quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Deus da justiça


Jung Mo Sung provoca: “Quem tem o poder de definir o que é heresia, se Cristo também foi considerado herético?”

Sung, sul-coreano de nascimento, tem 55 anos, mas está radicado no Brasil desde 1966, tendo se naturalizado no país onde vive com a mulher e os dois filhos. Intelectual cristão com predicados acadêmicos que o projetam internacionalmente – é doutor em Ciências da Religião e pós-doutor em Educação –, ele é um homem cujas opiniões e posturas transcendem a esfera confessional. Teólogo liberal, Sung é autor de 17 livros, palestrante requisitado e especialista em temas econômicos, que aborda sob a ótica da fé cristã. Sim, os dois assuntos têm muito em comum, com ele demonstra em obras como Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias (Fonte Editorial), Deus numa economia sem coração e se Deus existe, por que há pobreza (Paulinas). Para Sung, Cristo veio ao mundo também para trazer boa nova aos pobres – a de que eles podem ter uma vida digna. Por isso, não se conforma com abordagens cristãs que situam as desigualdades sociais como fruto da vontade divina: “É mentira colocar sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, e não sobre o pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça.”
Jung Mo Sung tem bom trânsito em diversos círculos protestantes. É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, por exemplo. Além disso, tem sido interlocutor frequente de líderes evangélicos, tanto pentecostais como de linha tradicional. Por isso mesmo, tem um conhecimento profundo do segmento evangélico, presente em sua reflexão teológica e, evidentemente, no pensamento crítico a certos valores que andam em alta. “Identificar as bênçãos com a riqueza é critério mundano”, dispara. “É por isso que pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza e da posse de bens de luxo, como aviões particulares”.

CRISTIANISMO HOJE – O senhor é conhecido por seus vários trabalhos na área de economia, onde aborda temas como mercado e pobreza sob ótica cristã. Uma pergunta sempre surge quando se trata dessa relação – se Deus existe, por que há miséria e injustiças sociais?
JUNG MO SUNG – O tema da economia tem sido um dos objetos fundamentais da minha reflexão teológica porque Deus é Deus da vida e Cristo veio anunciar a boa nova aos pobres – a boa notícia de que também os pobres têm direito a uma vida digna. E a vida não é possível sem bens materiais, que fazem parte da economia. Jesus veio nos mostrar a verdadeira face de Deus, contra a mentira que coloca sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, que são frutos do pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça.

Um de seus livros é Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias. Passada a divisão ideológica do mundo entre esquerda e direita, qual o legado da teologia da libertação, hoje?
Em primeiro lugar, o que acabou foi a chamada Guerra Fria entre o bloco capitalista e o comunista. Mas as injustiças e graves desigualdades sociais ainda continuam no mundo. Norberto Bobbio, um importante teórico liberal, disse que ainda hoje faz sentido falar em direita e esquerda. Para ele, ser da direita é crer que as diferenças sociais são naturais e promovem progresso econômico – e, portanto, não devem ser combatidas. Ser da esquerda é crer que, mesmo que diferenças sociais não possam ser extintas, é preciso lutar para diminuí-las, pois causam grave injustiça social. Eu concordo e me sinto, como ele, alguém da esquerda, isto é, luto para diminuir desigualdades e injustiças sociais. Penso que a contribuição mais importante da teologia da libertação – não só para a Igreja Católica, mas também para muitos outros grupos religiosos, incluindo as correntes não-cristãs que foram influenciadas por ela –, foi a de mostrar que Deus não é indiferente aos sofrimentos dos pobres e dos injustiçados. A consequência social dessa visão teológica é que o cristianismo ainda tem ou pode ter um papel social importante no mundo.

O que o senhor diria sobre a influência desse movimento sobre os evangélicos?
A teologia da libertação não nasceu católica. Na verdade, entre os primeiros autores latinoamericanos a tratarem da teologia nessa perspectiva estão presentes teólogos protestantes, como Richard Shaull, Miguez Bonino e Rubem Alves. Podemos dizer que a teologia da libertação nasceu ecumênica e influenciou diversos setores das igrejas protestantes evangélicas e da Igreja Católica. Com passar do tempo, ela se tornou mais católica, sem deixar de ter entre o seu meio teólogos protestantes. Mesmo setores que não aderiram àquela teologia foram influenciados na medida em que foram “pressionados” a debater sobre problemas sociais a partir da fé cristã.

A opção preferencial pelos pobres, expressa pela Igreja Católica nos anos 1960, nunca encontrou, ao menos formalmente, eco na Igreja Evangélica. Na sua opinião, o que difere os dois grupos no trato da questão e por que os evangélicos têm certo pudor de assumir essa causa como prioritária na sua prática cristã?
Eu penso que setores evangélicos ainda são muito marcados pela divisão entre a pregação da Palavra e a ação social. Para muitos grupos, a prioridade das Escrituras ficou reduzida ao anúncio sem, podemos dizer, uma ação concreta que desse consistência à afirmação de que Jesus é o Senhor. A teologia da missão integral tentou superar essa dicotomia fazendo uma equação simples – a Palavra de Deus mais a ação social. Enquanto isso, a “opção pelos pobres” feita pelos adeptos da teologia da libertação significa que a forma concreta de anunciar que Jesus é o Senhor em um mundo marcado por tanta injustiça social é optar pelos pobres. Em outras palavras, os senhores do mundo oprimem os pobres e os consideram como sub-humanos; por isso, anunciar o senhorio de Jesus ou de Deus seria afirmar que pobres também são seres amados pelo Senhor, com direito a uma vida digna.

Quais são, em sua opinião, os pontos de afinidade e diálogo entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral?
O ponto de afinidade mais importante, na minha opinião, é a convicção, expressa por ambas as teologias, de que Deus não é indiferente às injustiças e aos sofrimentos dos pobres no mundo. Portanto, se Deus não é indiferente, ser indiferente ou insensível aos sofrimentos das pessoas pobres ou vulneráveis não é atitude compatível com o cristianismo. Por isso, as duas teologias levam a sério o chamado de Jesus à conversão, a sair do mundo do pecado, da injustiça e da mentira em direção ao Reino de Deus. Outra afinidade importante se dá em torno da teologia da encarnação. Deus se esvaziou do seu poder divino e se encarnou no meio da humanidade para que também nós vivêssemos a nossa missão no meio do mundo, sem a pretensão de um poder sobrenatural para resolver os problemas. Essa é a convicção de que não se pode viver a fé cristã sem se encarnar no mundo, na luta contra as injustiças e mentiras que matam! Em torno desses dois pontos teológicos em comum é possível desenvolver diálogos importantes entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral.

A teologia da missão integral, tão valorizada em segmentos protestantes históricos e denominações tradicionais, sequer é mencionada no ambiente neopentecostal, onde a ênfase é mais no assistencialismo de ocasião. Caso essa escola de pensamento missional fosse majoritária na Igreja Evangélica como um todo, haveria espaço para o neopentecostalismo e para sua ação nas classes mais pobres?
As igrejas neopentecostais partem de uma opção distinta em relação à teologia da missão integral. Enquanto que ela e a teologia da libertação criticam o mundo atual pelas suas injustiças, os principais expoentes do neopentecostalismo e da teologia da prosperidade não o fazem. Na verdade, eles aceitam os valores e a hierarquia social do mundo e propõem levar os cristãos ao topo dessa hierarquia. Por isso, as bênçãos são identificadas com a riqueza, que é critério essencial do mundo; e pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza da posse de bens de luxo, como aviões particulares. Mesmo que a missão integral fosse majoritária nos segmentos históricos e tradicionais do protestantismo, o neopentecostalismo e teologia da prosperidade teria seu espaço. Afinal, muitos querem subir a hierarquia social, não necessariamente encontrar Deus que se manifestou em Jesus.

