Foto: Wai Leong
Com frequência nos deparamos com opiniões diferentes das nossas. São muito diversos os pontos de vista das pessoas acerca do significado de palavras como "Igreja", "lei", "moral", "dogma". Nem haveria como ser diferente, dado que mesmo no Magistério da Igreja Católica, mesmo entre teólogos - que se dedicam toda a vida a estudar as questões ligadas à Revelação - não existe uma voz única. Mesmo aí, há dissonâncias e dissensões. E nem aí - ou sobretudo não aí - estamos livres de paradoxos e contradições.
Existe, por certo, uma orientação atualizada quanto à postura oficial do Magistério, contida no Catecismo da Igreja Católica. Entretanto, para entendermos a razão das dissensões e paradoxos, é fundamental que não percamos a História de vista. A Revelação não é algo fechado, que já foi dado por Deus ao ser humano e que cabe a este simplesmente compreender. Ela se dá ao longo da História da humanidade, no decurso da qual Deus se vai dando a conhecer ao homem, segundo os desígnios da Sua vontade. Isso explica por que posições do Magistério que já foram oficiais hoje não são mais; por que o Catecismo é periodicamente reeditado, refletindo alterações e atualizações da doutrina; e por que acontece de mesmo dogmas, as mais altas verdades da doutrina católica, eventualmente poderem ser abolidos - vide o dogma da infalibilidade papal, por exemplo, e tantos pedidos de perdão feitos pela Igreja neste século e no anterior.
Com relação à homossexualidade especificamente (já que nosso tema aqui é "como conciliar a dupla identidade gay e cristã?"), a atual orientação oficial do Vaticano com relação a gays, tal como expressa no Catecismo (CIC 2357-59), é que o gay é criado por Deus como tal e - nunca é demais frisar - deve ser objeto de respeito e acolhimento. Porém, o Catecismo diz também que o ato homossexual implica numa "paixão desordenada" e, como tal, deve ser evitado. A classificação como "paixão desordenada" está de acordo com uma determinada definição de "lei natural" que, atualmente, é objeto de muitos questionamentos e críticas, num campo da Teologia - a Teologia Moral - que vive uma grande ebulição, típica dos momentos de transição e mudança.
A Teologia e a expressão da doutrina cristã católica são campos vivos e pujantes, em constante diálogo com seu tempo. Se assim não for, estarão fadadas a deixar de responder aos anseios dos homens, de ajudá-los em sua caminhada em busca de Deus, que é sua função.
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Atualização de 16/02/2011:
A troca de ideias que nasceu nos comentários deste post (abaixo) acabou dando origem a um novo texto nosso, intitulado "Nosso testemunho". Confira e dê sua opinião! :-) Tweet
15 comentários:
Paz e bem!
Este artigo contém certos erros - que suponho não-intencionais - que podem mostrar uma visão conciliatória entre a prática do ato homossexual e a doutrina da Igreja.
Por exemplo:
a) "A Teologia Fundamental nos ensina que a Revelação não é algo fechado, que já foi dado por Deus ao ser humano e que cabe a este simplesmente compreender. A Revelação se dá ao longo da História da humanidade"
A Revelação terminou com a morte do último apóstolo, São João (se não me engano, no ano 100 dC). Se um teólogo não concorda com isso, joga fora um dos pontos centrais do Catolicismo, sobre o qual a Igreja não é a dona da fé, mas recebeu de Cristo a missão de guardar o Depósito da Fé (conf. Fidei Depositum). Por isso também que a Dei Verbum, no Cap. III, A Transmissão da Revelação Divina, começa falando dos apóstolos e seus sucessores e :
"7. Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos.
Perceba o tempo verbla utilizado.
b) "A Revelação se dá ao longo da História da humanidade, no decurso da qual Deus se vai dando a conhecer ao homem"
É a compreensão da Revelação que se dá ao longo da História. Por isso o Catecismo diz: "para tomar cada vez mais profunda a compreensão da Revelação, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa continuamente a fé por meio de seus dons" (CEC, 158)
c) "diversos os pontos de vista das pessoas acerca do significado de palavras como "Igreja", "lei", "moral", "dogma". Nem haveria como ser diferente, dado que mesmo no Magistério da Igreja Católica, mesmo entre teólogos - que se dedicam toda a vida a estudar as questões ligadas à Revelação - não existe uma voz única."
