sábado, 26 de novembro de 2011

A realeza de Cristo e as realezas humanas

Desenho: O_lie

Realeza quer dizer magnificência, autoridade e poder. Ou seja, tudo aquilo que é relativo ao rei e diz respeito a sua pessoa e ao âmbito que abrange seu título nobiliárquico, o maior de todos os existentes no território em que governa. Realeza é senhorio, é dignidade, é majestade tamanha que no antigo Brasil colônia, por exemplo, onde o rei não podia ir pessoalmente, seu retrato o representava. E diante daquela efígie, todos se inclinavam, reverentes, reconhecendo sua realeza.

Em outras circunstancias, não havendo o retrato, era a veste do rei que o representava e que era objeto de preito e deferência. Tudo que lembrasse o rei e o que sua pessoa simbolizava: o cetro, a coroa, o manto, o trono, podia remeter a seu poder e autoridade e invocar respeito e submissão dos súditos.

Desde muito tempo, a humanidade encontrou no rei, no monarca – princípio único que a tudo ordenava – a personificação da ordem e da harmonia que sonhava viver e experimentar. Indivíduos e comunidade esperavam do rei o direcionamento, a lei a cumprir, a justiça enquanto parâmetro a nortear o comportamento e a organização da vida. Não foi diferente com o povo da Bíblia.

Uma vez que se encontrou maduro em seu processo identitário como povo da Aliança, o desejo de ter um rei começou a pulsar no coração do povo. Em clara consciência e consonância com a experiência de libertação dada por Deus e o dom da terra para habitar e viver, o povo necessitava um líder instituído e sagrado. Alguém que liderasse com justiça e equidade e que fosse o intendente do próprio Deus.

Não foi uma tarefa fácil a escolha do rei. Pois se este devia na terra visibilizar o próprio Deus, teria que ser, como o Santo de Israel, o porta-voz e defensor do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Mais do que qualquer outro membro do povo, deveria o rei estar junto aos mais pobres e oprimidos, fazendo-lhes justiça e por eles falando, a eles defendendo.

Logo os reis se revelaram humanos e tristemente pecadores. Participavam da ambigüidade inerente à condição humana, feitos de pó e barro como nós. Presa das paixões, deixaram-se dominar pela ambição, pela luxúria, pela crueldade. E o ideal da realeza, golpeado e enfraquecido, passou a ser dilatado para os tempos messiânicos, coração da esperança do povo.

Quando viesse o Messias, esse seria um rei segundo o coração de Deus. Filho do Altíssimo, ele faria reinar a justiça e o direito e seu comportamento resgataria a todas as ovelhas perdidas da casa de Israel. Os tempos de sua vinda seriam de festa e alegria, pois Deus teria então feito uma visita definitiva ao povo, que conheceria enfim a plenitude da vida.

A primeira comunidade cristã reconheceu em Jesus de Nazaré encarnado, vivo, morto e ressuscitado esse messias esperado. Proclamou-o a tempo e contratempo Senhor e Cristo. E anunciou aos quatro ventos que por ele e nele Deus havia cumprido todas as suas promessas. Ele era o Messias esperado e encarnaria então a verdadeira realeza que só pertencia a Deus.

No entanto, a realeza encarnada, vivida e anunciada por Jesus que seria reconhecido por seus seguidores como Messias parecia bem diferente daquilo que normalmente se espera de um soberano ou de um rei. Sua autoridade vinha do amor e da humildade; seu poder se expressava no serviço mais simples ao menor de todos os seus semelhantes a quem chamava não de súditos, mas de irmãos; seu trono era a poeira dos caminhos, seu cetro suas mãos calosas de carpinteiro, despidas de adereços, que abençoavam e curavam a quantos encontravam; sua coroa era sua cabeça ungida pela água do Jordão e pelo perfume de Maria de Betânia e finalmente o círculo de espinhos que lhe apertou cruelmente o crânio até que exalasse o último suspiro.

Com sua Ressurreição, seus discípulos perceberam que ali estava verdadeiramente o Rei esperado. Jesus com sua vida, suas palavras, sua prática, resgatava o Deus que sempre na história do povo se identificava com os mais pobres e desvalidos, até o ponto de padecer a mesma sorte e o mesmo destino de todos eles. Celebrar a festa de Cristo Rei, que fecha com chave de ouro o ano litúrgico e abre as portas para o Advento do Natal é pisar nas pegadas desse Rei que só se encontra no despojamento e no serviço. Hoje como ontem ele liberta o povo de todas as opressões pelo mistério de seu poder feito impotência pelo amor apaixonado pela humanidade.

- Maria Clara Bingemer

Como alimentar a fé sem deixar que ela se apague?

Imagem daqui

A primeira geração cristã viveu convencida de que Jesus, o Senhor Ressuscitado, retornaria muito cedo, pleno de vida. Mais não aconteceu assim. Pouco a pouco, os seguidores de Jesus tiveram que se preparar para uma longa espera. Não é difícil imaginar as perguntas que despertaram entre eles. Como manter vivo o espírito dos primeiros primeiros? Como viver despertos enquanto chega o Senhor? Como alimentar a fé sem deixar que ela se apague? Uma narrativa sobre o que aconteceu num casamento ajudava-lhes a pensar na resposta.

Dez jovens amigas da noiva acendem suas tochas e se preparam para receber o esposo. Quando, ao cair o sol, o noivo chegar para pegar sua esposa, vão acompanhar os dois no cortejo que os levará até a casa do esposo, onde se celebrará o banquete nupcial.

Há um detalhe que o narrador quer destacar desde o início. Entre as jovens há cinco “sensatas” e previsoras que levam consigo óleo para manter suas lamparinas/tochas acesas. As outras cincos são umas “néscias” e descuidadas que esquecem de pegar o óleo com o risco de que suas velas se apaguem.

Bem cedo eleas descobriram seu erro. O esposo chega mais tarde e não aparece até meia-noite. Quando se escuta o chamado para recebê-lo as sensatas alimentam com seu óleo a chama de suas tochas e acompanham o esposo até entrar com ele na festa. As ignorantes não fazem nada senão se lamentar: que não fiquem apagadas nossas tochas. Ocupadas em procurar óleo, chegam ao banquete quando a porta já está fechada. É muito tarde.

Muitos comentaristas tentam procurar um significado secreto do símbolo do “óleo”. Está Jesus falando do fervor espiritual, do amor, da graça batismal…? Possivelmente é mais simples lembrar seu grande desejo: “Eu vim trazer fogo sobre a terra e que outra coisa eu quero senão que ele acenda"? Há alguma outra coisa que possa acender nossa fé distinta do contato vivo com ele?

Não é uma insensatez tentar conservar uma fé gasta sem reavivá-la com o fogo de Jesus? Não é uma contradição nos crermos cristãos sem conhecer seu projeto e tampouco nos sentirmos atraídos pelo seu estilo de vida?

Precisamos urgentemente de uma qualidade nova na nossa relação com ele. Cuidar de tudo o que nos ajude a centrar nossa vida em sua pessoa. Não gastar energias naquilo que nos distrai ou que nos desvia de seu Evangelho. Acender cada domingo nossa fé ruminando suas palavras e comungando vitalmente com ele. Ninguém pode transformar nossas comunidades como Jesus.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via IHU, com grifos nossos.

Texto para reflexão:
Mateus 25.1-13

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Memória Trans*

Imagem daqui

Dia 20/11, além de dia da Consciência Negra no Brasil, foi também Dia Internacional da Memória Trans. Não sabíamos. Assim como não sabíamos que novembro é o mês internacional da visibilidade trans*. E, justamente por não sabermos, reproduzimos aqui o texto abaixo, do blog Subversiveopendiscourse, que chama a atenção para o fato e faz uma denúncia necessária.

Esse é o mês internacional de visibilidade trans, porém nada foi relatado ou nenhum evento marcado por nenhuma das principais militâncias LGBT’s no Brasil, nem ABLGBT, APOLGBT, GGB, etc. Nenhum portal LGBT noticiou.

Enquanto o movimento trans* e LGBT internacional se articula, infelizmente no Brasil continuamos invisíveis. Por isso esse post não será sobre o Dia da Consciência Negra (...) e sim sobre visibilidade trans*.

A visibilidade trans* no Brasil praticamente inexiste e as pessoas trans* e aliad@s terão que lutar para garantir voz e espaço mesmo dentro das militâncias. O dia da MEMÓRIA trans* que não foi LEMBRADO é o dia no qual lembramos das vidas de todas as pessoas que sofreram e perderam suas vidas devido ao cissexismo. Em suma, que perderam suas vidas por não se encaixarem no estereótipo normativo esperado de ‘mulher’ e ‘homem’ socialmente designado.

Nessa última semana, percebi que não só a visibilidade trans* era quase nula, mas que a visibilidade das pessoas trans* que se ID com identidades masculinas (trans FTM’s – mas não só), essa sim inexiste. Mais de um ativista LGBT revelou não conhecer o termo.

Nesse dia vamos pensar em quantas pessoas trans* conhecemos, o quanto conhecemos sobre o assunto e sobre ativismo, e se REALMENTE temos o direito de dizer que somos ativistas LGBT.

Vamos nos educar para não cairmos em discursos ofensivos.

Nesse dia vamos lembrar de todas as pessoas trans* E negras que perderam suas vidas, pessoas que são constantemente desumanizadas pela sua condição identitária, simplesmente por não se encaixarem na visão normativa social de corpo, gênero e raça. Lutar contra a desumanização das ID’s trans e lutar contra o racismo. Lutar pela integração dessas pessoas no meio social, garantindo humanidade, dignidade e acesso.

(Post original na íntegra, com links para outros materiais, aqui.)

Mudança de época: as palavras que faltam aos católicos


A Igreja sabe que, para toda profecia, há um tempo oportuno, um kairós, que, se perdido, resta só o peso silencioso da penitência: esta também testemunhada pelas longas épocas escuras da sua história.

