sábado, 31 de dezembro de 2011

Se não falas...

Imagem daqui

Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

- R. Tagore, daqui

Curtindo o Ano Novo


As balsas já começaram a ser montadas, os shows erguem os palanques, os corações e sobretudo as gargantas e estômagos se preparam. Nem bem acabou o Natal e o Ano Novo já se anuncia pelos preparativos, o clima que roda no ar, a sintonia das pessoas que tirou a cabeça do Papai Noel e a colocou nos fogos de artifício que rasgarão os céus durante vários minutos com a chegada de 2012.

E já na manhã do dia 1º de janeiro o comércio começará a encher as vitrines com produtos de Carnaval pois os blocos e festas pré-carnavalescas começarão já a acontecer antes dos três dias de Momo. E já na quarta-feira de cinzas ovos de chocolate brilharão sedutores convidando ao consumo e ao sabor. E assim sucessivamente chegará o Dia das Mães, o Dia dos Namorados, o Dia dos Pais, Dia da Criança e todas as datas que o comércio festeja e das quais vive até que...de novo será Natal e nem percebemos.

Enquanto na Antiguidade o tempo era marcado pela semeadura e a colheita, e na Idade Média pelas festas religiosas, em nossa sociedade pós-moderna o tempo é marcado pelas datas estelares do consumo. E como é importante não deixar cair o ritmo, já que o consumo não pode perder a velocidade sob pena de perder o poder de sedução sobre as pessoas, a rapidez e a efemeridade são uma marca registrada de nosso modo de contar o tempo.

Vivemos apressadamente, pulando de uma etapa para outra, de uma festa para outra, de uma comemoração para outra. Não se celebra mais, comemora-se. Não se fazem mais ritos de passagem, mas sim saltos de mudança atropelados e sem preparação. Não se vive mais em profundidade, mas sim se é carregado pela vida que não deixa tempo sobretudo de pensar e refletir. Há que viver em ritmo de frenesi, de pressa, de sucessão vertiginosa, de emoções provocadas e rasas.

É típico ver os rostos das pessoas durante o tempo que precede o Natal: ansiosas, apressadas, cansadas, esgotadas. Reclamando da centena de compromissos, dos milhares de almoços de “confraternização”, dos “amigos ocultos” em profusão, dos festejos vazios e sem finalidade. Nada cala fundo, nada convida a uma reflexão, nada marca um momento e faz suavemente a passagem para o outro.

Para 2012 a coisa promete repetir-se. Já há contagem de quantos feriados ponte haverá, em que época cairá o carnaval e como será possível emendar os dias para torná-lo mais longo. Asim como a Semana Santa, que santa para muitos deixou de ser há longotempo, tornando-se apenas um feriado a mais onde se bebe, se come, se dorme em demasia para depois cair na mesma rotina sem transformação interior, sem conversão, sem passagem pascal da morte para a vida verdadeira.

E no entanto depende de nós. Depende de nós andar na contramão dessa corrente que nos arrasta inexoravelmente. Depende de nós fazer com que o ano novo seja diferente. Depende de nós viver intensamente e profundamente cada momento, não como um foguete que passa do qual só vemos a cauda, mas deixando-nos moldar e configurar por ele. Depende de nós sersenhores e não escravos do tempo que o calendário comercial nos determina. Depende de nós fazermos a pauta do Ano que começará em poucos dias amanhã.

Neste Novo Ano, vivamos a vida e não deixemos que a vida nos viva. Amemos as pessoas sem data marcada. Não só no dia fixado para homenageá-la. Beijemos nossas mães todos os dias e não apenas no segundo domingo de maio. Festejemos nossas crianças a todo minuto e a todo momento, e não apenas no dia 12 de outubro. Vivamos o carnaval com alegria, sim, que a alegria e a festa são coisas boa e humanizadoras. Mas vivamos também a Quaresma que nos prepara para a grande luz da Páscoa que nos diz que fomos feitos para a vida e não para a morte.

Demo-nos tempo que o tempo nos foi dado. Ao criar o mundo e criar-nos o Criador nos fez históricos e cronológicos. Se não vivemos nossa condição de ser históricos, se não refletimos sobre cada acontecimento, não poderemos aprender as lições da história e crescer com erros e acertos. Se tudo passa muito rápido por nós, como água pelo espalho, sem interiorização nem absorção, corremos o risco de passar correndo pela vida e ser surpreendidos pela morte que só nos mostrará no espelho da verdade o imenso vazio do não vivido.

O ano vem novo e cheio de promessas. É preciso vive-las e vê-las transformar-se em realizações. Ou ser adiadas na fé e na esperança. Curtir cada experiência e dela fazer aprendizado. Para que o ano continue novo, mesmo avançando em seus 365 dias. Pois na verdade...o que são 365 dias diante da eternidade? FELIZ ANO NOVO!

- Maria Clara Bingemer
Reproduzido via Amai-vos

“A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”

"O êxtase de Santa Teresa", Gian Lorenzo Bernini (1645-1652)

Para se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “experiência, experiência do espírito”, como “uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em ‘eventos’ particulares”.

Por isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa, embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem”, no que concerne ao espírito, não há diferença de sexo, “como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina”.

Contudo, explica, “devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Vannini comenta as experiências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete, cujas palavras, afirma, “falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade”.

Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Editou as obras de grandes místicos: Eckhart, Angelus Silesius, Sebastian Frank, Valentin Weigel, Marguerite Porete, Jean Gerson, François de Fénelon etc. Publicou inúmeros estudos, tais como: La morte dell’anima. Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outras. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


IHU On-Line – “Êxtase, evento, experiência”: o que é mística para o senhor?

Marco Vannini – Sobretudo experiência, experiência do espírito. Não se entende o que é a mística se não se tem bem clara a antropologia clássica e cristã – não bipartida em corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito. Enquanto o elemento psíquico está todo submetido ao determinismo espaço-temporal e não conhece liberdade nem beatitude, onde está o espírito, ali há liberdade, como diz o Apóstolo (ubi spiritus domini, ibi libertas), e ali também há beatitude. Sob esse perfil, portanto, também se pode falar de “êxtase” na e para a mística, onde êxtase não significa, de fato, presença de visões extraordinárias ou de fenômenos excepcionais, mas sim, etimologicamente, a “saída” da condição do psiquismo, ou seja, do particular do pequeno eu, com todos os seus laços, e o abrir-se à dimensão do universal, onde não há mais oposição entre eu e o mundo, e nem entre eu e Deus.

O fato é que hoje, com frequência, não se sabe mais o que significa concreta e realmente espírito, enquanto profunda unidade de inteligência plenamente desenvolvida e de amor igual e plenamente estendido, sem objeto, “sem porquê” – os dois olhos da alma que, juntos, fazem o olhar “simples”, para seguir precisamente a linguagem de Marguerite Porete.

A palavra “evento” me convence menos, porque faz pensar em algo raro, casual e não comum, enquanto me parece que, ao invés, mística deva significar uma contínua e constante realidade de vida espiritual, que não consiste em “eventos” particulares.

IHU On-Line – Podemos falar de uma “mística feminina”? Quais seriam as suas contribuições à experiência mística em geral?

Marco Vannini – A meu ver, pode-se falar de mística feminina somente em um sentido redutivo, não essencial. Explico: enquanto corpo e psique da mulher são diversos – pelo menos em parte – dos do homem, é evidente que há modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher com relação aos de um homem. Mas, no que concerne ao espírito, ele não tem sexo – em Cristo, não há homem nem mulher, escreve o Apóstolo em Gálatas 3, 28 –, como também não há distinções de caráter cultural, social, ambiental: isso é universal. Falar de mística feminina é, portanto, um fruto do nosso tempo, no qual a emancipação feminina, o feminismo, a historiografia de “gênero”, de um campo no qual é legítima, transbordou para fora dos limites. Falar de mística feminina tem tanto sentido como falar de matemática feminina. Por isso a mística de todos os tempos e de todas as culturas – de Plotino aos nossos dias, de Eckhart a Sankara etc. – é quase idêntica e, por isso, as obras das grandes mulheres místicas não têm características “femininas”. Precisamente o caso do Espelho das almas simples, de Marguerite Porete, é emblemático: antes que Romana Guarnieri descobrisse a autora, pensou-se durante séculos que fosse obra de um homem, e como tal foi publicada em inglês e foi lida, por exemplo, por Simone Weil.

Quando se vai ao específico “feminino”, o espiritual recai no psicológico, e então temos os exemplos das mulheres que acreditavam estar grávidas de Jesus, sonhavam em aleitar Jesus menino etc., onde o místico recai no patológico e pode aparecer – como talvez o seja, de fato, nesses casos – como o substituto de uma vida plenamente vivida. Não por acaso aqueles homens – mas, sobretudo, aquelas mulheres, porque quase sempre é delas que se trata – que tiveram experiência de matrimônio (por exemplo, santa Catarina de Gênova ou Madame Guyon, mas também Angela de Foligno), quase nunca utilizam o simbolismo e os termos “esponsais” da mística chamada “nupcial”, para não misturar corpo e alma com espírito, que, como ensina ainda o Apóstolo, é o seu oposto.

IHU On-Line – Em sua opinião, que figuras históricas mais se destacam na abordagem mística feminina a Deus e ao Mistério? Por quê?

Marco Vannini – Lembrando que, como recém disse, não compartilho muito a ideia de que haja uma “abordagem mística feminina” essencialmente diferente da masculina, devo dizer com a mesma franqueza que devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não tinham acesso à instrução. E isso é extremamente indicativo pelo fato de que a experiência espiritual, na sua universalidade, não depende das culturas. Sem querer deixar de lado muitas outras figuras importantíssimas, penso que Marguerite Porete, na Idade Média, santa Catarina de Gênova, na época moderna, e Simone Weil, no presente, são expoentes da experiência mística. Dei como subtítulo Da Ilíada a Simone Weil à minha Storia della mistica occidentale, precisamente para sublinhar o relevo que atribuo a uma mulher na história da mística.

IHU On-Line – Como a mística – e sobretudo a cristã – foi entendida, discutida e estudada ao longo do tempo? Quais seriam os grandes pontos de referência históricos do conceito de mística?

Marco Vannini – O discurso seria longo. Indicarei apenas um momento realmente fundamental: o fim do século XVII, quando a condenação de Miguel de Molinos, dos chamados “quietistas”, e depois também da obra de Fénelon, Explications des maximes des saintes sur la vie intérieure [Explicação das máximas dos santos sobre a vida interior] (1689), marcou realmente aquela que os historiadores da espiritualidade franceses chamam de la déroute de la mystique, a derrota da mística. De fato, junto com Fénelon e os outros condenados, eram também condenadas as teses mais relevantes da mística cristã: a doutrina do “puro amor”, a presença de Deus no “fundo da alma”, a “indiferença”, ou seja, o completo distanciamento.