Não interessa o que eu ou você, ou algum teólogo, acha de tal assunto. Não é esta a missão que Deus nos confiou. Nossa missão é crer que o Magistério, escolhido por Deus para esta missão, recebe de Deus todas as graças e o auxílio do Espírito Santo necessários para cumprir sua missão de guardar o Depósito da Fé e transmití-lo de maneira adequada, discernindo o joio do trigo.
10. [..] Porém, o encargo de interpretar autênticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição (8), foi confiado só ao magistério vivo da Igreja (9), cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido. (Dei Verbum)
Isso de qualquer teólogo com um diploma de esquina querer assumir o papel do Magistério e atacá-lo veementemente é algo muito recente na história da Igreja.
(continua)
d) "Isso explica porque posições teológicas que já foram oficiais hoje não são mais; porque o Catecismo é periodicamente reeditado, refletindo alterações e atualizações da doutrina e porque acontece de mesmo dogmas, as mais altas verdades da doutrina católica, eventualmente poderem ser abolidos - vide o dogma da infalibilidade papal, por exemplo, e tantos pedidos de perdão feitos pela Igreja neste século e no anterior."
A Doutrina é imutável. Questões pastorais ou de direito canônico podem mudar, mas a doutrina não. Isso tanto é verdade que um Papa - por mais pecador que fosse, nas épocas mais tribuladas da Igreja - nunca contradisse outro. Nenhum dogma foi abolido, como você disse. O dogma da Infabilidade Papal continua valendo.
Os catecismos são reeditados não porque a doutrina mude, mas porque a forma de expressar a doutrina deve mudar, acompanhando a realidade do homem hodierno, que pensa diferente em cada época da história.
E os pedidos de perdão simplesmente expressam a realidade de que a Igreja é formada por homens, fracos, miseráveis e pecadores, que podem cometer injustiças, erros. Como diz o Pe. Paulo Ricardo, nós, Povo de Deus, somos Igreja mas não plenamente. É como se a delimitação do que é Igreja e do que não é passasse no meio de nós. A parte de nós que peca não é Igreja, porque esta nunca poderia ser a vontade de Deus para Sua Igreja.
e) "orientação oficial do Vaticano com relação a gays, tal como expressa no Catecismo (CIC 2357-59), é que o gay é criado por Deus como tal e - nunca é demais frisar"
Li os parágrafos citados mas não encontrei esta afirmação sobre a criação do homem por Deus como gay. Poderia explicitar da onde deduziu isto?
f) "o Catecismo diz também que o ato homossexual implica numa "paixão desordenada" e, como tal, deve ser evitado. A classificação como "paixão desordenada" está de acordo com uma determinada definição de "lei natural" que, atualmente, é objeto de muitos questionamentos e críticas"
Falando no Catecismo, ele também explica melhor a lei natural:
"A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira.
A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e de cada um dos homens, porque ela é a razão humana ordenando fazer o bem e proibindo pecar." (CEC, 1954)
A lei natural pode ser criticada ou questionada, porque a "'união íntima e vital com Deus' pode ser esquecida, ignorada e até rejeitada
explicitamente pelo homem" (CEC, 29), mas não mudará.
"A lei natural é imutável e permanente através das varias ações da história; ela subsiste sob o fluxo das idéias e dos costumes e constitui a base para seu progresso. As regras que a exprimem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades (CEC, 1958)
Concurdo, claro, que os homossexuais devem ser objeto de respeito e acolhimento. Ódio e violência são atitudes que faltam para com a virtude evangélica da caridade. Porém, dizer que o ensinamento da Igreja é homofóbico ou que deva ser proibido também é falta de respeito. Tudo o que a Igreja já fez em favor dos (verdadeiros) direitos humanos ao longo dos séculos, como o combate a pedofilia, que era prática recorrente entre vários povos antigos, não pode ser deixado de lado.
Em Cristo,
Daniel
Daniel,
aquilo que vc concorda é exatamente aquilo concordamos. Em suma, simplesmente lutamos para que diversos gays sejam acolhidos e respeitados e re-inseridos em suas comunidades como menos sofrimento e dor, sem que ocorra uma tentativa de "cura" ou qualquer outra tecnica de reversao adotadas por diversas paroquias.