O senhor concorda com a afirmação que diz que “a Igreja Católica optou pelos pobres e estes optaram pelo neopentecostalismo”?
Eu penso que essa frase, tão repetida, tem problemas. Primeiro, não se pode entender a força da teologia da libertação sem a rede imensa das comunidades eclesiais de base, que teria chegado a mais de 100 mil nas décadas de 1980-90 no Brasil. Muitos pobres optaram por elas, que são uma forma específica de organização de comunidade no interior da Igreja Católica. Mas, como há muitos pobres na América Latina, muitos optaram pelo pentecostalismo. Porém, é preciso apontar que não há um só tipo de igrejas pentecostais. Penso que muitas comunidades ou congregações pentecostais também fizeram um grande trabalho em relação aos pobres, na linha de opção por eles, mesmo quando não usavam essa terminologia.

Diante do avanço numérico da Igreja Evangélica, fenômeno constante e crescente desde os anos 1970, já se fala numa possível quebra da hegemonia católica ainda na primeira metade deste século. O senhor concorda que isso deva acontecer?
É difícil fazer esse tipo de previsão, pois a sociedade não funciona como uma máquina. Além disso, o crescimento numérico das igrejas evangélicas e pentecostais já está em um ritmo menor do que em anos anteriores. E isso é normal, na medida em que uma boa parcela da população suscetível de mudar de crença já foi atingida pelas igrejas evangélicas. Na minha opinião, se uma igreja, seja Católica ou evangélica, faz do aumento do número de seus membros o seu principal objetivo, ela perdeu de vista a missão principal do cristianismo. A missão das igrejas cristãs é anunciar o Reino de Deus, que é amor solidário, perdão, misericórdia e justiça para a humanidade, e não entrar em competição para ver qual é a maior. Como disse Jesus, a igreja que quiser ser a maior tem que assumir a atitude do menor e servir. Por isso, eu não me preocupo muito sobre o que a Igreja Católica deve fazer para frear o avanço das igrejas evangélicas, mas sim, acerca de como ela poderia servir mais e melhor a Deus no serviço ao povo que sofre.

Que personalidades intelectuais evangélicas o senhor respeita por sua capacidade de diálogo com a academia?
Eu respeito e admiro muitas pessoas do mundo evangélico. Por isso, nomear alguns seria correr risco de esquecer muitos. Mas, como não é possível viver, e nem dar entrevistas, sem correr riscos, vou nomear alguns só para que os leitores tenham ideia do meu círculo de relacionamento: René Padilla, teólogo da missão integral, e Néstor Miguez, teólogo metodista argentino; e os pastores Ed René Kivitz (batista) e Ricardo Gondim (pentecostal). Todos eles estão em minha biblioteca, assim como Milton Schwantes, Julio de Santa Ana, Elsa Tamez, Junger Moltmann, Dietrich Bonhoeffer, C.S. Lewis e muitos outros protestantes e evangélicos.

O senhor apresenta-se como um leigo católico, mas tem excelente trânsito em vários círculos evangélicos e ocupa cargos de direção acadêmica em uma instituição de orientação protestante. Como é o seu diálogo com os variados segmentos evangélicos, sobretudo aqueles mais ortodoxos, como os representados por instituições como Instituto Mackenzie, Seminário Servos de Cristo e Faculdade Teológica Batista?
Eu tenho bons relacionamentos com diversos professores dessas instituições e, quando a correria de São Paulo nos permite, mantemos bons diálogos. É importante ressaltar que diálogo só é necessário quando pensamos diferente, e só se torna possível quando temos um objetivo em comum. Eu lhes apresento as minhas ideias a partir de textos bíblicos em uma atitude de respeito e diálogo.

No seu entender, como está a formação teológica hoje, no Brasil?
É muito difícil falar de formação teológica no Brasil porque há uma diversidade muito grande. Mas, penso que enfrentamos um problema fundamental. Grosso modo, podemos dividir a formação teológica em dois grandes grupos. Um deles é o dos seminários que fazem da leitura mais literal da Bíblia o eixo central da sua formação, com muito pouca abertura para diálogo com as ciências humanas e sociais contemporâneas; o outro, com os seminários de linha mais liberal, com ênfase nos conceitos teológicos e filosóficos, com uma preocupação forte na desmistificação dos textos bíblicos. O problema é que seminários do primeiro tipo não conseguem mais dar conta das perguntas e demandas dos setores do mundo evangélico que têm acesso à formação universitária ou à cultura moderna. Por isso, cada vez mais jovens e lideranças dessas igrejas procuram escolas teológicas com maior consistência teórica. Porém, essas pessoas são movidas por experiências religiosas e por linguagens simbólico-bíblicas que são criticadas pelo pensamento teológico liberal. Assim, surge um conflito, uma dificuldade de diálogo entre professores e alunos nesses seminários.

Por que não há uma fusão das duas demandas, sobretudo visando à formação de pastores mais capacitados?
Isso exigiria a criação ou fortalecimento de modelos de seminários teológicos que valorizem a experiência religiosa e a linguagem simbólica sem, contudo, perder a seriedade teórica. No fundo, exige um novo modelo de fazer teologia e de educação teológica. Eu tratei mais longamente desse desafio na segunda parte do livro Missão e educação teológica, que escrevi com Lauri Wirth e Néstor Miguez [Editora Aste]. Na medida em que superarmos esse impasse, vamos encontrar uma formação teológica que não crie dicotomia entre a formação de pastores ou de teólogos. Os pastores precisam de formação teológica séria para realizar sua missão hoje; e quem quer seguir a carreira de teólogo precisa também ter bom conhecimento das práticas pastorais.

Se, como o senhor disse recentemente, a salvação não pode ser exclusiva do cristianismo, quais seriam os outros caminhos utilizados por Cristo para salvar o homem?
Segundo o evangelho de São João, e também nas suas cartas, Cristo nos ensina que Deus é amor e que quem ama o próximo, como o bom samaritano, está em Deus – e Deus está nele. A Primeira Carta de João nos ensina que ninguém jamais viu a Deus; mas, quando amamos uns aos outros, o amor de Deus se faz presente ou se realiza em nós. É nisso que creio. O Espírito do Cristo ressuscitado salva seres humanos no amor e por amor. O cristianismo é importante porque ensina isso, e não porque é meio exclusivo de salvação.

A Bíblia, para os evangélicos, é a Palavra de Deus. No seu entender, há outras formas de revelação divina comparáveis às Escrituras?
Segundo a Bíblia – por exemplo, na epístola aos Hebreus, capítulo primeiro –, a Palavra de Deus é a pessoa de Jesus. Deus nos fala através da pessoa de Jesus e não através da Bíblia, que é um conjunto de livros. Essa é uma confusão que muitos fazem. Para termos acesso a Cristo, para entendermos bem a vida e a pessoa de Jesus, que nos revela a face de Deus, precisamos da Bíblia – que contém a memória dos que viveram a experiência de serem tocados por Deus ou que conheceram a Jesus. Como a vida de uma pessoa como Jesus é muito rica, a Igreja primitiva definiu um conjunto de livros, que forma o Novo Testamento, como portadores da memória de sua vida e de seus ensinamentos. Muitas cartas são explicações ou admoestações sobre como as comunidades estavam vivendo a fé em Jesus. Em resumo, segundo a própria Escritura Sagrada, a Bíblia nos leva a conhecer a pessoa de Jesus, que é a Palavra de Deus encarnada entre nós. Em resumo, mesmo correndo risco de ser mal interpretado, eu quero dizer que para cristianismo não há revelação comparável à Escritura – por isso, somos cristãos–, mas a própria Escritura nos diz que o Espírito de Deus sopra onde quer; assim, creio que Deus se revelou à humanidade para além do cristianismo. Mas creio nisso a partir da Bíblia.