A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano e professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia, em artigo publicado no jornal
Corriere della Sera, 20-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


A reviravolta histórica sobre nós é de proporções superiores ao pânico que produz. O estilo de vida mantido pelo Ocidente, em que a dívida havia substituído outros sistemas de domínio, acabou. Para sempre. Assim como o colonialismo na Índia, como o bolchevismo na Rússia. É uma krisis, no sentido do Evangelho: um "juízo". Não é o fim do mundo: é o fim de um mundo. Portanto, excita os medos, encoraja os minimizadores, revela a estatura dos soberanos, denuncia a surdez de quem deu de ombros durante anos, convoca inteligências políticas e espirituais do amanhã.

Nesse revolver da história (por enquanto incruento, como em 1929 e 1989), a Igreja é frugal no fato de dizer as palavras que possui. Estes não são os tempos de Gregório Magno, que, diante do fim de uma era, reuniu o povo na basílica para explicar o profeta Ezequiel. Não são os tempos do Papa João, que, no crescimento do fatalismo atômico, desorganizou os parâmetros doutrinais da guerra justa.

São os nossos tempos, em que a geração do bem-estar mais prepotente sente estar deixando aos seus próprios filhos os escombros de um desastre político e moral. E, nesse tempo, a Igreja, no sentido mais amplo do termo, está como que retraída: articula lentamente as desgastadas condenações dos "ismos", sussurra coisas óbvias ou interessadas, quase como se para ela também fosse pouco legível uma realidade que grita de todos os horizontes.

No Oriente Médio sunita, explode uma jihad na qual o nome de Deus não é usado para agredir, mas para suportar, sem que aqueles que criticaram justamente as suas perversões violentas saibam dar uma leitura a isso. Um assassino psicótico norueguês arrasta para fora da escuridão o fundamentalismo de antissemitas clássicos, homofóbicos agressivos, tradicionalistas paranoicos, monoculturalistas fascistas, que o direito penal e canônico ignoraram antes e depois desse crime.

A genialidade de personagens como Pacelli, Adenauer, De Gasperi e Schuman que – falando em alemão e pensando em católico – deram à Europa um horizonte político de paz, é ridicularizada há meses pelo egoísmo alemão, sem que o discurso católico saiba sair do vitimismo das raízes, da euforia dos crucifixos e da obsessão dos direitos dos gays.

A guerra na Líbia levanta protestos periódicos do papa que caem no vazio de uma Igreja mais sensível ao espiritualismo do que à realidade. E aquele pedaço da África que se afoga entre Sirte e Lampedusa extorque qualquer senso de culpa às almas cultas, mas, no fim, é tratado como uma fatalidade que não deve ser compreendida, mas sim aceita.

A força que a Igreja teve em transições de magnitude comparáveis a essa – no século VI, mas também nos séculos XI e XVI com as reformas, no século XX com o Concílio – foi a de saber ler os processos históricos em sua globalidade: encontrar aquela sua chave supremamente sintética que, a partir do ato de fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado, sabe indicar os caminhos de um novo tempo e preparar aquilo que já está escrito nas premissas presentes. Hoje, esse ato – tornado mais urgente pelo trágico nanismo das lideranças políticas – tarda a se fazer sentir.

No entanto, só o intuito espiritual de uma comunidade global como a católica pode dizer com autoridade que, se uma Europa pouco amada se arruína, não acaba o euro, mas sim a paz. Pode explicar à luz do seu próprio tesouro de ensinamentos sobre a sobriedade e a partilha que o colapso de um estilo de vida é uma oportunidade de justiça ou a antessala do canibalismo econômico.

Mas a Igreja também sabe que, para toda profecia, há um tempo oportuno, um kairós, que, se perdido, resta só o peso silencioso da penitência: esta também testemunhada pelas longas épocas escuras da sua história.

Seria estúpido e irreverente pensar que a afasia destes meses é do papa. Certamente, Bento XVI, de certo modo, deve se fazer ouvir: nestes dias em Madri diante de milhões de jovens, especialmente em Berlim no discurso no Bundestag de setembro, em outubro na oração inter-religiosa de Assis. E aquilo que ele diz vai permanecer.

Mas é da Igreja como communio que o mundo espera uma leitura do tempo, que mostre a capacidade de romper aquela homologação aos ritos do poder e da mídia. É a communio que permite ler um tempo que deve ser contido da tendência de se tornar pré-bélico justamente por uma força espiritual que o liga, se souber ser uma força e se souber ser espiritual.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Ser gay pra mim é uma benção


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Fui sempre o bom católico e agi de acordo com os protocolos. Fiz minha primeira comunhão de branco em uma igrejinha daquelas que a gente só vê nos filmes dos Trapalhões no Ceará. Aos 15 anos, também como todo bom católico, fiz Crisma, na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro. Além de ter recebido o sacramento pelo Bispo, tudo direitinho, fiz meu curso de Crisma na Catedral também, onde tínhamos freqüentes visitas do próprio sob o olhar de nossa catequista , como que dizia “senta direito”. A partir dali fui para uma paróquia mesmo. Rapidamente entrei num grupo, me envolvi em sua liderança e sempre ia onde me chamavam, fiz e servi em diversos encontros, retiros e formações. Meu Domingo, não era de descanso.

Um deles me tocou em especial aos 18 anos e resolvi largar o trabalho que realizava na Paróquia da Na Sra do Rosário de Fátima S. Antônio de Lisboa na Taquara aqui no Rio e seguir ao chamado, segundo meu entendimento da época. De forma muito lúdica e carismática seguia o meu caminho de bom católico, procurando em minha postura avançar no que podia em tão encantadora maneira de viver minha espiritualidade.

A experiência proporcionada a mim e depois retransmitida aos demais era de um calor humano fantástico e assim segui por mais 5 anos.

O engraçado foi que nos mesmos 18 anos, justo no período do bendito “chamado”, foi nesta mesma idade que me envolvi com um rapaz na escola. Digamos que naquele momento eu larguei a “meinha” que sempre rolava aqui e ali pra tremer as tamancas, suar frio pra entender o que acontecia comigo. Como todo adolescente era tudo muito confuso e difícil, mas óbvio, sempre podia ficar pior.

Neste momento iniciou dentro de mim um conflito. Eu não tinha a quem pedir socorro. O social pesava, no entanto, peso maior era imaginar o que seria de mim aos olhos de Deus e de minha comunidade. Sabia que poderia procurar um psicólogo, mas a nuvem de confusão em minha cabeça que só me ocorria orar e pedir a Deus “pra curar” em meio aos pesadelos e prantos da madrugada era tremenda. E não é exagero! O peso da culpa era sufocador. Impensável tocar neste assunto com qualquer pessoa pra pedir ajuda. Porém, fui recorrer a alguns Padres através do sacramento da confissão.

Como “ninguém poderia saber” fui pra longe de qualquer Padre que conhecia em paróquias distantes. Entrava no convento de Santo Antonio na Carioca, em confissões comunitárias longes de casa e escolhia o Padre que tivesse menos cara de mau. Ao contrário do que ocorreu com muitos amigos meus, ao contrário mesmo, todos os Padres a que recorri, e não foram poucos, me acolheram com palavras amorosas. Esta poderia ter sido uma atitude camicase e que não recomendo. Mas, a mão de Deus neste momento foi tão providencial que sabendo do meu desespero tateou o meu caminho dos clérigos homofóbicos, mesmo diante da minha “malicia”.

Procurei análise e com o tempo fui vivendo de maneira menos conflitante frente a forma enfática que algumas ideias eram colocadas em minha comunidade carismática. Digamos que no nível da minha consciência as coisas estavam mais calmas, pois nos relacionamentos que pintavam aqui e acolá, passava pela cabeça, “ok, Deus me ama assim mesmo, mas bem que eu poderia ser normal, né...”.

O haraquiri deste processo, foi quando “fui descoberto” na vida dupla que vinha as duras penas tentando conciliar. Os coordenadores de minha comunidade me chamaram, me perguntaram se eu era gay, eu fui afirmativo, perguntaram se eu desejava permanecer em pecado, disse que não me sentia assim. Ofereceram “ajuda espiritual”, disse que não necessitava. Ajuda psicológica? Por que do segredo? Por que não escolheu o celibato? E depois de muitas perguntas descabidas e debates sobre “pode, não pode”. Por fim, “você sabe o que a Igreja pensa?”, então, fui destituído de todas as minhas funções e convidado a se retirar, sob a justificativa de que “uma laranja podre poderia estragar todo o cesto”.

Fui forte, não me abalei naquele instante, meu coração queria saltar pela boca, senti-me orgulhoso por não negar nada diante da “inquisição”. Minha casa, ficava na época pelo menos 1 hora de distancia, era 23:30 de um domingo e tive o caminho inteiro pra chorar e por pra fora o que segurei, nas mais de 3 horas de conversa.

Durante o choro, duas coisas eu pensei, “Meu Deus! Tem mais gente passando por isso”, a outra foi, “tenho que fazer algo”. Fui uma andorinha só tentando fazer verão, não achava justo o que aconteceu comigo e queria vozes pra unir a minha. Fui em uma outra paróquia e fui novamente tateado por Deus onde também não conhecia o Pároco, relatei tudo ao Padre que nada pode fazer, a não ser me acolher e falar “fique aqui”. Permaneci na paróquia nova e ganhei o mais lindo trabalho pastoral que já fiz - cuidar de crianças.

Naquelas crianças, e umas nem tão crianças assim, cerca de 40 que atiravam sapatos no Padre e nos seminaristas, encontrei o colo que a Igreja, a instituição, não me deu. A elas eu achava que ensinava algo. Mas, elas muito me ensinaram, era amorosamente acolhido. Com isso a dor da magoa ia se dissipando, naquele lugar eu era bem-vindo, mas quem dizia que eu deveria deixar de ser católico agora era minha consciência. Fiquei um ano, cuidando dos Coroinhas, da Paróquia da Divina Providencia, também na Taquara. No dia que resolvi ir embora, ganhei o abraço mais coletivo, marcante e apertado do mundo. Parecia que a Igreja, Aquela Igreja dizia, “pode ir, mas tô aqui tá.”

Passei a brincar com os amigos dizendo “quando eu era católico...” , questionei todos os ritos que não me religavam, todos os protocolos que tive que cumpri, o meu jeito “bom católico de ser”, pensava que se um dia eu voltasse a ter uma religião os ritos deveriam me ligar a algo. Aproveitei que estava saindo do armário e tirei toda a tralha pra fora, tive coragem de dizer pra mim aquilo que não gostava e o que gostava. Depois, a única coisa que sobrou foi o armário mesmo e este eu resolvi jogar fora de vez.

