sábado, 5 de novembro de 2011

Líderes religiosos do mundo rezam pela paz em Assis


Todos os líderes religiosos que participaram do Dia de Reflexão, Diálogo e Oração pela paz e a Justiça no Mundo, promovida no último dia 27 em Assis, na Itália, aplaudiram a iniciativa do Papa e ressaltaram a importância de rezar e dialogar pela paz.

O patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu I, afirmou que o diálogo deve levar a “considerar o outro como sujeito de relação e não como objeto de indiferença”, “porque é na indiferença que nasce o ódio, o conflito, a violência”.

“Contra esses males, só o diálogo é uma solução possível e de longo prazo”, observou, recordando que “não vivemos apenas uns contra os outros, ou uns do lado dos outros, mas principalmente uns junto com os outros, em espírito de paz, de solidariedade e de fraternidade”.

“Os responsáveis pelas religiões devem se encarregar do processo de restabelecimento da paz. Não é simplesmente verbal. Ele exige que sejamos fiéis à nossa fé, fiéis ao desígnio de Deus para o mundo, respondendo ao que Ele quer”.

O doutor Rowan Douglas Wichams, arcebispo de Canterbury, cabeça da Igreja Anglicana, definiu como “uma grande honra” celebrar o aniversário da primeira Jornada de Oração pela Paz, promovida pelo beato João Paulo II.

Uma paz duradoura, segundo ele, “começa onde nós vemos o próximo como a nós mesmos e quando começamos a entender por que e como devemos amar o próximo como a nós mesmos”.

Os cristãos, especificou, reconhecem no próximo “não só alguém que tem em si 'a imagem de Deus' em virtude da criação, mas alguém que tem em si também a semelhança de Jesus Cristo em virtude da nova criação”.

Assim, “não somo estranhos uns aos outros. E temos que encontrar o modo de concretizar este reconhecimento recíproco em relações de amizade verdadeiras e duradouras”.

O doutor Olav Fykse Tveit, secretário geral do Conselho Ecumênico das Igrejas, louvou o encontro de Assis destacando que “o mundo precisa de reuniões entre os chefes das comunidades religiosas”, assim como de “construtores de paz a partir da fé”.

Recordando Jerusalém, Tveit anunciou que, para o Conselho Ecumênico das Igrejas, “um compromisso preciso para os próximos anos será o de trabalhar por uma paz justa em Jerusalém” e para todos os povos que vivem na cidade e em torno dela. “Somos responsáveis diante de Deus, e uns diante dos outros, pela paz do nosso tempo e também pelo que dizemos ou não dizemos para alcançá-la”, declarou.

Por sua vez, o rabino David Rosen, diretor do departamento de Assuntos Inter-Religiosos da American Jewish Committee(AJC), começou falando do conceito de peregrinação. “Uma peregrinação é, por definição, muito mais que uma viagem. As palavras hebraicas para peregrinação são 'aliyah a’regel', expressão que significa 'subida a pé”, um conceito que tinha um significado tanto literal como espiritual: literal porque subia-se dos montes de Judeia até o Templo de Jerusalém, e espiritual, ou simbólico, no sentido de subir rumo a Deus.

“Este conceito de peregrinação, de ascensão, é central na visão profética do estabelecimento do Reino dos Céus na Terra, a visão messiânica de paz universal”, completou Rosen.

Rosen retomou ainda um comentário do grande rabino Meir Simcha de Dwinsk, que viveu há um século, falando sobre a diferença entra a paz da arca de Noé e a visão profética de Isaías. No primeiro caso, a paz era a única possibilidade, e na visão de Isaías ela nasce do “conhecimento do Senhor”, surgindo da mais íntima compreensão espiritual e da livre vontade.

“Para muitos no mundo, a paz é uma necessidade pragmática, e isto é verdade”, observou Rosen, mas a paz que os homens e as mulheres desejam é outra: é “subir à montanha do Senhor”, ou “uma idéia de paz como expressão sublime da vontade divina e da imagem divina em que todo ser humano é criado”. 
Homenageando o beato João Paulo II, e expressando gratidão ao seu sucessor Bento XVI, o rabino recordou os sábios do Talmud. “Eles ensinam que a paz não só é em nome de Deus (…) mas também é o requisito indispensável para a redenção”.

Diferente foi o enfoque do secretário geral da Conferência Internacional dos Estudiosos Islâmicos (ICIS) e ex-presidente da Nabdlatul Ulama (NU), o indonésio Kyai Haji Hasyim Muzadi. Sua reflexão começou com a constatação de que “muitos problemas entre os homens nesta terra vêm dos que seguem uma religião”, mas isto não significa “que os problemas que surgem entre os homens que pertencem a uma religião sejam originados pela religião em si”.

Para o expoente muçulmano, o que gera conflitos e tensões é o simples fato de que “as religiões autênticas” “podem ter seguidores que não são capazes de compreender o seu caráter saudável de maneira plena”, uma carência que pode levar “à distorção da religião”. “Toda religião possui identidade própria”, mas “um caráter comum de toda religião é a esperança para a criação de harmonia entre os homens, paz, justiça e prosperidade e um melhor nível de vida”.

Sua receita para chegar “a uma harmonia e coexistência duradouras entre as religiões” é simples: “Não se deveria mudar o que é diferente, nem impor os pontos de vista que não se compartilham”. O delegado muçulmano também abordou o perigo de instrumentalizar a religião. “Nosso dever, como comunidades religiosas, é levar a todos os crentes a liberdade de compreender de verdade o próprio destino, e de corrigir as visões equivocadas das religiões que levam a conflitos sociais”.