Em seu livro Ilusão ou realidade? (Ática), o senhor fala da oração como um momento de discernimento, entre outras coisas, acerca do melhor caminho para a concretização de atos de amor que anulam nossa ideia de impotência diante dos clamores do mundo. No seu entendimento, o que mais a oração pode representar para o cristão?
A oração é, acima de tudo, uma atitude de se colocar diante de Deus de forma humilde – pois só o fato de sabermos que nos colocamos diante de Deus deve nos levar a uma postura de humildade. É o momento em que buscamos a vontade de Deus, e não o nosso desejo egoísta ou as vontades colocadas em nós pelo mundo e por sua mídia. Na medida em que discernimos a vontade de Deus, pedimos força espiritual para seguirmos nesse caminho, pois sem essa força que vem de Deus não seremos capazes de resistir às tentações que o mundo nos oferece, com suas vaidades de sucesso e egoísmo. Oração é, também, momento de pedirmos perdão, confiando na misericórdia infinita de Deus. Há momentos em que essa oração precisa ser feita na solidão diante de Deus; em outras situações, é importante que seja feita de forma comunitária.

O senhor mentoreou o pastor Ricardo Gondim em sua dissertação de mestrado A Teologia da missão integral: Aproximações e impedimentos entre evangélicos e evangelicais , aprovada em 2009. Ultimamente, Gondim tem sido considerado extremamente heterodoxo em algumas de suas falas acerca da fé cristã – sobretudo, quando aborda o teísmo aberto e a doutrina da salvação. No seu entender, até que ponto as suas posturas influenciam Gondim e qual o resultado disso sobre o ministério dele?
Em primeiro lugar, quando Ricardo Gondim veio fazer mestrado sob minha orientação, ele já tinha essas ideias. Portanto, não penso que eu fui o influenciador dessa postura teológica dele. Em segundo, é preciso perguntar quem considera a teologia dele herética. Essas pessoas têm suas teologias e suas vidas cristãs acima da suspeita e, por isso, detêm tal autoridade? Eu li vários textos de Ricardo Gondim e não acho que sejam heréticos. Não concordo com tudo, mas isso não significa que sejam heréticas. Ele tem insistido muito em que a salvação é graça, fruto da misericórdia de Deus. Não há nada mais protestante do que isso! Na verdade, penso que o que mais incomoda nas pessoas é a afirmação, que não é original dele, de que Deus não tem controle sobre a história. Ora, mas isso é bíblico!

Como assim?
Se Deus tivesse controle sobre tudo o que acontece, tudo o que acontece seria da vontade dele. Mas, na Bíblia, encontramos inúmeros chamados de Deus à conversão e ao arrependimento, o que mostra que ele não estava de acordo com o que acontecia no povo de Israel. O chamado à conversão e a própria missão das igrejas só têm sentido se a história humana é feita de liberdade. Só há conversão, se há liberdade. E se há liberdade, não há predeterminação divina. Muitas pessoas preferem a falsa segurança que a teologia do controle absoluto de Deus parece dar do que a verdadeira mensagem da Bíblia: o chamado à conversão e a vida na fé. Por isso, pastores como Ricardo Gondim e outros dessa linha são objetos de crítica. Mas, não há como seguir o caminho de Cristo sem também compartilhar da cruz dele.

Mas a ideia de que Deus pode ser “pego de surpresa” – como, por exemplo, o teísmo aberto chega a sugerir diante de grandes catástrofes como o tsunami de 2004 – não diminui sua qualidade de Senhor sobre tudo e todos? A soberania divina não ficaria sublimada na teologia relacional?
Há duas formas de entender a noção de soberania de Deus. A mais comum é usar o mesmo sentido daquele dado ao poder de imperadores e reis. Um soberano tinha poder de vida e morte sobre os súditos, seu povo, porque estava acima da lei – ou seja, sua vontade era a lei. Assim era, por exemplo, no Império Romano e na Idade Média europeia. A afirmação da soberania de Deus não significa atribuir a ele essas mesmas características do imperador, o que seria terrível! Dizer que Deus é soberano é afirmar que imperadores, reis ou governantes de todo tipo não têm ou não deveriam ter esse poder de vida e morte, pois tal prerrogativa só cabe a Deus. É relativização do poder do imperador. Em segundo lugar, Deus é um soberano, diferente dos reis que tudo controlam e tudo dominam (que vem da palavra dominus, senhor). A soberania de Deus é caracterizada por amor e liberdade: é esse o ensinamento de Cristo. Bem, Deus poderia ter sabido do tsunami antes do acontecimento? Não gosto desse tipo de especulação, pois só nos leva a uma vaidade intelectual de querer saber sobre a mente do Senhor. O que posso dizer é que a história humana é feita de liberdade e nós somos chamados por Deus a viver o amor solidário e livre neste mundo marcado por injustiças e sofrimentos, mas, também, por alegrias e esperanças.

Então, como o que o senhor chama de Deus “padrasto-sádico” em seu livro Deus – Ilusão ou realidade (Ática) mais se manifesta?
Precisamos nos recordar que, quando Deus se revelou a Abraão, a Moisés ou aos profetas, os povos já tinham religiões e acreditavam em deuses. A revelação bíblica não é para ensinar que Deus existe, mas para ensinar a discernir a verdadeira imagem de Deus das falsas. O “deus padrasto-sádico” é muito comum nas religiões, e também nas igrejas cristãs. Confundimos Deus com dominadores, com ditadores sádicos que se apresentam como pais da pátria. O estudo da Bíblia e da teologia é importante exatamente para ajudar as comunidades cristãs e o povo em geral não cair nessas mentiras, ou na “idolatria”, como diz a Bíblia. Deuses que exigem sofrimento e sacrifícios para a salvação ou que justificam injustiças em nome de “mistério da salvação” são, segundo a Bíblia, deuses falsos, isto é, ídolos. Como ensinou Jesus, Deus quer misericórdia, e não sacrifícios.

Em que medida uma teologia considerada herética pode contribuir para o amadurecimento da fé de um cristão?
Nós só pensamos seriamente na nossa fé e amadurecemos a compreensão e a vivência dessa fé na medida em que somos enfrentados por formas diferentes de pensá-la e de vivê-la. Por isso, teologias consideradas heréticas têm o papel importante de nos fazer pensar. Além disso, é preciso perguntar: quem considera essas teologias heréticas? Quem tem esse poder, ou qual é a instância do magistério para definir heresia no mundo evangélico? Na Igreja Católica, esse poder está no Vaticano ou nos Concílio dos Bispos; mas, nas igrejas evangélicas, parece-me que não há essa instância. Por isso, é preciso perguntar, antes de mais nada: quem disse que tal teologia é herética? Não podemos nos esquecer que Jesus foi considerado blasfemo e herético pelos sacerdotes e teólogos da sua religião.

