domingo, 2 de novembro de 2014

Deus é gay?


Nunca antes na história da Igreja um papa ousou, como Francisco, colocar a questão da sexualidade no centro do debate eclesial: homossexualidade, casais recasados, uso de preservativo etc. O Sínodo da Família, realizado no Vaticano, só dará sua palavra final sobre esses temas em outubro de 2015, quando voltará a se reunir.

Quem, como eu, transita há décadas na esfera eclesiástica sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos. Por que não gozarem, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de se assumir como tal? Devem permanecer “no armário”, vitimizados pela Igreja e, supostamente, por Deus, por culpa que não têm?

É preciso reler o Evangelho pela ótica gay, como pela feminista, já que a presença de Jesus entre nós foi lida pelas óticas aramaica (Marcos); judaica (Mateus); pagã (Lucas); gnóstica (João); platônica (Agostinho) e aristotélica (Tomás de Aquino).

A unidade na diversidade é característica da Igreja. Basta lembrar que são quatro os evangelhos, não um só: quatro enfoques distintos sobre Jesus. Até a década de 1960, predominava no Ocidente uma única ótica teológica: a europeia, tida como “a teologia”. O surgimento da Teologia da Libertação, com a leitura da Palavra de Deus pela ótica dos pobres, causa ainda incômodo aos que consideram a ótica eurocentrada como universalmente ortodoxa.

Diante dos escândalos de pedofilia, dos 100 mil padres que abandonaram o sacerdócio por amor a mulheres, e da violência física e simbólica aos gays, Francisco ousa se erguer contra o cinismo dos que se arvoram em “atirar a primeira pedra.”

Como Jesus, a Igreja não pode discriminar ninguém em razão de tendência sexual, cor da pele ou condição social. O que está em jogo é a dignidade da pessoa humana, o direito de casais gays serem protegidos pela lei civil e educarem seus filhos na fé cristã, o combate e a criminalização da homofobia, um grave pecado. A Igreja não pode continuar cúmplice e, por isso, acaba de superar oficialmente a postura de considerar a homossexualidade um “desvio” e “intrinsecamente desordenada”.

A dificuldade de a Igreja Católica aceitar a plena cidadania LGTB se deve à sua tradição bimilenar judaico-cristã, que é heteronormativa. Por isso, os conservadores reagem como se o papa traísse a Igreja, a exemplo do que fizeram no passado, quando se recusaram a aceitar a separação entre Igreja e Estado; a autonomia das ciências; a liberdade de consciência; as relações sexuais, sem fins procriativos, dentro do matrimônio; a liturgia em língua vernácula.

Deus é gay? “Deus é amor”, diz a Primeira Carta do apóstolo João, e acrescenta “o amor é de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.” E, se somos capazes de nos amar uns aos outros, “Deus permanece em nós.”

Por ser a presença de Deus entre nós, Jesus transitou, sem discriminação, entre o mundo dos “pecadores” e dos “virtuosos”. Não apedrejou a adúltera; não fugiu da prostituta que lhe enxugou os pés com os cabelos; não negou a Madalena, que tinha “sete demônios”, a graça de ser a primeira testemunha de sua ressurreição. Jesus também não se recusou a dialogar com os “virtuosos” — aceitou jantar na casa do fariseu; acolheu Nicodemos na calada da noite; dialogou sobre o amor samaritano com o doutor da lei; propôs ao rico que, “desde jovem” abraçava todos os mandamentos, a fazer opção pelos pobres.

Sobretudo, ensinou que não é escalando a montanha das virtudes morais que alcançamos o amor de Deus. É nos entregando a esse amor, gratuito e misericordioso, que logramos fidelidade à Palavra.

Fé, confiança e fidelidade são palavras irmãs. Têm a mesma raiz. E a vida ensina que João é fiel a Maria, e vice-versa, não porque temem o pecado do adultério, e sim porque vivem em relação amorosa tão intensa que nem cogitam a menor infidelidade.