A representante dos “não crentes” ou agnósticos, Julia Kristeva, preferiu começar sua reflexão com as conhecidas palavras de João Paulo II: “Não tenhais medo!”. Segundo a filósofa e psicanalista, estas palavras não são voltadas apenas aos crentes, porque incentivavam todos a resistir ao totalitarismo. “O chamamento desse papa, apóstolo dos direitos humanos, nos encoraja também a não temer a cultura europeia, mas, ao contrário, a ousar o humanismo”.

“Diante das crises e das ameaças que se agravam, chegou a idade da aposta”, continuou a francesa de origem búlgara. “Ousamos apostar na renovação contínua das capacidades de homens e mulheres de crer e conhecer juntos, para que no 'multiverso' de vazio, a humanidade possa perseguir ainda o seu próprio destino criativo no longo prazo”, concluiu.

Reproduzido via Amai-vos

O nosso maior pecado é a incoerência


Jesus fala com indignação profética. O Seu discurso dirigido às pessoas e aos Seus discípulos é uma dura crítica aos dirigentes religiosos de Israel. Mateus o recorre cerca dos anos oitenta d.C. para que os dirigentes da Igreja cristã não caiam em condutas parecidas. Poderemos recordar hoje as recriminações de Jesus com paz, em atitude de conversão, sem ânimo algum de polêmicas estéreis? As Suas palavras são um convite para que bispos, presbíteros e todos nós que temos alguma responsabilidade eclesial façamos  uma revisão da nossa atuação.

“Não fazem o que dizem”. O nosso maior pecado é a incoerência. Não vivemos o que predicamos. Temos poder mas falta-nos autoridade. A nossa conduta desacredita-nos. O nosso exemplo de vida mais evangélico mudará o ambiente em muitas comunidades cristãs.

“Carregam fardos pesados sobre os ombros das pessoas… mas eles não estão dispostos a mover um dedo para empurrar”. É certo. Com frequência, somos exigentes e severos com os outros, compreensivos e indulgentes conosco. Angustiamos as pessoas simples com as nossas exigências, mas não lhes facilitamos o acolhimento do evangelho. Não somos como Jesus, que se preocupava em tornar leve a carga pois era simples e humilde de coração.

“Tudo o que fazem é para que as pessoas vejam”. Não podemos negar que é muito fácil viver pendentes da nossa imagem, procurando quase sempre “ficar bem” perante os outros. Não vivemos ante esse Deus que vê no segredo. Estamos mais atentos ao nosso prestígio pessoal.

“Gostam dos lugares cimeiros e das posições honoríficas… e que lhes façam reverências pela rua”. Dá-nos vergonha confessá-lo, mas gostamos. Procuramos ser tratados de forma especial, não como um irmão a mais simplesmente. Há algo mais ridículo que uma testemunha de Jesus procurando ser distinguido e reverenciado pela comunidade cristã?

“Não deixeis que vos chamem mestres… nem guias… porque um só é o vosso Mestre e o vosso Guia: Cristo”. O mandato evangélico não pode ser mais claro: renunciai aos títulos para não fazer sombra a Cristo; orientai a atenção dos crentes apenas para Ele. Por que a Igreja não faz nada para suprimir tantos títulos, prerrogativas, honra e dignidades para mostrar melhor o rosto humilde próximo de Jesus?

“Não chameis Pai vosso a ninguém na terra porque um só é o vosso Pai do céu”. Para Jesus, o título de Pai é tão único, profundo e íntimo que não há de ser utilizado por ninguém na comunidade cristã. Por que o permitimos?

- José Antonio Pagola
Comentário ao Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 23, 1-12, que corresponde ao 31º Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico (30-11-11).
Reproduzido via IHU, com grifos do autor

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Das tecelãs da minha história...

500 autorretratos: Tieman Rapati

Li o texto que segue hoje (30-10-11) cedo - com voz bastante embargada - na missa celebrada por ocasião do Dia Nacional da Juventude (DNJ), em Ponte Nova, Minas Gerais. Para os que não conhecem a festa, trata-se de uma das atividades organizadas anualmente pelas Pastorais da Juventude do Brasil, e que este ano propôs suas reflexões a partir do tema "Juventude e Protagonismo Feminino" e do lema "Jovens Mulheres tecendo relações de vida".

O texto é uma grande memória e uma grande oração, nascida dos sentimentos mais sinceros e profundos deste homem feminista, cristão homossexual (sem nenhuma ambiguidade em nada disto), que tanto aprendeu com as mulheres que o cercaram e cercam, e que, além de ser solidário a elas pela violência que sofrem, se sente também todos os dias violentado pelas opressões decorrentes da desigualdade de gênero.

Publico aqui para outros possam juntar as suas orações à minha, e para que ela fique num registro mais permanente, ainda que sem a carga de emoção e de lágrimas que partilhei com a linda juventude da Região Leste da Arquidiocese de Mariana neste 30 de outubro.


* * *

Ê, Mamãe, abraça eu, Mamãe,
Embala eu, Mamãe,
Tem dó de mim...


Salve juventude! Bom dia a todas! Bom dia a todos!

Quando o pessoal daqui de Ponte Nova me pediu para escrever esta mensagem, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi a seguinte: não estamos falando de protagonismo feminino? Então por que não pedir a uma de nossas jovens que produzisse um texto para encerrar a missa do nosso DNJ? Mas para não parecer que estava fugindo da tarefa, aceitei. E aceitei também porque achei que não tinha nada a ver, né? Querer o protagonismo feminino não significa que vamos fazer os homens todos correrem das igrejas e dos grupos de jovens, querendo que as mulheres tomem a frente de tudo. Há espaço para todos e todas por aqui. É o bonito de ser juventude. Homens também podem ser grandes protagonistas femininos.