Afinal de contas, bastaria ler as bem-aventuranças pra entender um pouco onde queremos chegar.
Gostaria de convidá-lo a leitura de um excelente teologo e doutor no assunto, onde publicamos sua entrevista aqui no blog:
http://diversidadecatolica.blogspot.com/2010/09/deus-criou-os-homossexuais.html
Caro Daniel,
temos em nosso site um campo de "Perguntas e Respostas", onde você pode encontrar vasto amparo bibliográfico a respeito do nosso ponto de vista, bem como o restante do Portal há conteúdo relevante de importantes teologos sobre a questão.
http://www.diversidadecatolica.com.br/perguntas_frequentes.php
À Paz!
Caro Daniel,
Suas observações são muito interessantes e denotam uma grande atenção e cuidado da sua parte na leitura do nosso post. Particularmente, gostaria de te agradecer pela sua abertura e disponibilidade para o diálogo.
Creio que há alguns pontos do que você disse que merecem uma resposta mais minuciosa para mantermos a conversa em andamento, mas por ora eu gostaria apenas de fazer uma ressalva: nós nunca chamamos de homofóbico os ensinamentos do Magistério, nem defendemos que eles devam ser proibidos. Não somos favoráveis a nenhum tipo de censura, sob nenhum pretexto.
Todavia, é importante salientar que muitas vezes argumentos religiosos derivados de credos diversos são utilizados como justificativa para agressões, exclusões, manifestações homofóbicas de diferentes ordens e violências em geral. A meu ver, isso, no caso do cristianismo, é uma deturpação indevida da mensagem de amor de Cristo. E, quando a crença religiosa se mistura com a política e o Estado, é mais grave ainda.
Um grande abraço. Espero continuar nosso diálogo em breve. :-)
Cris
Caríssimos,
Vou olhar com atenção os textos que indicaram. Mas adianto que já olhei alguma coisa e encontro algumas citações que me parecem um tanto quanto fora de contexto. Por exemplo, querendo colocar a consciência individual acima da Lei Natural, o que é errado por ser relativista e, neste caso, porque tais leis foram colocadas por Deus na natureza de cada ser humano, feito à sua imagem e semelhança.
Espero uma resposta quanto as colocações que fiz nesse comentário, especialmente quanto aos textos que trouxe do Magistério.
Prezada Cris,
Quando disse "dizer que o ensinamento da Igreja é homofóbico ou que deva ser proibido também é falta de respeito" não me referia à vocês, até porque pouco os conheço e não encontrei nada disso neste site. Estava generalizando com respeito à um posicionamento comum da chamada "militância gay".
Em Cristo,
Daniel
"...é importante salientar que muitas vezes argumentos religiosos derivados de credos diversos são utilizados como justificativa para agressões, exclusões, manifestações homofóbicas de diferentes ordens e violências em geral".
Você é capaz de provar isso com casos concretos? Há algum caso comprovado de violência contra homossexuais que tenha tido motivação religiosa? O que é manifestação "homofóbica": é divulgar o que Magistério da Igreja ensina e ensinou nos últimos dois milênios, que considera o homossexualismo um pecado grave, violação do sexto mandamento?
Sim, Matheus!
Infelizmente nos sobram provas.
Eu rodolfo, fui vítima de homofobia com justificativa religiosa baseada no Magisterio.
Mas, para que vc nao ache que se trata de um caso isolado, lhe recomendo a leitura de nosso post:
http://diversidadecatolica.blogspot.com/2011/01/assim-me-diz-biblia.html
O mesmo documentário expoe os casos de suícidios recorrentes, bem como a justificativa nao só da igreja católica, mas de outras denominaçoes cristas para a violencia praticada através do ódio físico e moral.
Leia tb o campo de Perguntas Frequentes do nosso Portal:
http://www.diversidadecatolica.com.br/perguntas_frequentes_detalhes.php?id=9&num=9
Prezados Daniel, Matheus e demais leitores,
Diante do comentário tão minucioso do Daniel e da observação do Matheus, que tocaram, ambos, em pontos muito importantes e bastante delicados, achamos por bem tomar um tempo para refletir com calma antes de elaborar uma resposta. Daí a demora para darmos um retorno – mas, de todo modo, pedimos desculpas pelo tempo transcorrido.