Entender o que se passava comigo aos 18, foi meio novelística mesmo. Mas, foi a maior benção que eu já puder receber – entender que era gay. Ter a chance de questionar uma parte de mim que era confusa como a minha sexualidade. Talvez, seja tenha sido providencial a confusão que se deu mesmo, porque ao longo da bagunça pude ter a chance de mandar pra faxina um monte de coisa que não tava legal. Vai ver que o “tal chamado” que recebi aos 18 foi realmente um chamado duplo de Deus mesmo. Um convite a ser quem eu era que compunha identidades que jamais deveriam ser dissociáveis – gay e católico. Como todo chamado foi um calvário e houve muito sofrimento inútil, mas hoje vejo o que antes eu tomava como uma praga, tenho como uma benção que todos deveriam agradecer. Todos!

Quando fui convidado a conhecer o Diversidade Católica, fui só pra fazer uma experiência antropológica e conhecer os exóticos gays que insistiam em ser católicos e aqui estou até hoje desde março de 2009. Venho desde então, zunindo o “bom católico” que fui e desbravando um modo de existir só meu. Como diria a Dori do Nemo, “continuo a nadar”, tomando posse daquele que sou pegando o que é meu, dizendo que a Igreja me pertence e ninguém tasca!

- Rodolfo Viana, membro do Diversidade Católica e colaborador deste blog

O Jesus de Pagola


Para o teólogo mineiro Faustino Teixeira, o livro "Jesus. Aproximação histórica" (Petrópolis: Vozes, 2010), de José Antonio Pagola, tem uma tripla destinação: é dirigido “aos cristãos e cristãs que perderam o contato com a mensagem viva de Jesus, aos que muito ignoram a seu respeito e aos que se decepcionaram com o cristianismo real e buscam outros caminhos de afirmação de sentido”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, Teixeira destaca que, “com base nos recursos da investigação moderna e contemporânea, e o apoio interdisciplinar, Pagola busca aproximar-se historicamente da figura de Jesus. O seu objetivo é facultar o ‘contato vivo com sua pessoa’, sem cair em abstrações metafísicas, ainda que sublimes, sobre o seu ser. Assinala sua dificuldade em crer ‘num Cristo sem carne’, ou acessar a Jesus como mistério que dá vida só mediante a doutrina. Adverte sobre o risco de converter Jesus Cristo, de forma exclusiva, a um ‘objeto de culto’, enquanto ‘ícone venerável’, mas destacado de sua condição de profeta do reino de Deus. Esse é o risco de um Jesus sem reino, de que fala também Jon Sobrino . Não há como acessar ao verdadeiro significado de Jesus destacando-o de sua relação com o reino de Deus. Como indica Pagola, ‘o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana’.

Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É professor-associado e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF), em Minas Gerais. É autor e organizador de diversos livros. Ao lado de Renata Menezes, é organizador de "Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas" (Petrópolis: Vozes, 2009).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via Amai-vos.


IHU On-Line - A quem se destina esse Jesus de Pagola?
Faustino Teixeira -
Na apresentação desta nona edição de seu livro, Pagola já manifesta o seu fascínio por Jesus. Sublinha que ele “é o melhor que a humanidade produziu. O potencial mais admirável de luz e de esperança com que nós seres humanos podemos contar”. Argumenta que recuperar essa memória de Jesus é fortalecer o horizonte da história, que ficaria muito empobrecido com o seu esquecimento. O que o autor intenta fazer nesta excelente obra é buscar uma aproximação histórica com base no “Jesus recordado”, ou seja, na lembrança que ele deixou no núcleo de seus seguidores. Sua intenção com a obra é colocar Jesus à disposição de todos, pois sua vida, atuação e mensagem não são propriedade exclusiva dos cristãos, mas constituem um “patrimônio da humanidade”. É uma obra que tem, portanto, uma tripla destinação. É dirigida aos cristãos e cristãs que perderam o contato com a mensagem viva de Jesus, aos que muito ignoram a seu respeito e aos que se decepcionaram com o cristianismo real e buscam outros caminhos de afirmação de sentido. Pagola assinala que sua opção em favor de uma perspectiva narrativa da vida de Jesus intenciona “aproximar o leitor de hoje, crente ou não, à experiência vivida pelos que se encontraram com Jesus, e ajudá-lo a sintonizar com a Boa Notícia que descobriram nele”. E não há como aproximar-se desse “poeta da compaixão” sem sentir-se profundamente atraído por ele e convocado ao seu seguimento.

IHU On-Line - Jesus aparece na obra de Pagola como o “poeta da compaixão”, o “curador da vida” e o “defensor dos últimos”. É possível verificar aí o segredo de seu fascínio?
Faustino Teixeira -
Não há dúvida alguma sobre isso. O autor consegue apresentar com imensa felicidade essa faceta extraordinária de Jesus como um buscador singular de Deus, mas de um Deus que tem entranhas de compaixão e misericórdia. Isso me faz lembrar uma reflexão de Roger Haight, em seu livro Jesus símbolo de Deus (1999). Dizia ali que Jesus era teocêntrico, mas que ironicamente o que ele apresentava ao mundo era um Deus antropocêntrico, ou seja, um Deus “intrinsecamente interessado e preocupado com o bem-estar de suas criaturas”. Pagola sublinha em seu livro que a melhor metáfora para expressar a ideia de Deus é a do “Deus compassivo”. A profunda paixão de Jesus pelo reino de Deus, que é o centro referencial de sua vida, faz com que ele traduza na história, em gestos efetivos, a Boa Notícia que ele recebeu de seu Pai. Animado pela experiência do Deus da vida, Jesus anuncia a todos uma notícia que traduz mudança de perspectiva: a de que “Deus já está aqui buscando uma vida mais ditosa para todos”. Tudo isso foi motivo de impacto e sedução em seu tempo. A maneira peculiar com que falava aos outros sobre Deus e seu projeto de vida provocava entusiasmo e paixão nos setores mais simples da Galileia. Era mesmo o que precisavam ouvir: a notícia de que “Deus se preocupa com eles”. Jesus não era somente o “poeta da compaixão”, mas também “curador da vida”. Trata-se de um curador singular, pois despertava nos outros a vontade de viver com dignidade e sinalizava uma relação distinta com o mistério do Deus que abre novos caminhos. Na verdade, como bem expressa Pagola, Jesus contagia saúde, vida e alegria: “Seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde”. Outro importante traço de Jesus é a sua acolhida aos pobres. Identifica-se como “defensor dos últimos”. Na perspectiva de sua peculiar atuação, sinaliza que o caminho que leva a Deus “não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão para com os ‘irmãos pequenos’”. Trata-se da “grande revolução religiosa” provocada por Jesus, que abre uma via nova de acesso a Deus, que passa pela acolhida e compromisso com o outro necessitado, sobretudo o mais pobre. E levar a cabo o seguimento de Jesus, como lembra Pagola, é também “pôr no centro de nosso olhar e de nosso coração os pobres. Situar-nos na perspectiva dos que sofrem. Fazer nossos seus sofrimentos e aspirações. Assumir sua defesa”.

IHU On-Line - Um dos traços novidadeiros do Jesus de Pagola é a forma como trabalha o tema de Jesus e as mulheres, inclusive sublinhando o papel protagônico das mesmas no seu discipulado. Há nesse âmbito um campo rico para o trabalho de reflexão?
Faustino Teixeira -
De fato, Pagola reserva um lugar de grande destaque às mulheres no discipulado de Jesus. A viva imagem que passa em sua obra é a de Jesus como amigo das mulheres, e num tempo em que elas viviam uma precária situação, de rejeição e exclusão. Jesus lança um olhar diferente sobre elas, tornando-as visíveis e presentes. A palavra chave aqui é a acolhida. Pagola mostra como as mulheres fizeram parte do grupo dos discípulos desde o início, permanecendo todo o tempo fiéis a Jesus e à sua causa. O autor sugere que elas estiveram também presentes na última ceia e assumiram um papel protagônico na origem da fé pascal. Muito rica também a reflexão do autor sobre Maria Madalena (Maria de Mágdala), a melhor amiga de Jesus. Ele desfaz preconceitos a respeito e resgata a imagem de Madalena como “seguidora fiel de Jesus e testemunha eminente do Senhor ressuscitado”, tão viva na Igreja do Oriente.

IHU On-Line - Em artigo publicado em 1993, Jon Sobrino afirmara que o maior receio do terceiro mundo é um “Cristo sem Reino”, ou seja, uma concentração no mediador que relega a segundo plano as exigências da mediação do Reino. Em semelhante linha de reflexão, Pagola assinala que na vida de Jesus o lugar central foi ocupado não por Deus simplesmente, mas “Deus com seu projeto do reino de Deus”. Como explicitar melhor essa questão?
Faustino Teixeira -
Com base nos recursos da investigação moderna e contemporânea, e o apoio interdisciplinar, Pagola busca aproximar-se historicamente da figura de Jesus. O seu objetivo é facultar o “contato vivo com sua pessoa”, sem cair em abstrações metafísicas, ainda que sublimes, sobre o seu ser. Assinala sua dificuldade em crer “num Cristo sem carne”, ou acessar a Jesus como mistério que dá vida só mediante a doutrina. Adverte sobre o risco de converter Jesus Cristo, de forma exclusiva, a um “objeto de culto”, enquanto “ícone venerável”, mas destacado de sua condição de profeta do reino de Deus. Esse é o risco de um Jesus sem reino, de que fala também Jon Sobrino. Não há como acessar ao verdadeiro significado de Jesus destacando-o de sua relação com o reino de Deus. Como indica Pagola, “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana”.