A partir de então foi reservado à mística somente um espaço marginal, reservado àqueles poucos favorecidos pelas graças (no plural: não pela graça) divinas e que, por isso, se exprimia em visões sobrenaturais, experiências estáticas particulares etc. Portanto, não algo que seja universal, pertencente a todo homem (ou mulher, evidentemente), mas só particular, excepcional. Esse é o significado que a palavra mística assumiu na época contemporânea e que, por isso, de fato, a coloca em oposição com a ciência, com a lógica, com a razão. Infelizmente, ainda não saímos desse modo de pensar a mística, pelo menos em nível comum.

Tenha-se presente que a própria palavra “mística” como substantivo entrou no uso comum somente muito tarde, pelo século XVI: antes, era somente adjetivo, em geral de “teologia” ou de “interpretação”, relativamente à Sagrada Escritura: assim, por exemplo, o maior místico do Ocidente, Mestre Eckhart, não sabia, de fato, que era um “místico”! A Antiguidade e a Idade Média cristã falavam antes de “contemplação” – uma palavra que mantinha intacto todo o sentido originário do filosofar como bios teoretikós, vida contemplativa, vida de conhecimento voltada ao Uno, no afastamento dos laços e das paixões – a única capaz de dar beatitude. Por isso paradoxalmente se poderia dizer que, no próprio uso da palavra e do conceito de “mística”, já está implícita essa separação daquilo que é comum, universal e, portanto, próprio de cada homem e de cada mulher, o que condena a mística à marginalização e à incompreensão.

IHU On-Line – Como o senhor vê a tensão entre mística feminina e instituição eclesiástica no decorrer da história? Quais foram os fatos históricos mais marcantes, em sua opinião?

Marco Vannini – Não resta dúvida de que por séculos a instituição eclesiástica suspeitou das mulheres que, de algum modo, traziam uma voz nova ou assumiam um papel magisterial. A história da mística está cheia de episódios de mulheres incriminadas ou talvez condenadas por esse motivo: o caso de Marguerite Porete, queimada como herege pelo seu livro Espelho das almas simples, que depois foi publicado, nos nossos dias, no Corpus Christianorum. Continuatio medievalis. Ou seja, entre os grandes clássicos da espiritualidade cristã, é verdadeiramente exemplar.

Mas não sublinharei muito esse fato como “feminino”: na realidade, a instituição eclesiástica sempre suspeitou da mística enquanto tal, na medida em que o místico tende a superar a mediação, coloca-se “só para o só”, como diz Plotino, indo além de sacerdotes, sacramentos, Escrituras etc. O Mestre Eckhart era um homem, um dominicano, no topo da sua Ordem e da universidade, mas mesmo assim foi processado e condenado. Também não devemos nos esquecer de que sempre houve homens da Igreja que se puseram à escuta de mulheres e que aprenderam com elas: o bispo Fénelon com Madame Guyon, por exemplo. O próprio Eckhart, que esteve presente em Paris no processo contra Marguerite Porete, utiliza amplamente a sua obra, embora não pudesse citar a sua autora, queimada como herege.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quem foi Angela de Foligno? O que mais caracteriza a sua mística e espiritualidade?

Marco Vannini – Angela de Foligno foi uma mulher que viveu intensamente a experiência da separação, do despojamento interior – do qual esse exterior, a nudez, é manifestação sensível – e da perda do eu, até a identificação com o Tu divino, na específica forma do Cristo: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve ela, de fato, no Memorial. O central da sua mística me parece ser a consciência alcançada de que “tudo está bem”, até à paradoxal afirmação de que Deus está presente “em toda criatura, em qualquer coisa que exista, seja diabo, seja anjo bom, seja no inferno ou no paraíso, seja no adultério e no homicídio, seja nas obras virtuosas, em qualquer coisa provida de ser, mesmo que seja bela ou se é torpe”.

IHU On-Line – Que imagem de Deus ou do Mistério Angela de Foligno nos deixou em seu Liber?

Marco Vannini – Deixou-nos a imagem de Deus como Nada – ou seja, um Todo que não é possível compreender senão negativamente, como Nada justamente. Isso explica por que Angela, exatamente como Marguerite Porete, fala do não amor como o próprio cumprimento do amor. De fato, o amor sempre se dirige a algo determinado, finito, e depende dos laços do próprio eu, enquanto o amor mais puro não tem objeto, é “sem porquê” (uma expressão que já encontramos na poesia do seu contemporâneo úmbrio, o franciscano Jacopone de Todi) e deve cessar precisamente enquanto amor, desejo, vínculo, em perfeita correspondência com o extinguir-se do próprio eu.

IHU On-Line – Que relação há entre Angela e Francisco de Assis? Em que sentido a mística de Angela – que nasceu pouco mais de 20 anos após a morte do santo de Assis – foi uma mística “franciscana”?

Marco Vannini – Diria que ela foi franciscana sobretudo pelo lugar e pela época, aquela Úmbria mística da Idade Média que sequer se pode conceber sem a presença do espírito franciscano. Também sublinhamos que, naquela época, houve um florescer extraordinário de experiências místicas femininas. Margherita de Cortona, Vanna de Orvieto, Chiara de Montefalco, todas coetâneas de Angela e operantes a poucos quilômetros de distância. Para todas elas, o espírito franciscano se manifesta, em primeiro lugar, na pietas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo crucificado, literalmente “co-sofrido” [com-patito], ou seja, compartilhado na sua Paixão.

Específica de Angela, mas ainda de cunho franciscano, é a prática ascética, verdadeiramente intensa; a escolha voluntária da pobreza, fora de conventos ou instituições; a caridade operante, voltada aos pobres e aos doentes. Muito significativo nesse sentido também é o relativo distanciamento que Angela mostra com relação à função intermediária do clero, da cultura teológica e religiosa, em benefício de um saber totalmente interior, dado pelo livre colóquio da alma com Deus. “Aqueles que leem a Escritura entendem pouco; aqueles que sentem algo de mim entendem bem mais”, escreve por isso Angela.

IHU On-Line – E o que mais é possível falar sobre Marguerite Porete? Que outros aspectos é possível ressaltar sobre a experiência mística dessa mulher francesa?

Marco Vannini – Não sabemos com precisão quem foi Marguerite Porete, já que as únicas notícias certas que temos sobre ela são aquelas deduzidas das atas do processo que a condenou à morte como herege, na Paris de Felipe, o Belo. No entanto, ela devia ser uma mulher de cultura, provavelmente de origem aristocrática, como fica evidente no livro, no qual cortesia e nobreza desempenham um papel essencial.

Como já disse, creio que os pontos centrais da verdadeira mística são sempre os mesmos, ou muito de perto correspondentes. Em Marguerite, no entanto, a via do distanciamento, a via do nada é percorrida verdadeiramente até o extremo limite, com uma coerência, uma determinação e uma radicalidade impressionantes, que se lança ao distanciamento até de Deus. Limito-me a citar esta extraordinária passagem, do capítulo 135 do Espelho:

“Para a alma tudo é uma só coisa, sem porquê, e ela é nada em tal Uno. Então não sabe mais o que fazer com Deus, nem Deus com ela. Por quê? Porque ele é, e ela não é. Ela não retém mais nada para si, no seu próprio nada, já que lhe basta isso, ou seja, que ele é, e ela não é. Então, é nada de todas as coisas, já que é sem ser, e lá onde era antes de ser. Por isso ela tem de Deus aquilo que tem; e é aquilo que Deus mesmo é, por transformação de amor”.

IHU On-Line – Para Romana Guarnieri, O espelho das almas simples, de Marguerite, é uma “autêntica obra-prima da literatura mística de todos os tempos”. Em sua opinião, qual é a importância dessa obra?

Marco Vannini – Acima de tudo, devo dizer que compartilho plenamente o juízo que Romana Guarnieri dá sobre esse escrito, com a qual tive a honra de colaborar na edição italiana do Espelho. O Mestre Eckhart se inspirou nele em alguns pontos do seu pensamento e, em particular, naqueles mais profundos e ousados, como, por exemplo, no célebre sermão Beati pauperes spiritu [Bem-aventurados os pobres de espírito], no qual ele fala da necessidade de que o homem “pobre” não tenha na alma sequer um “lugar próprio”, de modo que o próprio Deus seja o “lugar próprio da sua obra, dado que Deus opera em si mesmo”. Aqui é clara a leitura do Espelho, no qual a alma aniquilada “não tem fundo e, portanto, não tem lugar próprio e, consequentemente, não tem amor próprio”. De fato, para Marguerite, assim como para Angela de Foligno, a alma que se fez verdadeiramente nada “colocou todo o amor debaixo dos pés”.

O livro de Marguerite, embora condenado, continuou a ser lido, mais ou menos ocultamente. Seguramente foi conhecido por santa Catarina de Gênova, assim também pela milanesa Isabella Berinzaga, cujo Breve compendio sulla perfezione cristiana, traduzido ao francês no fim do século XVI, está na base do extraordinário florescimento místico do século XVII na França. Simone Weil (sempre se trata de mulheres!) também o leu e o amou, mesmo que no fim de sua breve vida, e hoje me parece que ele é unanimemente reconhecido em toda a sua extraordinária profundidade.

IHU On-Line – O que foi o movimento beguinal, do qual Marguerite fez parte? E qual foi a novidade trazida pelas beguinas à mística?

Marco Vannini – O movimento das beguinas foi um movimento extraordinário, sem origem, sem fundadora, sem regra. De fato, as beguinas eram mulheres, não casadas e não Irmãs, que, por cerca de oito séculos, mas, sobretudo, em plena Idade Média e no vale do Reno, viveram em pequenos grupos do seu próprio trabalho ou na mendicância, em uma extraordinária síntese de comunhão e de liberdade, de aprofundamento espiritual e de empenho caritativo – basta pensar que foram, de fato, as primeiras enfermeiras da história europeia. Pelo seu caráter de independência da autoridade masculina, o movimento beguinal poderia ser considerado o primeiro movimento feminista, mas seria verdadeiramente desviante inscrevê-lo nas categorias redutivas do feminismo – sem contar, depois, o fato de que ele também teve um correspondente masculino, o dos beguinos, ou begardos.

Não há dúvida de que entre as beguinas houve personalidades eminentes na história da mística – Beatrijs de Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a própria Marguerite Porete, se é que foi beguina – mas sobre o movimento beguino pesou frequentemente a suspeita de heresia, voltada por diversas vezes a essas mulheres por parte das autoridades eclesiásticas, talvez temerosas, acima de tudo, de perder o controle da sociedade. Nesse caso, mais uma vez, a “liberdade do espírito”, do qual a mística é composta, foi advertida como perigosa para o dogma, para a doutrina, para a instituição religiosa constituída. Não resta dúvida, entretanto, que a mística beguinal – Minnenmystik, “mística do amor cortês” por excelência – alimentou com a sua riqueza alguns dos maiores místicos medievais, como Ruusbroec e Eckhart.