Daniel, discordamos de você em alguns pontos da sua leitura dos documentos do Magistério, sobretudo os do Concílio Vaticano II; discordamos, sobretudo, da colocação de que nossa parte pecadora não pertence à Igreja. Pelo contrário, o Catecismo afirma que “a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre necessitada de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação. Todos os membros da Igreja, inclusive seus ministros, devem reconhecer-se pecadores. (…) A Igreja reúne, portanto, pecadores alcançados pela Salvação de Cristo, mas ainda em via de santificação” (CIC 827). (Note-se que o termo “Igreja” não se refere somente ao Magistério, mas a todo o corpo de fiéis.)
Portanto, Deus nos acolhe amorosa e incondicionalmente não por nosso merecimento, mas como pecadores que necessariamente sempre somos, e nisso justamente consiste sua Justiça e Misericórdia, e a Gratuidade da nossa Salvação. Nisso somos todos chamados à santidade, vivida através do Amor:
“A Igreja... é, aos olhos da fé, indefectivelmente santa. Pois Cristo, Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito Santo é proclamado o 'único Santo', amou a Igreja como sua Esposa. Por ela se entregou com o fim de santificá-la. Uniu-a a si como seu corpo e cumulou-a com o dom do Espírito Santo, para a glória de Deus.” A Igreja é, portanto, “o Povo santo de Deus”, e seus membros são chamados “santos”. [Note-se que o termo “Igreja” não se refere somente ao Magistério, mas a todo o corpo de fiéis.]
(…) “Já na terra a Igreja está ornada de verdadeira santidade, embora imperfeita.” Em seus membros, a santidade perfeita ainda é coisa a adquirir: “Munidos de tantos e tão salutares meios, todos os cristãos, de qualquer condição ou estado, são chamados pelo Senhor, cada um por seu caminho, à perfeição da santidade pela qual é perfeito o próprio Pai”.
A caridade é a alma da santidade à qual todos são chamados. Ela “dirige todos os meios de santificação, dá-lhes forma e os conduz ao fim”:
“Compreendi que a Igreja tinha um corpo, composto de diferentes membros, não lhe faltava o membro mais nobre e mais necessário (o coração). Compreendi que a Igreja tinha um Coração, e que este Coração ARDIA de AMOR. Compreendi que só o amor fazia os membros da Igreja agirem, que, se o Amor viesse a se apagar, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os Mártires se recusariam a derramar seu sangue... Compreendi que O AMOR ENCERRAVA TODAS AS VOCAÇÕES, QUE O AMOR ERA TUDO, QUE ELE ABRAÇAVA TODOS OS TEMPOS E TODOS OS LUGARES... EM UMA PALAVRA, QUE ELE É ETERNO!” (CIC 823-826)
Contudo, não acreditamos que o debate em torno do significado do primado da consciência, da historicidade da Revelação, de como a Igreja se transformou ao longo dos séculos ou da necessidade de entender o significado da homossexualidade conforme as especificidades de seu contexto histórico e sócio-cultural seja o mais importante aqui. O ponto central, ao que nos parece, é aquele de que você parte em sua explanação: a possibilidade ou não de “uma visão conciliatória entre a prática do ato homossexual e a doutrina da Igreja”.
É ponto pacífico para nós que a atual posição da Igreja é que a homossexualidade constitui uma “paixão desordenada” e, como tal, os atos homossexuais devem ser evitados. Ou seja, a orientação do Magistério, hoje, é de que o homossexual deve procurar viver uma vida de castidade – castidade, aqui, entendida como celibato. Quanto a isso, não há discussão.
(Continua)
(Continuação)
Há que se compreender, porém, como o próprio Daniel muito bem apontou, que apenas no caso dos dogmas - o grau máximo a que uma doutrina ou posição moral pode ser elevada, tornando-se definitiva na compreensão da Igreja – a vinculação entre doutrina e acolhimento é total. E cabe aqui enfatizar que o atual entendimento do Magistério a respeito da homossexualidade, assim como sua atual orientação com relação a como os homossexuais devem lidar com sua sexualidade, devem ser ambos entendidos em termos de orientações e recomendações, uma vez que não são dogmas.