IHU On-Line - É plausível fazer uma aproximação do livro de Pagola com as obras inaugurais da teologia da libertação no âmbito da cristologia?
Faustino Teixeira -
Essa comparação surge de forma imediata. Todos os que fomos formados na perspectiva da teologia da libertação sentimos grande familiaridade com a reflexão apresentada por Pagola. Os temas e o enfoque são muito comuns. Não há como deixar de recordar as clássicas passagens de Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff ou de Jesus na América Latina, de Jon Sobrino. A leitura do livro de Pagola traz novamente à baila reflexões que marcaram decisivamente a formação de inúmeros teólogos e teólogas latino-americanos e nos provoca a todos para um exercício teológico mais ousado e corajoso nesse tempo de encurtamento eclesial.

IHU On-Line - Em sua obra, Pagola busca distinguir a ação de Jesus com respeito à missão de João Batista. Como sinalizar essa diferença?
Faustino Teixeira -
Essa foi uma dentre outras questões que provocaram a reação ao livro de Pagola. Sabemos das resistências impostas ao livro pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola. Em nota a respeito, publicada em junho de 2008, essa comissão apontou algumas dificuldades percebidas pelos bispos, uma das quais tocava a questão do “obscurecimento da realidade do pecado e do sentido do perdão”. Para os bispos da Comissão, a contraposição estabelecida por Pagola entre a missão de João Batista e Jesus acabou silenciando sobre a realidade do pecado. Mas não é assim que Pagola percebe as coisas. Há que entender esta distinção com base no âmbito geral da obra e de seu objetivo. De fato, Pagola estabelece uma diferença entre as duas atuações. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas num horizonte distinto. Seu estilo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças”. As palavras de Jesus não traduzem a “dura linguagem do deserto”, mas é envolvida de esperança e poesia. O que busca trazer é uma Boa Notícia, de uma alegria que será para todos. Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo algo mais amplo e universal: aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia. Isso é o que era mais determinante para ele. Isso não significa, como admite Pagola, que o pecado não o preocupasse, mas para ele o pecado mais grave e de maior resistência ao anúncio do reino “consiste precisamente em causar sofrimento ou tolerá-lo com indiferença”.

IHU On-Line - Como podemos responder hoje à pergunta: quem foi Jesus?
Faustino Teixeira -
Jesus foi alguém apaixonado pelo reino de Deus e que viveu em profundidade a dinâmica de acolhida, hospitalidade e compaixão pelos outros. Foi alguém que trouxe à tona a possibilidade da alegria e da esperança em tempos propícios à apatia e exclusão. Sua mensagem ou Boa Nova colocou no centro do cenário a bem aventurança dos pobres e a exigência de partilha de sua causa. Concordo literalmente com Pagola quando afirma que não há como aproximar-se dele sem sentir-se atraído e fascinado por sua pessoa, pelo carinho, delicadeza e ternura com que trata os outros, independente de seu gênero, etnia ou religião. O que fala mais alto em Jesus é o seu testemunho de vida, e é este que devemos buscar seguir em nossa trajetória existencial. É importante sublinhar também que o segredo desta atuação profética está na forma singular de sua relação amorosa com Deus. É Deus mesmo, com seu projeto, que está no centro de sua vida, como Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura, acolhida e compromisso gratuito com os outros. E Jesus apresenta-nos um Deus profundamente interessado pelos humanos, um Deus de entranhas de compaixão, um Deus que não é propriedade de religião alguma pois é Pai de todos, um Deus que é movimento e transformação. Todos podem invocá-lo como Pai, assim como o fez Jesus. Está acessível a qualquer um, manifestando-se abertamente a partir do segredo do coração.

(Por Graziela Wolfart)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Em defesa do politicamente correto

Foto: Stefan Rappo

Está na moda falar mal do políticamente correto.

Sei que a cultura politicamente correta pode ter distorções e exageros como tudo na vida. Não vamos discutir por aí. Não vamos ao folclore. Vamos à substância. Estamos falando de preconceitos de todo tipo.

Eu acho politicamente incorreto fazer piadinha com pobre, com negro e com judeu. Detesto o comportamento que banaliza atitudes desrespeitosas e humilhantes em relação a mulheres. Acho inaceitável que os gays sejam agredidos em função de sua orientação sexual. Aprendi ao longo da vida que nada do que é humano me é estranho.

O politicamente correto é o esforço possível de nossa época para dar dignidade aos mais fracos. Nasceu, como é óbvio, quando os mais fracos conseguiram se defender um pouco. Não só conseguiram afirmar direitos políticos, mas se mostraram capazes de competir um pouco no mercado de trabalho e levantar a cabeça e não aceitar uma tradição politica baseada na hierarquia e na obediência.

A denúncia contra o politicamente correto nasce daí. É uma tentativa de retorno a um passado onde a desigualdade e a opressão eram vistas como dados naturais e imutáveis da vida.

Não só era preciso conformar-se com a situação. Era mesmo possível divertir-se com a infelicidade dos fracos e ofendidos. Solicitava-se, inclusive, que estes fossem cúmplices da própria humilhação. Este é o humor politicamente incorreto.

Vivemos numa sociedade hierarquizada, com várias formas invisíveis de poder, que podem prejudicar e ferir. Essa desigualdade se expressa na linguagem e é aí que a coisa pega. A desigualdade é um dado da existência de todo mundo. Em parte está na natureza. Em parte é construida socialmente.

O debate envolve a linguagem porque ela é a forma mais eficaz para consolidar uma situação social. As palavras embrulham a realidade.

Entendo assim: numa sociedade dividida por tantas diferenças, o politicamente correto é necessário para quem não tem poder de retaliação para devolver uma ofensa nem dinheiro para contratar um bom advogado.

Oferece um ambiente social para quem impedir que qualquer pessoa tenha de voltar para casa humilhada por agressões vergonhosas e inaceitáveis.

Neste sentido, a cultura politicamente correta é civilizadíssima. Protege os indefesos, os fracos, os ofendidos. Os direitos dessas pessoas, que até estão inscritos na Constituição, muitas vezes não podem ser assegurados de outra maneira.

Conhece projeto mais avançado do que dar direitos a quem não consegue exercê-los?

Eu não.

Acho engraçado quando algumas pessoas condenam o politicamente correto com o argumento de que ameaça a liberdade de expressão.

É dificil encontrar uma resposta para a pergunta básica: expressar o quê?

Pessoas de bom caráter ficarão com o rosto vermelho na hora de responder. As demais vão mudar de assunto. Sabem por quê?

Porque todos nós temos um limite. Ninguém acha que é preciso expressar tudo, o tempo tempo, em qualquer lugar, para qualquer platéia.

Neste caso, estamos falando de uma atitude eticamente muito feia, que é o direito de bater nos mais fracos. Com perdão da palavra, essa postura envolve um comportamento fascista, como já foi observado várias vezes, por autores muito mais competentes.

Apenas isso.

Você pode até defender o direito de expressão dos fascistas. É um debate. Mas é bom admitir que é uma posição menos simpática e menos irreverente do que negar o direito de defesa a quem não tem como se defender.

Como se sabe, o fascismo sempre gostou de apresentar-se com outras máscaras.

Muita gente nem sabe o que está discutindo. Outras sabem e disfarçam. Normal.

- Paulo Moreira Leite
Publicado na coluna do autor na Revista Época, em 29/10/11, e reproduzido via X1 - Tantas Notícias, com grifos nossos.

* * *

Caso se interesse pelo assunto, leia também:
"PLC 122: mordaça gay não, mas um necessário freio na língua", aqui

Meu reino não é deste mundo


No último domingo do Tempo Comum, a Igreja celebra a Festa de Cristo, Rei do Universo. Qual é o reino de Jesus Cristo? Poderíamos imaginá-lo sob a forma de um reino terreno, onde os valores como riqueza e poder são os critérios de julgamento? Certamente que não...

Diante de Pilatos, Jesus vai afirmar: o meu reino não é deste mundo (Jo 19, 36). Sim, não pode ser deste mundo um reino que prefere o pobre, o excluído, o cativo. Não pode ser deste mundo o reino onde a justiça é instalada permanentemente, onde o amor ao próximo é a medida de julgamento, onde todos são iguais e merecem as mesmas oportunidades. Por isso o confronto de nossa humanidade com a proposta de Jesus.

Já na cruz, prometerá o reino ao bom ladrão. Um reino a um ladrão? Sim, este é o Reino de Jesus, onde ladrões, prostitutas, excluídos de toda a sorte são acolhidos e têm lugar à mesa. Um reino onde o rei conhece todos os caminhos, todos os limites da humanidade e, por conhecê-los, pode amá-la ainda mais. É o reino que acolhe aqueles e aquelas que descobrem Jesus Cristo no faminto, no sedento, no despido, no preso, no excluído, como o Mestre nos falará através do evangelho de Mateus (Mt 25, 31-46).

Instalar um reino nesses moldes entre nós ainda é um desafio. É desafiador reconhecer Jesus Cristo naquele mais pobre, mais necessitado, naquele que cheira mal ou que nos interpela por justiça. É desafiador pensar em um reino onde todos possam ser iguais, onde o que prevaleça seja o poder de serviço e não o poder autoritário que esmaga o outro.

Saberemos um dia viver assim? Seremos capazes de assumir esta proposta em toda a sua radicalidade? Seremos, nós, ativos construtores dessa nova ordem? Este é o convite que a festa de Cristo Rei nos faz. Que saibamos responder afirmativamente a ele. Que possamos reconhecer em Jesus Cristo o convite à implementação de um novo reino e que sejamos seguidores fiéis de um rei de amor e de bondade.

Junto com a festa de Cristo Rei, costuma também ser celebrado o Dia do Leigo e da Leiga. Vocação especial, muitas vezes esquecida (tendemos a acreditar que vocacionados são somente os sacerdotes e freiras), ser leigo ou leiga no mundo de hoje é um permanente desafio. Desafio de vida e testemunho: como ser do mundo, sem ser do mundo, como nos conclama São Paulo? Leigos e leigas ocupam importantes ministérios na vida da Igreja e assumem sua vocação particular de constituir família – e aceitar com generosidade a vocação matrimonial que Deus lhes dá. Assumem a vocação de atuar profissionalmente com ética, dedicação e diferencial positivo no sentido de ser uma pessoa diferente no meio de tantas. Assumem vocação missionária, dedicando-se muitas vezes solitariamente ao outro mais necessitado. Enfim, leigos e leigas assumem o grande desafio de serem pedras vivas da Igreja, trabalhadores do reino que Cristo Rei vem implementar.