Fonte: Cristianismo Hoje

Imagem utilizada com permissão

Rezar é escutar


O Site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, de Portugal disponibilizou uma excelente reflexão sobre espiritualidade.
Rezar é escutar
Kierkegaard escreveu: «quando a minha oração se foi tornando cada vez mais devota, comecei a ter cada vez menos o que dizer. Por fim, fiquei em silêncio total. Tornei-me no que porventura ainda é um grande oponente à conversa, tornei-me em alguém que escuta. Inicialmente pensava que rezar era falar; aprendi, porém, que rezar não é apenas ficar em silêncio, mas escutar. Então é assim: rezar não é apenas ouvirmo-nos a falar. Rezar é ficar em silêncio e estar em silêncio, e esperar até que o Deus que reza escute».
A centralidade da Palavra na vida e na missão da Igreja é indiscutível, todavia «o primado não cabe à evangelização, mas à escuta» (B. Maggioni). Recordemos as palavras de S. Bento: «Escuta, filho, os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração».
Escutar, significa um confronto permanente da Palavra com a existência e vice-versa. Para tal exige-se tempo, estudo, oração, contemplação. Com efeito, «a evangelização nasce da escuta: uma escuta viva, contínua, sempre renovada, indispensável para que o anúncio conserve intacta e visível a própria frescura, capaz de suscitar surpresa» (B. Maggioni). (...)
Escutar é deixar Deus falar e entrar no coração, como escreveu a grande Etty Hillesum: «Creio que vou ser capaz. De manhã, antes de começar a trabalhar, passar meia hora a ouvir-me a mim própria, a voltar-me "para dentro". "Submergir-me". Também podia dizer: meditar. Mas esse verbo ainda me assusta um bocado (...) Uma "hora silenciosa" não é fácil de conseguir. Tem que se aprender a consegui-la (...) O objetivo da meditação é, cá dentro, uma pessoa transformar-se numa planície grande e vasta, sem o matagal manhoso que não nos deixa ver. Deixar entrar um pouco de "Deus" em nós, como existe um pouco de "Deus" na Nona de Beethoven». (...)
Escutar – eis o mandamento prioritário.
«Escutai-O», é a voz do Silêncio que se ouve no Batismo e na Transfiguração do
Senhor.
Se no princípio era o Verbo para Deus. Para o homem, no princípio é a escuta.
A escuta é, com efeito, o lugar da conversão do coração.
Y. Congar escreveu no seu diário do Concílio, logo no primeiro dia: «Eu sei que uma Bíblia será colocada num trono, para presidir ao Concílio. Mas será que ela falará? Escutá-la-emos? Haverá aqui um momento para a Palavra de Deus?» (...)

O silêncio ouvinte
O silêncio eloquente de uma catedral.
«escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus (…)
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco» (Sophia de Mello Breyner)
«Quem não sabe calar não sabe escutar. E quem não sabe escutar não reza, mas quem não sabe rezar nunca poderá entender nada do mistério de Deus (…). O silêncio não é um vazio, uma clausura, mas um fluir no Verbo, um abrir-se ao eterno, um dar espaço à escuta Daquele que nos habita (…). Nada tem eficácia quanto o silêncio carregado de Deus, a oração» (Anna Maria Canopi, osb).
Todos experimentamos átimos da visão da glória, como dizia o Patriarca Atenágoras: «na primavera unes-te ao aleluia da primeira amendoeira em flor». Talvez a dificuldade resida na ausência, ou seja, «Deus está perto de nós, mas nós estamos longe de Deus. Deus está dentro, nós estamos fora. Deus está em casa, nós estamos no estrangeiro» (Mestre Echkart).
Que grandeza há no silêncio – não o silêncio nefasto da falta mas no da virtude, que é perfeito quando dele não se tem consciência – e que força se pode extrair dele. A alegria cristã é a simplicidade de uma fé, a seriedade de uma esperança, a vitalidade do amor. As novas palavras ou palavras novas, da oração, falem a linguagem do amor.
Ora et labora é o lema dos beneditinos. Mas, pensando bem, no mesmo labora está contido oora. Lab-ora = labia et ora, isto é, depois do ora, a própria oração torna-se ação – o que sai dos lábios do orante, torna-se vida. No dizer de S. Bento, quando rezamos (salmodiamos): «que o nosso espírito concorde com a nossa voz». Então, salmodiar e rezar, isto é, escutar a Palavra de Deus e responder-lhe. A leitura e o trabalho são duas ocupações que dividem o dia e se prestam a um esforço de constate oração. (...)
Rezo, porque não posso viver sem mistério. Rezo para pedir Deus a Deus. Como relatou na sua experiência, Etty Hillesum: «Ontem à noite, pouco antes de me ir deitar, dei por mim, de repente, ajoelhada na alcatifa, no meio desta grande sala, entre as cadeiras de metal. Assim. Sem mais nem menos. Puxada para o chão por algo mais forte do que eu. Faz tempo, tinha dito de mim para mim: "Vou ver se consigo ajoelhar-me". Tinha ainda muita vergonha desse gesto tão íntimo como os gestos do amor, todos gestos de que ninguém consegue falar. A não ser um poeta (...) A força criadora é, afinal de contas, uma parte de Deus. As pessoas precisam é de ter a coragem de o dizer (...). Estas palavras acompanharam-me semanas a fio. É preciso é ter a coragem de o dizer. A coragem de pronunciar o nome de Deus».
Concluo com uma resposta de K. Rahner aos jornalistas: «oiça, eu não acredito em Deus por ter conseguido dar resposta a todas as questões, para satisfação da minha
mente. Eu continuo a acreditar em Deus porque rezo todos os dias».

D. José Cordeiro
Bispo de Bragança-Miranda
3.ª Jornada de Teologia Prática, Lisboa, 26.10.2012
08.11.12

Imagem utilizada com permissão.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A Igreja deveria estar no lado do debate livre


Reflexão brilhante, serena e assertiva de um jesuíta e cientista político sobre a Igreja e o quadro político, diante da reeleição de Obama e do avanço do casamento gay.

Existe um ''plano B político'' para os bispos dos EUA?
Depois de uma derrota eleitoral tão imponente, é hora de os bispos dos EUA reexaminarem a sua estratégia política. A atual estratégia não está funcionando, e não há nenhuma indicação de que irá funcionar melhor no futuro.

A análise é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, membro sênior do Woodstock Theological Center, da Georgetown University, e ex-diretor da revista America, dos jesuítas dos EUA. O artigo foi publicado no jornal National Catholic Reporter, 11-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Enquanto os bispos dos Estados Unidos se reúnem em Baltimore esta semana para o seu encontro anual, eles, assim como todo o resto do país, estarão falando sobre a eleição da semana passada. Os bispos dos Estados Unidos levaram uma surra nas urnas. Não apenas o presidente Barack Obama foi reeleito apesar dos seus ataques sobre ele; os bispos também perderam em referendos estaduais sobre o casamento homossexual.

Como todos os norte-americanos, os bispos têm um direito constitucional de participar do processo político. Eles podem debater as questões, criticar os candidatos e expressar publicamente as suas opiniões. Eles podem até apoiar candidatos, contanto que não o façam nas propriedades da Igreja e nem usem os fundos da Igreja para apoiar um candidato ou partido. De fato, eles podem até concorrer à presidência, como fez o Pe. Pat Robertson e o Pe. Jesse Jackson. A Constituição dos EUA não proíbe isso; é o direito canônico católico romano que o proíbe.