IHU On-Line – Em que sentido a mística de Angela e de Marguerite nos é contemporânea?

Marco Vannini – Ela nos é contemporânea no sentido de que, como dizia no início, a experiência do espírito é quase idêntica em todos as épocas e em todos os lugares, e vai muito além das distinções espaço-temporais, além daquelas, como eu dizia, de gênero. Para mim, homem, as palavras de Angela ou de Marguerite falam não como palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade.

IHU On-Line – Como percebe a relação entre teologia/filosofia e mística? Há hoje a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica para captar a novidade dos místicos?

Marco Vannini – Há um caso emblemático que eu gostaria de citar para responder essa a pergunta. O franciscano são Pedro de Alcântara escreveu a santa Teresa de Jesus, em Ávila, que se maravilhava muito que ela tivesse pedido conselho a teólogos sobre problemas espirituais, novas fundações de conventos etc., porque, em matéria de perfeição, é preciso dirigir-se só a quem a pratica, e disso os teólogos não sabem nada. Eles são especialistas em questões doutrinais, escolásticas, ou talvez jurídicas, mas certamente não em questões espirituais.

A teologia nascera como teo-logia, ou seja, discurso racional sobre Deus, em contraposição aos mitos (lembro que a palavra foi cunhada assim por Platão), com a consciência de que, na realidade, não sabemos nada de Deus, mas que devemos pensar só que ele é bom, e que dele vêm todos os bens. Trata-se, por isso, não de fazer discursos impossíveis sobre Deus, mas sim de nos tornarmos semelhantes a ele (omòiosis tò theo). Hoje, ao contrário, há “teologia” de tudo: a palavra teologia deixou de ter o seu significado originário e se tornou uma espécie de “tudologia”.

Isso vale hoje, com maior razão, também para a filosofia. No momento em que ela perdeu a consciência de ser “ciência da verdade”, como Aristóteles a chama, e de ter em comum com a religião o objeto, que é o Absoluto em si e por si, como dizia Hegel, é evidente que não tem nada a ver com a mística, que, aliás, realmente não entende. Por isso não é de se admirar que a palavra filosofia, hoje, também é adotada no sentido, por exemplo, de estratégia empresarial (a filosofia da Fiat...).

O saudoso professor Hadot defendia com razão que a verdadeira continuação da filosofia, que é a grega clássica, foi a mística: enquanto a teologia sempre foi dependente da instituição eclesiástica, da dogmática, do respeito pela Sagrada Escritura, pelos Concílios etc. – e desse modo perdeu aquela liberdade da inteligência que, sozinha, a filosofia pode dar –, só a mística continuou a via mestra do filosofar, que é o distanciamento, o platônico exercitar-se a morrer.

A filosofia em sentido forte não é continuada nem nas universidades medievais, submetidas à Igreja, nem nas modernas, sempre submetidas ao poder e coligadas com ele: o professor é sempre um funcionário, enquanto o místico realmente não o é.

Não penso, por isso, que haja a necessidade de uma nova gramática teológico-filosófica: já a possuímos desde a antiguidade clássica. Ao contrário, há a necessidade de experiência.

IHU On-Line – Como as grandes religiões do mundo abordam a mística? Que diferenças existem em termos de compreensão da mística e da sua experiência?

Marco Vannini – Sobre esse tema, eu escrevi um livro: La mistica delle grandi religioni, onde sustento, acima de tudo, que, no coração das grandes religiões, que, no entanto, são diversas entre si em tantas coisas, e até mesmo opostas – e como tais muitas vezes se combateram e ainda se combatem –, há uma mística quase idêntica. Embora as religiões sejam diferentes, dizia Simone Weil, as místicas se assemelham até quase a identidade.

Dito isso, já é implícito o fato de que a relação entre mística e religião é uma relação não fácil, ou melhor, difícil, muitas vezes conflituosa. De fato, a mística – que, como dizia acima, é a legítima herdeira da filosofia antiga – é por sua natureza inclinada a superar toda forma de mediação, voltada a uma relação direta entre a alma e Deus, que se encontram até se reconhecerem como uma coisa só. Por isso ela alimenta, ao mesmo tempo, a religião, ou seja, a religiosidade mais profunda e remove toda religião quando ela pretende se constituir como dogmática, prescrição moralista ou sacerdotal.

Exemplar nesse sentido é a o fato de a mística se pôr diante das Sagradas Escrituras (quando se possui uma religião): nasce aqui, de fato, a oposição espírito-letra, por força da qual o místico, mesmo quando respeita profundamente a Escritura, considerando-a “palavra de Deus”, pensa, no entanto, que a palavra mais verdadeira e profunda é aquela que o espírito dirige ao espírito, para além e acima de toda palavra escrita. Deus é espírito, disse Jesus à samaritana (João 4, 24) e não é honrado nem nos templos nem sobre os montes, mas somente em espírito e verdade. Ou melhor, o distanciamento, que é o coração de toda mística, se lança até ser distanciamento das Escrituras, e, como vimos em Marguerite Porete, até de Deus mesmo, enquanto imagem determinada, finita. Não é por acaso que as palavras dirigidas por Jesus aos discípulos despedindo-se deles em João 16, 7 – “É necessário para vós que eu vá, pois, se eu não for, o Espírito não virá a vós” – são singularmente caras aos místicos mais profundos. E é evidente que isso não é a coisa mais apta para que as religiões sustentem em sua estrutura positiva, litúrgica, dogmática etc.

Também é preciso notar que, entre as grandes religiões do mundo, as mais hostis à mística são seguramente a judaica e a muçulmana, enquanto religiões da absoluta transcendência de Deus, para as quais é blasfema a ideia da união homem-Deus, ou também da divinização do homem. A expressão “mística judaica” é recentíssima: foi cunhada no século XX por Buber e Scholem, mas até então soava como absurda, precisamente como dizer “um ferro de madeira”, e é bem difícil assimilar um fenômeno como a cabala a Plotino ou ao Mestre Eckhart! No islamismo, sem dúvida houve grandes místicos – penso sobretudo em Al-Hallaj e em Ibn-Arabi –, mas não é por acaso que eles foram considerados heterodoxos.

O cristianismo, ao invés, precisamente enquanto cristianismo, ou seja, religião fundada sobre Cristo, considerado verdadeiro Deus e verdadeiro homem – ou seja, religião da divino-humanidade – é intrínseca e substancialmente místico.

Em menor medida, também se pode dizer isso sobre a grande tradição religiosa da Índia, em particular do não dualismo (advaita), porque aqui também é claríssimo o sentido da unidade entre espírito de Deus e espírito do homem. Nos nossos dias, é interessantíssimo e importante o caso de Henri le Saux, o beneditino francês que foi à Índia e ali assumiu vestes, linguagem e nome, reconhecendo a profundidade do vedanta, mas nem por isso abandonou o cristianismo: ao contrário, considerou que a experiência espiritual da Índia o ajudava a compreender verdadeiramente a própria mensagem cristã. Essa é uma consideração que compartilho plenamente: com le Saux, considero que o futuro do cristianismo deve, por assim dizer, “atravessar” a espiritualidade da Índia. De outra parte, aquilo que encontramos na Índia não é, de fato, dessemelhantes daquilo que podemos encontrar também no Ocidente: o livro de Rudolf Otto, West-Östliche Mystik, que eu traduzi ao italiano há tantos anos, pondo em debate Mestre Eckhart e Sankara, mostra isso adequadamente. A relação de estreitíssima semelhança entre Eckhart e le Saux também é objeto de meu livro Oltre Il cristianesimo [Além do cristianismo], no prelo.

IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?

Marco Vannini – Acredito que o renovado interesse pela mística, feminina ou não, depois de tantos séculos de remoção, é um dos sinais mais positivos em âmbito religioso, e cristão em particular. É preciso, no entanto, que se sublinhe o seu valor de conhecimento, psicológico e espiritual, e não o confessional, como, ao contrário, tem sido feito até agora.

(Por Moisés Sbardelotto)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Você já ouviu falar em "poliamor"?

Uma das experiências marcantes para mim, nas reuniões do Diversidade Católica, foi o dia em que foram à reunião um rapaz e sua namorada e se apresentaram como adeptos do poliamor. Nenhum dos participantes da reunião naquele dia tinha ouvido falar naquilo; a maioria ficou espantada, para dizer o mínimo, e alguns de nós chegaram a, num primeiro momento, reagir com íntima desaprovação. O caso acabou sendo, para nós, fonte de muito debate e reflexão acerca dos nossos próprios preconceitos, nossas preconcepções a respeito da maneira “certa” de amar e constituir um “casal”, e nos demos conta do quanto nós mesmos reproduzíamos a mesma lógica de julgamento e exclusão de que tantas vezes somos alvos.

De lá para cá (lá se vão quase 3 anos), não só tratei de me informar sobre o assunto - pois acredito que todo preconceito nasce da ignorância - como tenho notado que o tema vai se tornando mais conhecido e divulgado. Ao deparar-me com o documentário abaixo esta semana, achei que valia trazê-lo para cá e abrir essa oportunidade de informação e reflexão acerca das nossas próprias concepções e preconcepções. Afinal, quem sou eu para determinar como o outro pode ou deve ser feliz? :-)

Poliamor from Zé Agripino on Vimeo.

Vozes cristãs pró-LGBT que se destacaram em 2011

Imagem daqui

Em nosso trabalho pela conciliação da dupla identidade gay e (cristã) católica, o que talvez tenha nos chamado mais atenção ao longo deste ano de 2011 foi o quanto uma minoria ruidosa de extremistas de ambos os lados vem conseguindo criar uma situação de fragmentação social, colocando religiosos e LGBTs em campos opostos, incompatíveis e mutuamente excludentes. Parece-nos que essa divisão se presta a fins políticos que nada têm a ver com o interesse dos LGBTs em construir uma sociedade plural e tolerante, em que haja espaço para o diálogo e a convivência pacífica entre as diferenças, e muito menos com valores cristãos legítimos e a busca de um mundo de mais justiça e fraternidade, verdadeiro Reino de Deus aqui e agora.

Perniciosamente, a divisão em campos opostos cria - qualquer que seja o "lado" em que cada um se coloca - um "nós" santificado contra os "eles" demonizados, "tudo farinha do mesmo saco". Pobres de "nós", oprimidos e vitimizados, e malvados "eles", ditadores, opressores, excludentes. "Eles", com frequência, chegam a ser vistos, com pena ou com desprezo, como "loucos" - clássico recurso dos humanos jogos de poder para esvaziar e desqualificar o discurso do outro ao tirar-lhe o direito a uma voz própria; pois, se é "louco", não sabe o que está dizendo, e não pode haver diálogo com alguém assim!