Texto para oração:
Mt 25, 31-46 ou Lc 25, 35-43

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ser gay é pecado?

Pintura: René Magritte, em exposição no Albertina Museum

Atualização de 5/12/11: O artigo aqui publicado, originalmente reproduzido via site da Revista Carta Capital, estava incompleto. Reproduzimos agora na íntegra, via Blog do Pablo. Faltava o texto a partir do parágrafo que começa com "Mais: segundo Padilha (...)".

Em seu programa de tevê e nos cultos, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, um dos maiores porta-vozes do conservadorismo religioso no País, costuma repetir a ladainha: “Homossexualidade na Bíblia é pecado. Pode tentar, forçar, mas é pecado”. Mas será mesmo pecado ser gay? Não, contestam, baseados na interpretação da mesma Bíblia, sacerdotes cristãos, tanto católicos quanto evangélicos. [Saiba mais aqui] Para eles, a mensagem de Jesus era de inclusão: se fosse hoje que viesse à Terra, o filho de Deus teria recebido os homossexuais de braços abertos.

“Orientação sexual não é o que vai definir a nossa salvação”, afirma o bispo primaz da Igreja Anglicana no Brasil, dom Maurício Andrade. “É muito provável que as pessoas homoafetivas fossem acolhidas por Jesus. O Evangelho que ele pregou foi de contracultura e inclusão dos marginalizados”, opina. Segundo o bispo, ao mesmo tempo que não há nenhuma menção à homossexualidade no Novo Testamento, há várias passagens que demonstram a pregação de Jesus pela inclusão. Não só o conhecido “quem nunca pecou que atire a primeira pedra” à adúltera Maria Madalena.

No Evangelho de João, capítulo 4, Jesus está a caminho da Galileia, partindo de Jerusalém. Cansado, decide descansar ao lado de um velho poço, em plena região da Samaria, cujos habitantes eram desprezados pelos judeus. E inicia conversação com uma mulher samaritana que vinha buscar água, e lhe oferece a salvação da alma, para espanto de seus próprios apóstolos, que a consideravam ímpia. Também quando Jesus vai à casa de Zaqueu, o coletor de impostos decidido a passar a noite lá, os discípulos murmuram entre si que se hospedaria “com homem pecador”. Mas Jesus não só o faz como também oferece a Zaqueu, homem rico tido como ladrão, a salvação. “Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão.”

“Jesus inaugura o momento da Graça, os Evangelhos atualizam vários trechos do Velho Testamento. Ou alguém pode imaginar apedrejar pessoas hoje em dia?”, questiona dom Maurício, para quem a interpretação da Bíblia deve se basear no tripé tradição, razão e experiência cotidiana. “Quem interpreta que a Bíblia condena a homoafetividade está sendo literalista. Cada texto bíblico está inserido num contexto político, histórico e cultural, não pode ser transportado automaticamente para os dias de hoje. Além disso, a Igreja tem de dar resposta aos anseios da sociedade, senão estaremos falando com nós mesmos.

Também anglicano, o arcebispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984, lançou em março deste ano o livro "Deus Não É Cristão e Outras Provocações", que traz um texto sobre a inclusão dos cidadãos LGBT à Igreja e à sociedade (leia um trecho aqui). Para Tutu, a perseguição contra os homossexuais é uma das maiores injustiças do mundo atual, comparável ao apartheid contra o qual lutou na África do Sul. “O Jesus que adoro provavelmente não colabora com os que vilipendiam e perseguem uma minoria já oprimida”, escreveu. “Todo ser humano é precioso. Somos todos parte da família de Deus. Mas no mundo inteiro, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros são perseguidos. Nós os tratamos como párias e os fazemos duvidar que também sejam filhos de Deus. Uma blasfêmia: nós os culpamos pelo que são.

Nos Estados Unidos, a Igreja Anglicana foi a primeira a ordenar um bispo homossexual, em 2004. “Não por ser gay, mas porque a Igreja reconheceu o serviço e o ministério dele”, alerta dom Maurício. Foi com base na demanda crescente de respostas por parte dos fiéis homossexuais ou com parentes e amigos gays que os anglicanos começaram a rever suas posturas, a partir de 1997. No ano seguinte, foi feita uma recomendação para que os homoafetivos fossem escutados, embora a união de pessoas do mesmo sexo ainda fosse condenada e que se rejeitasse a prática homossexual como “incompatível” com as Escrituras.

No Brasil, onde possui mais de 60 mil seguidores, a Igreja Episcopal Anglicana realizou em 2001 a primeira consulta nacional sobre sexualidade, quando seus fiéis decidiram rejeitar “o princípio da exclusão, implícito na ética do pecado e da impureza”, e fazer uma declaração pública em favor da inclusividade como “essência do ministério encarnado de Jesus”. Em maio deste ano, os anglicanos divulgaram uma carta de apoio à decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, baseados não só na defesa da separação entre Estado e Igreja como no reconhecimento de que as relações homoafetivas “são parte do jeito de ser da sociedade e do ser humano”.

Com o reconhecimento pelo Superior Tribunal de Justiça, em 25 de outubro, da união civil de duas lésbicas, é possível que a intolerância religiosa contra os homossexuais volte a se acirrar. No Twitter, Malafaia atiçava os seguidores a enviar e-mails aos juízes do Tribunal pedindo a rejeição do recurso. Em vão: a união entre as duas mulheres gaúchas, juntas há cinco anos, ganhou por 4 votos a 1.

A partir da primeira decisão do STF, foi criada, informalmente até agora, uma frente religiosa pela diversidade sexual, que reúne integrantes de diversas igrejas: batistas, metodistas, anglicanos, luteranos, presbiterianos, católicos e pentecostais. Coordenador do grupo, o metodista Anivaldo Padilha (pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha) diz que a homossexualidade é hoje um dos temas que mais dividem as igrejas, tanto evangélicas quanto católicas. “Quem alimenta o preconceito são as lideranças. Os fiéis manifestam dificuldade em obter respostas, porque no convívio com amigos, colegas ou mesmo parentes que sejam homossexuais não veem diferença.”

Mais: segundo Padilha, a proporção de homossexuais entre os evangélicos é bastante similar à da sociedade brasileira como um todo. Sua convicção vem da pesquisa "O Crente e o Sexo", do Bureau de Pesquisa e Estatística Cristã, entidade que possui o maior banco de dados com e-mails de evangélicos brasileiros – mais de 1,6 milhão. Na pesquisa, foram ouvidos pela internet 6.721 solteiros evangélicos de todo o País, entre 16 e 60 anos. Os resultados, divulgados em junho deste ano: 5,02% dos evangélicos tiveram uma experiência homossexual e 10,69% disseram desejar experimentar ter relações com pessoas do mesmo sexo.

Uma pesquisa feita em 2009 pelo Ministério da Saúde com os brasileiros em geral apontou que 7,6% das pessoas- entre 15 e 64 anos haviam tido relações com o mesmo sexo na vida. Quer dizer, a diferença entre os hábitos sexuais dos crentes e do resto da população é quase nula. “A questão não é teológica”, argumenta Padilha. “O que existe é que esse tema tem sido utilizado politicamente pela direita brasileira. Como não existe mais o comunismo, conseguem manipular a opinião pública assim. Eles têm o direito de expressar opiniões, mas não se pode impor ao Estado conceitos de pecado que não dizem respeito aos que professam outras religiões, ou nenhuma.”

De acordo com historiadores, a posição religiosa em relação à homossexualidade mudou ao longo dos séculos: de mais tolerante para menos. O americano John Boswell, pesquisador da Universidade Yale que morreu de Aids aos 47 anos em 1994 e que dedicou a vida acadêmica a investigar a homossexualidade relacionada ao cristianismo, afirmava que a Igreja Católica não condenou as relações entre o mesmo sexo até o século XII. Ao contrário: o historiador, contestado por alguns e aclamado por outros, revelou no livro "O Casamento entre Semelhantes – Uniões entre pessoas do mesmo sexo na Europa pré-moderna" (1994) a existência de manuscritos que comprovam a celebração de rituais matrimoniais religiosos durante toda a Idade Média por sacerdotes católicos e ortodoxos para consagrar uniões homossexuais.

Nos 80 manuscritos descobertos por Boswell sobre as bodas gays entre os primeiros cristãos, invocava-se como protetores os santos católicos Sérgio e Baco, tidos como homossexuais. Celebrados no dia 7 de outubro, São Sérgio e São Baco aparecem juntos em toda a iconografia religiosa a partir do século IV depois de Cristo e atualmente são objeto de homenagem de vários artistas plásticos ligados ao movimento LGBT. Soldados do imperador romano Maximiano, foram ambos martirizados por se recusar a entrar em um templo e adorar Júpiter. Baco, flagelado com chicotadas, morreu primeiro. Uma crônica, provavelmente do século- X, conta que Sérgio “com o coração enfermo pela perda de Baco, chorava e gritava: ‘te separaram de mim, foste ao Céu e me deixaste só na Terra, sem companhia nem consolo’”.

Em fevereiro deste ano, o pesquisador e professor de Literatura Carlos Callón, da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, foi premiado pelo ensaio "Amigos e Sodomitas: A configuração da homossexualidade na Idade Média", onde conta a história de Pedro Díaz e Muño Vandilaz, protagonistas do primeiro matrimônio homossexual da Galícia, em 16 de abril de 1061. No documento, o casal compromete-se a morar juntos e se cuidar mutuamente “todos os dias e todas as noites, para sempre”.

Segundo Callón, há muitos relatos semelhantes, inclusive com rituais religiosos similares aos heterossexuais, com a diferença de que as bênçãos faziam alusão ao salmo 133 (“Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos”), ao amor de Jesus e João ou a São Sérgio e São Baco.

“Trato também na pesquisa de como na lírica ou na prosa galego-portuguesa medievais aparecem alguns exemplos de relações entre homens”, diz o professor. “As relações homossexuais são documentáveis em todas as épocas, o que houve foi um processo de adulteração, de falsificação da história, para nos fazer pensar que não.” Outro dado importante ressaltado pelo pesquisador é que a perseguição contra os homossexuais vem originalmente do Estado. Só mais tarde a Igreja se converteria na principal fonte do preconceito.

