teologia
e Cultura no Seminário Teológico
Fuller, em Pasadena – Califórnia


Até mesmo os livros deuterocanônicos (das bíblias católicas) expressam o mesmo conceito acerca de Sodoma:

Eclesiástico 16.8

“Não poupou os concidadãos de Ló, aos quais detestou por seu orgulho.”

Sabedoria 19.13-17

13) Sobre os pecadores, porém, caíram os castigos de raios violentos, não sem as advertências que antes lhes tinham sido feitas; mas sofriam justamente por causa de suas próprias maldades, por terem praticado a mais detestável falta de hospitalidade. 14) Houve quem não acolhesse visitantes desconhecidos; outros reduziram à escravidão esses hóspedes que lhes faziam bem. 15) E não só isto: se ainda se aguarda julgamento contra aqueles que receberam com hostilidade a estrangeiros, 16) quanto mais contra os que atormentaram com cruéis sofrimentos aqueles a quem tinham recebido com alegria e que haviam participado dos mesmos direitos! 17) Por isso, foram feridos de cegueira como aqueles, à porta do justo, quando, envolvidos em densas trevas, cada qual procurava a direção da sua casa. (CNBB)

Há outros textos bíblicos e extrabíblicos que confirmam que os pecados de Sodoma e Gomorra, bem como as motivações para tão degradante tentativa de abuso. Como exemplo, citemos um trecho do Midrash Judaico:

“Os homens de Sodoma não se orgulhavam de outra coisa senão da fartura e da riqueza que possuíam [...]. E eles diziam: Se de nossa terra tiramos pão e minério de ouro, para que precisamos dos forasteiros? Não precisamos que venha a nós qualquer pessoa, pois vem apenas para tomar o que é nosso. Apaguemos, pois, de nossa terra as leis e costumes de ir e vir.Midrash, San’hedrin 109 – A Lei da Torá, Editora Sêfer, p. 46

Como vimos, nenhuma só palavra sobre homossexualdiade.

Para encerrar, leiamos o que dizem algumas traduções bíblicas:

Eles chamaram Ló e lhe disseram: “Onde estão os homens que vieram à tua casa ao cair da noite? Traze-os para fora. Queremos descarregar sobre eles a nossa fúria homossexual!” Gênesis 19.5 (Grifo do autor) Bíblia Sagrada, Edições Loyola.

“Não se esqueçam das cidades de Sodoma e Gomorra, e as cidades vizinhas, todas cheias de imoralidade de toda espécie, inclusive a paixão de homens por outros homens.” Judas 7 (Grifo do autor) Bíblia Viva, Editora Mundo Cristão, 2010.

Para refletir: quem está manipulando a Bíblia para apoiar suas crenças?


Para mais:
Teologia e Inclusão

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Três links e um brinde

Instalação: Elise Morin

Rapidinho, três links para baixar trabalhos acadêmicos de qualidade sobre a relação entre homoafetividade e cristianismo:

Via(da)gens teológicas: itinerários para uma Teologia Queer no Brasil (tese de doutorado de André S. Musskopf, Bacharel, Mestre e Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia. Pesquisador nas áreas de: Estudos Feministas, Teorias de Gênero, Teoria Queer, Masculinidade, Homossexualidade e Diversidade Sexual, na sua relação com Religião e Teologia). Aqui

Homossexualidade, religião e gênero: a influência do catolicismo na construção da auto-imagem de gays e lésbicas (tese de mestrado em teologia de Valéria Melki Busin), aqui

A fé e os afetos: Diversidade Sexual, Catolicismo e Protestantismo em sites de grupos cristãos inclusivos, por Murilo Silva de Araújo e Maurício Caleiro. Trabalho apresentado no Intercom Júnior – IJ 07 – Comunicação, Espaço e Cidadania, do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, realizado de 12 a 14 de maio de 2011. (O Diversidade Católica está aqui! ;-)) Aqui

E um brinde:
"A Igreja do Diabo", conto de Machado de Assis. Uma análise atemporal (e deliciosa) sobre ética, vícios, virtudes e humanidade... aqui (RT @Wedge_issue) #ficadica

Com amor,

Cris

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Bullying, tolerância e diversidade


Não cansamos de repetir aqui como é variada e diversa a multidão de vozes na Igreja Católica hoje. E é sempre um alento constatar isso. O vídeo acima, por exemplo, foi feito pelo Padre Paulo Dalla Dea (twitter: @pepaulodea), de São Carlos, SP, para ser usado na catequese de jovens.

É admirável o empenho do Pe. Paulo em superar as barreiras de comunicação e transmitir sua mensagem à garotada. E são tocantes a honestidade e abertura com que ele se coloca a favor da tolerância e do respeito à diversidade. É de exemplos assim que nos alimentamos para seguir em nossa caminhada... :-)

* * *

Por falar em bullying: A Casa do Saber, aqui no Rio de Janeiro, começa em 01/06 um mini-curso de 2 aulas sobre o tema. Desconhecemos como será a abordagem, mas não deixa de ser interessante observar que o assunto está na pauta do dia. É mesmo uma discussão urgente.

Mais informações aqui: "Bullying: nova conduta social ou um moderno termo para um antigo comportamento juvenil?"

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Estamos procurando Deus nos lugares errados

Escultura: Maarten Baas

Publicamos agora o final do discurso do teólogo espanhol José María Castillo, cuja primeira parte publicamos aqui.

Quero destacar que, na minha maneira de ver as coisas, a Igreja terá futuro e a teologia poderá subsistir na medida em que ambas – Igreja e Teologia – forem capazes de tomar um rumo diferente ao que seguiram até agora. Durante séculos, a teologia se viu a si mesma como a “regina scientiarum”, o centro de todos os saberes e o poder normativo para todas as condutas. Hoje, esta posição preponderante da Igreja e de sua teologia se tornou insustentável. Porque perdeu sua falsa consistência. O progresso da ciência e o avanço irresistível das tecnologias vão colocando as religiões no seu devido lugar. Como sabemos, as religiões resistem às mudanças e, com frequência, ficam presas à fidelidade a tradições de um passado que nunca mais será determinante na vida dos indivíduos e dos povos. O que explica o desajuste crescente entre teologia e ciência, entre teologia e sociedade.