E sei lá, acho que eu também não queria perder a oportunidade de falar sobre isso, não... A primeira coisa que me passou pela cabeça foi a de escrever uma mensagem bonita, poética... Mas pensei que tudo o que eu andei até hoje, só andei nesta vida graças às mulheres protagonistas por quem estive cercado. Então, se for pra falar de Protagonismo Feminino, tenho que contar algumas histórias. Peço um pouquinho do tempo e da atenção de vocês pra falar dessas mulheres:

Cassiana, Dona Cassi, benzedeira - minha bisavó. A mulher que teve uma filha "roubada", entregue de presente a um compadre, porque o marido já não queria mais filhas mulheres na família – queria um varão. Anos depois foi que conseguiu correr atrás da filha, e tê-la de volta, principalmente por saber que, aos 12 anos, a menina ainda não tinha sido alfabetizada.

Maria - nome forte, nome da minha avó. Avó que casou jovem e separou-se jovem, perdeu a guarda dos filhos, casou-se novamente, e teve seu marido assassinado. Mudando-se para outra cidade, para trabalhar de empregada doméstica em casa de família rica, engravidou do filho da patroa, e teve que voltar fugida para a sua cidade pequena, com medo de ter o seu filho roubado também.

Neide, minha mãe, que engravidou – de mim – aos 18 anos de idade, e negada pelo namorado, teve que assumir o peso de terminar os estudos, cuidar de um menino recém-nascido (e eu dava muito trabalho), e ainda ver uma cidade inteira lhe virar a cara nas ruas por ser mãe solteira tão cedo.

Rosimeire, minha tia, a ovelha negra da família, mas talvez a única pessoa que tenha me compreendido verdadeiramente até hoje. Dependente química, mulher prostituída, envolvida com tráfico de drogas, brutalmente assassinada por policiais aos 27 anos de idade.

E eu não tenho problema nenhum em contar nenhuma destas histórias.
Porque essas mulheres me amaram, me deram carinho, e me ensinaram a sempre lutar muito na vida para conquistar os meus sonhos. Elas me mostraram o quanto a luta, a garra, a força e a esperança são fundamentais para quem tem desejos e utopias de transformação.

Se hoje eu sou protagonista em alguma coisa, devo isso a estas mulheres.

Se sou protagonista em alguma coisa hoje, é porque não quero que outras tantas mulheres continuem tendo os seus filhos roubados, não quero que tantas outras mulheres sofram sob os desmandos de seus maridos, não quero que outras tantas mulheres sejam vítimas das drogas, que outras tantas mulheres sejam vítimas da violência e do extermínio.

Se sou protagonista hoje, é porque quero continuar a ver sorrisos livres no rosto de cada Maria, Meire, Cassiana, Neide, Dinalva, Flor, Antônia, Lina, Elizabete, Aparecida, Mônica, Yasmin, Janine, Kátia, Fernanda, Lucilene, Iara, Natália, Mirele, Mariana, Franciele, Thaís, Bruna, Daniela...

E eu poderia ficar horas aqui falando de tantas outras, que tanto me ensinaram, de tantas outras jovens mulheres que seguem seu caminho sempre tecendo relações de vida. Mas a gente ainda tem muito DNJ pela frente ainda, não é?

Assim, a mensagem que fica neste dia é que todos e todas podemos ser protagonistas, inspirados no exemplo de tantas jovens mulheres que tanto lutam pela transformação de suas realidades. Jovens mulheres marcadas pelas feridas do machismo, do sexismo, que ainda as expulsa do mundo do trabalho, que ainda explora seus corpos como se fossem mercadoria, que ainda lhes impõe padrões de beleza, que ainda lhes rouba tantas liberdades.

A mensagem que fica neste DNJ é um sonho de transformação, o sonho de um mundo mais igual onde mulheres e homens, negras e negros, povos indígenas, todos e todas tenhamos igual direito à Vida e à liberdade.

Que possamos cantar ao Deus-Pai-Mãe a nossa festa, o nossa sonho e o nosso louvor neste dia!

Por que este dia é nosso, Juventude!

- Murilo Araújo
Ponte Nova, Minas Gerais, 30 de outubro de 2011
Dia Nacional da Juventude
Reproduzido via blog do autor

O Silêncio do Amor


A linguagem é muito fraca para explicar a plenitude do mistério. É por isso que o silêncio absoluto da meditação é de tão suma importância. Não tentamos pensar em Deus, falar com Deus ou, imaginar Deus. Permanecemos naquele silêncio reverente, abertos ao silêncio eterno de Deus. Através da prática e do aprendizado diários, descobrimos, na meditação, que essa é a ambientação natural para todos nós. Fomos criados para isso e, nesse silêncio eterno, nosso ser floresce e se expande.

O “silêncio”, como palavra, entretanto, já falsifica a experiência e, talvez afaste muitas pessoas, por sugerir alguma experiência negativa, a privação do som ou da linguagem. As pessoas temem que o silêncio da meditação possa ser regressivo. Porém, a experiência e a tradição, nos ensinam que o silêncio da prece não é um estado pré-linguístico, mas, pós-linguístico, aquele no qual a linguagem já completou sua tarefa de nos indicar o caminho, através e além dela, e de todo o reino da consciência mental. O silêncio eterno não está privado de nada, nem nos priva de qualquer coisa. Trata-se do silêncio do amor, da aceitação indistinta e incondicional. Ali repousamos com nosso Pai, que nos convida a ali estar, que nos ama por ali estar, e que nos criou para ali estar. [...]