Mas o que é constitucional nem sempre é eficaz ou prudente. Claramente, a estratégia política dos bispos não está funcionando. A maioria dos católicos votou em Obama, e os ativistas gays ganharam todos os referendos. Os candidatos republicanos ao Senado do Missouri e de Indiana, que assumiram as mais duras posições sobre o aborto, também foram derrotados quando se esperava que os republicanos vencessem essas disputas.

Então, para onde os bispos irão a partir daqui? Alguns bispos vão culpar os políticos católicos que defendem o direito ao aborto e exortarão que sejam excluídos da Comunhão. As irmãs, padres e teólogos que exortaram os eleitores a levar em consideração uma ampla gama de questões de justiça também serão culpados. Esses bispos não verão nenhuma necessidade de mudança na estratégia política. "Os bispos precisam ser mais duros; os dissidentes precisam ser punidos; toda velocidade à frente!".

Muitos bispos, que ficaram em silêncio durante a eleição, estão cansados da notoriedade que os bispos políticos recebem. Eles preferem que as suas paróquias fiquem livres da política partidária. Mas, como os meios de comunicação têm dificuldade para cobrir o silêncio, os bispos políticos levam toda a tinta e o tempo de programação. Isso faz com que pareça que esses bispos estão falando por todos os bispos.

Felizmente, a portas fechadas, alguns bispos reconhecerão que a estratégia atual não está funcionando e perguntarão: "Existe uma forma melhor? Existe um plano B?". Aqui, eu estou escrevendo como cientista político, não como padre ou teólogo. Eu não estou desafiando o ensino da Igreja. Estou questionando a estratégia política.

O primeiro passo no plano B deveria ser escutar. Os bispos precisam ouvir aqueles eleitores católicos que ignoraram os seus conselhos e descobrir por quê. Toda a premissa por trás do "No Child Left Behind" [programa do governo norte-americano para acabar com as diferenças no desempenho escolar] é que, quando os estudantes fracassam, nem sempre a culpa é deles. Os professores precisam examinar como eles ensinam para que os alunos possam aprender. Os bispos precisam ouvir.

Segundo, qualquer nova estratégia precisa ser realista. Dada a atual situação política, o que é possível? A estratégia política não pode ignorar os dados. Na última eleição, os republicanos ignoraram os dados de pesquisa e realmente acreditaram que ganhariam a presidência e o Senado. A grande onda de eleitores republicanos nunca apareceu.

Quais são os dados que os bispos precisam examinar?

Primeiro, é claro que há um tsunami iminente de eleitores jovens que acabarão tornando o casamento homossexual legal na maioria dos Estados da união. A probabilidade de parar esse tsunami é muito baixa. Enquanto os adversários mais velhos do casamento gay morrem, eles são substituídos por eleitores mais jovens que têm amigos que são gays. Este é um mundo novo. Se você sabe que vai perder uma luta, você quer lutar de uma forma que lhe cause o mínimo de danos. Táticas que enfurecem os seus adversários tornarão mais difícil aos bispos obter as isenções que eles desejam nessa nova realidade.

Por exemplo, depois que os bispos gastaram um milhão de dólares lutando contra o casamento gay em Massachusetts, não foi nenhuma surpresa que os ativistas gays lutaram contra a isenção dos serviços católicos de assistência social e de adoção de atender a casais homossexuais. Eles viam isso como uma vingança política. Em última análise, os bispos podem ser forçados a tratar casais do mesmo sexo da mesma forma que tratam divorciados e casais em segunda união cujos casamentos não são aprovados pela Igreja. A Igreja não gosta desses casamentos, mas eles são reconhecidos como legais pelo direito civil.

Segundo, apesar de todos os esforços dos bispos e dos ativistas antiaborto, o país está tão dividido sobre o aborto hoje como estava há décadas. Pesquisas de opinião pública mostram que as pessoas não gostam do aborto, mas não querem torná-lo ilegal. Ninguém veio com uma estratégia para mudar a mente do público. Mesmo que a decisão Roe versus Wade fosse invertida, o aborto ainda seria legal na maior parte do país. Aqueles que vivem em um Estado onde ele é ilegal poderiam facilmente ir até um Estado onde ele é legal.

Se tornar o aborto ilegal é um sonho impossível no atual ambiente político, qual é o plano B? O plano B deve ser trabalhar com políticos de qualquer sigla, incluindo políticos que defendem o direito ao aborto, para apoiar programas que reduzam o número de abortos.

Os bispos devem ir ao encontro de todos os políticos e grupos que estejam dispostos a apoiar programas que ajudem as mulheres a manter e a criar os seus filhos. É possível concordar com os políticos em algumas coisas e discordar com eles em outras. Simplesmente alinhar a Igreja aos políticos republicanos, que prometem fazer algo sobre o aborto, mas que, em seguida, cortam programas que ajudam as mulheres, é uma estratégia fracassada. Em vez de melhorar as coisas, isso só as piora. O plano B significa voltar à ética de vida coerente promovida pelos bispos no passado.

Alguns bispos vão rejeitar essa estratégia como pragmática e não profética. Mas vivemos em um mundo imperfeito. Dado que o sonho de tornar o aborto ilegal é impossível, então o imperativo moral é fazer todo o possível para reduzir o número de abortos.

Os bispos também precisam pôr de lado táticas que são contraproducentes. Usar uma retórica excessiva, como comparar o presidente a Adolf Hitler ou a Joseph Stalin, ou acusar o governo de estar fomentando uma guerra contra a religião, torna difícil formar coalizões para alcançar objetivos alcançáveis.

Banir políticos que defendem o direito ao aborto ou eleitores católicos da Comunhão é contraproducente. Tal proibição não é a posição oficial da Igreja, mas muitos bispos estão fazendo isso (e poucos bispos estão criticando essa prática) que muitos veem como a política da Igreja. Toda vez que você tem que usar o poder ao invés da persuasão em um debate político, você perdeu. Isso também reforça o fato de ver o aborto como uma questão católica baseada na fé, e não como uma questão de direitos humanos com base na razão.

Banir políticos que defendem o direito ao aborto e defensores do casamento gay das universidades católicas também é contraproducente. Isso faz com que os bispos pareçam fracos, e não fortes. Isso diz ao mundo que os bispos pensam que os seus argumentos são tão fracos que eles não podem permitir que os estudantes ouçam os seus oponentes. Qualquer estratégia baseada na censura ao invés da persuasão fracassou antes que uma palavra seja pronunciada. A Igreja deveria estar no lado do debate livre e aberto, porque "a tradição católica afirma", nas palavras de Bento XVI, "que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da Revelação".

Eu não reivindico o fato de possuir uma estratégia infalível para os bispos, mas, depois de uma derrota tão imponente, é hora de os bispos reexaminarem a sua estratégia política. A atual estratégia não está funcionando, e não há nenhuma indicação de que irá funcionar melhor no futuro.

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Homossexuais católicos: saindo do impasse


No momento em que o debate homossexual esquenta nos ambientes católicos, um membro do conselho de administração da Conferência Católica dos Batizados Francófonos (CCBF) nos oferece 130 páginas de uma reflexão aprofundada e comedida.

A reportagem é de Monique Hébrard, publicada no sítio Baptises.fr, 29-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Claude Besson fala com autoridade: autoridade que lhe vem de 12 anos de escuta e de diálogo com homossexuais cristãos dentro da associação Réflexion et Partage (Reflexão e partilha), cofundada por ele. E também uma autoridade que lhe vem da reflexão, porque Claude Besson não é de fato um ideólogo, mas sim um homem de oração e de fraternidade.