Com frequência, se pretende atribuir este desajuste à prepotência e ao afã de comando dos dirigentes das religiões. Sem dúvida, isso pode ter uma determinada influência na atual crise religiosa. Mas o fundo da questão – segundo creio – não é essa. É a teoria sobre Deus que está falhando. E, por isso, de uma equivocada teoria sobre Deus (e sobre onde e como encontrar Deus), se costumam deduzir consequências desastrosas, sobretudo, para as pessoas, para as instituições e para a sociedade. De modo geral, são muitas as pessoas que imaginam que encontram Deus em um “Tu” transcendente, que nos é imposto a partir de um poder inapelável. Mas insisto no fato de que essa “representação de Deus” está na base e na explicação da atual crise da fé, a crise da religião e a crise da Igreja. Porque quem acredita em semelhante “Deus” e pretende representá-lo ou falar em seu nome, o que faz, na realidade, é ir na contracorrente.

Porque cada dia é mais escasso o número de pessoas que se atrevem a seguir crendo nesse Deus contraditório e perigoso. Por isso insisti em que só podemos encontrar Deus em nossa imanência, no laico, no secular, no civil, no humano. Não excluo a importância que tem, para o homo religiosus, a oração, o louvor, a celebração sacramental e simbólica das próprias convicções religiosas. Nesta ordem de “mediações”, cada religião deve ser fiel à sua própria história, aos seus costumes e às suas práticas, contanto que tudo isso não fomente a exclusão dos outros, a separação dos povos e culturas, a intolerância e o fanatismo. Porque o importante não é a religião, mas Deus, ao qual só podemos encontrar em nossa imanência e em nossa humanidade.

Pois bem, se este é o conceito e a experiência de Deus, a teologia, enquanto saber que se ocupa do tema desse Deus que encontramos no verdadeiramente humano – se é que a teologia deve seguir existindo no futuro –, terá que ser, antes que um saber superior que ensina os outros saberes, deverá ser um sujeito humilde e modesto que sempre terá que se apresentar, desde essa humildade e modéstia, como um saber que aprende dos outros saberes o que necessita assimilar deles para conhecer melhor o humano, para interpretar a partir das ciências humanas o significado e as consequências que pode ter (e terá) a presença do Deus humanizado entre os seres humanos. Porque é no humano, e somente no imanente e humano, onde os humanos podem encontrar Deus.

Não faltará razão a Karl Rahner [um dos maiores teólogos católicos do século XX, perito no Concílio Vaticano II] quando disse que: “se a teologia ainda deve continuar a existir no futuro, esta não será certamente uma teologia que se instala simplesmente e a priori 'junto a' ou 'por cima de' o mundo secular ou o mundo laico... É preciso, evidentemente, dizer que a ansiosa pergunta dos teólogos sobre o futuro da teologia não pode receber senão a resposta afirmativa que exige uma única condição: a aptidão da teologia para falar de Deus em um mundo secular”. E hoje, 60 anos depois que Rahner disse estas coisas, as aceleradas mudanças das últimas décadas nos empurram a ter que afirmar, com liberdade e audácia, que, daqui em diante, somente terá sentido e futuro a teologia que for capaz de trazer algum sentido à vida. E assim, potenciar a melhor resposta que podemos dar aos nossos desejos de humanidade. Quero dizer, os desejos que buscam uma forma de vida que, por ser mais plenamente humana, seja também mais plenamente feliz.

Deus não está na fé, mas na ética

Almofadas: Stephanie Marin

O presente texto é um extrato do discurso lido por José María Castillo na solenidade em que recebeu o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Granada, da Espanha.

José María Castillo, teólogo espanhol, é autor de uma importante obra teológica. Vários dos seus livros foram traduzidos para o português.

O texto está publicado no sítio Rebelión Digital, 13-05-2011. A tradução é do Cepat. Reproduzimos via IHU, com grifos nossos, e dividido, para melhor apreciação, em duas partes

Eis o discurso: após uma breve introdução, Castillo se propõe a refletir sobre como se pode pensar em Deus e falar de Deus em um espaço secular. E ele começa a responder a questão apontando uma contradição na capacidade do ser humano pensar em Deus, e buscando uma forma de superá-la:

(...) Deus é o Transcendente. Ao dizer isto, estamos afirmando que Deus está para além dos limites de nosso conhecimento experimental e demonstrável. Ou seja, quando falamos de Deus, na realidade estamos nos referindo à sua realidade que não conhecemos. Por isso, quando as religiões nos falam de Deus, realmente não falam, nem podem falar, de Deus em si, mas nos falam das representações de Deus que os humanos se fazem. Porque, desde a nossa imanência [a realidade material, a natureza, em sua concretude], tudo quanto podemos pensar e dizer é sempre imanente. Nunca pode ser o transcendente.

Por essa razão, a representação de Deus, que nos fizemos, é inevitavelmente projetiva. Quer dizer, nossa representação de Deus é uma projeção de nossos desejos mais fortes: o poder, a bondade, a felicidade... E assim, apareceu um Deus infinitamente poderoso e infinitamente bom. Mas, ao fazer isso, não caímos na conta de que o resultado foi um Deus contraditório e um Deus perigoso. Um Deus contraditório, porque o poder sem limites e a bondade sem limites não são compatíveis com o mal que há no mundo (se é que Deus tem algo a ver com este mundo). E um Deus perigoso, porque todo Deus monoteísta é, por isso mesmo, um Deus excludente. Por esta razão, inevitavelmente, é também um Deus violento.

Quer isto dizer que o Deus, que os humanos representaram para si, é um Deus condenado inevitavelmente ao fracasso? (...) Por esse caminho desembocamos em uma contradição insolúvel. Mas sabemos que o ser humano não age, nem só nem principalmente a partir da contribuição do discurso racional. O mais determinante em nossas vidas não são as verdades, que brotam de conteúdos mentais. O mais determinante são as convicções, que se traduzem em formas de conduta e em hábitos de vida.

Isto posto, a afirmação capital da minha reflexão se centra em que, segundo a tradição cristã, o Transcendente se torna presente em nossa imanência. Isto é, definitivamente, o que representa e o que significa Jesus de Nazaré. Quando a teologia afirma que Jesus é a encarnação de Deus, o que na realidade está dizendo é que Jesus é a humanização de Deus. Por isso, o “Senhor da Glória”, assim como se humanizou em Jesus, pôde dizer e deixou como sentença a afirmação decisiva: “O que fizestes a um destes, foi a mim que fizestes” (Mt 25, 31-46). Nessa sentença definitiva, já não se levará em conta nem a fé, nem a religião. Só ficará em pé o humano, o que cada ser humano tiver feito com os outros seres humanos.