Sabemo-nos amados e, assim, amamos. A meditação se ocupa da complementação desse ciclo de amor. Por meio de nossa abertura para o Espírito, que habita em nossos corações, e que, no silêncio, é amor por todos, damos início à jornada da fé. Chegamos à fé, porque existe sempre um novo começo na dança eterna do estar amando.

- John Main, OSB
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil, com grifos nossos

In WORD MADE FLESH (London: Darton, Longman, 1993), pgs. 29-30.
Tradução de Roldano Giuntoli

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

"O Deus de amor não condena nenhum de seus filhos"


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Nasci católica, numa cultura católica, onde o universo todo também era católico. Fui apresentada, muito cedo, pelo meu avô materno - obviamente católico - a um Deus que não pune, que não frita gente num inferno escaldante, que não se vinga ou sente raiva. Esse Deus do vô João nos protege ao mesmo tempo que nos permite escolher a vida que quisermos ter, com todas as consequências. Ele não é responsável pelo mal mas não nos nega a experiência do mal. Ele não nos nega experiência alguma. E é essa a liberdade linda e divina Dele.

Aos 21 anos, já bem crescida e sabendo bem escolher os frutos do Bem e do Mal, me dei conta de que sou óbvia e intrinsecamente gay. Sempre fui; não virei gay. Antes eu tivesse passado por baixo do arco-íris; teria explicado muita coisa no começo. Mas eu entrei no arco-íris e, como não poderia deixar de ser, com o gênio que tenho, aceitei viver inteiramente o que sou com as consequências que isso pudesse ter. Passei a ser católica e gay, na mesma intensidade, de forma tão primitivamente enraizada na minha personalidade que nunca escolhi ser ou deixar de ser nenhuma delas. Apenas sou.

Graças ao meu vô João, meu Deus de amor foi maior que o inferno que o homem teima em pintar em nome de Deus. Minha criação foi forte o bastante para fazer viver em mim uma semente de fé no que ainda estaria por vir. Me cansei do folclore dos grupos de oração por uns tempos e passei a me aquietar no último banco da igreja, onde ninguém poderia me ver. Isso durou um bom tempo (bom em quantidade. Péssimo em qualidade). Aí sim, virei alguma coisa: um bonsai católico que rezava conforme um folheto de missa, acreditava na mágica da religião mas não vivia a religião profunda e verdadeiramente. Que achava que padres eram homens feitos de outra matéria, muito mais divina, e que sofrer e me resignar me trariam crescimento. Fiz tudo conforme a cartilha, menos me entregar de coração e me religar a Deus.

Um dia, fazendo as unhas e assistindo ao Jornal Nacional, ouvi que o Papa havia comparado o comportamento gay ao desmatamento da Amazônia. Que gays eram uma ameaça tão grave à sociedade como o desmatamento é para o meio ambiente. Que eu, gay por princípio, não por escolha, católica conforme a cartilha, cordeirinho de entrar e sair da igreja sem falar nada, era destrutiva à sociedade. Esta fala do Papa destruiu o meu Natal e eu enviei um e-mail à Arquidiocese do Rio de Janeiro, exigindo uma explicação sobre isso. Dizendo que sou gay e que não tenho problema algum em ser gay, mas que, se a Igreja me criaria problemas em ser católica, que eu deixasse, então, de ser aquilo que já era antes de nascer e que abandonaria por uma restrição da própria Igreja.

Mais uma vez, o Deus que é puro amor mostrou que estava presente na minha vida e que me acompanha sempre, e recebi uma resposta mais do que amorosa. E é neste amor que vivo até hoje.

Ser gay e católica não é um desafio, é um prazer. É ocupar um lugar que é meu por direito e que não há quem possa me tirar dele. Não discuto dogmas, acredito neles. Professo a fé de meus pais como qualquer judaico-cristão faria. Mas não me venham discutir, de humano para humano, o que o meu Deus de amor, que acolhe e recebe a todos, aceita ou repele.

Meu vô João há muito tempo me ensinou que o Deus de amor não condena nenhum de seus filhos.

- Juliana Luvizaro, 31 anos, Padeira Confeiteira.

De que falamos quando falamos de santidade

Van Gogh Sunflower Remix: Qi Wei

Esperando que ainda em tempo, pela proximidade do dia de Todos os Santos, reproduzimos aqui um texto interessante sobre santidade, enviado por um dos membros do nosso grupo.

Sophia de Mello Breyner, naquele conto tão conhecido, «O retrato de Mónica», explica que a poesia é-nos dada uma vez e quando dizemos que não ela afasta-se. O amor é-nos dado algumas vezes, e também se o recusamos ele distancia-se de nós. Mas a santidade é-nos dada todos os dias como possibilidade. E se a recusamos teremos de a recusar todos os dias da nossa vida, porque quotidianamente a santidade se avizinha de nós como possibilidade.

Contudo, fizemos da santidade uma coisa tão extraordinária, abstrata e inalcançável, que quase não ousamos falar dela. De certa forma, habituamo-nos a olhar para a experiência cristã como que acontecendo a duas velocidades: o caminho heroico dos santos e a frágil estrada que é aquela de todos os outros, e por maior razão a nossa. Ora esta conceção de santidade não pode estar mais longe daquilo que a tradição cristã propõe. O Concílio Vaticano II, por exemplo, deixa bem claro: a santidade é vocação mais inclusiva e comum. Mas é preciso entender de que falamos quando falamos de santidade.