Quando se ouvem com respeito pessoas homossexuais que querem viver a sua fé cristã e permanecer em relação com a Igreja (e são mais numerosas do que se poderia pensar), somos obrigados a admitir que é necessário que a Igreja evolua se quiser deixar de ferir cristãos autênticos e anunciam uma mensagem evangélica compreensível.

Reconhecemos, sobretudo, que não sabemos muitas coisas sobre a origem da homossexualidade e que devemos reconhecer que ela faz parte da identidade dessas pessoas que não têm "escolha". Alguns tentaram mudá-la e não conseguiram. Portanto, devem conviver com ela. Muitas vezes, criticam-se os casais homossexuais por não viver a alteridade. Um mínimo de escuta prova o contrário: a relação com outra pessoa, independentemente da sua identidade, é sempre um lugar de alteridade.

Levando em consideração os textos do magistério, Claude Besson constata que a posição da Igreja Católica não mudou, apesar da notável contribuição das ciências humanas. Ela acolhe pessoas, mas considera a homossexualidade uma patologia. Só raríssimos bispos e teólogos (Xavier Thévenot, Véronique Margron...) permitiram que a reflexão progredisse. A Bíblia fala pouco da homossexualidade e quando o faz não é para condená-la diretamente. É preciso levar em conta o contexto.

A Igreja, portanto, deve fazer perguntas abordando novamente o problema desde o início: como ajudar as pessoas homossexuais a assumir a sua sexualidade de maneira responsável, a viver a alteridade da melhor forma possível, a ser fiéis a Cristo assumindo o que não podem negar? "As pessoas homossexuais estariam fora, talvez, do amor de Deus?"

Os testemunhos coletados nesse livro provam o contrário. "Há um lugar para as pessoas homossexuais nas nossas comunidades cristãs?" Sabemos que essas pessoas são acolhidas na igreja de Saint-Merry, em Paris, mas em quantas outras igrejas se ousa pronunciar essa palavra?

Longe da polêmica, no respeito às pessoas e à Igreja, esse livro convida a abrir um grande laboratório de reflexão com a perspectiva de uma "lei natural" que deixe a última palavra a "Jesus Cristo, plenitude de toda lei" e que permita que se curem as pessoas e os casais homossexuais, e que se as acompanhe com uma palavra ética compreensível e eficaz.

Esse livro, ao mesmo tempo corajoso e comedido, oferece ao debate um toque raro. Ele será muito útil aos responsáveis pastorais e também aos pais que descobrem que um de seus filhos é homossexual.

Claude Besson, Homosexuels catholiques. Sortir de l'impasse. Prefácio de Véronique Margron, Editions de l'Atelier.

Fonte

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Respostas novas diante de novas situações


Excelente artigo de um pastor valdense italiano. A partir do Novo Testamento, na liberdade dos filhos de Deus e no mandamento supremo do amor, ele rompe as barreiras do legalismo e abre caminhos para os cristãos homossexuais.
Respostas novas diante de novas situações

No capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios, vemos como Paulo teve que se confrontar com situações que evidentemente não estavam previstas na Palestina de Jesus. São realidades novas e, como tais, exigem respostas novas.

A opinião é do pastor valdense italiano Paolo Ribet, em artigo publicado na revista Riforma, das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense, 19-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo cita novamente o ensinamento de Jesus sobre o matrimônio e o divórcio, e os comentaristas acreditam que ele está lembrando a palavra de Marcos 10 (paralela a Mateus 19). Visto que o apóstolo reporta as próprias palavras de Jesus, parece que não há mais nada a acrescentar. Não é assim. De fato, ele continua o discurso e o abre com um "mas...". É uma palavrinha pequena, mas é terrivelmente importante para a nossa reflexão.

Com ela, de fato, vê-se como Paulo teve que se confrontar com situações que evidentemente não estavam previstas na Palestina de Jesus. São realidades novas e, como tais, exigem novas respostas. O apóstolo introduz o discurso esclarecendo que é ele que está falando, e não o Senhor, é verdade. Mas um pouco mais adiante ele acrescentará: "Penso que eu também possuo o Espírito de Deus".

Portanto, ele assume a grande responsabilidade de afirmar, apesar do claro ensinamento do Senhor, que é possível se divorciar se o cônjuge não crente não quer mais viver ao lado de quem se tornou cristão. É uma situação inédita, que surge do fato de que um número cada vez maior de pagãos acolhe a mensagem cristã, provocando assim um forte choque nas instituições, nos hábitos e na espiritualidade dos crentes provenientes do judaísmo. Eu acredito que temos muito dificuldade para nos colocarmos na pele da primeira geração e para compreender o quão grande foi esse choque.

Um exemplo iluminador desse esforço é dado, parece-me, do relato de Atos 10. Esse episódio é geralmente intitulado de "A conversão do centurião Cornélio". Mas me parece mais correto intitulá-lo de "A conversão de Pedro", porque é a ele que o Senhor se dirige com a célebre visão da toalha que desce do céu cheia de animais impuros e é para ele a advertência: "Não torne impuras as coisas que Deus purificou".

Cornélio era um pagão, e um piedoso judeu nunca entraria na casa de um pagão. Mas... Mas agora algo mudou, e o Espírito corre livre, não mais constrangido pelos vínculos e pelos impedimentos do puro e do impuro contidos na Lei. Não era algo fácil de compreender e muito menos de aceitar. Será um percurso duro para a primeira Igreja cristã, que levará a confrontos pesados como o de Antioquia, ao qual Paulo se refere na Carta aos Gálatas (capítulo 4).

Temos uma mensagem semelhante no relato das núpcias de Caná (João 2), que muitas vezes é citado como o momento em que Jesus teria santificado o matrimônio. Eu acredito que tal leitura é muito redutora, senão até fora de lugar: Jesus está em uma festa (e o fato de ser uma festa de núpcias interessa até certo ponto) e lhe é assinalado que o vinho acabou. Não é por acaso que, para realizar o milagre, o Senhor faça encher com água seis talhas de pedra para as purificações dos judeus. A pureza era, sobretudo em certos ambientes, quase que uma obsessão. Pois bem, Jesus toma essa água para as purificações e a transforma no vinho da festa. Chegou o Reino de Deus: tudo muda. Aquele mundo, aquela espiritualidade acabaram, porque, em Cristo, Deus iniciou uma nova relação com a humanidade.

"Mas Jesus disse que...". É verdade. E Paulo sabe muito bem disso. No entanto, na nova situação em que ele se encontra e em que deve dar respostas, ele não se detém na prescrição, mas sim tenta indicar formas de comportamento coerentes com a mensagem evangélica. A base sobre a qual ele se fundamenta não é um artigo de lei, mas sim a afirmação fundamental: "Deus nos chamou para viver em paz". Não é talvez a mesma situação em que nos encontramos vivendo hoje com relação ao tema da família e, em geral, da ética? Mudaram os fundamentos culturais, razão pela qual tentar retomar os velhos esquemas não só é inútil, mas até mesmo danoso.