A consequência que, em sã lógica, se segue do que acabo de dizer é que o projeto cristão não pode ser um projeto religioso ou sagrado de divinização, mas um projeto profano e laico de humanização. Deus não se encarnou no sagrado e seus privilégios, nem no religioso e seus poderes. Deus se mesclou com o humano. Portanto, encontramos Deus, sobretudo, no profano, no laico, no secular, no que é comum a todos os humanos e no que nos une aos demais seres humanos, sejam quais forem suas crenças e suas tradições religiosas. Porque o determinante, para encontrar Deus, não é a fé, mas a ética, que se traduz em respeito, tolerância, estima e misericórdia.


(Continua)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Lázaro e a ressurreição presente na história, aqui e agora


O artigo aqui apresentado encontra-se no livro "Raio-X da Vida: Círculos Bíblicos do Evangelho de João", de Carlos Mesters, Francisco Orofino e Mercedes Lopes, e trata do evangelho do último domingo, sobre o episódio da ressurreição de Lázaro (Jo 11).

A pequena comunidade de Betânia, onde Jesus gostava de hospedar-se, reflete a situação e o estilo de vida das conunidades do Discípulo Amado. Betânia quer dizer “casa dos pobres”. Marta quer dizer “senhora” (coordenadora): uma mulher coordenava a comunidade. Lázaro significa “Deus ajuda”: a comunidade pobre esperava tudo de Deus. Maria significa “amada de Javé”: era a discípula amada, imagem da comunidade. O episódio de Lázaro comunica esta certeza: Jesus traz vida para a comunidade dos pobres. Jesus é fonte de vida para todos os que nele acreditam.

Comentando o texto:

1. Jo 11, 1-16: Uma chave para entender o sétimo sinal, a ressurreição de Lázaro
Lázaro estava doente. As irmãs Marta e Maria mandam chamar Jesus “Aquele a quem amas está doente!” (Jo 11,3). Jesus atende ao pedido e explica: “Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus, para que por ela seja glorificado o Filho de Deus!” (Jo 11,4). No Evangelho de João, a glorificação de Jesus acontece através da sua morte (Jo 12,23; 17,1). Uma das causas da sua condenação à morte vai ser a ressurreição de Lázaro (Jo 11,50; 12,10). Assim, o sétimo sinal vai ser para manifestar a glória de Deus (Jo 11,4). Os discípulos não entendem (Jo 11,6-8). Jesus fala da morte de Lázaro e eles entendem que esteja falando do sono (Jo 11,12). Ainda não perceberam a identidade de Jesus como vida e luz (Jo 11, 9-10). Porém, mesmo sem entenderem, estão dispostos a ir morrer com ele (Jo 11,16). A doutrina deles é deficiente, mas a fé é correta.

2. João 11,17-19: Jesus chega em Betânia
Lázaro está morto mesmo. Depois de quatro dias, a morte é absolutamente certa, o corpo entra em decomposição e já cheira mal (Jo 11, 39). Muitos judeus estão na casa de Marta e Maria para consolá-las da perda do irmão. Os representantes da Antiga Aliança não trazem vida nova. Só consolam. Jesus é que vai trazer vida nova! Os judeus são os adversários que querem matar Jesus (Jo 10, 31). As duas mulheres criaram um espaço novo de contato entre Jesus e seus adversários. Assim, de um lado, a ameaça de morte contra Jesus; de outro lado, Jesus chegando para vencer a morte! É neste contexto de conflito entre vida e morte que vai ser realizado o sétimo sinal.

3. João 11,20-24: Encontro de Marta com Jesus - promessa de vida e de ressurreição
No encontro com Jesus, Marta diz que crê na ressurreição. Ela está dentro da cultura e da religião do povo do seu tempo. Os fariseus e a maioria do povo já acreditavam na ressurreição (At 23,6-10; Mc 12,18). Acreditavam, mas não a revelavam. Era fé na ressurreição no final dos tempos e não na ressurreição presente na história, aqui e agora. Não renovava a vida. Faltava dar um salto. A vida nova da ressurreição só vai aparecer com Jesus.

4. João 11,25-27: A revelação de Jesus provoca a profissão de fé
Jesus desafia Marta a dar este salto. Não basta crer na ressurrição que vai acontecer no final dos tempos, mas tem que crer que a ressurreição já está presente hoje na pessoa de Jesus e naqueles que acreditam em Jesus. Sobre eles a morte não tem mais nenhum poder, porque Jesus é a “ressurreição e a vida”. Então, Marta, mesmo sem ver o sinal concreto da ressurreição de Lázaro, confessa a sua fé: “Eu creio que tu és o Cristo, o filho de Deus que vem ao mundo”.

5. João 11,28-31: O encontro de Maria com Jesus
Depois da profissão de fé, Marta vai chamar Maria, sua irmã. E o mesmo processo que já encontramos na chamada dos primeiros discípulos: encontrar, experimentar, partilhar, testemunhar, conduzir até Jesus! Maria vai ao encontro de Jesus, que continuava no mesmo lugar onde Marta o tinha encontrado. Tal como a sabedoria, que se manifesta nas ruas e nas encruzilhadas (Pr 1, 20-21), assim Jesus é encontrado no caminho fora do povoado. Hoje, tanta gente busca saídas para os problemas da sua vida nas ruas e nas encruzilhadas! João diz que os judeus acompanhavam Maria. Pensavam que ela fosse ao sepulcro do irmão. Eles só entendiam de morte, e não de vida!

6. João 11,32-37: A resposta de Jesus
Maria repete a mesma frase de Marta: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11, 21). Ela chora, todos choram. Jesus se comove. Quando os pobres choram, Jesus se emociona e chora. Diante do choro de Jesus, os outros concluem: “Vede como ele o amava!” Esta é a característica das comunidades do Discípulo Amado: o amor mútuo entre Jesus e os membros da comunidade. Alguns ainda não acreditam e levantam dúvidas: “Esse que curou o cego, por que não impediu a morte de Lázaro?”

7. João 11,38-40: Retirem a pedra!
Pela terceira vez, Jesus se comove (Jo 11, 33.35.38) É assim que João acentua a humanidade de Jesus contra aqueles que, no fim do século 1, espiritualizavam a fé e negavam a humanidade de Jesus. Jesus manda tirar a pedra. Marta reage: “Senhor, já cheira mal! E o quarto dia!” Novamente, Jesus a desafia apelando para a fé na ressurreição, aqui e agora, como um sinal da glória de Deus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?”