“Os traços básicos do preconceito contra a homossexualidade tiveram sua origem na Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XIV. É nessa altura que emerge a intolerância homofóbica, desconhecida na Antiguidade. Inventa-se o pecado da sodomia, inexistente nos mil primeiros anos do cristianismo, a englobar todo o sexo não reprodutivo, mas tendo como principal expoente as relações entre homens ou entre mulheres. Com o tempo, passará a ser o seu único significado”, explica Callón.

De fato, a palavra “sodomia” para designar o coito anal em geral e as relações homossexuais em particular, e ao que tudo indica foi introduzida na Bíblia por seu primeiro tradutor ao inglês, o britânico John Wycliffe (1320-1384). Wycliffe traduziu o termo grego arsenokoitai como “pecado de Sodoma”. Daí a utilização da palavra “sodomita” para designar os gays, o que acabou veiculando-os para sempre com o relato bíblico das pecadoras cidades de Sodoma e Gomorra, destruídas por Deus com fogo e enxofre para punir a imoralidade de seus habitantes. Mas o significado real de arsenokoitai (literalmente, a junção das palavras “macho” e “cama”) é ainda hoje alvo de controvérsia.

O próprio termo “homossexual” para designar as pessoas que preferem se relacionar com outras do mesmo sexo é recente: só passou a existir a partir do século XIX. A versão revisada em inglês da Bíblia, de 1946, é a primeira a utilizá-lo. Isto significa que as menções à “homossexualidade”, “sodomia” e “sodomitas” nas escrituras seriam mais uma questão de interpretação do que propriamente de tradução.

“A Bíblia, infelizmente, tem sido usada para defender quaisquer posicionamentos, desde a escravidão (sobram textos que legitimam a escravatura) ao genocídio”, opina o pastor Ricardo Gondim, da Igreja Betesda de São Paulo, protestante. “Como o sexo é uma pulsão fundamental da existência, o controle sobre essa pulsão mantém um fascínio enorme sobre quem procura preservar o poder. Assim, o celibato católico e a rígida norma puritana não passam de mecanismos de controle. O uso casuístico das Escrituras na defesa de posturas consideradas conservadoras ou ‘ortodoxas’ não passa, como dizia Michel Foucault, de instrumentos de dominação.”

“Um teólogo que eu admiro muito, Carlos Mesters, costuma dizer que a Bíblia é uma flor sem defesa. Dependendo da mão e da intencionalidade de quem a usa, a posição mais castradora ou a mais libertadora pode ser defendida usando-a”, concorda a pastora Odja Barros, presidente da Aliança de Batistas do Brasil, espécie de dissidência da Igreja Batista que aceita homossexuais entre seus integrantes – são seis igrejas no País. Tudo começou há cinco anos, conta Odja, quando se colocou diante de sua igreja, em Maceió, o desafio: um homossexual converteu-se e não queria abrir mão de seu gênero. Foi uma pequena revolução.

Alguns integrantes deixaram a Igreja, outros se juntaram a ela, e houve fiéis que, animados, também resolveram se revelar homossexuais. “Em todas as comunidades evangélicas existem gays, mas são reprimidos”, afirma a pastora.

Um dos pontos principais para a compreensão da questão à luz da Bíblia, de acordo com Odja Barros, é desconstruir as leituras mais hegemônicas, patriarcais, que afetam a vida não só dos gays, como das mulheres. Há trechos, por exemplo, que justificam a submissão e a violência contra a mulher. A própria Odja só se tornou pastora graças a essa releitura. “As pessoas vêm me dizer que sou feminista, que sou moderna, mas me sinto muito fiel a algo muito antigo, que é a defesa da dignidade do ser humano sobre todas as coisas. O Evangelho tem a ver com esses valores”, argumenta. “A sociedade caminhou mais rápido e é um desafio à Igreja, quando deveria ser o contrário.

Entre os católicos, curiosamente, a homossexualidade não é vetada a partir da Bíblia, mas a partir da concepção de que seria antinatural, ou seja, fora do objetivo da procriação. É assim, até hoje, que prega a Igreja, daí a condenação também ao uso de contraceptivos como a camisinha. Tudo isso vem de uma época em que se conhecia muito pouco de biologia. A descoberta do clitóris como fonte do prazer feminino, por exemplo, é do século XVI. O ovário, que sacramentou a diferença entre homem e mulher, só foi descoberto no século XVIII. Até então, pensava-se que a mulher era um homem em desvantagem, um corpo masculino “castrado”.

“Além disso, hoje temos conhecimento de uma gama impressionante de comportamentos sexuais entre os animais, o que inclui homossexualidade e hermafroditismo”, defende o padre católico James Alison, britânico radicado em São Paulo. Homossexual assumido, Alison conta que se situa numa espécie de “buraco negro” em que se encontram, segundo ele, muitos padres católicos gays: sem função como párocos, não estão subordinados a bispos e, por isso mesmo, escapam de sanções da Igreja. O padre, que vive como teólogo, compara a homossexualidade a ser canhoto. Ou seja, um porcentual da população nasceria homossexual, assim como nascem pessoas que escrevem com a mão esquerda. “Aproximadamente 9,5% das pessoas são canhotas e isso também já foi considerado uma patologia.”

Alison conta que a Igreja Católica faz um malabarismo ideológico para sustentar a proibição de ser homossexual, pois no ensino teológico do Vaticano o fato em si não é considerado pecado. “Eles dizem que ‘enquanto a inclinação homossexual não seja em si um pecado, é uma tendência para atos intrinsecamente maus’, uma coisa confusa e insustentável a essa altura.” O padre acredita, porém, que a aceitação da homossexualidade pelos católicos melhorou sob Bento XVI. “Neste tema, os prudentes calam e os burros gritam. João Paulo II promovia os gritões. Hoje a tendência é prudência. Já não se veem bispos falando publicamente que é uma patologia. Se a Igreja reconhecer que não há patologia, será natural reconhecer a homossexualidade. É um lado bom de Ratzinger, mas tudo isso ocorre caladamente, nos bastidores da Igreja.

Para o padre, a falta de discussão no catolicismo sobre a homossexualidade “emburreceu” as pessoas para o debate em torno da pedofilia, que tanto tem causado danos à imagem da Igreja nos últimos anos. Daí a reação lenta diante das denúncias. E também se tornou um obstáculo à evangelização. “A homofobia instintiva já não é mais realidade, há cada vez mais solidariedade fraterna concreta. Muitos jovens são por natureza gay friendly. E se perguntam: por que seguir Jesus se tenho de odiar os gays?

- Cynara Menezes
Publicado originalmente no site da Revista Carta Capital, e reproduzido com grifos nossos. Reproduzido na íntegra via Blog do Pablo.
Dica do sempre querido @realfpalhano :-)

* * *

Se tiver interesse, veja também os "Anais da Religião" da Revista Piauí: Malafaia e sua "Vitória em Cristo"

Os que se afastaram da Igreja: um desafio


Ir ao encontro das pessoas que se afastaram da Igreja é um desafio que as igrejas, em diferentes países, procuram responder. Este foi o tema central abordado pelo novo presidente da Conferência Episcopal dos EUA. O discurso do arcebispo de Nova York é tema do editorial da revista inglesa The Tablet, 19-11-2011. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o editorial, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Jesus Cristo e a Igreja são um todo único. Assim o afirmou o arcebispo Timothy Dolan de Nova York diante de seus colegas bispos: este princípio é, segundo ele, a chave para inverter o declínio da participação à missa dominincal nos Estados Unidos, fato que caracteriza a Igreja Católica naquele país e, - teria podido acrescentar,- também alhures. “Talvez, irmãos, o nosso desafio pastoral mais urgente seja hoje o de reafirmar a verdade, para atualizar o brilho, a credibilidade e a beleza da Igreja 'sempre antiga e sempre nova', e inovarmos sua face que é a de Jesus, assim como Ele é a face de Deus."

O arcebispo Dolan é demasiado cônscio da medida na qual a imagem atual da Igreja não consegue mais corresponder a estes ideais. Uma Igreja que repetidamente faliu na proteção de seus membros mais vulneráveis contra os abusos sexuais da parte dos próprios padres, ou que às vezes parece apresentar-se como um severo mestre vitoriano na ação de admoestar uma classe de maus alunos, ou ainda como um lobby que se apressa em proteger os próprios privilégios, antes do que um organismo a serviço do bem comum, não parece, pois, ser muito semelhante à face de Cristo. Num discurso iluminante, o arcebispo Dolan recordou à Conferência Episcopal dos Estados Unidos, da qual é presidente, que a Igreja não deve ser considerada um “carroção embaraçoso, um clube de pernósticos fora de moda, agravado por um aparato burocrático de cunho medieval, capaz de lançar sobre a humanidade uma série de regras incríveis baseadas em pura fantasia, e mesmo um dos tantos movimentos carregados de litigiosidade e opiniões contrastantes”.

Os bispos da Inglaterra e de Gales lançaram uma iniciativa para procurar ir ao encontro novamente aqueles que abandonaram a prática semanal. Uma lição que emerge dos primeiros encontros, como descrito por Jonathan Tulloch na revista Tablet desta semana, é a necessidade de “vermos a nós mesmos como nos vêem os outros”, de reconhecer que quantos não abandonaram são também eles, por assim dizer, uma parte do problema na mesma medida daqueles que deixaram de ir. É uma reflexão semelhante ao discurso de Dolan.

Para dizê-lo brevemente, quando a gente olha um bispo católico, o representante mais em vista da Igreja local, vê nele Cristo batido até o sangue, ridicularizado, amaldiçoado, profanado, ou o vê como o chefe de “um sistema de organização de atividades que necessitam de uma oportuna renovação", para citar o arcebispo Dolan? Exatamente como a mensagem espiritual, com toda a probabilidade, é insuficiente para contrapor-se às tentações de consumismo e individualismo, que estão entre os principais antagonistas de uma vida de fé. No entanto, Cristo é a melhor oferta que a Igreja pode patrocinar. Ele é a fonte de atração magnética que ainda está em condições de atrair até quantos estão afastados.