Parece-nos que há justamente aí um grande problema: ao colocar todos no mesmo saco de uma categoria genérica e abstrata - seja a categoria dos "fundamentalistas" ou a dos "gays pecadores/doentes" -, privamos o outro da sua identidade. Deixamos de enxergar as pessoas para ver apenas o adversário no meio da massa "inimiga". Ao classificar o outro como louco, perturbado ou doente, privamos nosso interlocutor de sua voz e vedamos o diálogo. Instaura-se assim a lógica da guerra, segundo a qual, para um lado vencer, é preciso que o outro perca. A perversidade dissimulada aí é que guerra nenhuma tem vencedores. Dilacerada, a sociedade toda perde.

Preconceitos e segregações, sejam ou não justificados com argumentos religiosos ou de qualquer outra ordem, são eminentemente problemas sociais e culturais, muito mais amplos que qualquer religião. A nosso ver, a homofobia que se encontra entre religiosos é fruto da homofobia arraigada em nossa sociedade, e não o contrário - embora, claro, as justificativas de cunho religioso sejam usadas para reforçar a homofobia, criando um círculo vicioso sem fim. Acreditamos, porém, que, para superar esse estado de coisas, o bom caminho não será entrar em guerra com "as religiões"; muito pelo contrário, os valores religiosos podem e devem ser convocados à luta por um mundo mais justo e mais plural.

Nos EUA, por exemplo, onde a maioria da opinião pública até muito recentemente encarava LGBTs e cristãos como forças em campos opostos, hoje quase dois terços (64%) da população concordam que os relacionamentos gays devem ser aceitos pela sociedade, incluindo a maioria de todos os principais grupos religiosos, com exceção dos evangélicos brancos (Public Religion Research Institute, 29 de agosto de 2011). No Brasil, apesar do acirramento do conflito e da violência mútua, uma pesquisa do Ibope sobre atitudes da população brasileira em relação aos LGBTs, divulgada no final de julho, trouxe à tona alguns dados surpreendentes acerca da evolução da opinião pública a este respeito - revelando, por exemplo, que 52% das mulheres, 50% dos católicos, 60% dos jovens de 16 a 24 anos e 60% dos com nível superior são favoráveis à união estável entre casais homoafetivos (saiba mais e leia uma análise aqui).

Muitos acontecimentos em 2011 evidenciaram essa mudança. Se, no Brasil, o ano foi marcado por importantes conquistas em termos de direitos civis, nos EUA a equipe do Believe Out Loud, organização americana que incentiva e dá subsídios a inclusão dos LGBT nas Igrejas cristãs protestantes (saiba mais aqui), compilou um top 10 de vozes cristãs pró-LGBT que se destacaram em 2011. Estamos trabalhando para que essas vozes se façam ouvir cada vez mais alto também por aqui.

E que 2012 seja ainda melhor.

Equipe Diversidade Católica  :-)

* * *


Top 10 das vozes cristãs pró-LGBT que se destacaram em 2011:

10. A Sojourners, maior organização de cristãos progressistas dos EUA, repudia o movimento Believe Out Loud e inspira reação
No Dia das Mães, o Believe Out Loud tentou lançar seu vídeo viral (aqui) através de um anúncio pago na newsletter eletrônica da Sojourners. Recusando-se a "tomar partido" na busca por aceitação dos LGBTs na Igreja, a Sojourners rejeitou o anúncio, inspirando mais de 100 publicações em veículos da imprensa e blogs ("A Sojourners não nos representa mais"), além de um abaixo-assinado do Change.org pedindo que a Sojourners modificasse sua posição anti-LGBT.

9. A retórica cristã anti-LGBT de Rick Perry é repudiada com veemência
Em novembro, o candidato à presidência americana Rick Perry lançou um vídeo, ironicamente intitulado "Strong" ("Forte"), numa tentativa equivocada de atrair os cristãos por meio da crítica aos militares LGBTs. O tiro saiu pela culatra, e ele recebe uma saraivada de críticas - sobretudo dos cristãos, ultrajados com seu ponto de vista discriminatório, tornando-se a figura com mais alto índice de desaprovação no YouTube em 2011.

8. O bullying recebe a atenção devida
Embora as consequências trágicas do bullying tenham continuado a se fazer sentir em 2011, as iniciativas e atitudes pró-LGBT e anti-bullying souberam fazer-lhes frente. Quando o Estado de Michigan tentou promulgar uma lei anti-bullying que eximia abusos com justificativa religiosa, deixando aberta uma brecha para o ódio e a violência, vozes mais sensatas acabaram se impondo. Duas incríveis respostas baseadas na fé foram o programa anti-bullying para escolas da organização Lutherans Concerned, chamado "Where All Can Safely Live" ("Onde todos possam viver em segurança"), e o "In Our Shoes" ("No seu lugar"), uma iniciativa para divulgar as histórias de adolescentes vítimas de bullying por meio da vivência de um dia inteiro em seu lugar.

7. A UCC se aproxima da milésima congregação aberta e afirmativa
A UCC, United Church of Christ ("Igreja Unida de Cristo"), há muito uma organização de destaque na cristandade inclusiva (que ordenou um pastor abertamente gay 1972 e manifestou seu apoio à igualdade matrimonial em 2005), acolheu sua 971ª congregação "aberta e afirmativa" em outubro e se aproximou da meta de 1.000 congregações ainda no primeiro semestre de 2012.

6. Coalizão LGBT realiza encontro histórico com a Southern Baptist Convention
A Association of Welcoming and Affirming Baptists realizou um encontro pioneiro e sem precedentes entre uma coalizão de ativistas seculares e religiosos e a Southern Baptist Convention, apresentando um abaixo-assinado com mais de 10 mil assinaturas solicitando que a SBC pedisse desculpas pelos males que possam ter causado à comunidade LGBT.

5. Ativistas metodistas adotam a igualdade LGBT como meta central
Houve um furacão de ativismo pela inclusão LGBT na United Methodist Church em 2011: do apoio maciço à Rev. Amy DeLong quando ela foi levada a julgamento (e absolvida) pela realização de um matrimônio homoafetivo aos 900 metodistas dos estados de Nova York e Connecticut que se organizaram para tornar o casamento acessível a todos, passando pelos agora mais de 1.000 clérigos da UMC de todos os EUA que se comprometeram a criar um "Altar para todos" (Altar for All) e a casar ou dar bênçãos a casais do mesmo sexo. Tal movimentação está preparando o terreno para a Conferência Geral da UMC em 2012, na qual os ativistas esperam que seus esforços resultem em uma política denominacional mais inclusiva para os LGBTs.

4. A Igreja Presbiteriana dos EUA aprova a ordenação para LGBTs
Em maio, após anos de luta, a Igreja Presbiteriana dos EUA ratificou a Emenda 10-A, uma mudança constitucional histórica que permite que pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras sejam ordenadas na denominação. Em outubro, o Rev. Scott Anderson tornou-se a primeira pessoa abertamente LGBT a ser ordenada dentro da nova política.

3. O Don't Ask, Don't Tell é página virada
Em setembro, o veto dos militares a membros gays e lésbicas finalmente tornou-se uma página virada, possibilitando que os soldados LGBT possam servir abertamente, com a dignidade e respeito que merecem, e (espera-se) abrindo as portas para que o país finalmente corrija as centenas de outras desigualdades jurídicas e políticas ainda enfrentadas pelos LGBTs em seu dia-a-dia.

2. O estado de Nova York aprova a Igualdade Matrimonial
Em junho, Nova York tornou-se o sexto estado (mais o Distrito de Colúmbia) a reconhecer a igualdade matrimonial, uma vitória que mais que dobrou a porcentagem de cidadãos americanos vivendo em estados que lhes asseguram esse direito fundamental, e que deve boa parte de seu êxito ao ativismo incansável de ativistas movidos pela fé, inclusive mais de 700 líderes leigos e religiosos que apoiaram a lei ativamente.

1. O Departamento de Estado americano se compromete a promover a igualdade LGBT em todo o mundo
No começo de dezembro, num discurso arrebatador na ONU, a Secretária de Estado Hillary Clinton anunciou a intenção do governo dos EUA de combater ativamente as violações dos direitos humanos dos LGBTs. Abordando uma série de argumentos habitualmente utilizados para renegar os direitos LGBT, inclusive de ordem religiosa, Hillary Clinton assinalou com coragem para o mundo inteiro que "nenhuma prática ou tradição pode se antepor aos direitos humanos que pertencem a todos nós". Com efeito, ela defendeu eloquentemente que as tradições religiosas podem e devem ser usadas como "fontes de compaixão e inspiração para todos os seres humanos".

- Joseph Ward III, Diretor da Believe Out Loud
Fonte: The Huffington Post

Reinventar a vida


Finda o ano, inicia-se o novo. No íntimo, o propósito: daqui pra frente, tudo vai ser diferente. Começar de novo. Será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”? Atribui-se a Gandhi esta lista dos sete pecados sociais: 1) Prazeres sem escrúpulos; 2) Riqueza sem trabalho; 3) Comércio sem moral; 4) Conhecimento sem sabedoria; 5) Ciência sem humanismo; 6) Política sem idealismo; 7) Religião sem amor.

E agora, José? No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas! Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Albert – o Einstein e o Schweitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta de fama, riqueza e beleza.

Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), uma parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um esplendor que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários. A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimentos de pessoas moribundas:

1) Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim. No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade! Porque não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, e não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.

2) Gostaria de não ter trabalhado tanto. Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo à família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela melhor qualidade. E nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.

3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos. Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã. O momento de manifestar o nosso carinho àquela pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos, o cupim do desencanto nos corrói por dentro.

4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos. Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita o nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos, muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassado.

5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz. Ser feliz é uma questão de escolha. Mas, vamos adiando nossas escolhas, como se fossemos viver 300 ou 500 anos. Ou esperamos que alguém ou uma determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, e não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abraçarmos algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.

- Frei Betto
Reproduzido via Conteúdo Livre

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Corações


"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."

- José Saramago

O presépio: símbolo da humanidade de Deus


No Chile, quando a árvore de Natal ainda não era conhecida, as famílias celebravam a festa ao redor de um presépio. Também eram chamados de “nascimentos”.

Alguns dos presépios de nossa história colonial e republicana vinham de Quito, onde havia artesãos especialistas em confeccionar esculturas de madeira de diversos tamanhos, tanto para um mercado de consumo local como para os fiéis de outros lugares da América do Sul. As talhas quitenhas tinham um selo particular: suas figuras mostravam um semblante ingênuo e sereno, e o famoso encarnado, que destacava a pele branca com as faces coloridas de um vermelho sutil. Este efeito se conseguia depois de esfregar bastante a bexiga de um cordeiro sobre a pintura antes aplicada. As roupas dos personagens, esculpidas também na madeira, apresentavam sempre texturas com sobredourado, ou os padrões se assomavam através dos esgrafitos. Técnicas estas que faziam das esculturas quitenhas objetos muito apreciados nos lares e conventos chilenos do século XVIII. As famílias mais pobres faziam suas próprias figurinhas com argila e madeira, ou recorriam a mestres artesãos locais de menor fama. Mas todos tinham um presépio para arrumar e onde congregar-se em época natalina.