8. João 11,41-44: A ressurreição de Lázaro
Retiraram a pedra. Diante do sepulcro aberto e diante da incredulidade das pessoas, Jesus se dirige ao Pai. Na sua prece, primeiro, faz ação de graças: “Pai, dou-te graças, porque me ouviste. Eu sabia que tu sempre me ouves!” O Pai de Jesus é o mesmo Deus que sempre escuta o grito do pobre (Ex 2, 24:37). Jesus conhece o Pai e confia nele. Mas agora ele pede um sinal por causa da multidão que o rodeia, para que possa acreditar que ele, Jesus, é o enviado do Pai. Em seguida, grita em alta voz: “Lázaro, vem para fora!” E Lázaro vem para fora. É o triunfo da vida sobre a morte, da fé sobre a incredulidade! Um agricultor do interior de Minas comentou: “A nós cabe retirar a pedra! E aí Deus ressuscita a comunidade. Tem gente que não quer tirar a pedra, e por isso a comunidade deles não tem vida!

9. João 11,45-54: O resultado do sétimo sinal no meio do povo
O capítulo 11 descreveu o último sinal, o mais importante dos sete: a ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44). E o ponto alto da revelação que Jesus vinha fazendo. Terminada a revelação, vem a descrição do resultado: muita gente começa a crer em Jesus (Jo 11,45). Outros ficam em cima do muro e fazem a denúncia (Jo 11,46). Os líderes, preocupados com o crescimento da liderança de Jesus e não querendo perder a sua própria posição, decidem matar Jesus (Jo 11,47-53). O resultado final é que Jesus tem que viver na clandestinidade (Jo 11,54). Da mesma maneira, na época em que foi escrito o evangelho, a comunidade que trazia a vida para os outros se via obrigada a viver na clandestinidade.

A confissão de Marta e o significado da ressurreição
Se lemos todo o capítulo 11, vamos encontrar em seu centro a revelação de Jesus como ressurreição e vida, provocando como resposta a profissão de fé, proclamada publicamente por Marta (Jo 11, 25-27). Em Jo 11,4, Jesus afirma que a doença de Lázaro não é para a morte, mas para afirmar seu poder sobre a morte. Jesus é a vida e nele está a vida (Jo 1, 4). Este é um aspecto muito importante da identidade de Jesus para as comunidades do Discípulo Amado. A força de vida que há nele manifesta que ele é verdadeiramente o Messias e Filho de Deus, capaz de trazer um morto de volta à vida. Marta acolhe esta revelação mesmo antes de ver o sinal que revela o poder de Jesus sobre a morte, manifestado na ressurreição de Lázaro. Assim Marta recebe a bem-aventurança: “Felizes os que não viram e creram" (Jo 20,28) e torna-se um modelo para as pessoas que desejam seguir Jesus.

A vitória de Jesus sobre a morte mudou a seqüência dos tempos históricos. O que era próprio do tempo final entrou para o tempo presente. Por isso, o Jesus apresentado pelo Evangelho de João pode afirmar: “Quem vive e crê em mim jamais morrerá!” (Jo 11,26). Como é que Jesus pode afirmar que viveremos para sempre? Na Primeira Carta de João, este mistério é esclarecido: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1Jo 3, 14). O amor é a força mais poderosa que existe. Ele transforma as pessoas e os acontecimentos. O amor faz o futuro virar presente e a ressurreição acontecer hoje. É interessante a comparação de Mt 16,16-17 com Jo 11,27. Em Mateus, a profissão de fé está na boca de Pedro, que por esse motivo foi reconhecido nas comunidades apostólicas como autoridade.

Em João a confissão de fé está na boca de Marta. É uma tríplice confissão: “Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo” (Jo 1 1,27). Marta confessa que Jesus é Senhor, Messias e Filho de Deus. Isto indica que nas comunidades do Discípulo Amado é Marta quem desempenha um papel semelhante ao de Pedro nas comunidades apostólicas. Sua confissão de fé está repetida em Jo 20, 31, indicando o objetivo do evangelho: “foi escrito para que acreditem que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham a vida em seu nome".

terça-feira, 12 de abril de 2011

A secreta cumplicidade entre o humanismo de Jesus e o humanismo secular


“As relações do cristianismo e da modernidade foram relações de exclusão recíproca. Isto é principalmente verdade para o cristianismo sob a forma do catolicismo romano”, defende o teólogo francês Claude Geffré, que fala nesta entrevista sobre as complexas relações de diálogo, sejam elas entre cristianismo e modernidade ou entre as diversas denominações religiosas. “Muitos historiadores se perguntam se o cristianismo não foi ele mesmo um vetor de modernidade, mesmo que ele, finalmente, tenha sido sua vítima”. Mas, segundo o teólogo, o fim da função social do cristianismo não origina necessariamente o fim do cristianismo como experiência vivida e como crença pessoal.

Claude Geffré, juntamente com Régis Debray, é autor do livro Avec ou sans Dieu? - Le philosophe et le théologien (Paris: Bayard, 2006). Além disso, em 2006, publicou o livro De Babel à Pentecôte - Essais de théologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006). Em português, a Editora Vozes traduziu o livro Crer e interpretar, em 2004. Confira as entrevistas exclusivas que Claude Geffré concedeu à revista IHU On-Line, na edição número 207, de 04-12-2006, e ao site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu, intitulada “Religião com ou sem Deus? Um diálogo de Régis Debray com um teólogo”.

(Publicado originalmente na revista IHU On-Line, na edição número 248, de 17-12-2007. Grifos nossos.)

Quem é Jesus? O que destacaria dele a partir de sua reflexão teológica?

Jesus de Nazaré é proclamado o próprio Filho de Deus pela primeira comunidade cristã, a partir de sua vida, sua morte e sua ressurreição. Em função de minha reflexão teológica, eu realçaria, sobretudo, dois aspectos: o realismo da encarnação e a morte de Jesus como manifestação do amor de Deus. Em Jesus, Deus não se faz somente corpo, mas carne: “O Verbo se fez carne” (João 1,14) significa que ele assumiu um corpo de carne, um corpo terrestre, “nascido de uma mulher” (Gálatasl 4,4), enquanto ele permanece sendo Deus em sua Alteridade transcendente. A maior lição da encarnação é, ao mesmo tempo, a afirmação da infinita vulnerabilidade de Deus e da eminente dignidade do corpo humano. Não se pode dissociar encarnação e ressurreição. A “descida” na carne não tem outra finalidade senão transformá-la, transfigurá-la para dar-lhe o poder de fazer explodir a vida das próprias profundezas da morte. De outra parte, a morte de Jesus é menos o sacrifício do Filho único pela redenção do pecado dos homens do que a manifestação do amor infinito de Deus, que se faz solidário do sofrimento e da morte de todo ser humano. Neste sentido, a cruz é a Boa Nova de um Deus diferente do Deus “bem conhecido” do teísmo filosófico e teológico.

Em que sentido a modernidade e a contemporaneidade podem ter ajudado para uma melhor compreensão de Jesus e de sua proposta?