Bastar-nos-ia certamente ler as bem-aventuranças. Jesus não declara que os bem-aventurados são os outros, os que não estão ali. Jesus olha para a multidão e começa a dizer: “bem-aventurados vós os pobres”, “bem-aventurados vós os aflitos”, “bem-aventurados vós os misericordiosos”. Que quer isto dizer? Que são, no fundo, as nossas pobrezas, fragilidades, aflições, mansidões, procuras e sedes que dão a substância da bem-aventurança, a matéria da santidade. É naquilo que somos e fazemos, no mapa vulgaríssimo de quanto buscamos, na humilde e mesmo monótona geografia que nos situa, na pequena história que dia a dia protagonizamos que podemos ligar a terra e o céu. Falar de santidade em chave cristã passou a ser isso: acreditar que a humanidade do homem se tornou morada do divino de Deus.

Conta-se que um dia, uma dona de casa quis também criar uma seita, pois não estava disposta a deixar-se ficar atrás dos outros, assistindo ao quotidiano espetáculo da sua proliferação. E decidiu então começar uma seita em que ela e a sua empregada, eram, digamos, os “gurus” e os profetas daquela nova bolha. E, a verdade, é que aquilo começou a ter uma certa importância, e era sempre ela e a empregada, a empregada e ela... Passados uns tempos, vieram os jornalistas entrevistá-la. Escolheram, naturalmente, falar com a dona de casa... e inquiriram: “A senhora está contente?...” – “muito, estou muito contente com a igreja que eu fundei, mas olhem que eu já estou a pensar noutra!”.

- “Já está a pensar noutra?”
- “Sim, acho que tem de haver uma seita em que seja só eu profeta”.

Dizer “santificado seja o Vosso nome” é viver no inconformismo em relação às experiências de Deus que são claramente egóticas e insuficientes. É ter coragem, ter audácia de dizer: “Deus sê Deus em mim. Ensina-me a ser discípulo, fiel à escuta, à sugestão do Espírito, à aprendizagem da Palavra, disponível para as suas implicações históricas. O Teu Nome, ó Deus, é um “não Nome”; é um desafio para me colocar cada dia à escuta do Teu Nome. Que eu não me tranque por dentro num confortável reservatório de certezas, mas olhe com frescura os caminhos, esperados e inesperados, que Tu me apontas...”.

Em Toledo, está escrito à entrada de um mosteiro do século XII: “Não há caminhos, há que caminhar”. Dizer “santificado seja o Vosso nome” é, assim, aceitar sermos peregrinos do Nome de Deus... é tomar para si a condição de Abraão, a condição de todo o povo de Deus que foi peregrino do nome e do rosto de Deus, a condição de Jesus que «não tinha onde reclinar a cabeça», construindo uma história de santidade, e nada mais.

«Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Lv 11,45). O escritor Léon Bloy dizia: «Só há uma infelicidade, que é a de não sermos santos». E, contudo, como o testemunha Sophia de Mello Breyner, a santidade é-nos dada, como possibilidade real, em cada dia: «a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias». É como desafio a uma santidade vivida que também São Cipriano explica este segmento do Pater. Incita ele: «peçamos e imploramos para preservar naquilo que começamos a ser, uma vez santificados no batismo. E peçamos isto em cada dia, pois, de facto, em cada dia estamos necessitados de santificação…Peçamos para que permaneça em nós esta santificação».

A flor do mundo é a santidade. Essa forma de Deus presente em todos os tempos, em todas as latitudes, em todas as culturas. O que salva o mundo é a santidade: ela dá flexibilidade à dureza, torna uno o dividido, dá liberdade ao aprisionado, põe esperança nos corações abatidos, esconde o pão no regaço dos famintos, abraça-se à dor dos que choram e dança com outros a sua alegria. A santidade é um sulco invisível, mas torna tudo nítido em seu redor. A santidade é anónima e sem alarde. A santidade não é heroica: expressa-se no pequeno, no quotidiano, no usual. O pecado é a banalidade do mal. A santidade é a normalidade do bem. Como fica demonstrado neste poema de Maria de Lourdes Belchior:

«Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores (porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não; gastaram palavras,
poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação»

Dizer “santificado seja o Vosso nome” é dizer a Deus: sê inteiro, não deixes que eu Te divida ou diminua, em função do meu egoísmo e dos meus humores... Sê como és, manifesta-Te em mim e na universalidade, manifesta-Te naquilo que é diferente e oposto a mim, naquilo que me contraria. Livra-me de ser um limite para o Teu amor. Que a Tua Santidade, ó Deus, seja uma estrela que caminha à nossa frente, a coluna de fogo que vai diante de nós, o assobio do pastor que nos serve de sinal… Na nossa humildade, somos a tenda onde Deus vai acampando no mundo, e cada dia vamos, num lugar diferente, num modo novo... Como escrevia Santo Agostinho: «A santificação do Nome de Deus é a nossa santificação». Os crentes não são gestores de uma empresa externa: são servidores e viajantes, nómadas e enamorados peregrinos, leitores e ouvintes, adoradores…

- José Tolentino Mendonça
In Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas
Reproduzido via site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Português)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Finados, o Pai bondoso acolhe seus filhos no colo do Amor