Os presépios dentro das casas articulavam a reza das novenas, mas também as cantigas de Natal e conversas em torno deles e as oferendas que cada um queria fazer a este menino recém-nascido. Os menores entregavam seus preciosos pertences e outros adquiriam figurinhas nos postos da Alameda. Ali vendiam as “cerâmicas da freiras”, criadas pelas mãos das Clarissas, presente obrigatório para as festas natalinas. Serviam para enfeitar esta composição popular de longa data na tradição ocidental.

DA TEATRALIZAÇÃO ÀS ARTES VISUAIS
O presépio não é outra coisa que uma dramatização tridimensional do nascimento de Cristo. Suas origens —em 1223— remontam à época do santo seráfico, São Francisco de Assis, que no afã de fazer que os mistérios divinos ficassem mais perto do povo, começou a representar teatralmente o nascimento de Cristo. Neste sentido, São Francisco rompe com uma longa tradição de representação da figura triunfante e majestosa de Cristo, para propor o paradigma da humanidade de Deus encarnada num Menino. Desta nova teologia surgiriam práticas votivas inovadoras, entre as quais encontramos as representações teatrais do Natal. Em presépios de palha e acompanhados de animais e pastores, os atores representariam Jesus, José e Maria, inaugurando uma festa terna e popular para celebrar o nascimento do Filho de Deus. Paralelamente a estas representações surgiriam os cantos ao Menino Jesus, as cantigas natalinas. Originalmente, a palavra denotava uma composição poética medieval que significa canção popular (canção à maneira da vila). No final do século XV começaram a compor músicas para serem cantadas e dançadas em festas de Natal, Páscoa e Corpus Christi. Eram impressas e repartidas entre os fiéis que acompanhavam, cantando o estribilho.

Logo, esta representação passaria para as artes visuais, inaugurando uma longa tradição de um motivo tão caro à cristandade.

Efetivamente, a partir daquela época abundariam as pinturas com este motivo, assim como composições tridimensionais encenando o momento do nascimento de Cristo, com a posterior adoração dos reis magos e dos pastores. A opção de mostrar a humanidade do Menino Jesus de forma eloquente, assim como a companhia destes personagens populares, teria como conseqüência a criação e difusão de um motivo mais próximo aos fiéis, encenado como um modelo parecido ao deles. O realismo ficava consagrado como forma de culto através das artes.

RELIGIOSIDADE POPULAR
Os presépios se associam ao âmbito da religiosidade popular, na medida em que recolhem cenas costumbristas das sociedades que as criam e têm capacidade de criar vínculos emotivos com seus devotos. Existem, no entanto, vários exemplos de presépios que ocuparam recintos fastuosos e oficiais, como os realizados pelo escultor Francisco Salzillo. Este consta de 556 figuras e foi elaborado para decorar em cada Natal um dos salões do palácio de Jesualdo Riquelme y Fuentes. Famosos foram os presépios napolitanos, encarregados por nobres e personagens reais, como o que cada ano é exibido no Palácio Real de Caserta. Neste lugar, Carlos III cultivava o gosto de armar presépios que podiam ser visitados e admirados pelo povo.

Estas artes visuais se nutrem de fontes canônicas e apócrifas para articular sua narração. Em primeiro os evangelhos propriamente tais, onde São Lucas e São Mateus nos referem à cena do Natal com aqueles elementos canônicos que determinam a composição do lugar. Um segundo nível que enriquece o repertório temático e iconográfico na criação de presépios é o que surge dos evangelhos apócrifos. Estes são aqueles que, por não serem considerados de inspiração divina, não figuram dentro do cânone oficial da Igreja. No entanto, sua importância radica na enorme influência que têm na mentalidade popular e nas representações artísticas mais importantes da vida de Cristo. Em relação ao Natal, os evangelhos canônicos são muito escuetos, portanto, provêem de pouco material iconográfico. Os apócrifos, em compensação, proporcionam vários elementos porque se desenvolvem na tradição oral, pródiga em imaginação.

Neste cenário de tradições, chama a a atenção a preponderância que acusam lugares como a caverna ou a gruta onde teria nascido o Menino Jesus que teria sido iluminado por uma luz enceguecedora; as fraldas com as quais o teria coberto a Virgem Maria, os dons ofertados pelos reis Magos, assim como a presença acolhedora de um boi e um asno. Em outras narrações, os reis encontram o menino já sentado no colo de sua mãe e abrem seus cofres para ofertar presentes. No Evangelho Árabe da Infância se relata que a Virgem lhes teria dado em troca a fralda do menino.

Um terceiro nível de inspiração é o que proporciona a imaginação popular e que incorpora todo tipo de elementos da idiosincrasia local. É este nível o que permite que personagens contemporâneos entrem em cada presépio, conseguindo a verossimilitude e a proximidade do mistério. Isto explica que apareçam personagens como o padeiro, o açougueiro, a mulher que lava a roupa e o cachorro que morde o bêbado. Explica também a posterior aparição de tipos populares nacionais e inclusive de militares, convencendo o fiel de que a salvação é algo universal, possível em seu lugar e em seu tempo. A história da arte o descreve como uma manifestação cultural cheia de naturalismo, exotismo, com um especial gosto pelo efêmero. A idéia é impressionar os sentidos do espectador, conseguindo assim dar um primeiro estímulo a um aprofundamento do mistério. Da impressão pretende-se guiar para a contemplação.

O motivo do Natal e de outras cenas bíblicas derivadas deste fato fundamental não demoraria em chegar à América. A ternura e humildade simbolizadas nesse menino que nascera num presépio ou numa gruta entre animais e pastores, conseguia empatizar profundamente com uma sociedade também humilde e ansiosa de encontrar, na nova religião resultante, personagens e histórias afins com as próprias .Jesus, como menino, representava toda a humildade de uma sociedade colonial mestiça e indígena das colônias americanas.

Entre as pinturas que celebram o nascimento de Jesus há várias adorações de estilo cuzquenho que povoaram os conventos do Chile colonial e republicano. Nelas vemos muitas vezes pastores e anjos que levam frutas para oferecer ao menino recém- nascido. Embora a exegese bíblica diga que o cesto com frutas representa as Escrituras e sua doçura é o alimento da alma, nestes casos funciona mais como oferenda à divindade. É a possibilidade de convivência entre as duas esferas, a humana e a divina. O homem entrega a seu Deus o melhor de sua terra e Ele lhe devolve com dons variados. A possibilidade desta prática se baseia no mistério da Encarnação, no qual Deus se fez homem e como tal tem necessidades físicas, entre elas, o alimento.

Esta forma de constituir significado é análoga à realizada por freiras de convento em suas celas com seus próprios fanais votivos. Referimo-nos àquelas cápsulas ovaladas de vidro que abrigam o Menino Jesus rodeado de pequenas figurnhas. Oferecem ao menino, entre outras coisas, miniaturas de artesanato representando flores e frutas. Também povoam os fanais artesanatos de crin, cestos e miniaturas da cerâmica de Quinchamali. Em sua miniaturização contêm todo o significado da natureza, mas são mostras de humildade diante da grandeza da divindade. Como as frutas dos cestos das pinturas, não são outra coisa que símbolos de virtudes espirituais. Parecidas, também, com todas aquelas figurinhas de terracota ou de madeira que conformam os presépios. Nestes abundam os personagens populares exercendo seus trabalhos cotidianos e levando alimentos para oferecer ao recém-nascido. Da literatura religiosa decimonônica, vemos também um discurso narrativo que acompanha esta devoção especial ao Menino Jesus em seu nascimento. Nas novenas se rezam jaculatórias com referentes ao mundo cotidiano de um menino e estes estão aí para simbolizar presentes espirituais. Dão um berço ao menino para que tenha mais conforto, através da virtude da humildade; ou cobrem-no com um cobertor branco suave através da generosidade. Vestem-no com um xale branco mediante a virtude da paciência. Assim, conforma-se um espaço simbólico coerente entre reza, prática espiritual e oferenda material à imagem do Menino Jesus. O mundo sensível é o que proporciona insumos e referentes para poder entrar naquele mundo transcendental. Através da oferenda se estabelece o vínculo entre estas duas esferas.

Alheias a nossas raízes são, em compensação, as histórias que relatam a aparição da árvore de Natal. Dizem que foi no século XVI, depois do triunfo do protestantismo luterano, quando na Alemanha e na Suécia começou a mudar o presépio por uma árvore de uma forma simbólica. Para justificar esta mudança é que criaram algumas lendas. Mas essas são outras histórias.

- Olaya Sanfuentes
Fonte: Mirada Global. Reproduzido via Amai-vos.

Um momento para reencontrar a confiança


Sofremos de uma "síndrome gnóstica", da desconfiança na bondade da natureza humana. O anúncio de uma aliança entre o sentido último do ser (Deus) e a humanidade ainda pode ser de grande ajuda para continuar amando a vida.

A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 17-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Natal significa nascimento, e, portanto, celebrar o Natal significa celebrar o nascimento. De Jesus, certamente, mas não só. O aniversário do Jesus histórico, de fato (pelo que sabe, o dia 25 de dezembro é apenas uma convenção), tem o poder de relembrar todo o ser humano a se interrogar sobre o sentido de vir ao mundo, sobre qual é esse sentido, se depois deveremos morrer. Por que nascemos? Por que pomos filhos no mundo?

A celebração desse eterno mistério da existência cai hoje na Itália em um momento particularmente difícil. Nesse cenário, o Natal pode, em quem quiser, redespertar a reflexão sobre o significado do nascimento, porque ele desempenha todo o seu sentido sobre o fato de ser um grande "sim" ao vir ao mundo, à beleza e à sensatez do existir.

A manjedoura de Belém é uma celebração do nascimento de Jesus. Mas Jesus, para a fé cristã, é o Cristo, o Filho de Deus, o Logos eterno, que preside o fazer-se do mundo que se dá todos os dias. Vem daí, portanto, que a celebração do seu nascimento em um ponto determinado do tempo e do espaço é, ao mesmo tempo, a celebração da incessante natividade cotidiana em todos os outros pontos do tempo e do espaço. O que envolve a redescoberta da maravilha originária diante do novo e do não devido e, no caso da manjedoura em Belém, algo ainda mais específico: envolve a redescoberta da confiança no sermos homens.

Estou convencido de que isso é a coisa de que precisamos, o presente mais precioso que eu desejo que cada um reencontre debaixo da árvore de Natal. A crise do nosso tempo é, de fato, conotada, no fundo, por uma desconfiança do homem para consigo mesmo, para com a sua capacidade de bem e de justiça.