As relações do cristianismo e da modernidade foram relações de exclusão recíproca. Isto é principalmente verdade para o cristianismo sob a forma do catolicismo romano. O catolicismo se quis resolutamente antimoderno, na medida em que a razão das Luzes solapava a autoridade da revelação e da tradição e na qual o acontecimento das sociedades democráticas contestava diretamente o princípio hierárquico da sociedade-Igreja. Atualmente, parece que o cristianismo está maduro para uma nova negociação com a modernidade, quando, durante mais de dois séculos, se tratava de duas irmãs inimigas. Muitos historiadores se perguntam se o cristianismo não foi ele mesmo um vetor de modernidade, mesmo que, finalmente, tenha sido sua vítima. Seria o desenvolvimento das virtualidades próprias ao cristianismo, em particular a emergência do sujeito humano como autônomo e como agente da história que estaria na origem do mundo moderno. Após o crescente sucesso da modernidade, a religião cristã não é mais fator de coesão social e se pode interpretar seu destino como o de seu desaparecimento progressivo. Mas o fim da função social do cristianismo não origina necessariamente o fim do cristianismo como experiência vivida e como crença pessoal. Pode-se pensar que, entre as religiões do mundo, o cristianismo continua sendo uma religião plena de futuro, pois há uma secreta cumplicidade entre o humanismo evangélico, de que dá testemunho a mensagem de Jesus, e o humanismo secular, que constitui o objeto do consenso da consciência humana universal.

É possível manter a centralidade constitutiva de Jesus Cristo e a sensibilidade inter-religiosa? Esta idéia parece ser uma tese defendida pelo senhor, como também por Jacques Dupuis, em favor de um inclusivismo pluralista, não é verdade?

A tarefa de uma teologia das religiões é de manter unidas a vontade divina universal de salvação e a unicidade da mediação do Cristo para a salvação. Na linha de Jacques Dupuis, eu defendo, pois, ao mesmo tempo, um cristocentrismo constitutivo e um pluralismo inclusivo, a saber, os valores salutares de que as outras religiões podem ser portadoras. Para favorecer o diálogo inter-religioso, não penso que seja necessário adotar uma postura pluralista que sacrifique a centralidade do Cristo a um teísmo indeterminado. No cristianismo não se pode, com efeito, opor o teocentrismo e o cristocentrismo. Nós só conhecemos o Deus da revelação cristã em Jesus Cristo. É antes aprofundando o mistério da encarnação, isto é, o Verbo feito carne, que podemos fundamentar teologicamente o diálogo inter-religioso.

É correto dizer, na sua visão, que o cristocentrismo não é recusado, mas que é aprofundando o mistério da encarnação que se garante, assim, o caráter dialogal do cristianismo?

Após a era apostólica, a Igreja confessa Jesus como Filho de Deus. Mas a teologia deve evitar identificar o elemento histórico e contingente de Jesus e seu elemento crístico e divino. A manifestação do absoluto de Deus na particularidade histórica de Jesus de Nazaré ajuda-nos a compreender que a unicidade do Cristo não é excludente de outras manifestações de Deus na história. É insistindo na própria palavra da encarnação, ou seja, da união do absolutamente universal e do absolutamente concreto (cf. Paul Tillich ) que se está em condições de des-absolutizar o cristianismo como religião histórica e de verificar seu caráter dialogal. Após vinte séculos, nenhum dos cristianismos históricos pode ter a pretensão de encarnar a essência do cristianismo como religião da revelação final sobre o mistério de Deus. Não se pode, pois, confundir a universalidade do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade do cristianismo como religião histórica. Tem-se, assim, o direito de dizer que a verdade de que dá testemunho o cristianismo não é nem exclusiva, nem mesmo inclusiva de toda outra verdade de ordem religiosa.

Como repensar, nestes tempos de pluralismo religioso, a noção de que no Cristo se cumpriram todos os valores das outras religiões? Em que medida tal tese respeita o que existe de irredutível e irrevocável nas outras tradições religiosas?

A noção de cumprimento deve ser mantida, mas é preciso reinterpretá-la num sentido não totalitário. Falando de pluralismo religioso inclusivo, se quer significar que os germes de verdade e de bondade disseminados nas outras tradições religiosas podem ser a expressão do Espírito do Cristo, sempre em ação na história. Mas é preciso respeitar sua diferença própria em relação ao cristianismo. Por isso, parece-me abusivo falar de valores implicitamente cristãos segundo a simples lógica do implícito e do explícito, ou da preparação e do cumprimento. É preferível falar de valores crísticos. Entendo, com isso, germes de verdade, de bondade e mesmo de santidade que têm um lugar secreto na cristianidade de todo ser humano, criado não somente à imagem de Deus, mas à imagem do Cristo como novo Adão. E é em sua própria diferença que eles encontrarão seu cumprimento em Jesus Cristo no além da própria história, se eles não encontrarem sua explicitação visível no cristianismo. O pensamento cristão deve suportar o enigma de uma pluralidade de tradições religiosas em sua diferença irredutível. Elas não se deixam harmonizar facilmente com o cristianismo e seria desconhecer o privilégio da revelação cristã querer procurar completá-la a partir das verdades incompletas das outras religiões. Mas quanto melhor conhecermos as riquezas das outras religiões tanto melhor estaremos na condição de proceder a uma reinterpretação criadora das verdades que realçam a singularidade cristã.

O cristianismo, como o demonstrou E. Schillebeeckx , “não é, em primeiro lugar, uma mensagem, mas uma experiência que se tornou uma mensagem”. Em que medida o trabalho hermenêutico que procura evocar esta experiência seria atualmente fundamental para o diálogo inter-religioso?

A fórmula de Schillebeeckx tem a vantagem de sublinhar que nós só atingimos a experiência cristã fundamental dos primeiros cristãos a partir de um texto que já é uma interpretação. O texto do Novo Testamento só é Palavra de Deus, para nós hoje em dia, se engendrar uma experiência que seja contemporânea da experiência dos primeiros discípulos em presença de Jesus, como evento de salvação. Isto só é possível entregando-nos a uma reinterpretação de nossos textos fundadores e de sua tradição na história a partir de nossa própria experiência histórica na Igreja do século XXI. O diálogo com as outras religiões pertence a esta experiência com uma acuidade nova e, como eu já disse, ele nos permite explicitar certas virtualidades da mensagem cristã. As exigências do diálogo inter-religioso sublinham a importância de uma aproximação hermenêutica, em oposição a uma leitura fundamentalista dos textos. Trata-se de visar o alcance religioso de um texto, além de sua expressão literal ligada a uma época histórica. E, mais em geral, a prática do diálogo inter-religioso nos convida a comungar numa plenitude de verdade que está sempre além da particularidade histórica e textual de tal ou tal tradição religiosa.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Está chegando! Curso "Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã"


Já estão abertas as inscrições para o curso Diversidade Sexual, Cidadania e Fé Cristã, no Centro Loyola de Fé e Cultura (PUC-Rio) de 7 de abril a 9 de junho - todas as quintas-feiras, em Botafogo.