Poderíamos ir além e lembrar que a existência de um grau máximo e definitivo de adesão à doutrina indica que nem tudo, na doutrina católica, tem a mesma obrigatoriedade e permanência. Por exemplo, o caso da salvação. Já foi expresso como doutrina que os de fora da Igreja Católica não poderiam se salvar. Foi doutrina, mas não se mostrou definitiva. O Concílio Vaticano II gerou documentos que abrem a perspectiva da salvação para os que crêem em Cristo, mas não na comunhão da Igreja católica; para os que crêem em Deus, mas não no Cristo; e até para os que não crêem em Deus, mas vivem de acordo com os valores retos da sua consciência.
Poderíamos, de fato, sublinhar e insistir na compreensão de que a Igreja se transforma. Isso é expresso na própria Constituição Apostólica Fidei Depositum, mencionada pelo Daniel, a qual não se cansa de salientar a necessidade e importância da “renovação de pensamentos, de atividades, de costumes e de força moral”, e que o catecismo deve oferecer “uma doutrina sã e adaptada à vida atual dos cristãos”. Do mesmo modo, expõe que a doutrina e os costumes morais devem ser discernidos pelo Magistério a partir do
“ensinamento da Sagrada Escritura, da Tradição viva da Igreja e do Magistério autêntico, bem como a herança espiritual dos Padres, dos Santos e das Santas da Igreja, para permitir conhecer melhor o mistério cristão e reavivar a fé do povo de Deus. Deve ter em conta as explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja. É também necessário que ajude a iluminar, com a luz da fé, as novas situações e os problemas que ainda não tinham surgido no passado.
O Catecismo incluirá, portanto, coisas novas e velhas (cf. Mt 13, 52) porque a fé é sempre a mesma e simultaneamente é fonte de luzes sempre novas. (…) Sirva ele para a renovação, à qual o Espírito Santo chama incessantemente a Igreja de Deus, Corpo de Cristo, peregrina rumo à luz sem sombras do Reino!”
(Continua)
(Continuação)
Poderíamos seguir essa linha de argumentação, mas, como dissemos, não é o que consideramos mais primordial aqui. Para nós, como gays e católicos que somos e membros inalienáveis da Igreja, é fundamental não perder de vista a mensagem do Evangelho: “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10, 10). Cristo veio para todos. Cristo veio subverter a lógica legalista dos fariseus, segundo a qual a salvação seria derivada do reto e literal cumprimento da Lei, e só aos que a seguissem à risca estaria reservada. “A lei não é já o decisivo para saber o que espera Deus de nós. O primeiro é 'procurar o reino de Deus e a Sua justiça'”, adverte o teólogo basco Jose Antonio Pagola em artigo que recentemente reproduzimos aqui (http://migre.me/3SVrG). “Jesus esforça-se por introduzir nos Seus seguidores outro perfil e outro espírito: 'se a vossa justiça não é melhor que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino de Deus'.” E Pagola conclui:
Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem corretamente, mas não construíram um mundo mais humano.
Temos de escutar bem as palavras de Jesus: «Não vim abolir a Lei e os profetas, mas dar plenitude». Não veio atirar por terra o patrimônio legal e religioso do antigo testamento. Veio para «dar plenitude», a alargar o horizonte do comportamento humano, a libertar a vida dos perigos do legalismo.
O nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como os vivia Jesus: procurando esse mundo mais justo e fraterno que quer o Pai. [A esse respeito, v. CIC 1963]
Esse sempre foi e continua sendo, passados dois milênios, o cerne da doutrina oficial da Igreja: o Amor que a todos vem redimir e salvar.