Já mostramos como o matrimônio foi visto por milênios como o dique para canalizar a sexualidade, para garantir a continuidade da prole e da propriedade: o pai/chefe de família deve ter filhos e deve ter a certeza de que os filhos são seus e de que não há um cuco que bota o ovo no ninho dos outros. Não penso estar exagerando ao dizer que a mulher, nesse contexto, tinha essencialmente a função de fazer filhos. Ainda mais que a ideia corrente, vistos os reduzidos conhecimentos médicos, era que o homem depositasse o seu sêmen na mulher, como se faz com a semente lançada na terra, e que ela crescia por si só. Imagino que hoje ninguém – principalmente nenhuma mulher – aceitaria tal modo de apresentar os problemas. Os fundamentos do casal são outros: a escolha consciente e livre de ambos os membros do casal, o amor, a possibilidade de controlar a natalidade...

Não devemos nos esquecer de que um número cada vez maior de casais estáveis rejeita a própria ideia de matrimônio, seja civil, seja religioso, e que, inversamente, a taxa de nupcialidade passou de 7,7 casamentos a cada mil habitantes em 1960 para quatro em 2009, e que o percentual de nascimentos fora do casamento passou de 2,4 em 1960 para 23,5 em 2009.

São sinais claros de um desconforto – sobretudo dos jovens – diante de uma instituição secular, que, ao menos na Itália, nunca se quis levar em consideração. São todas as situações novas com as quais, como Igreja, devemos nos confrontar, tentando dar respostas não pré-confeccionadas, mas que apoiem seu fundamento na mensagem de Cristo.

Entre as várias situações novas, a que mais provocou discussões é a relativa aos casais do mesmo sexo. Na realidade, essa é apenas uma das situações novas e talvez nem seja a mais importante, mas é a que causou maiores problemas e que certamente toca em assuntos sensíveis.

Uma das razões, e talvez a principal, da perturbação criada nas Igrejas está no fato de que, na Bíblia, se expressa uma condenação sem apelo à homossexualidade. Portanto, na atual polêmica, ela é definida como pecado, ou como doença, ou como desvio. O debate dos últimos anos, porém, fez emergir algumas evidências, sendo que a primeira delas é que as realidades condenadas pela Bíblia pouco ou nada têm a ver com a homossexualidade de que falamos hoje. À época, tratava-se geralmente de uma violência contra seres humanos que se queria submeter ou humilhar.

Hoje, instituições mundiais de autoridade definem a homossexualidade como uma condição de "natural", levando em conta que na natureza também existem nuances, e que nem sempre tudo é preto e branco. Além disso, certamente, existem formas degeneradas de homossexualidade, assim como estão presentes entre os heterossexuais. Mas é disso que queremos falar: de crentes que descobrem a sua natureza homossexual e que, juntamente com o seu companheiro ou com a sua companheira, querem construir um projeto de vida juntos não mutilado da esfera afetiva e sexual. É importante especificar também esta última realidade, porque amplos setores de cristãos estão dispostos a aceitar o homossexual, contanto que renuncie à sexualidade, considerada pecaminosa.

Não é tarefa da Igreja santificar todos os aspectos da modernidade e abençoar todo tipo de escolha que é realizada na sociedade civil, mas certamente torna-se urgente fazer-se a pergunta sobre aonde vai o nosso mundo, de modo a dar, nas situações novas que venham a ser criadas, respostas adequadas. Assim como o apóstolo Paulo assumiu a responsabilidade para afirmar: "Mas eu digo...", assim também nós, com temor e tremor, devemos dizer alguns "mas...", mantendo firmes os fundamentos do amor e da relação não só com Deus, mas também com o próximo.

Fonte

Homossexualidade, primado da pessoa e da relação.


Entrevista bastante esclarecedora sobre a Bíblia e a teologia a respeito da homossexualidade. Como entender melhor os textos bíblicos, a tradição, as resistências e os caminhos de superação.
Homossexualidade, primado da pessoa e da relação. Entrevista com Giannino Piana

Giannino Piana, teólogo moral, autor de um ensaio sobre a homossexualidade – Omosessualità. Una proposta etica, da coleção L'etica e i giorni, Cittadella Editrice, 2010, 122 páginas –, concedeu uma entrevista que toca aspectos relevantes da questão.

A reportagem é da revista italiana Il Gallo, de outubro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Em seu livro, que reflete sobre os aspectos éticos da questão homossexual, você dedica algumas páginas ao delineamento das causas que provocam tal orientação. Chegou-se, finalmente, a identificar a sua origem com precisão?

O debate sobre as causas que determinam a orientação homossexual está longe de se encerrar. No entanto, parece consolidado o reconhecimento de que tal orientação é a resultante de um cruzamento articulado de fatores de natureza diversa – biológicos, psicológicos, sociais e culturais – que interagem entre si em medida diversa, dependendo dos vários sujeitos e da variedade das situações existenciais, e que dão origem a modalidades diversas para viver a experiência homossexual.

Na sua dimensão mais profunda, a homossexualidade – tal como a heterossexualidade – está envolta no mistério; de fato, ela está estritamente ligada ao mistério da pessoa, ao modo de ser-no-mundo e de se relacionar com o outro que lhe é próprio. Por isso, mais do que de homossexualidade, deveríamos falar de "pessoas homossexuais", de sujeitos que vivem de forma predominante e estável a atração sexual com pessoas do mesmo sexo – esse é o dado que eles têm em comum – cada um, porém, segundo a sua própria identidade peculiar.

A homossexualidade sempre foi fortemente condenada pela Igreja. Existem indicações claras na Bíblia que apoiam essa condenação?

A Bíblia foi muitas vezes chamada em causa pela tradição cristã para justificar a condenação da homossexualidade. Na realidade, a homossexualidade ocupa nela um lugar totalmente secundário e periférico em comparação com outras ações negativas, como a idolatria, o homicídio, a injustiça, a opressão dos pobres sobre as quais se exerce o juízo de reprovação da revelação. No Antigo Testamento, são apenas cinco (seis, segundo alguns exegetas) os passos que se referem a ela: o mais célebre é o texto de Gênesis 19, 1-29 em que é relatado o episódio de Sodoma, onde o que é objeto de condenação moral, mais do que a homossexualidade, são a violência e a falta de respeito pela hospitalidade.

Decisivamente mais duro, ao invés, é o juízo expresso no texto de Levítico 18, 22, onde o ato homossexual masculino (o feminino é totalmente ignorado no Antigo Testamento) é definido como uma abominação e inserido na lista das transgressões puníveis com a morte. Sem dúvida – como defendem alguns exegetas – o rigor bíblico com relação à homossexualidade é acima de tudo ditado por motivações religiosas, ou seja, pela exigência de manter puro o monoteísmo, protegendo-o de tentações idólatras: a homossexualidade, para os cananeus, era uma prática a ser utilizada para se contatar com a divindade. É difícil, no entanto, defender que essa seja a única razão. Na realidade, está presente em Israel uma atitude negativa com relação à homossexualidade como tal, mesmo que se trate de uma atitude largamente dependente da cultura do tempo, e, portanto, não deve ser assumida como um absoluto.

E que mensagem o Novo Testamento contém a esse respeito?

O silêncio do Novo Testamento é ainda mais radical e eloquente. Nunca se fala de homossexualidade nos Sinóticos, que contêm, de forma mais direta, a mensagem de Jesus. O único que fala a respeito, se fizermos uma exceção a Atos 15, 28-29 (cuja interpretação, além disso, é controversa), é Paulo, especialmente no primeiro capítulo da Carta aos Romanos (vv. 18-32), onde o comportamento homossexual (nesse caso, tanto masculino quanto feminino) é visto como expressão de uma inversão da ordem da criação, consequência do estado de pecado em que a humanidade caiu. Aqui, portanto, a homossexualidade, mais do que uma culpa, é uma punição e uma desgraça, sinal da condição de miséria que o ser humano experimenta, e da qual espera ser liberto graças à intervenção redentora de Cristo.