A proposta é abordar a questão da diversidade sexual e sua visibilidade no mundo contemporâneo, com as respectivas implicações para os indivíduos, as famílias, a sociedade, a educação e as igrejas. Além disso, o objetivo é de buscar as perspectivas de compreensão e ação, bem como o diálogo da tradição religiosa cristã com as ciências e os agentes sociais em vista da construção da cidadania.

Professores:
  • Pe. Luis Corrêa Lima, SJ (líder do Grupo de Pesquisa Diversidade Sexual, Cidadania e Religião da PUC-Rio)
  • Ana Maria Bontempo (Assistente Social e vice-presidente da BENFAM)
  • Maria Cristina S. Furtado (Psicóloga e Mestre em Teologia / PUC-Rio)
Local: Residência João XXIII (R. Bambina, 115 - Botafogo)
Data: Todas as quintas-feiras, de 07 de abril a 09 de junho de 2011
Horário: 19h às 21h
Investimento mensal: R$ 75,00

As inscrições devem ser realizadas previamente pelo telefone (21) 3527-2010, pelo e-mail scursosloyola@puc-rio.br ou pelo site do Centro Loyola. Atenção: a inscrição só será considerada após o pagamento do boleto bancário, que será enviado por e-mail ao participante.

Serão conferidos certificados ao final do curso.

segunda-feira, 28 de março de 2011

''A Igreja Católica encontrou o seu papel no século XXI?'': a atualidade do Vaticano II


“O que se presenciou no século XIX na Igreja foi o surgimento de duas formas de se compreender a missão da instituição no mundo: uma que aceitava e entendia de forma positiva os caminhos abertos pelos novos tempos modernos, e que visava levar a Igreja a se 'adequar' àquele tempo, abrindo-se, e outra que via com muita negatividade o que se sucedia, criando, inclusive, uma filosofia da história calcada na ideia de que Lutero, a Revolução Francesa e seus congêneres, os iluminismos e o comunismo faziam parte de uma revolução mundial demoníaca”. A afirmação é de Rodrigo Coppe que acaba de lançar o livro Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011). Em entrevista originalmente publicada no IHU, ele analisa esse momento histórico da Igreja Católica e reflete sobre o papel do Concílio do Vaticano II hoje. “Depois de quase 50 anos de seu início, nota-se que o Vaticano II não colocou em causa nem modificou substancialmente o modelo que prevalecia anteriormente”, apontou.

Rodrigo Coppe é graduado em História pela PUC Minas com mestrado e doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesse ano iniciou a graduação em Direito na PUC Minas, onde é professor Adjunto de Cultura Religiosa e Fenomenologia da Religião.

Confira a entrevista.

Rodrigo, você pode começar nos explicando o que é a antimodernidade católica brasileira que esteve presente no Concílio Vaticano II?
Antes de tudo a antimodernidade é uma sensibilidade. Uma sensibilidade que se formou lentamente desde os primeiros movimentos do que conhecemos como “história moderna” no século XVI, ou seja, com a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e os iluminismos e, posteriormente, o comunismo. Porém, a antimodernidade compreendida de forma consciente só surge no século XIX e aparece como um componente de reação – e aqui o termo não tem nada a ver com “reacionário” – a certo tipo de pensamento liberal, progressista e revolucionário, que levava à débâcle do status quo e à queda de civilizações. Além, claro, de se levantar contra um dos principais pontos de apoio daquela ordem, a Igreja Católica Apostólica Romana. Dessa forma, a Igreja Católica do século XIX – chamada de ultramontana – cerrou-se cada vez mais em seus muros como tentativa de contenção do avassalador movimento de crítica ao seu poder temporal, e logo, posteriormente, aos temas centrais de sua tematização teológica.

De fato, o que se presenciou no século XIX na Igreja foi o surgimento de duas formas de se compreender a missão da instituição no mundo: uma que aceitava e entendia de forma positiva os caminhos abertos pelos novos tempos (modernos), e que visava levar a Igreja a se “adequar” àquele tempo, abrindo-se, e outra que via com muita negatividade o que se sucedia, criando, inclusive, uma filosofia da história calcada na ideia de que Lutero, a Revolução Francesa e seus congêneres, os iluminismos e o comunismo faziam parte de uma revolução mundial demoníaca. Foi possível, assim, lendo a história da Igreja no século XX, entrever os dois campos de conflito contínuo: de um lado aqueles defensores do novo, ligados aos movimentos sociais, litúrgicos, bíblicos e tutti quanti que se desenvolviam com vigo; do outro, aqueles defensores da tradição – tradição entendida aqui como aquela, especialmente, assinalada pelas resoluções do Concílio de Trento, pelos papas Gregório XVI, Pio IX e Pio X com seus inúmeros documentos anatematizantes da modernidade.

A antimodernidade católica brasileira que esteve no concílio foi um grupo que se desenvolveu no país a partir daqueles parâmetros citados desde a segunda década do século XX, que lutou aguerridamente contra as novas “tendências pastorais”. Ela teve como personagem marcante Plínio Corrêa de Oliveira [1] e a fundação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a polêmica TFP, em 1960 e em D. Geraldo de Proença Sigaud (bispo de Diamantina-MG) [2] e D. Antônio de Castro Mayer (bispo de Campos-RJ) [3] os seus principais baluartes nas discussões do Concílio Vaticano II, entendido por mim como o paroxismo da tensão entre as duas tendências no interior da Igreja no século XX e como um campo de lutas simbólico-normativas.

Quais as linhas de pensamento que marcam a tendência “conservadora” da Igreja Católica hoje?
O termo “conservadorismo” é complexo e objeto de muitas incompreensões, utilizações indevidas e claramente manipulável ideologicamente por certos grupos que visam desqualificar este ou aquele discurso, político, religioso ou não. Por exemplo: se tomamos um grupo mais afeito a uma teologia sob influxos do pensamento filosófico moderno, como, por exemplo, a Teologia da Libertação, indiscutivelmente um grupo tomado pelos analistas como progressista e avançado nas discussões teológicas, notaremos corriqueiramente que compreendem o reinado de João Paulo II como um pontificado conservador. Por outro lado, se tomamos as opiniões de Lefebvre e sua Fraternidade Sacerdotal São Pio X – FSSPX veremos que compreendem o mesmo pontificado como progressista e liberal.