Ao solicitar uma hierarquia mais humilde e capaz de admitir suas falhas, o arcebispo contestou precisamente aquele estilo de triunfalismo episcopal presente na cultura católica americana e também alhures. Não tanto por culpa de indivíduos isolados, mas do sistema inteiro. No entanto, isto de fato afasta muitos católicos e, ao mesmo tempo, mostra-lhes que não são procurados. Por exemplo, a Igreja católica americana iniciou uma campanha para defender a liberdade religiosa que, segundo ela, estaria ameaçada em várias frentes. Mas não está claro se a liberdade mais importante a defender seja o direito da Igreja de discriminar os gays católicos, ou o direito da Igreja de fazer, sim, que os seus hospitais continuem a ir ao encontro das necessidades sanitárias dos imigrantes clandestinos.

Os bispos americanos poderiam, então, interrogar-se sobre esta pergunta: que imagem de Igreja é mais semelhante à face de Cristo? Que imagem tem mais probabilidade de atrair novamente quantos se afastaram – ou tem sido afastados – entre desilusão e desespero?

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A transexualidade na TV: debate importante, despreparo constante

Foto: Sarah

Apesar do atraso em relação à publicação original deste artigo, ao encontrá-lo achamos o tema tão relevante e o debate, tão urgente, que julgamos que valia a pena reproduzi-lo aqui. Para começar a semana com informação de qualidade. ;-)

Ontem [30/10/11] o programa "Super Pop" (Rede TV), apresentado por Luciana Gimenez, abordou o tema "transexualismo", que já não é de hoje que tem sido pauta de alguns programas televisivos. Outro dia até comentei aqui sobre "A Liga" (Band), que tratou desse mesmo assunto com bastante clareza e seriedade. Desta vez o enfoque foi maior para o 'trans homem" (ou "homem trans") --o indivíduo que nasceu com corpo de mulher mas sempre se sentiu um homem.

Não se poderia dizer que o 'Super Pop' tenha tratado o tema com leviandade. Não. Pelo contrário. A produção preocupou-se em escalar convidados interessantes e bastante envolvidos na questão para darem seus depoimentos. Além deles, o urologista especializado em cirurgias de 'mudança de sexo', por assim dizer, Dr. Carlos Cury --que esteve incumbido de esclarecer toda a parte técnica do procedimento. O que transpareceu foi um certo despreparo da parte da apresentadora para conduzir o debate.

Três depoimentos de indivíduos em situações diferenciadas foram essenciais para explanar o assunto. O escritor João Nery, que está lançando o livro "Viagem Solitária" e esteve recentemente dando uma longa e esclarecedora entrevista para Marília Gabriela no "De Frente com Gabi" (SBT). Autodenominando-se "trans homem", João Nery contou a sua experiência com requintes de detalhes e muita clareza de ideias, sem subterfúgios nem evasivas. Consciente e muito articulado, soube colocar a questão do 'sentir-se um homem no corpo de uma mulher' com muita propriedade e lucidez de raciocínio. Um depoimento interessante e esclarecedor. João Nery não chegou a completar todas as cirurgias necessárias para concretizar fisicamente a mudança de sexo. O que não o impediu de estar no quarto casamento, sempre com mulheres - é claro.

Durante a conversa com João Nery, a produção se valeu de diversos 'takes' retirados da entrevista de Marília Gabriela, que, indubitavelmente, consegue sempre demonstrar um grande domínio sobre o assunto que vai tratar com seus entrevistados. Luciana Gimenez pisava em ovos frente ao seu convidado, e só parecia relaxar um pouco depois de assistir um outro trecho de Marília Gabriela que, então, lhe dava subsídios para continuar o bate-papo.

O segundo convidado foi o jovem (21) Leonardo Tenório. Ele também nasceu num corpo com características femininas, mas nunca se identificou com o gênero. Já adolescente, assistiu a um documentário na televisão sobre o 'transexualismo' e, ao se identificar com o conteúdo, resolveu ir em busca de sua 'readequação sexual'.

"Você é uma menina?!", arriscou a apresentadora Luciana um tanto insegura. "Não", respondeu imediatamente Leonardo - "você é uma menina e eu sou um homem! Um homem num corpo de menina!". Léo já está terminando o período de dois anos de preparo psicológico que é exigido do candidato para poder efetuar a cirurgia propriamente dita. Tanto pelo SUS, que já oferece essa possibilidade, quanto pela via particular, esse protocolo é exigido igualmente.

Ele não vê a hora de realizar todo o processo e sentir-se um homem completo. De corpo, porque de alma sempre se sentiu, confessou o jovem. O depoimento de Leonardo foi importantíssimo. Tranqüilo, educado, sereno, mas seguro de seus objetivos e também com muita clareza do conteúdo em debate - não foi fácil para Luciana Gimenez coordenar a rapidez de raciocínio do rapaz com as parcas informações contidas em suas fichas e, pior, em suas desajeitadas investidas de improviso.

Numa pequena ousadia da produção, Léo foi levado a um shopping para fazer as vezes de um repórter da emissora e entrevistar algumas pessoas sobre o tema, sem identificar-se como trans homem.

Uma senhora madura que passava foi abordada e, quando questionada sobre a possível cirurgia de mudança de sexo, respondeu: "eu odeio isso! No meu tempo não tinha isso. Homem era homem, mulher era mulher!". Quando foi avisada de que Léo era originalmente uma mulher, respondeu sem susto:"não acredito".

Um senhor também foi testado. "Homem nasce homem e tem que morrer assim. A mulher a mesma coisa. Não tem esse negócio de trocar!". Em seguida, uma jovem que se disse 'missionária', afirmou categórica: "Quem muda é só Jesus! Não precisa fazer cirurgia no corpo. Jesus muda a mente da pessoa e ela volta a ser o que era".

Ao ouvir essa declaração, João Nery replicou do estúdio: "então eu também apelo para o Cristianismo: amai-vos uns aos outros"!

Ainda participou da roda Thammy Miranda, a filha da cantora Gretchen --homossexual assumida. Contou que demorou para se aceitar, mas que agora leva numa boa e não gostaria de fazer cirurgia nenhuma. "Eu sou lésbica, mulher que gosta de mulher - não tenho que operar nada".

Luciana Gimenez, embora não dominasse o assunto o suficiente para mediar o debate, mostrou-se muito à vontade ao abrir o espaço do seu programa para mais uma vez discutir esse universo que ainda precisa ser'digerido' melhor por muitos e, principalmente, dar a oportunidade dos próprios envolvidos esclarecerem de viva voz o que passam e o que sentem.

De repente o jovem Léo vira para Luciana Gimenez e pergunta: "você tem um filho...se amanhã ele aparecer pra você e disser que quer ser uma menina, você expulsaria ele de casa?" "Nunca! Eu nunca expulsaria um filho meu de casa. Acho que uma mãe que ama não faz isso --ao contrário, traz ele mais pra perto". Do que tinha demonstrado de despreparo para a entrevista, Gimenez mostrou, com essa resposta, um bom preparo para a vida.

Para encerrar o programa, os contatos de praxe. Para achar o Dr. Carlos Cury e saber mais sobre a questão da cirurgia de mudança de sexo, o site transexual.com.br. O Leonardo Tenório eu achei no ftmbrasil.blogspot.com. O escritor João Nery, a primeira mulher a mudar de sexo no Brasil (1977), estará no lançamento do seu livro "Viagem Solitária" (Editora Leya) - Livraria Argumento --dia 3 de novembro, a partir das 19:30 h, na rua Dias Ferreira, 417 - Leblon (Rio de Janeiro). Thammy? Só mandou um beijo para os fãs!

A apresentadora Luciana Gimenez, ao se despedir, equivocou-se ainda uma vez: "O importante é o respeito", disse ela - até aí, perfeito. Mas tropeçou ao continuar o seu raciocínio: "se você não entende, tudo bem, não precisa entender... só respeite". Não, não está tudo bem em não entender. As pessoas não costumam respeitar aquilo que não entendem. O ideal é continuar 'preparando' programas que tragam o assunto sim, mas que justamente sirvam para esclarecer mais e mais o que as pessoas 'não entendem'. E passem a entender. Entender para aceitar. Aceitar, aí sim, para respeitar.

- Renato Kramer
Publicado originalmente na coluna do autor na Folha de S. Paulo, em 01/11/11
Dica do fundamental X1 Tantas Notícias

O Evangelho chegou tarde

Escultura: Petra Oldengarm

Acontece com frequência que, entre cristãos, se dá mais importância aos ritos, às normas, à organização, à gestão da autoridade ou aos assuntos econômicos (a tudo isso), do que à fidelidade ao Evangelho. Por isso, muitas vezes me pergunto: o que acontece com aqueles que dizem crer em Jesus, cujo princípio orientador de nossas vidas não é justamente o mesmo princípio que rege a nossa forma de viver?

Este problema – pelo que pude me informar – vem de longe. Não é coisa de agora. Trata-se de um assunto que tem suas origens nas próprias origens do cristianismo. A questão se compreende quando se tem em conta como e quando foram organizadas as primeiras “igrejas”. E também quando se sabe como e quando, naquelas primeiras “igrejas”, se conheceram os evangelhos, isto é, o que foi a vida de Jesus e o que aquela vida representa para a nossa vida.

Quero dizer o seguinte: Jesus morreu nos anos 30 do século I. São Paulo escreveu suas cartas a “igrejas” que ele mesmo havia fundado, e pelas quais se sentia responsável, entre os anos 49 e 56. Os evangelhos, na redação que chegou até nós, começaram a ser difundidos depois do ano 70 e não foram conhecidos totalmente senão no final do século I ou talvez ainda depois. Os Atos dos Apóstolos foram redigidos entre os anos 80 e 90.

Tudo isto quer dizer que as primeiras “igrejas” (das quais temos notícias) se organizaram de acordo com as ideias e crenças transmitidas pelo apóstolo Paulo. Mas sabemos que Paulo não conheceu Jesus. Nem mostrou interesse para se informar sobre a vida terrena de Jesus. A Paulo “lhe apareceu” o Cristo ressuscitado e glorioso (Gl 1, 11-16; 1Cor 9, 1; 15, 8; 2Cor 4, 6). Mais, Paulo chegou a dizer que o conhecimento de Cristo “segundo a carne” não lhe interessou (2Cor 5, 16).