Imagem daqui

Quando Jesus chegou a Betânia encontrou Lázaro sepultado havia quatro dias. Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém. Muitos judeus tinham vindo à casa de Marta e Maria para as consolar por causa do irmão. Quando Marta soube que Jesus tinha chegado, foi ao encontro dele. Marta ficou sentada em casa. Então Marta disse a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido, mas . Mas mesmo assim eu sei que o que pedires a Deus, ele te concederá”. Respondeu-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. Disse Marta: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Então Jesus disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, Mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês isto?” Respondeu ela: Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus, que devia vir ao mundo”. Jo 11, 17-27)

Lagartas de diversos tamanhos e idades residiam naquele bonito jardim. A manhã nem chegara quando as mais novinhas notaram que suas irmãs mais velhas agora viviam em casulos. Acharam gozado aquilo continuando a conviver com elas. Contavam casos, riam brincavam e até tratavam das coisas sérias da família. Num dia da primavera as folhas pareciam ainda mais apetitosas e foi então que essas jovens comeram mais do que deviam. Com as barrigas estufadas foram dormir. Tiveram pesadelos e perderam a hora. Ao despertar tiveram outra surpresa. Os casulos estavam vazios. Suas irmãs haviam morrido. Choraram, colheram flores enfeitando-os e no final da tarde fizeram o enterro. As borboletas, assistindo tudo lá do alto, não conseguiam compreender o porquê de tanta tristeza.

“Lázaro, vem para fora!” Assim contemplamos Jesus, na continuidade do Evangelho que Mateus nos conta hoje, festa dos irmãos mortos. O Senhor, envolto em toda a tristeza causada pela partida do amigo, chama-o para que deixe a sepultura. Certamente que este é também o apelo que cada um de nós gostaria de fazer diante de tumbas das pessoas queridas. Fato é que podemos até tê-lo feito em algum momento, mas sem resultados perceptíveis aos sentidos.

Que não se fique surpreso pela falta de resposta a esse tipo de chamado. Eles não nos respondem, por mais fé que possamos ter ao convocá-los, porque já ouviram esse convite e com toda certeza o atenderam. O próprio Cristo os chamou, ou nos esquecemos que Ele é o Bom Pastor que sabe cuidar das suas ovelhas? Do escuro no qual os colocamos eles logo saíram para se colocar diante da luz infinita de Amor da Trindade Santa.

Um dia após a festa de Todos os Santos celebramos nossos mortos. Não seria esta uma única festa em dois dias consecutivos? Parece que sim. Afinal, como vimos ontem, todos somos santos, eis que santo é também todo aquele que é de Deus e busca fazer sua vontade. Nossos entes queridos fizeram o bem, que é a vontade do Pai e por isto se inserem nessa condição. Mesmo que, por uma série de motivos, não tenham tido acesso ao seguimento explícito de Jesus. Importa que tenham amado, pois esta é a medida através da qual seremos notados na eternidade.

Finados é dia em que os cemitérios estão cheios com as homenagens que muitos vão prestar para seus mortos. É bonito ver esses tributos, mas importa também reparar que nossas “lagartas” já se tornaram eternas e lindas borboletas, tendo voado rumo ao colo do Pai. A casca que nos deixaram (cinzas em pequenas urnas e ossos nas sepulturas) nos remete a eles, mas há que se reverenciá-los não só nessa situação, mas principalmente nos exemplos, momentos alegres de convivência, carinho e afeto. Da mesma forma que há cristão que parece só ter olhos para o Jesus da paixão e morte, há pessoas que parecem se ligar apenas nos últimos momentos dos seus amados.

É possível que no momento em que um ente querido partiu, ele não estivesse trajando a “roupa de festa” adequada para se postar diante de Deus. Então, de forma alguma porque Papai Deus o vá expulsar (dá para imaginar um Pai todo Amor que expulse seu filho de perto?), mas porque é ele que se sente mal com aquela “veste” suja ou rasgada, que opta por se afastar para uma purificação, costurar roupas novas e voltar bonito e preparado à festa da presença amorosa do Criador. É dessa forma que precisamos compreender o sentido do purgatório.

O inferno, diante do Amor infinito de Deus deve ser considerado como uma possibilidade. Afinal se há o bem absoluto e somos criados na liberdade, existirá obviamente a probabilidade da não aceitação da bondade total. É verdade que há que se ser muito bruto e ignorante para negar plenamente o Amor e a Misericórdia infinitas. E pensando bem, mesmo com toda bruteza e ignorância, negar o bem total é loucura. Dá para imaginar alguém em sã consciência a dizer não para a bondade e misericórdia infinita? Só alguém louco agirá assim e se é doido, não terá cometido nenhum pecado, estando também no colo do Papai Deus.

O dia de finados é tempo propício para meditarmos sobre a ressurreição. Dia para se tomar mais consciência do céu como nosso fim e do inferno como possibilidade. A verdade é que somos todos, a partir do momento no qual fomos gerados, “condenados” à eternidade. Nesse futuro que não mais se acabará o céu da bondade e acolhimento de Deus é o destino para o qual seguimos.

- Fernando Cyrino
Reproduzido via Amai-vos

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Jean Wyllys fala sobre o casamento civil homoafetivo

Entrevista muito esclarecedora do deputado no programa Palavra Aberta da Tv Câmara.




:)


Rodolfo Viana

A arte de desaprender

Foto: Corrie White

Apresentou-se à porta do convento um médico interessado em tornar-se frade.

O prior encarregou o mestre de noviços de atendê-lo.

— Caro doutor — disse o mestre — o prior envia-lhe esta lista de perguntas. Pede que tenha a bondade de respondê-las de acordo com os seus doutos conhecimentos.