É por isso que o Diversidade Católica tem por missão “promover e difundir a Boa Nova de Jesus Cristo e a participação no Reino de Deus com a partilha da experiência do amor de Deus junto a todos os fiéis tradicionalmente excluídos do corpo eclesial em virtude de sua identidade e/ou orientação sexual” (http://migre.me/3SW7a). Trabalhamos pela conciliação das identidades gay e católica porque nos reconhecemos tão santos e pecadores como qualquer outra pessoa, independente de sua orientação sexual. Longe de atacar a Igreja à qual pertencemos, trabalhamos sempre para salientar que a mensagem dessa Igreja tão incompreendida é difundir a Boa Nova do Amor de Cristo, que a todos acolhe e inclui. Com efeito, como nota o teólogo espanhol José María Castillo, no artigo que publicamos ontem aqui sobre a “escandalosa tolerância de Jesus”,
Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade, Jesus foi tolerante com os publicamos e pecadores, com as mulheres e com os samaritanos, com os estrangeiros, com os endemoniados, com as multidões dos gentios (óchlos), uma palavra dura que designava a “plebe que não conhecia a Lei e era maldita”, no juízo dos sumos sacerdotes e dos fariseus observantes (Jo 7, 49; cf. 7, 45).
E é curioso, mas essa gente é a que aparece constantemente acompanhando a Jesus, escutando-o, buscando-o... Os relatos dos Evangelhos são eloquentes neste ponto concreto e repetem muitas vezes que o “gentio”, a “multidão”... buscava a Jesus, que o ouvia, que estava perto dele. E aquela mistura de Jesus com os “gentios” chegou a ser tão angustiosa, que até a família de Jesus chegou a pensar que ele havia perdido a cabeça (Mc 3, 21). Jesus compartilhava mesa e toalha com os pecadores, o que dava pé a murmurações por causa de semelhante conduta (Lc 15, 1s).
(Continuação)
Por isso, Matheus, respeitosamente discordamos de você quanto à homossexualidade ser um “pecado grave, violação do sexto mandamento”. Entendemos que você se referiu a pecar contra a castidade. Mesmo que fizéssemos uma interpretação muito literal e legalista da doutrina – da qual, diga-se de passagem, esperamos já ter deixado claro que divergimos – e considerando a atual recomendação do Magistério quanto à observação da continência pelos gays, levando uma vida sexual ativa não estaríamos pecando mais contra a castidade do que pessoas divorciadas, pessoas recasadas, pessoas que têm relações sexuais fora do casamento, pessoas que fazem uso de camisinha ou outros preservativos ou pessoas que utilizam qualquer método anticoncepcional, dentro ou fora do casamento. Não estaríamos pecando mais contra a castidade, em última instância, do que qualquer pessoa que faz sexo sem ter a procriação em vista.
Ainda que considerássemos o ato homossexual como desordenado em si mesmo, como sugere o Catecismo, ou mesmo pecaminoso – o que NÃO corresponde à posição do Magistério, visto que “desordenado” e “pecaminoso” são conceitos distintos – há que se levar em consideração, Matheus, o fato de que, consultando o verbete “pecado” no índice do Catecismo, o primeiro subitem citado é “Amor mais forte que o pecado”, que remete ao trecho sobre o perdão:
Não há limite nem medida a esse perdão essencialmente divino. Tratando-se de ofensas (...), de fato somos sempre devedores: “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo” (Rm 13, 8). A Comunhão da Santíssima Trindade é a fonte e o critério de toda relação. Esta comunhão é vivida na oração, sobretudo na Eucaristia:
Deus não aceita o sacrifício dos que fomentam a desunião; Ele ordena que se afastem do altar para primeiro se reconciliarem com seus irmãos: Deus quer ser pacificado com orações de paz. Para Deus, a mais bela obrigação é nossa paz, nossa concórdia, a unidade no Pai, no Filho e no Espírito Santo de todo o povo fiel. (CIC 2844-2845)
De todo modo, porém, não é esse em absoluto o nosso entendimento. Primeiramente, levando-se em consideração o fato de que a atual posição do Magistério com relação à homossexualidade não constitui um dogma, como já expusemos, e, portanto, não requer adesão irrestrita para caracterizar-nos como membros da Igreja, necessitamos, para respeitar nossas consciências, dar o nosso sempre respeitoso testemunho de que não vivemos nossa forma de amar como “intrinsecamente desordenada” ou fechada ao dom da vida (CIC 2357). Pelo contrário, observamos justamente que também entre nós “'os atos com os quais os cônjuges se unem íntima e castamente são honestos e dignos. Quando realizados de maneira verdadeiramente humana, significam e favorecem a mútua doação pela qual os esposos se enriquecem com o coração alegre e agradecido.' A sexualidade é fonte de alegria e de prazer” (CIC 2362).