Como resolver a questão? Não sei dizer se é possível, pois o que isso demonstra é que atrás de um vocábulo existe alguém que a pronuncia, e sabemos bem que nada é dito sem consequências. Aprendi uma lição com Barbara Herrnstein Smith [4], que afirmava em seu Crença e resistência que não devemos entender as diferenças existentes entre nosso ponto de vista e o do outro como meros “reflexos de nosso esclarecimento e do obscurantismo deles”. Assim sendo, como historiador, prefiro pensar a Igreja – e sua instituição máxima de poder, o papado – inserida numa longa duração do que me aferrar a estes tipos de generalizações que, acredito, não colaboram nem minimamente para compreensão sobre o que acontece.

É fato que grupos de tendências diversas existem em seu interior. Porém a busca de enquadrar todo um pontificado num conceito como “progressismo” ou “conservadorismo” é questionável. Por outro lado, não se pode negar, por exemplo, que exista uma tendência neste papado de uma revalorização da tradição litúrgica que chega até João XXIII. O moto próprio Summorum Pontificum (2007) apareceu nesse sentido, a fim de possibilitar que os fiéis tivessem contato novamente com a forma extraordinária do rito romano.

Quais foram as principais questões que a modernidade suscitou na Igreja Católica e que foram levantadas a partir do Concílio Vaticano II?
Bem, no Vaticano II existiram alguns temas “quentes”, que notavelmente mobilizaram os padres conciliares e, especialmente, os padres do Coetus Internationalis Patrum, o grupo no qual a minoria se organizou para tentar barrar os avanços dos padres que visavam distender as relações entre Igreja e o mundo moderno. Entre os vários temas “quentes” – como a questão litúrgica, o papel do leigo, a questão da colegialidade, entre outros – aquele que se destacou, acredito, foi o da liberdade religiosa. É preciso lembrar que o Estado democrático de Direito foi sendo tomado cada vez mais, durante todo o século XX, como o regime que melhor pudesse dar conta da realidade da pluralidade.

Desde o Humanismo Integral de Jacques Maritain [5] na década de 1930, inclusive, já se vislumbrava na Igreja um processo de adaptação e acomodação em vista desta realidade e do tipo de Estado que a dava suporte. Porém, para os antimodernos a questão da liberdade religiosa barrava no magistério dos papas do século XX, especialmente no Syllabus Errorum Modernorum (Sílabo dos erros modernos) e na encíclica Quanta Cura de Pio IX, que negavam qualquer possibilidade de a Igreja se coadunar com a ideia de “liberdade de consciência”, da qual se depreendeu a de liberdade religiosa. Por sinal, um dos opúsculos que passavam pelas mãos dos padres conciliares no período, e que possivelmente tinha as mãos do Coetus, afirmava que um complô judaico-maçônico – realizado pelo cardeal Bea (Secretaria para a Unidade dos Cristãos) e a B’nai Brith – estava em andamento em vistas de se aprovar a liberdade religiosa.

Para você, é chegada a hora do Vaticano III, conforme sugerem alguns intelectuais?
Bem, de fato, como historiador, afirmo que seria muitíssimo interessante presenciar a realização de um concílio no início do século XXI. Imagine o papel da opinião pública e dos meios de comunicação nesse concílio! Ele seria certamente tuitado... Porém, não creio nessa perspectiva. O Concílio Vaticano II ainda não foi recepcionado, como Yves Congar [6] e vários outros autores constataram. Niceia demorou por volta de 80 anos para ter sua recepção. Parece, às vezes, que alguns acreditam, de forma ingênua a meu ver, que é só conclamar um concílio para que, como num passe de mágica, as coisas se resolvam (isso aconteceu de certa forma também com Vaticano II).

A realidade histórica é complexa e um concílio, um momento extraordinário da vida da Igreja. Sabe-se das inúmeras e profundas transformações passadas pelas sociedades desde a década de 1960 e a necessidade da Igreja se fazer mais presente. Todavia, a instituição responde a elas de inúmeras formas, e não somente a partir de um concílio. É preciso dizer que, na minha perspectiva interpretativa, o tempo da Igreja é um tempo lento, de maior duração, estabilidade, alterando-se em prazos mais longos, de forma processual. Assim, se um evento – como o Vaticano II – é entendido como algo que irrompe nesse tempo a partir da movimentação de certas personagens – como no caso, Roncalli –, as estruturas permanecem supraindividuais e intersubjetivas, não se reduzindo a uma única pessoa ou aos desejos de grupos determinados.

E como você avalia a trajetória da Igreja no século XX?
Busco avaliar a trajetória da Igreja no século XX numa longa duração. Desde o século XIX, como bem observou o Pe. Henrique de Lima Vaz [7], duas tendências em seu anterior se debatem em busca de influenciar o centro de poder: a cúria e o papado. Olhando para eles, noto que suas realizações podem ser tomadas como passos à frente e passos atrás, não necessariamente nessa ordem.

O que desejo dizer com isso? Que existe uma dinâmica complexa, na qual a Igreja contemporânea caminha, sempre num processo de adequação e acomodação contínuos, a partir, no caso, de uma perspectiva modernizadora – isso com relação aos meios de levar a mensagem evangélica, como, por exemplo, os meios de comunicação. Veja hoje o papel que desempenha no Twitter, Facebook, na blogosfera e nas mídias em geral, tanto a hierarquia como o laicato – uma perspectiva modernizante. Isto é, buscando elementos da cultura contemporânea para dialogar com ela a partir da teologia, mas também numa perspectiva de atenção em relação ao que foi recebido como herança, numa perspectiva de conservação.

Se tomarmos os papados desde o início do século XX, estudando seus atos e documentos, perceberemos que em todos eles apresentam-se passos de avanços, de conservação e de recuo. Vejamos, por exemplo, Pio X, tomado hoje em certas análises, tanto pelo progressismo católico, como pelo conservadorismo, ou tradicionalismo católico, como uma papa antimoderno. O que sempre é realçado é a sua visão do mundo a partir da encíclica Pascendi Dominici Gregis, o juramento antimodernista. Porém, ele também colocou em andamento reformas, como a comunhão frequente e à comunhão das crianças; a reforma da música sacra e da liturgia; medidas a fim de melhorar o ensino do catecismo e a pregação; a reorganização da cúria romana e das congregações romanas, além de um amplo movimento em vistas da organização do Codex Iuris Canonici.