- Frei Betto

Fonte

Os Gays e o Sínodo dos Bispos


A Igreja Católica viveu um momento efervescente com a Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Família. A mensagem cristã neste campo tem uma grandeza e uma beleza inegáveis, mas também problemas e questionamentos inevitáveis. Só se considera matrimônio, base da família, a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher, que entre os fiéis deve ser celebrada com um rito religioso próprio. Só se aceitam as relações sexuais praticadas no matrimônio, excluindo os métodos artificiais de controle da natalidade. No mundo atual, estas posições destoam da vida da grande maioria dos fiéis e contrastam com as novas configurações familiares. Os nós da moral sexual católica também dizem respeito aos gays.

Ao convocar o Sínodo, o papa Francisco enviou a todas as dioceses do mundo um documento preparatório com 39 perguntas, a fim conhecer melhor esta realidade e começar a transpor este abismo entre doutrina e prática. Entre as perguntas, que atenção pastoral se pode dar às pessoas vivendo em uniões do mesmo sexo? E, no caso de adotarem crianças, o que fazer para lhes transmitir a fé? Portanto, não se trata simplesmente de reiterar a doutrina. Buscam-se caminhos de inclusão e cidadania eclesial.

No ensinamento do papa, sobretudo em sua carta a Alegria do Evangelho (Evangelii Gaudium), o anúncio do amor salvador de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Este anúncio deve curar todo tipo de ferida e fazer arder o coração, como o dos discípulos de Emaús ao encontrarem o Cristo ressuscitado. A Igreja deve ser sempre a casa aberta do Pai, onde há lugar para todos os que enfrentam fadigas em suas vidas, e não uma alfândega pastoral. O confessionário não deve ser uma sala de tortura, mas um lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor que pudermos. A Eucaristia não é prêmio dos perfeitos, mas alimento aos que necessitam e remédio generoso. Matizando a moral, o papa dá grande importância ao bem possível, às etapas de crescimento das pessoas que vão se construindo dia a dia.

Os relatórios produzidos desde a convocação do Sínodo apontam claramente nesta direção: não mudar a doutrina e o ideal sobre a família, mas acolher sem condenar as pessoas que vivem em outros modelos familiares, incluindo as uniões homossexuais e seus filhos. Pela primeira vez, não se fala em atos ‘intrinsecamente desordenados’ e contrários à lei natural, algo tão comum até recentemente. O que permanece é a recusa veemente de se equiparar legalmente união homo e união hétero. Estes relatórios não são ensinamento oficial da Igreja, e nem as conclusões da futura Assembleia Ordinária do Sínodo, convocada para outubro de 2015. Tudo tem valor apenas consultivo. Só será ensinamento oficial a exortação pós-sinodal, a ser escrita pelo papa em 2016.

É certo que esta Exortação vai estar na linha do papa Francisco, estimulando a flexibilidade e o acolhimento. O valor de todo este processo até agora, mais do que os textos, são os debates abertos na Igreja como nunca se viram nas últimas décadas. É muito bom o superior geral dos jesuítas dizer publicamente que pode haver mais amor cristão em uma união irregular do que em um casal casado na Igreja. Ou um arcebispo nigeriano opor-se à criminalização da homossexualidade em seu país, e apoiar famílias que acolhem seus filhos gays com os respectivos companheiros. Tudo isto ajuda a formar na Igreja uma opinião pública que aceita e estima a diversidade sexual.

O cristão adulto, que está atento aos sinais dos tempos e encontra razões em favor da plena cidadania dos LGBT, não precisa esperar o apoio total da hierarquia católica para agir nesta direção. Porém, é muito importante aproveitar as oportunidades que podem surgir na Igreja, sobretudo em nível local, para o acolhimento das pessoas e a superação do preconceito. A homofobia religiosa tem uma longa história e uma considerável abrangência. Mas ninguém deve ser proibido de mudar para melhor, nem as pessoas, nem as instituições.

Equipe Diversidade Católica
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