Para respeitar nossas consciências, precisamos dar nosso testemunho de que vivemos, sim, uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira (CIC 2357). Vivemos, com nossos esposos e esposas, os mesmos desafios e recebemos as mesmas graças de qualquer casal, e nosso testemunho é dado com nossas próprias vidas.
Divergimos nesses pontos não porque pretendamos ir contra a Igreja ou seu Magistério. Nada poderia estar mais longe da verdade. Damos nosso testemunho por amor à Verdade e à Igreja de Cristo, para que através dele ela possa continuar sua jornada de construção do Reino e, peregrinos com ela, caminhemos juntos.
Segundo, mesmo ainda recomendando o celibato, a Igreja reconhece que “um número não negligenciável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. (…) Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida” (CIC 2358); ou seja, somos tão chamados à santidade quanto os demais membros da Igreja de Cristo, e não há nenhuma justificativa para que sejamos excluídos da Igreja, da participação na vida de nossas respectivas comunidades e, muito menos, dos sacramentos.
(Continua)
(Continuação)
Entretanto, e é este o cerne da nossa atuação, verificamos que a prática muitas vezes se afasta do reto cumprimento das orientações do Magistério no sentido do acolhimento e do respeito aos gays. Infelizmente, Matheus, muitos de nós viveram em suas comunidades situações de exclusão por serem gays. Muitos de nós, mas não todos, receiam revelar-se gays aos seus amigos e familiares por medo da rejeição, e vivem a violência de terem de viver escondidos. Muitos de nós, mas não todos, ao se revelarem gays, foram de fato rechaçados por amigos e familiares, pelo seu pároco e pela comunidade. Alguns de nós viveram situações de humilhação; em alguns casos, publicamente. Alguns de nós, ao se revelarem gays, foram destituídos de suas funções na comunidade, embora até então fossem considerados modelos de conduta e vida cristã. Alguns de nós foram excluídos dos sacramentos, ou se excluem dos sacramentos, por se sentirem julgados e condenados por seus amigos, familiares, párocos e comunidades; por ouvirem e acreditarem que são irremediáveis pecadores e, por isso, menos merecedores do Amor do Pai. Essa crença é causa de imenso sofrimento para multidões de nós, com efeitos devastadores, que muitas vezes chega ao absurdo do suicídio. A título de ilustração, remetemos aos casos narrados no documentário “Assim me diz a Bíblia” (http://gayload.blogspot.com/2009/01/como-diz-biblia-for-bible-tells-me-so.html) e no filme “Preces para Bobby” (http://gayload.blogspot.com/2009/02/prayers-for-bobby.html), duas de milhares de histórias tragicamente reais.
Então, sim, Matheus, respondendo sua pergunta, conhecemos muitos casos de homofobia e violência física, psicológica e social justificada por crenças religiosas, sobretudo cristãs. A mais evidente delas, aliás, se traduz no fato de que, no Brasil de hoje, um enorme número de cidadãos tem negada a garantia de seus direitos civis com base em argumentos de cunho religioso. A mistura de religião e política leva a distorções perversas, como a alegação de que a garantia dos direitos civis dos gays constituiria uma ameaça à liberdade religiosa. Nada mais falso: somente reforçando a separação entre Igreja e Estado teremos, todos, nossos direitos assegurados, inclusive e sobretudo o direito às liberdades de crença e culto.
Porém, a ameaça mais grave oferecida pela homofobia justificada por argumentos religiosos é justamente a corrupção e distorção dos valores mais caros à doutrina cristã e católica, representados, em última instância, pelos mandamentos maiores: “Amai-vos uns aos outros, e ao próximo como a ti mesmo”.
Esperamos dar testemunho de que, pecador ou não, ninguém deve ser excluído. Esperamos dar testemunho da gratuidade da Salvação e da incondicionalidade do Amor do Pai, independente das faltas e limitações inerentes a todo o humano. É por isso, Daniel, e por isso, Matheus, que trabalhamos.
A paz de Cristo esteja sempre com vocês.
Equipe Diversidade Católica
Hello foi a 2ª vez que vi a tua página e reflecti muito!Bom Trabalho!
Adeus
Amigo anônimo, que bom que deu margem a uma reflexão - esperamos que tenha sido fértil! Obrigado pelo retorno e volte sempre! Um abraço!
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