Sofremos, em nível espiritual, daquilo que Hans Jonas denominava de "síndrome gnóstica", isto é, da desconfiança na bondade da natureza, em particular a humana. O anúncio de dois mil anos de idade de uma aliança entre o sentido último do ser (Deus) e a humanidade, que se acredita que ocorreu na carne de uma criança, ainda pode ser de grande ajuda para continuar amando a vida.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Questão de gênero


Recebemos via Facebook a dica deste vídeo que resume muito bem o debate sobre questões de gênero na atualidade. Sério, divertido e instigante - para sorrir, questionar e pensar. :-)

Reproduzido via br gay

Igreja que prega "cura dos gays" na TV deve ser punida


Um fato raro está em curso na Câmara dos Deputados. Um dos 513 integrantes da Casa apresenta-se como "homossexual assumido", diz não ter "homofobia internalizada" e defende de forma direta os direitos do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

Trata-se do baiano Jean Wyllys de Matos Santos, 37, ex-estrela do programa "Big Brother Brasil", eleito deputado federal em 2010 pelo PSOL do Rio de Janeiro.

Não há estatística histórica disponível, mas o ex-secretário-geral da Câmara Mozart Vianna, um dos mais experientes funcionários públicos do Legislativo, não se recorda de um congressista homossexual que trabalhasse de maneira aberta como Willys, filiado ao PSOL desde 2009.

Em entrevista à Folha e ao UOL (empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha), Wyllys falou sobre sua decepção com a suavização do projeto que trata da criminalização da homofobia.

"Sabe o que é inaceitável? São as igrejas, por exemplo, financiarem programas de recuperação e de cura de homossexualidade. E o pastor promover esse tipo de serviço nos seus cultos. Homossexualidade não é doença."

Para ele, a lei deveria estabelecer uma sanção contra padres e pastores que pregam a "cura" dos gays na TV.

Folha - O projeto de lei que criminaliza a homofobia agrada ao sr.?
Jean Wyllys - O texto apresentado pela senadora Marta Suplicy [PT-SP] não agrada à Frente Parlamentar LGBT nem a setores do movimento LGBT. Cria um novo tipo penal e reduz a homofobia a uma mera questão de agressão e assassinatos.

Como deve ser essa lei?
Há muito preconceito em relação a esse projeto, muita distorção. Por exemplo, a ideia de que, com a lei aprovada, ninguém vai poder chamar o outro de veado numa partida de futebol.

Não será o caso?
Não. Ao espalhar esse tipo de equívoco, joga-se a sociedade civil contra. O projeto quer a proteção da comunidade LGBT contra a injúria e contra o impedimento do acesso ao direito. Por exemplo: é um direito meu expressar publicamente meu afeto no teatro, no shopping e não ser banido desses lugares.

O que deve ser feito?
O substitutivo da senadora Marta foi redigido pelo senador Demóstenes Torres [DEM-GO], que não é homossexual. Muito pelo contrário, não tem muita simpatia pela comunidade homossexual. O texto é defasado. Não nos interessam penas de prisão de muito tempo de reclusão como forma de justificar ou de se dizer que se está enfrentando a homofobia. Penas alternativas, multas e prestações de serviço têm que ser pensadas no caso de injúrias praticadas contra homossexuais em programas de televisão.

Qual deve ser a pena a um shopping que impede o namoro de homossexuais?
Uma multa com dinheiro revertido para programas públicos ou de ONGs que promovam a cidadania gay.

E nos cultos religiosos?
As religiões têm liberdade. Está na Constituição. Os pastores são livres para dizer no púlpito de suas igrejas que a homossexualidade é pecado, já que assim o entendem. Entretanto, eu não acho que os pastores que estão explorando uma concessão pública de rádio e TV tenham que aproveitar esses espaços para demonizar e desumanizar uma comunidade inteira, como a comunidade homossexual.

Como tratar isso?
Isso é uma injúria motivada pela homofobia. Ou seja, a promoção da desqualificação pública da dignidade dos homossexuais. Tem que ser enfrentada.

O projeto de lei que criminaliza a homofobia não trata desse tema?
Não, muito pelo contrário. A senadora Marta Suplicy, que eu admiro, tentou uma negociação com a bancada conservadora.
Ela colocou um parágrafo que salvaguarda a liberdade de crença e de opinião de religiosos. Deixou as comunidades negra e judaica assoberbadas. Foi uma conquista do povo judaico e da comunidade negra proteger esses coletivos da injúria praticada por religiões.

Mas os pastores, os padres não podem tratar de homossexualidade em seus cultos de forma livre?
Se incitarem a violência por meio de um entendimento de que a homossexualidade é uma degeneração, uma abominação, uma doença, um pecado grave e mortal, aí tem que ser enfrentado. E tem que ter uma lei que preveja esse tipo de crime.

O ato criminalizado?
Criminalizado. E quando eu falo criminalizado é entender isso como injúria a um coletivo. Uma atitude difamatória de um coletivo, que merece o respeito.

O que seria inaceitável?
Sabe o que é inaceitável? As igrejas, por exemplo, financiarem programas de recuperação e de cura de homossexualidade. E o pastor promover esse tipo de serviço nos seus cultos e dizer: "Vocês, homossexuais, venham para os nossos programas de terapia e cura de homossexualidade". Homossexualidade não é uma doença. E afirmação de que homossexualidade é doença gera sofrimento psíquico para o homossexual e para a família dessa pessoa.

Deveria haver sanção?
Eu acho que tem que haver uma sanção. Eu quero que a gente compare com outros grupos vulneráveis. Alguém que incite violência contra mulheres, negros ou crianças vai ser bem aceito?
A população LGBT brasileira é de 19 milhões de pessoas. [Há] números assustadores de homicídio de homossexuais no Brasil. Até novembro deste ano foram mortos 233 homossexuais. E em 2010 foram mortos 266.

Dentro de igrejas e templos a liberdade seria total?
Nos púlpitos das igrejas, os padres têm o direito de falar o que eles quiserem para sua comunidade de fé.

A proibição ficaria para cultos eletrônicos?
É. Eu só acho que, nas concessões públicas de rádio e TV, isso não poderia ser feito. A concessão pública é nossa como sociedade. O princípio da Constituição de 1988 é o da dignidade da pessoa humana. Dar o direito de exploração [de uma TV] a um grupo, igreja ou pessoa que fere os princípios constitucionais não é a coisa mais certa.

Que avaliação o sr. faz de FHC, Lula e Dilma?
Fernando Henrique Cardoso fez a minha cabeça como sociólogo. Lula é o que mais me inspira. Dilma? Não tenho uma avaliação ainda.

Vê algo ruim em Dilma?
A suspensão do projeto Escola sem Homofobia. Ela disse que o governo não serviria à propaganda de opção sexual nenhuma. Revelou profundo desconhecimento da ideia de que nós não optamos pela nossa orientação sexual. Não é uma questão de opção.

O sr. se refere ao que foi chamado "kit gay"?
O "kit gay" foi uma expressão cunhada pelo deputado Jair Bolsonaro [PP-RJ], opositor da dignidade homossexual. Setores da mídia hegemônica assimilaram. Não se trata de um "kit gay". Trata-se de uma política pública contra o "bullying" homofóbico nas escolas.

A presidente Dilma errou?
Houve um contexto. Ela suspendeu o projeto Escola sem Homofobia exatamente quando o então ministro da Casa Civil [Antonio] Palocci era acusado de enriquecimento ilícito. Houve uma ameaça por parte dos parlamentares dessa bancada [contrários ao projeto] de convocar o ministro para se explicar se ela [Dilma] não suspendesse o projeto Escola sem Homofobia.

Por Fernando Rodrigues, de Brasília.
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 26-12-2011
Reproduzido via Conteúdo Livre e Folha de S. Paulo

* * *

Leia a transcrição da entrevista de Jean Wyllys à Folha e ao UOL aqui

A Virgem que soube ouvir


A virgem que disse sim ao convite do Senhor entrava para sempre na história da salvação da humanidade. Seu corpo, que recebeu o mistério da vida, tornou-se a primeira manjedoura do Menino. Durante nove meses, mãe e filho intimamente unidos. E Maria ouviu os segredos do corpo que se transformava, ouviu José que a recebia, ouviu Isabel que também precisava contar sua novidade.

Ao dar à luz, Maria envolveu em faixas sua Criança e a colocou em uma manjedoura. A primeira cama do Pão da Vida é justamente o lugar do alimento da criação. Em seus primeiros momentos de vida humana, Jesus já anunciava a que veio: para ser o alimento que sacia, a Eucaristia celebrada. E o evangelista nos conta que Maria tudo ouvia, tudo guardava e tudo meditava em seu coração.

O exemplo que Maria nos deixa é o exemplo do que ouve, do que é capaz de silenciar a si mesmo para ouvir o que Deus lhe diz e pede. Somos capazes desse silêncio? Somos capazes de nos colocar em contato com o mais íntimo de nós e, lá, ouvir a voz de Deus?

A capacidade de ouvir é a base para a capacidade contemplativa, daquele que consegue ver em tudo e em todos a presença de Deus. Ouvir nos capacita para reconhecer a voz do que fala, voz que muitas vezes não sai pela boca, mas pelo olhar, pelas mãos estendidas, pelo cheiro... Ouvir remete à intimidade, à condescendência. Ouvir é a atitude do que se dá ao outro e que lhe afirma a importância.

Aprendamos com Maria a ouvir os sinais da humanidade que clama para que cada dia seja um Natal, cada dia seja renovada a esperança, cada dia seja recebido o acolhimento. Que meditemos em nossos corações os acontecimentos de nossas vidas, de nosso mundo, de nosso país e possamos descobrir um Deus que se faz novo todos os dias e que caminha conosco, reafirmando Sua promessa à Virgem de Nazaré: “O Espírito do Senhor virá sobre ti!” (Lc 1, 35). E possamos, com Maria responder: Eis aqui os servos do Senhor. Faça-se a Sua vontade!

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"Há algo de errado em ser gay?" Resposta de um pastor anglicano


Será que a homossexualidade é uma coisa errada? Essa é uma questão controversa há séculos - muito embora apenas 150 anos atrás a pergunta talvez fosse "Será que a escravidão é uma coisa errada?". As duas questões são alvo de disputas há centenas de anos, mas só há cerca de 150 anos a questão da escravidão foi resolvida para a maioria dos cristãos - e, ainda assim, nem todos. O que aconteceu? O que aconteceu foi que maneiras muito tradicionais de ver a sexualidade humana e a Bíblia mudaram, graças ao que sabemos agora (e não sabíamos antes) sobre os seres humanos. Por exemplo, o fato de que os seres humanos são criaturas de Deus, feitas à sua imagem e semelhança, e que a escravidão constitui um abuso em relação ao fato de que Deus está presente em cada um de nós. Não é estranho que tenhamos demorado tanto tempo para reconhecer isso?