Assim, parece claro que os textos da revelação não contêm, senão indiretamente, uma condenação da homossexualidade, que, além disso, é abordada com instrumentos ainda largamente imperfeitos, que fornecem dela conhecimentos imprecisos e parciais, muitas vezes desviantes. Por todas essas razões, é difícil extrair da Bíblia (incluindo o Novo Testamento) elementos de avaliação ética de um fenômeno como o homossexual, que exige, para ser corretamente julgado, um conhecimento mais preciso das dinâmicas específicas que o qualificam.

No entanto, a tradição eclesial posterior – da patrística à medieval – não só não modificou, mas parece até ter acentuado o julgamento negativo. Quais são, a seu ver, as razões?

É verdade. O julgamento expresso pela Igreja, desde os primeiros séculos, a propósito da homossexualidade é um julgamento radicalmente negativo. Para determiná-lo, contribuíram, por um lado, a gradual restrição a uma interpretação unicamente sexual do relato de Sodoma e, por outro, a assunção da Carta aos Romanos de Paulo da ideia de contra-natureza que o apóstolo usa para definir – como já mencionado – a inversão da realidade provocada pelo pecado. Mas uma contribuição importante para a afirmação dessa concepção também deve ser atribuída à influência de correntes de pensamento externas, como o estoicismo e o neoplatonismo, o gnosticismo e o maniqueísmo, especialmente para a antropologia dualista em que se inspiram.

A teologia medieval assume essa perspectiva negativa, que será posteriormente retomada pela manualística moderna. O eixo em torno do qual o juízo moral gira é o conceito de contra-natureza que, ao contrário do que muitos pensam, não designa tanto a falta de respeito pelo estatuto da dualidade sexual humana, mas sim a impossibilidade de que o ato sexual seja orientado para a procriação, finalidade à qual está intrinsecamente ordenado. Abre espaço, nesse contexto, a distinção entre a inclinação homossexual que, mesmo sendo considerada desordenada, não é, contudo, julgada culpável, e o ato homossexual, que é, ao invés, julgado gravemente pecaminoso.

O Vaticano II não contribuiu para a superação dessa concepção? A leitura mais positiva da sexualidade presente nos documentos conciliares, em particular na Gaudium et Spes, não ajudou a mudar também a nossa forma de nos posicionarmos com relação à homossexualidade?

Acima de tudo, deve-se dizer que o Concílio não fala da homossexualidade. É verdade, no entanto, que nele estão contidas indicações preciosas para uma reavaliação da sexualidade, em particular para a superação da visão baseada em tabu e repressiva, que foi predominante durante muito tempo na tradição eclesial anterior.

Algumas tentativas tímidas de repensar a questão homossexual ocorreram no pós-Concílio: por exemplo, um importante documento de 1976 da Congregação para a Doutrina da Fé, intitulado “Pessoa humana: Algumas questões de ética sexual” reconhece a existência de uma forma de homossexualidade como estado permanente da pessoa (portanto, como fato estrutural, verdadeiro modo de ser-no-mundo) e afirma que, nesse caso, os atos também devem ser julgados "com cautela". Mas, em seguida, a atitude negativa volta a ter mais força, até mesmo com certa (suspeita) obstinação.

Quais são, em sua opinião, os motivos dessa leitura totalmente negativa? E como é possível superá-la?

Acredito que a motivação de fundo para a rejeição da homossexualidade deve ser procurada na adoção de uma abordagem inspirada em um paradigma naturalista. Certamente, não se usa mais a expressão contra-natureza, mas a substância permanece invariável. A homossexualidade é considerada um fenômeno que contradiz a ordem original da criação, que tem suas raízes na dualidade sexual, que, por sua vez, visa à propagação da espécie humana. Se quisermos sair do impasse e restituir um verdadeiro significado à relação homossexual, devemos então abandonar tal paradigma e substituí-lo por um paradigma relacional, que confere o primado à autenticidade da relação.

Isso significa que a avaliação do comportamento homossexual (tal como o heterossexual) deve pôr em primeiro plano a atenção em nível de relacionalidade alcançada. Para dizer que a bondade (ou a malícia) moral de tal comportamento deve ser compatível com a capacidade que ele tem de realizar uma verdadeira interpessoalidade, que só se verifica na medida em que se reconhece o outro como sujeito na sua dignidade absoluta, e se instaura com ele uma relação de amor.

A diferença de pessoa para pessoa, que se desenvolve em diversos níveis e que define o sujeito humano na sua unicidade, dá razão da fecundidade que também pode caracterizar a relação entre sujeitos do mesmo sexo, cujas potencialidades subjetivas vão muito além das modalidades de estruturação objetiva das relações. Primado da pessoa sobre a natureza e primado da relação sobre as formas concretas nas quais se encarna conferem, portanto, dignidade à relação homossexual, que constitui, quando é vivida autenticamente, uma modalidade humanamente significativa de comunicação e de comunhão interpessoal.

Se nos colocarmos nessa perspectiva, assumindo o paradigma relacional, por que não admitir, então, a existência de direitos e a necessidade do seu reconhecimento público através da lei?

Certamente. O reconhecimento dos direitos ao casal homossexual por parte da legislação civil é absolutamente necessário. As vias praticáveis são a do casamento – com relação ao qual eu alimento pessoalmente algumas dúvidas, especialmente pelo significado que essa instituição sempre teve em todas as culturas, isto é, a de formalizar a relação homem-mulher e de criar as condições para o exercício da função procriativa – e a de pactos apropriados – pense-se nos PaCS (Pacto Civil de Solidariedade) franceses – que garantem às pessoas que coabitam estavelmente (hétero e homossexuais) alguns direitos fundamentais em termos de assistência, de previdência, de benefícios fiscais etc.

A plausibilidade desses dispositivos tem a sua justificação no plano moral no fato de que a instauração de relações interpessoais e o cuidado do outro, além de constituir uma importante forma de responsabilidade pessoal, também contribui, de forma determinante, para a promoção da vida social. A intervenção da lei para fornecer normas que garantam à união homossexual uma maior solidez mediante a definição de direitos e de deveres recíprocos, portanto, é um ato indubitável de civilização.

Fonte

Vitória de Obama, vitória dos cristãos LGBT


O primeiro presidente norte-americano a apoiar publicamente o casamento gay foi reeleito. Além desta vitória extraordinária e sem precedentes, há outras nesta eleição. Em plebiscito, dois estados aprovaram o casamento gay, Maine e Maryland, e o Distrito Federal, Washington; e um estado, Minnesota, rejeitou a sua proibição. Vale lembrar que neste último houve uma campanha de católicos LGBT, com o apoio de outras confissões cristãs, para que isto acontecesse.

Não se deve subestimar o potencial dos cristãos inclusivos, mesmo os católicos, em favor dos direitos humanos dos LGBT. Estes cristãos não são reféns da leitura literal da Bíblia e nem dos pronunciamentos conservadores da alta hierarquia. Eles dão uma lição de liberdade e engajamento, de espiritualidade e ação política, de criatividade e beleza. Vale a pena rever o vídeo da campanha. Parabéns, povo de Deus que luta e festeja! O seu exemplo é luz no mundo.

Vídeo

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