Pio XII, outro papa lido apenas na chave da “antimodernidade”, e tido por alguns como o “último papa antimoderno”, também não se caracteriza apenas por seu lado “conservador”, diríamos, mas também por uma perspectiva de avanço. O que diríamos das encíclicas Divino Afflante Spiritu – que toma os pressupostos do método histórico-crítico – e Mystici Corporis Christi – que aceita a dimensão mistérico-invisível da Igreja, entendida agora não só como societas perfecta, mas também como Corpo Místico de Cristo? O que diríamos então de um documento do Santo Ofício de 1949 condenando os rigoristas do extra Ecclesia nulla salus da St. Benedict’s Center e do Boston College?

Um outro, e último, exemplo que posso dar dessa minha avaliação é a própria presença de um concílio no meio do século XX. Para muitos que analisam o processo histórico da Igreja naquele século, o Vaticano II é tomado como uma fissura, uma ruptura que marca um “antes e um depois” da vida da Igreja. Sim, tomado como um evento crucial de sua vida, como um momento extraordinário da história do cristianismo e como um ponto de inflexão de todos os movimentos que surgiram desde o século XIX, é um momento histórico e marcante. Contudo, a ideia de que ele teria transformado a Igreja e que, a partir dele ela teria tomado outro caminho em relação à história pregressa, não se mostrou tão evidente.

Depois de quase 50 anos de seu início, nota-se – e aqui me utilizo do próprio Congar em uma de suas falas no pós-concílio e de Émile Poulat [8], um dos maiores historiadores da Igreja do século XX – que o Vaticano II não colocou em causa nem modificou substancialmente o modelo que prevalecia anteriormente, ou seja, aquele baseado nos seguintes pilares: 1) negação de uma autonomia do homem que prescinda de Deus; 2) incentivo à modernização da atuação dos católicos no meio social, contanto que não coloque em questão a busca da “cidade cristã”; 3) negação e condenação do modernismo como assimilação sub-reptícia das autonomias políticas, sociais e culturais da modernidade.

A Igreja Católica encontrou o seu papel no século XXI?
Pergunta difícil. Acho que poderia responder essa pergunta com outra: A Igreja Católica encontrou o seu papel no século XX? Penso que seja essa a pergunta que deva ser respondida.

O jornal La Republicca produziu uma reportagem em que fala sobre o medo provocado pelo Vaticano II. Na chamada eles apresentam uma questão que replicamos para você: Quem ainda tem medo do Concílio?
Disse uma vez que o Vaticano II é aquele “obscuro objeto de desejo”. O que me parece é que cada um tem o concílio que deseja ter. Dependendo de sua posição social e religiosa você pode fazer o concílio falar o que deseja, e isso acontece, também, pelo "compromisso do pluralismo contraditório", que marcou os documentos finais do concílio. Assim, a grande questão atual referente ao concílio caminha no campo de sua hermenêutica. Compreender é também compreender-se diante de algo.

Dessa forma, gosto da perspectiva de Gadamer [9], que nos fala sobre a história efeitual. Para falar sobre o Vaticano II – tanto como qualquer outro evento – devemos estar cientes de que sofremos os efeitos das próprias compreensões sobre o concílio que foram sendo construídas desde a sua realização. Assim, “compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual”, dizia. Não sei como responder, a quem apontar como portador desse medo, já que deveria que saber a qual concílio esse medo teria como objeto.

Os mesmos intelectuais que sugerem um terceiro concílio e membros de dentro da própria Igreja criticam duramente Bento XVI. O que há de errado com este papa? Por que ele foi eleito se é tão contestado?
Acredito que uma das marcas desses anos de pontificado de Bento XVI foi a de tentar um certo reequilíbrio de forças. De fato, sempre houve exageros de parte a parte, ou cedendo demais ao “espírito da época”, colocando praticamente a Igreja de joelhos para o mundo, como afirmou Jacques Maritain num livro pós-conciliar, Le paysan de la Garone, perpassados por um otimismo frente às realidades imanentes, arriscando-se, de certa maneira, em perder referências seculares da tradição cristã; ou vendo na modernidade apenas perdição e anticristianismo, arriscando-se a cair numa paralisia devido a um pessimismo que a tudo contamina.

O discurso aos Cardeais no Natal de 2005 é, a meu ver, o momento em que Bento XVI deixa claro esse posicionamento, criticando as hermenêuticas de ruptura (descontínuas), visando, claramente, à manutenção e à conservação de uma herança que entende estar constantemente ameaçada pelos ventos pós-modernos e por radicalismos interpretativos dos documentos do Vaticano II. Os debates em torno desta questão apenas estão começando e a complexidade da discussão deve-nos levar a uma abordagem sempre cuidadosa e prudente entre as continuidades e descontinuidades na história da Igreja contemporânea trazidas à tona pelo evento conciliar.

_______________
Notas:
[1] Plínio Corrêa de Oliveira foi um ativista católico, fundador da organização Tradição, Família e Propriedade (TFP), de inspiração católico-tradicionalista.
[2] D. Geraldo de Proença Sigaud foi um religioso verbita, bispo católico. Arcebispo Emérito da Arquidiocese de Diamantina, em Minas Gerais.
[3] D. Antônio de Castro Mayer foi um bispo católico. Conhecido por ser o único bispo diocesano a não implantar o Novus Ordo Missae após sua promulgação e pelo seu rigor na ortodoxia e ortopráxis.
[4] Barbara Herrnstein Smith é crítico-literária estadunidense. É conhecida por seu trabalho Crença e Resistência – A Dinâmica da Controvérsia.
[5] Jacques Maritain foi um filósofo francês de orientação católica (tomista). As obras deste filósofo influenciaram a ideologia da Democracia cristã.
[6] Yves Congar foi um teólogo dominicano francês.
[7] Pe. Henrique de Lima Vaz foi um padre jesuíta, professor, filósofo e humanista. Nos anos 1960 tornou-se mentor da Juventude Universitária Católica – JUC e da Ação Popular, na sua primeira fase. Trabalhou no magistério filosófico universitário durante quase 50 anos. Vinculado fundamentalmente à metafísica clássica, possuía um vivo interesse pelo pensamento moderno e seus principais representantes, deixando-se seriamente questionar pela Modernidade. Grande destaque deve ser dado, também, ao seu profundo conhecimento da obra de F. Hegel.
[8] Émile Poulat é um historiador e sociólogo francês. Diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. É também diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França e historiador da Igreja Católica contemporânea. É um dos fundadores da sociologia da religião.
[9] Hans-Georg Gadamer foi um filósofo alemão considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica. Sua obra de maior impacto foi Verdade e método, de 1960.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...