Com relação à homossexualidade, verifica-se também uma mudança de mentalidade entre muitos cristãos em todo o mundo, com base nem tanto no que a Bíblia diz - pois lembremos que ela tolera, e não condena, a escravidão, bem como afirma que as mulheres devem ser vistas, mas não ouvidas, na igreja... e sabemos que isso deixou de ser verdade, sobretudo na Comunhão Anglicana, onde há bispas, e, nos EUA, até uma arcebispa! O que mudou, então? O que mudou foi nosso entendimento da pessoa humana, como aconteceu no caso da escravidão. A maioria dos "pensadores modernos", mesmo os cristãos, acredita que a homossexualidade não é uma escolha, mas uma característica - para uns, fruto do ambiente; para outros, herança genética. De todo modo, ser homossexual não é uma escolha; trata-se, isso sim, de aceitar uma parte de quem você é, pessoa que Deus criou à sua imagem. Essa é a mudança fundamental de mentalidade. Se homens e mulheres são homossexuais por natureza e tudo o que Deus faz é bom, inclusive a expressão sexual tal como ele a criou, isso nos torna capazes de compartilhar nossa sexualidade a partir do Amor e da Responsabilidade.

Tendo chegado a essa conclusão, e ao mesmo tempo em que cada vez mais gente em todo o mundo chega a essa mesma conclusão porque conhece homens e mulheres homossexuais que são saudáveis e levam vidas e relacionamentos ordenados, a ponto de constituírem exemplos para os outros, eu gostaria de mencionar dois bispos da Comunhão Anglicana: Mary Glasspool, Bispa Sufragânea de Los Angeles, e Gene Robinson, Bispo da Diocese de New Hampshire [assista a um depoimento seu aqui]. Cito-os porque, embora não seja nada fácil tornar-se bispo anglicano/episcopal, essas pessoas amorosas e honestas são líderes em suas congregações e exemplos de santidade. Conheço ambos pessoalmente. A eles se junta um sem-número de ministros, sacerdotes, rabinos e outros líderes religiosos do mundo que são homossexuais. As Igrejas Presbiteriana e Luterana nos EUA afirmam que a homossexualidade deixou de ser um impedimento à ordenação. Lembremo-nos de que outrora, em determinado momento de suas histórias, essas mesmas igrejas deixaram de ordenar pessoas por serem "negras" ou "asiáticas".

Em conclusão, um número cada vez maior de líderes religiosos vem aceitando o fato de que a homossexualidade não é um pecado nem é algo errado; pelo contrário, os homossexuais, como os heterossexuais, têm a oportunidade de viver sua sexualidade de forma integral e íntegra, com transparência e abertura, como parte que são da maravilhosa diversidade da humanidade: homens, mulheres, pessoas das mais diversas raças, idades e estilos de vida.

É um orgulho para mim dizer que pertenço a uma Igreja que aceita plenamente as pessoas gays, lésbicas, transgêneras e bissexuais por acreditar que Deus ama todas as pessoas, qualquer que seja o seu estilo de vida. Claro que há quem condene os homossexuais e os acuse de serem imorais. Também existem ainda os racistas, os fanáticos, os que têm preconceito de classe social e os que odeiam aqueles que julgam diferentes de si mesmos. O fato de existirem faz com que estejam certos? Só a própria pessoa pode julgar. Ou talvez Deus deva ser o Juiz. O que foi mesmo que Jesus disse a respeito?

- Pastor Vincent C. Schwahn

Vincent C. Schwahn é um sacerdote ordenado da Igreja Episcopal desde 1991, canonicamente residente na Diocese de Los Angeles. Tendo exercido o sacerdócio na Igreja Anglicana do México por cerca de 15 anos, agora é reitor interino em St. Clements by the Sea, sul da Califórnia. É abertamente gay e um ativista pelos direitos humanos e sexuais.

(Traduzido daqui. Grifos nossos. Dica do querido Hugo Nogueira, como sempre. ;-))

Aids tem preconceito?


Os dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde mostram que, na última década, houve um crescimento da epidemia da aids entre a população de homens jovens que fazem sexo com homens. “Homens que fazem sexo com homens” foi uma categoria epidemiológica e biomédica criada nos anos 90 para tentar agrupar a imensa diversidade de práticas e performances sexuais dos homens. Não sabemos como esses homens se apresentam socialmente - se como gays, heterossexuais, bissexuais, travestis ou transexuais.

O quesito recuperado pelos registros epidemiológicos é o de homens jovens que fazem sexo com outros homens em duas “categorias de exposição”, homossexuais e bissexuais. Segundo o ministro da Saúde, uma das respostas a esse crescimento será a campanha nacional de prevenção no Dia Mundial de Combate à Aids: o sujeito da campanha será o homem gay jovem. O detalhe é que os dados epidemiológicos recuperam práticas sexuais; já as campanhas se voltam para identidades sexuais. Os dois conceitos não são iguais e apontam para linguagens, populações e vulnerabilidades diferentes.

Uma tese que tenta explicar o crescimento da aids entre homens gays de 15 a 24 anos é a da história da epidemia e suas metáforas. Diferente da geração dos anos 80, para quem a aids era uma sentença de morte, os jovens dos anos 90 conheceram a aids como uma doença grave, porém crônica. A aids passou da “peste gay” nos anos 80 para uma doença relacionada às práticas sexuais desprotegidas, em que as biografias das pessoas vivendo com aids estão entre nós. Teria havido uma certa universalização da exposição à aids com o deslocamento dos grupos de risco para as práticas sexuais: não seriam homens gays ou travestis os indivíduos mais vulneráveis à aids, mas todos aqueles com práticas sexuais desprotegidas. No conjunto das práticas sexuais de maior vulnerabilização à aids, os homens que fazem sexo com outros homens mereceriam maior atenção.

Mas quem é o homem que faz sexo com outros homens? Ele pode se apresentar socialmente como um homem gay ou se manter na proteção de um casamento heterossexual. Pode ser uma travesti ou uma transexual, a depender de como os indivíduos responderam ao quesito das práticas sexuais com outros homens. Pelos registros epidemiológicos conhecemos suas práticas, mas pouco sobre suas localizações no amplo leque de identidades ou performances sexuais. Não sabemos se eles são os gays do início dos anos 2000 que não se apresentavam como homossexuais para os sistemas de notificação, ou se de fato anunciam um novo regime masculino de vulnerabilização à aids.

Uma travesti talvez seja um homem para os registros epidemiológicos, mas uma mulher nos jogos performáticos da sexualidade entre corpos masculinos e femininos. É na passagem das práticas dos registros epidemiológicos para as apresentações sociais sobre sexualidade que está o principal desafio das campanhas educativas. A quem dirigir a campanha para proteger os jovens homens de 15 a 24 anos que fazem sexo com outros homens?

A escolha do Ministério da Saúde foi de nominá-los como jovens gays. Não tenho dúvidas de que as jovens travestis são outro grupo igualmente importante. Mas quais seriam as vulnerabilidades de sujeitos tão diversos agrupados na categoria de homens que fazem sexo com outros homens? A principal delas é a homofobia. Os jovens gays corporificam a maior categoria dos fora da norma heterossexual, homens que não reproduzem a heteronormatividade em seus corpos e práticas sexuais. O slogan da campanha do Ministério da Saúde será “a aids não tem preconceito”, um sinal de como as políticas de saúde do Estado brasileiro operam em um marco de direito humanos.

Mas a verdade é que o crescimento da epidemia em um determinado grupo não é simplesmente resultado de práticas sexuais desprotegidas: é também resultado de uma ordem social homofóbica que impede os indivíduos de buscarem informação nas escolas, de acessarem os serviços de saúde ou de receberem o diagnóstico precoce da doença. O jovem gay da campanha é um personagem que ganhará corpo e voz pelo anúncio do crescimento de sua vulnerabilidade à aids, mas outros regimes de opressão acompanham sua existência vulnerável.

O crescimento da epidemia entre uma população tão jovem pode ser explicado pela hipótese histórica de mudança de compreensão da doença entre os homens que se iniciam na vida sexual, mas também pela hipótese sociológica da homofobia, que impõe vulnerabilidades aos fora da norma heterossexual. O jovem gay representa o inominável para os livros didáticos do Ministério da Educação, que insistem em reduzir a sexualidade à reprodução biológica. O jovem gay representará essa imensa população de homens que fazem sexo com homens recuperados pelo boletim epidemiológico, um grupo tão diverso que desafia a campanha do Ministério da Saúde sobre como nominá-lo.

O revigoramento da epidemia entre a mesma população que anunciou seu início nos anos 80 não deve reacender nossos temores sobre novas formas de estigmatização e preconceito a esses grupos. Ao contrário, deve nos envergonhar que, mesmo 20 anos depois de campanhas sistemáticas, ainda não fomos capazes de romper o cerco homofóbico que impede que os principais equipamentos do Estado protejam os fora da norma heterossexual dos riscos da aids.

- Débora Diniz
Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Reproduzido via Conteúdo Livre

O toque de Deus que muda a vida

Imagem daqui

Na fraqueza humana de Jesus, atua o poder de Deus: Jesus cura graças a uma morte e a uma ressurreição. Toda cura, portanto, remete ao evento salvífico definitivo que é a ressurreição: por trás de toda cura, delineia-se o molde da cruz e do seu paradoxal poder vivificante.

A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, publicado no jornal dos bispos italianos, "Avvenire", 11-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Os Evangelhos testemunham que Jesus encontrou um grande número de pessoas afligidas por várias doenças: deficiências físicas (coxos, cegos, surdo-mudos, paralíticos), doenças mentais (os "endemoninhados", que designam pessoas afligidas de tempos em tempos por epilepsia, histeria, esquizofrenia, males cuja origem era atribuída a uma possessão diabólica), deficiências e enfermidades mais ou menos graves (leprosos, a mulher hemorroíssa, a sogra de Pedro atingida por grande febre).

O encontro com essa humanidade sofredora, com os rostos e os corpos desfigurados de muitos homens e mulheres, constituíram para Jesus uma espécie de Bíblia viva, em carne e osso, a partir da qual ele pôde ouvir a lição da fraqueza e do sofrimento humanos, pôde aprender a arte da compaixão e da misericórdia. Podemos dizer que esses encontros representaram para ele um magistério do humano e uma revelação do divino, um lugar de aprendizagem do viver e do crer: Jesus não aprendeu só com aquilo que ele mesmo sofreu (cf. Hb 5, 8), mas também com o sofrimento dos outros.

Os Evangelhos enfatizam o fato de que Jesus cuida dos doentes (o verbo grego therapeúein, "cuidar", ocorre 36 vezes, enquanto o verbo iâsthai, "curar", 19 vezes), e cuidar significa, sobretudo, servir e honrar uma pessoa, ter solicitude por ela. Jesus vê no doente uma pessoa, faz vir à tona a unicidade dela e se relaciona com ela com a totalidade do seu ser, captando a sua busca de sentido, vendo-a como uma criatura disposta à abertura de fé-confiança, desejosa não só de cura, mas daquilo que pode dar plenitude à sua vida.