O jovem médico, acomodado no parlatório, tratou de preencher o questionário. Em menos de uma hora devolveu-o ao mestre. Este levou o papel ao prior e retornou 15 minutos depois:

— O prior reconhece que o senhor demonstra grande conhecimento e erudição. Suas respostas são brilhantes. Por isso pede que retorne ao convento dentro de um ano.

O médico estampou uma expressão de desapontamento:

— Ora, se respondi corretamente todas as questões — objetou — por que retornar dentro de um ano? E se eu tivesse dado respostas equivocadas, o que teria sucedido?
— O senhor teria sido aceito imediatamente e, na próxima semana, já estaria entre os noviços.
— Então, por que devo retornar em um ano?
— É o prazo que o prior considera adequado para que o senhor possa desaprender conhecimentos inúteis.
— Desaprender? — surpreendeuse o médico.
— Sim, desaprender. Entrar na vida espiritual é como empreender uma viagem: quanto mais pesada a bagagem, mais lentamente se cobre o percurso. Na sua há demasiadas coisas substantivamente inúteis.

E o doutor partiu sob promessa de retornar dentro de um ano, o que de fato sucedeu.

Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender. Quantas importantes inutilidades valorizamos na vida! Quantos detalhes sugam nossas preciosas energias e consomem vorazmente o nosso tempo! Quantas horas e dias perdemos com ocupações que em nada acrescentam às nossas vidas; pelo contrário, causam-nos enfado e nos sobrecarregam de preocupações.

Precisamos desaprender a considerar os bens da natureza produtos de uso próprio, ainda que o nosso uso perdulário se traduza em falta para muitos.
Desaprender a valorizar um modelo de progresso que necessariamente não traz felicidade coletiva e uma economia cuja especulação supera a produção.
Desaprender a olhar o mundo a partir do próprio umbigo, como se o diferente merecesse ser encarado com suspeita e preconceito.

O desaprendizado é uma arte para quem se propõe a mudar de vida.
Nessa viagem, quanto menos bagagem e mais leveza, sobretudo de espírito, melhor e mais rápido se alcança o destino. Vida afora, carregamos demasiadas cobranças, mágoas, invejas e até ódios, como se toda essa tralha fizesse algum mal a outras pessoas que não a nós mesmos.

O que nos encanta nas crianças com menos de 5 anos é a interrogação incessante, o interesse pela novidade, o espírito despojado. Era isso que sinalizou Jesus quando alertou a Nicodemos ser preciso nascer de novo, sem retornar ao ventre materno, e tornar-se criança para ingressar no Reino de Deus.

O médico candidato a noviço comprovou ser bem informado, mas ignorava a distinção entre cultura e sabedoria. Soube elencar as mais célebres telas da pintura universal, sem no entanto ter noção do que significam e por que o artista fez isto e não aquilo. Conhecia todas as doenças de sua especialidade, sem a devida clareza de como se relacionar com o doente.

A humanidade não terá futuro promissor se não desaprender a promover guerras e a considerar a pobreza mero resultado da incapacidade individual. Urge desaprender a valorizar o supérfluo como necessário e a ostentação como sinal de êxito. Desaprender a perder tempo com o que não tem a menor importância e a se dedicar mais nos cuidados do corpo que do espírito.

A vida espiritual é um contínuo desaprender de apegos e ambições, vaidades e presunções. A felicidade só conhece uma morada: o coração humano. Eis aí milhões de viciados em drogas a gritar a plenos pulmões terem plena consciência de que a felicidade resulta de uma experiência interior, de um novo estado de consciência. Como não aprenderam a abraçar a via do absoluto, enveredaram pela do absurdo.

E convém aprender: no amor mais se desaprende do que se aprende.

- Frei Betto
Reproduzido via Conteúdo Livre

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A ostensiva onipresença da homofobia

Foto daqui

A violência homofóbica está em todos os lugares. Em nossas próprias casas, em nossas famílias, na escola, no trabalho, na rua, pode estar em um ônibus, no cinema, no teatro, na praia ou em uma caminhada pelo calçadão. A violência homofóbica tem muitas formas e graus de expressão e não tem alvo certo. Como toda violência, torna-se descontrolada e, incontrolável, atinge qualquer um, em qualquer lugar e sob qualquer circunstância. A homofobia é um monstro cruel e de muitas faces - uma criatura implacável, de muitos braços, muitas pernas e muitas cabeças – vazias ou cheias de questões mal resolvidas, de ordem sexual, psicológica e social, perpassa todas as classes, todas as instâncias, tem muitas habilidades e acha até que pode ficar invisível, passar despercebida. Não, não fica. Ela passa despercebida apenas aos mais desavisados. Para nós, seus alvos preferidos, mas não exclusivos, ela é bem chamativa, feia e assustadora.

E, sim, temos medo. Muito medo. Não um medo infundado, paranóico, inventado ou apenas suposto. Nosso medo é muito concreto e nos chega através de palavras violentas, cerceamentos, sangue, dentes arrancados, carne rasgada, órgãos esmagados e ossos quebrados, quando não com a cara da morte. Mas depois tudo se transforma em estatística. E eu quero rostos, quero vozes, quero histórias. Eu quero ver a gente que só quer amar. Quero ver as pessoas que por ousarem ser quem são, foram agredidas, apanharam e sobreviveram. Quero ver como carregam suas dores. Quero ver como andam pelo mundo, como caminham entre as gentes. Como olham para o mundo, o que pensam. Quero que nos digam por quais transformações passaram. Quero que venham a público falarem de seu enfrentamento cotidiano do medo, do rancor, do constrangimento, da vergonha, da raiva, da sensação de impotência. Todas essas coisas que ninguém quer ver, das quais ninguém quer saber.