Portanto, há indicadores suficientes para pensar que as primeiras “igrejas” cristãs, das quais temos notícias, tiveram sua vida, suas esperanças e suas motivações mais determinantes na glória, no céu, na eternidade, ali onde eles pensavam encontrar o Senhor da Glória. A vida, o exemplo, a bondade, a profunda humanidade de Jesus, tudo isso, foi conhecido por muitas comunidades, e pelas mais importantes “igrejas” da primeira hora, muitos anos mais tarde, talvez 20 ou 30 anos depois. Pode-se dizer que o “Senhor glorioso” se adiantou ao “Jesus terreno”.

Por isto, eu disse que “o Evangelho chegou tarde”. Tão tarde, que, a não poucos batizados, ainda não chegou. Isto explica, em definitiva, por que estamos mais preocupados em “nos submeter” ao Senhor glorioso do que em “seguir” o Jesus terreno. E por isso aconteceu o que tinha acontecer: temos um Cristianismo com muita autoridade, mas levamos uma vida com escassa exemplaridade.

- José María Castillo, teólogo espanhol
Publicado originalmente no blog do autor, Teología sin Censura, 14-11-2011. Tradução do Cepat, aqui reproduzida via IHU.

domingo, 20 de novembro de 2011

"A sexualidade tem força política"


"A sexualidade tem força política. Meu sexo exposto no Secos & Molhados era uma transgressão. Hoje o mundo é mais careta por um lado, mas por outro lado temos avanços na legislação sobre união civil gay, por exemplo. Mas faço um questionamento ao movimento gay. São 4 milhões na parada de São Paulo. Isso muda uma eleição presidencial, não pode ficar só de quiquiqui. O direito não é só para ficar no alto do carro se beijando."

- Ney Matogrosso, aqui

''Podemos mudar o mundo imitando as borboletas''

Ilustração: Sarah Garzoni

Para construir uma verdadeira comunidade, não ignoremos os pequenos gestos. A globalização negativa não considera hábitos e necessidades locais. Abraça poderes como as finanças e o capital. Há um grande número de mulheres e homens corajosos que podem mudar a história. Ajudemo-los a bater as asas.

A opinião é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 14-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Eis o texto.


Em que mundo eu gostaria de viver? Na verdade, não posso dizer muito. Isso porque, em primeiro lugar, em 60 anos de empenho na sociologia, nunca fui bom em profetizar. Em segundo lugar, no fim de uma vida imperdoavelmente longa, a única definição de boa sociedade que eu encontrei diz que uma boa sociedade é tal se acredita não ser suficientemente boa. Portanto, prefiro me concentrar não tanto no mundo em que queremos viver, mas sim no mundo em que devemos viver, simplesmente porque não temos outros mundos para os quais escapar. Refiro-me a uma citação de Karl Marx, que afirmava que as pessoas fazem a sua própria história, mas não nas condições escolhidas por elas. Todas as vezes que eu a ouço, lembro-me também de uma historinha irlandesa que nos fala de um motorista, que para o seu carro e pergunta a um transeunte: "Desculpe-me, senhor, poderia me dizer por gentileza como posso chegar a Dublin a partir daqui?". O transeunte para, coça a cabeça e depois de um tempo responde: "Bem, caro senhor, se eu tivesse que ir a Dublin não começaria daqui". Este é o problema: infelizmente, estamos começando daqui e não temos nenhum outro lugar de onde partir.

Portanto, pretendo sublinhar como o mundo do qual partimos "voltados para Dublin", seja lá o que Dublin queira dizer, está cheio de desafios e de tarefas urgentes, substancialmente improcastináveis. Penso que, se o século XX foi a época em que as pessoas se perguntavam "o que" precisava ser feito, o século XXI será cada vez mais a era em que as pessoas farão a pergunta sobre "quem" fará o que deve ser feito.

Existe uma discrepância entre os objetivos e os meios à nossa disposição. Meios que foram criados pelos nossos antepassados, que deram vida ao Estado-nação e o dotaram e armaram de muitas instituições extremamente importantes, feitas à medida do Estado-nação. No que se refere ao Estado-nação, ele era verdadeiramente o ápice da ideia de autogoverno e de soberania, a ideia de estar em casa, e assim por diante. Acima de tudo, o Estado-nação era um meio confiável e impecável de ação coletiva, instrumento para alcançar os objetivos sociais coletivos.

Acreditava-se nisso para além da diferença entre "direita" e "esquerda". O Estado-nação era capaz de implementar as ideias vencedoras. Por que era assim? Porque o Estado-nação era considerado, e em grande parte o foi por bastante tempo na história, a fazenda do poder e da política. O matrimônio entre poder e política é um casamento celebrado no céu, nenhum homem pode destruí-lo. Poder significa habilidade em fazer as coisas. Política significa habilidade em dirigir essa atividade de fazer as coisas, indicando quais coisas devem ser feitas.

Ora, o que está acontecendo hoje é a indubitável separação, uma perspectiva de divórcio, entre poder e política. Poder que evapora no ciberespaço e que se manifesta naquilo que eu chamo de "globalização negativa". Negativa no sentido de que se aplica a todos os aspectos da vida social que têm uma coisa em comum: trata-se do enfraquecimento, a erosão, a não consideração dos hábitos locais, das necessidades locais. A "globalização negativa" abraça poderes como as finanças, o capital, o comércio, a informação, a criminalidade, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo etc. Ela não é seguida pela "globalização positiva". Em nível global, não temos nada de remotamente semelhante à eficácia do instrumento do controle político sobre o poder, da expressão da vontade popular, isto é, da representação e da jurisdição, realidades que se desenvolveram e foram bloqueadas no nível do Estado-nação.

À luz dessa discrepância, todas as vezes em que ouço o conceito de "comunidade internacional", eu choro e rio ao mesmo tempo. Nós ainda nem começamos a construí-la. Os nossos problemas são verdadeiramente globais, mas só possuímos os meios locais para enfrentá-los; e eles são despudoradamente inadequados para a tarefa. Por isso a pergunta que eu sugiro provavelmente é questão de vida ou de morte para o século XXI. Quem vai se ocupar disso? Essa será a questão.

Eu não tenho a resposta a essa pergunta, só posso propor algumas palavras de encorajamento. Edward Lorenz é bastante conhecido pela sua tremenda descoberta de que até os eventos mais pequenos, minúsculos e irrelevantes poderiam – dado o tempo, dada a distância – se desenvolver em catástrofes enormes e chocante. A descoberta de Lorenz é conhecida na alegoria de uma borboleta, em Pequim, que sacudia suas asas e mudava o percurso dos furacões no Golfo do México seis meses depois. Essa ideia foi recebida com horror, porque ia contra a natureza da nossa convicção de que podemos ter pleno conhecimento do que virá depois. Ele ia contra a teoria do tudo. De que podemos conhecer, prever, até mesmo criar, se necessário, com a nossa tecnologia, o mundo.

Lembro que nessa descoberta de Lorenz também há um vislumbre de esperança e é muito importante. Consideremos o que uma borboleta sabe fazer: uma grande quantidade de coisas. Não ignoremos os pequenos movimentos, os desenvolvimentos minoritários, locais e marginais. A nossa imaginação vai longe, além da nossa habilidade de fazer e arruinar coisas. Na nossa história humana, tivemos um número relevante de mulheres e de homens corajosos, que, como borboletas, mudaram a história de maneira radical e positiva. De verdade. O único conselho que posso dar, então: olhemos para as borboletas, são de várias cores, felizmente são muito numerosas. Ajudemo-las a bater as suas asas.

O decisivo


O relato não é propriamente uma parábola mas uma evocação do juízo final de todos os povos. Toda a situação concentra-se num diálogo longo entre o Juiz que não é outro que Jesus ressuscitado e dois grupos de pessoas: os que aliviaram o sofrimento dos mais necessitados e os que viveram negando-lhes a sua ajuda.

Ao longo dos séculos os cristãos viram neste diálogo fascinante "a melhor recapitulação do Evangelho", "o elogio absoluto do amor solidário" ou "a advertência mais grave a quem vive refugiado falsamente na religião". Vamos assinalar as afirmações básicas.

Todos os homens e mulheres sem exceção serão julgados pelo mesmo critério. O que dá um valor imperecível à vida não é a condição social, o talento pessoal ou o êxito conseguido ao longo dos anos. O decisivo é o amor prático e solidário aos necessitados de ajuda.

Este amor traduz-se em atos muito concretos. Por exemplo, «dar de comer», «dar de beber», «acolher o emigrante», «vestir o nu», «visitar os doentes ou os presos». O decisivo ante Deus, não são as ações religiosas, mas estes gestos humanos de ajuda aos necessitados. Podem brotar de uma pessoa crente ou do coração de um agnóstico que pensa nos que sofrem.

O grupo dos que ajudaram os necessitados que foram encontrando no seu caminho, não o fizeram por motivos religiosos. Não pensaram em Deus nem em Jesus Cristo. Simplesmente procuram aliviar um pouco o sofrimento que há no mundo. Agora, convidados por Jesus, entram no reino de Deus como "benditos do Pai".

Por que é tão decisivo ajudar os necessitados e tão condenável negar-lhes ajuda? Porque, segundo revela o Juiz, o que se faz ou o que se deixa de fazer a eles, está-se a fazer ou a deixar de fazer a Deus encarnado em Cristo. Quando abandonamos um necessitado, estamos a abandonar a Deus. Quando aliviamos o seu sofrimento, estamos a faze-lo com Deus.

Esta surpreendente mensagem coloca-nos a todos a olhar os que sofrem. Não há religião verdadeira, não há política progressista, não há proclamação responsável dos direitos humanos se não é defendendo aos mais necessitados, aliviando o seu sofrimento e restaurando a sua dignidade.

Em cada pessoa que sofre Jesus sai ao nosso encontro, olha-nos, interroga-nos e suplica-nos. Nada nos aproxima mais Dele que aprender a olhar demoradamente o rosto dos que sofrem, com compaixão. Em nenhum lugar poderemos reconhecer com mais verdade o rosto de Jesus.

- José Antonio Pagola
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