A propósito, gostaria de fazer um esclarecimento que considero decisivo. No coração dos episódios em que Jesus está lidando com pessoas doentes, não há técnicas de cura e atividade taumatúrgica ou exorcista, mas sim a atitude humana de escuta e de acolhida das pessoas, há a humaníssima realidade do encontro: não há, portanto, a doença, mas sim a pessoa humana.

Jesus não se encontrava com o doente enquanto doente: isso significaria pôr-se em uma condição em que o outro era encerrado em uma categoria, significaria reduzir o outro àquilo que era apenas um aspecto da sua pessoa.

Não, Jesus se encontrava com o outro enquanto ser humano como ele, membro da humanidade, igual em dignidade a qualquer outro ser humano. E, ao se encontrar e ouvir um ser humano, Jesus sabia acolhê-lo, isso sim, também como uma pessoa marcada por uma forma particular de doença.

Em suma, com a sua prática de humanidade, Jesus ensina que cuidar é, em primeiro lugar, encontrar e entrar em relação com um homem ou com uma mulher. Aproximando-se das pessoas não com o poder e o saber do médico, mas sim com a responsabilidade e a compaixão do ser humano, Jesus se apresenta na vulnerabilidade e na fraqueza, e assim consegue encontrar a humanidade ferida dos doentes entrando em uma relação autenticamente ética com eles.

1. Jesus não prega a resignação

Acima de tudo, um elemento preliminar, necessário para desmontar a ideia que muitas vezes se ouve evocar, mesmo de boa fé, mas que é muito perigosa, porque acaba atribuindo a Deus e a Jesus Cristo um rosto perverso. Encontrando-se com os doentes, Jesus nunca prega a resignação, não tem atitudes fatalistas, não afirma que o sofrimento aproxima mais de Deus, não alimenta atitudes doloristas: ele sabe que não é o sofrimento, mas sim o que salva! Jesus sempre busca restituir ao doente a integridade da saúde e da vida; luta contra a doença, dizendo não ao mal que desfigura o ser humano; cuida e tenta curar com todas as suas forças.

É assim que ele faz das suas curas um verdadeiro Evangelho em atos, profecias do Reino, em que "Deus enxugará toda lágrima dos nossos olhos (cf. Is 25, 8) e "não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas anteriores passaram" (cf. Ap 21, 4).

A esse respeito, é útil fazer um esclarecimento adicional: ouve-se repetir frequentemente que é preciso oferecer a Deus o seu próprio sofrimento. Que sentido pode ter essa expressão considerada altamente espiritual, mas que pode ser equivocada? Deus aprecie, talvez, a oferta da dor que muitas vezes desumaniza e desfigura? Que imagem de Deus pressupõe tal "apreciação"?

Na verdade, esse conselho espiritual deve ser esclarecido. Certamente, na oferta de si mesmo ao Senhor, que todo cristão deve fazer como autêntico culto espiritual (cf. Rm 12, 1), também estão incluídos os sofrimentos, assim como estão incluídas as alegrias. Por consequência, é preciso dizer ao Senhor: "Eis-me todo inteiro diante de ti, corpo, psique e espírito, incluindo a minha doença e o meu sofrimento!". Mas nisso também devemos olhar para o exemplo dado por Jesus, que não ofereceu ao Pai o seu sofrimento, mas sim "dirigiu preces e súplicas (…) a Deus, que tinha poder de salvá-lo da morte" (Hb 5, 7) na experiência da sua paixão, vivendo-a no "amor até o fim" (cf. Jo 13, 1), no amor estendido até aos inimigos.

O que foi decisivo e redentor na paixão de Jesus foi o amor com o qual ele viveu o sofrimento e a morte. E assim ele nos ensinou que o que Deus espera de nós quando atravessamos o sofrimento e a doença é que continuemos a nos exercitar no amor, aceitando ser amados e procurando amar. De fato, nós alcançamos o desejo de Deus não na oferta do nosso sofrimento, mas sim quando a nossa vida, mesmo no sofrimento, torna-se dom de si de amor: esse foi o caminho que Jesus percorreu e abriu para aqueles que querem segui-lo.

2. Jesus vive a "com-paixão"

Jesus se envolve profundamente com a situação pessoal dos doentes: o seu sofrimento é padecido pelo próprio Jesus, que sente "com-paixão" por eles (cfr., por exemplo, Mc 1, 41; 6, 34), isto é, entra em um movimento de "cossofrimento" que o envolve até mesmo emotivamente.

Jesus se deixa ferir pelo sofrimento dos outros, se faz próximo do doente mesmo quando as precauções higiênicas (medo do contágio) e as convenções religiosas (medo de contrair impureza ritual) sugeririam colocar uma distância entre ele e o outro: é o caso dos leprosos, que Jesus não só encontra, arrancando-os do isolamento e da solidão à qual estavam constrangidos, mas até os toca. Jesus não cura sem compartilhar! Dessa forma, ele mostra que o que contamina não é o contato com quem é considerado impuro, mas sim a recusa da misericórdia, da proximidade ao doente; ensina que não há sujeira maior do que quem não quer sujar as mãos com os outros; revela que a comunhão com Deus passa pela misericórdia e pelo compromisso com o sofredor. É vivendo a compaixão dessa forma que Jesus narrou o "Deus misericordioso e compassivo" (Ex 34, 6).

Nesse caso, no entanto, também é preciso nos entendermos com relação às palavras. A compaixão vivida por Jesus e por ele pedida aos seus discípulos não é a compaixão no sentido de comiseração, que é justamente rejeitada pelo sofredor como uma ofensa e uma lesão à sua humanidade. Não, a compaixão, biblicamente entendida, é o deixar-se ferir pelo sofrimento do outro, é o "com-padecer" com quem está ao lado, é a rejeição radical da indiferença perante o mal. Isso sem qualquer protagonismo, sem qualquer insistência posta sobre o "fazer caridade" próprio: é significativo, a esse respeito, que o verbo grego utilizado para narrar a atitude de Jesus e do Pai por ele descrito nas parábolas (splanchnízein) indica, literalmente, o fato de "ser tomado por, ser movido por uma compaixão visceral", ou seja, o reagir a estímulos provenientes do exterior.

"Ver e ser movido por uma compaixão visceral": eis o que impulsiona o Bom Samaritano, figura de Jesus, a se fazer próximo do homem deixado meio morto pelos assaltantes na beira da estrada (cf. Lc 10, 33); eis o que leva o Pai pródigo de amor a correr ao encontro do filho pecador, quando este ainda está longe (cf. Lc 15, 20).

3. A escuta, o diálogo, a fé-confiança

Nos seus encontros com os doentes, Jesus sempre apela aos recursos interiores da pessoa que tem à sua frente: e assim a cura, quando se verifica, ocorre sempre em um contexto relacional em que Jesus desperta e faz surgir a fé da pessoa, isto é, a sua capacidade de confiança e de entrega, a sua vontade de vida e de relação. Pode-se pensar, mais uma vez, na práxis com a qual Jesus se aproxima e cuida dos leprosos, verdadeiros párias da sociedade do seu tempo, marcados a fogo por um estigma que os excluía da família e das relações afetivas e sexuais, da vida social, da comunidade religiosa e da prática cultual.

Nas relações com os leprosos, Jesus coloca em ação uma atitude sociável que o leva a se encontrar com quem era relegado para fora dos centros habitados, a tocar os "intocáveis", a considerar como pessoas aqueles que, aos olhos de todos, eram atingidos pela maldição e pelo castigo divino, a empreender relações com aqueles que eram condenados ao isolamento (cf. Mc 1, 40-45; Mt 8, 1-4; Lc 5, 12-18).

Ou, pense-se no encontro de Jesus com o chamado "endemoninhado de Gerasa" (cf. Mc 5, 1-20). Com relação a ele, Jesus realiza uma paciente escuta, empreende um diálogo, busca um encontro pessoal e, assim, lhe transmite confiança e autoestima. Graças à relação, aquele que antes era violento, autodestrutivo, descuidado de si mesmo, nu, muda a tal ponto que, no fim, ele pode ser visto "sentado, vestido e no seu perfeito juízo" (Mc 5, 15). E este homem, Jesus também oferece uma indicação de futuro, restituindo-o a si mesmo, ao seu ambiente familiar e social, e confiando-lhe uma tarefa a ser feita: "Vai para casa, para junto dos teus, e anuncia-lhes tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ti" (Mc 5, 19).

Em síntese, se é verdade que "a fé nasce da escuta" (Rm 10, 17), Jesus mostrou a verdade dessa afirmação em nível antropológico: com a sua prática de humanidade, ele foi capaz de redespertar a humanidade dos doentes, ouvindo-os, pondo neles confiança e valorizando a sua confiança. Eis porque, quando ele restituía à vida em plenitude as pessoas doentes, despedia-se delas confessando, quase com espantosa gratidão: "A tua fé te salvou" (Mc 5, 34 e par.; 10, 52; Lc 7, 50; 17, 19; 18,42).

4. As curas, sinais da salvação

Gostaria, por fim, de esboçar um elemento que mereceria um desenvolvimento muito maior. A cura operada por Jesus no corpo e no espírito das pessoas doentes é sinal da salvação, que é libertação definitiva do mal e da morte: o poder dos seus atos de cura é, de fato, o próprio poder do evento pascal, que atua graças a um enfraquecimento de Jesus, a uma perda de força, em suma, à sua morte.

Significativamente, os relatos de cura deixam transparecer a duração e a fadiga de tais intervenções de Jesus: não se trata de intervenções mágicas, mas sim de encontros pessoais, que custam tempo e energias físicas e psíquicas para conduzir aquele que delira a entrar em uma relação humanizada (cf. Mc 5, 1-20), que pedem que Jesus se informe e saiba detalhes sobre a doença do menino epilético para poder intervir (Mc 9, 14-29), que exigem a repetição de gestos terapêuticos (como no caso da cura do cego de Betsaida: Mc 8, 22-26), que lhe tiram energias (como no episódio da cura da hemorroíssa: Mc 5, 25-34).

Na fraqueza humana de Jesus, atua o poder de Deus: Jesus cura graças a uma morte e a uma ressurreição. Toda cura, portanto, remete ao evento salvífico definitivo que é a ressurreição: por trás de toda cura, delineia-se o molde da cruz e do seu paradoxal poder vivificante. O evangelista Marcos mostra essa realidade com particular fineza quando, para narrar a cura do menino epiléptico, usa a terminologia com que o querigma cristão proclamava a morte e a ressurreição de Cristo: "O menino ficou como morto (nekrós), tanto que muitos diziam: 'Morreu!' (apéthanen). Mas Jesus o tomou pela mão e o levantou (égheiren); e ele ficou de pé (anéste)" (Mc 9,26-27).
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