A violência que sofremos nos chega sob tantas formas e por tanto tempo. Quando cada caso de agressão, de desrespeito, de morte, de ofensa de negação de direitos termina em apenas um apanhado de números. Quando anúncios espalhados em outdoors dizem que não deveríamos existir. Quando todos nos dizem quem podemos ou não amar. Quando por toda nossa infância, adolescência e juventude nos cobram a respeito de quem namoramos. Quando não podemos ser quem somos no trabalho. Quando temos de esconder quem somos na escola. Quando somos perseguidos na vizinhança, na família, no colégio, na faculdade. Quando procuram e propõem nossa cura. Quando não podemos beijar livremente quem amamos nas ruas. Quando andar de mãos dadas se torna uma temeridade. Quando mesmo um falar ao telefone precisa ser cercado de cuidados e disfarces. Quando nos apontam por nossas roupas, quando somos as personagens principais de piadas caricaturais, ofensivas, que ridicularizam e estigmatizam.

Em todos os modelos de vida e janelas para o mundo, seja na TV, em filmes, revistas ou qualquer outro meio, se não somos estigmatizados ou esmagados pela heteronormatividade, sofremos, no mínimo, omissão. Desde muito cedo, de lembranças imemoriais, nos ensinam que somos um erro, um pecado, uma doença, uma abominação, uma aberração, uma perversão ou quaisquer outros dos tantos nomes com os quais se esmeram em nos rotular. Por tudo isso, é surpreendente que resistamos tanto a tantas intimidações, sem nos tornarmos pessoas absolutamente inseguras, vulneráveis e de baixíssima auto-estima. É incrível superarmos tanta estigmatização e não aceitarmos viver segregados. É de uma força admirável que consigamos construir relações afetivas saudáveis, vidas profissionais de sucesso, carreiras sólidas, amizades duradouras e constituir família. É fantástico não enlouquecermos, não sucumbirmos à opressão que nos é imposta desde nossa mais tenra idade, sem data para término e por todos os dias de nossas vidas. É absolutamente admirável nosso enfrentamento diário e mais ainda por se dar entre risos, danças, amores, alegria e uma inabalável crença em um futuro melhor. Sim, termine de ler este texto, corra para o espelho, se olhe bem nos olhos, olhe bem mesmo, fixamente, e vá lá, você tem todo o direito de dizer: eu sou foda!

- Ivone Pita
Reproduzido via Politicativa, no Gay1

O Supremo e a Igreja

Foto: STJ

Pegando carona na aprovação do casamento civil pelo STJ para um casal de gaúchas na semana passada (saiba mais aqui), aproveitamos para reproduzir um artigo de Luís Correa Lima, S.J., acerca da decisão do STF, em maio deste ano, a favor da união estável homoafetiva.

De agora em diante, a união homoafetiva é família no direito brasileiro. Esta é a decisão do Supremo Tribunal Federal, desde que sejam atendidos os requisitos exigidos para a formação da união estável entre homem e mulher. Os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis, estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Isto repercute na vida das pessoas e das instituições, encorajando a visibilização da condição homossexual.

Dentre os que se manifestaram contra esta decisão, está a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). A entidade considera a família monogâmica, fundada na união entre o homem e a mulher, como um princípio fundamental de direito natural. Equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família, descaracterizaria a sua identidade e ameaçaria a estabilidade da mesma.

Pode parecer que o pronunciamento da CNBB apenas repete a histórica oposição da Igreja Católica ao movimento LGBT. Ao contrário do senso comum, existem elementos de convergência entre a decisão do Supremo e a doutrina da Igreja. Um documento do Vaticano, de 2003, trata do reconhecimento civil da união entre pessoas do mesmo sexo. Ele se opõe à equiparação desta forma de união àquela entre homem e mulher, bem como a mudanças no direito familiar neste sentido. No entanto, o Vaticano afirma que se podem reconhecer direitos decorrentes da convivência homossexual. Alguns bispos brasileiros se manifestaram individualmente a favor destes direitos, mas frisando que não se deve considerar a convivência homoafetiva como família.

Este passo é muito importante. Se não houver nenhum reconhecimento social ou proteção legal às uniões homoafetivas, a homofobia presente na sociedade vai pressionar os gays a contraírem uniões héteros, para fugirem de um preconceito que é muito forte. Isto já acontece há séculos, traz muito sofrimento e precisa parar. O sacramento do matrimônio nestas circunstâncias é inválido. É preciso que os fiéis saibam disto. O casamento tradicional não é, de modo algum, solução para a pessoa homossexual.

Convém recordar que a família tem mudado bastante ao longo da história. Na Antiguidade romana, ela era o conjunto das propriedades de alguém, incluindo escravos e parentes. Família vem de ‘famulus’, que significa escravo doméstico. No mundo bíblico, a mulher era propriedade do marido ou do pai, assim como a casa, o escravo e o jumento (Êxodo, 20). O casamento era um acordo entre chefes de família, prescindindo do consentimento dos cônjuges. O homem podia ter mais de uma esposa, e a função dela era gerar descendentes para a família do marido. Caso a esposa ficasse viúva e sem filhos, ela teria que se casar com o cunhado para cumprir esta função.

Por volta do século XII, a cristandade ocidental introduziu o consentimento conjugal como condição necessária para a validade do casamento. No Brasil colonial, a idade mínima para o casamento era de 12 anos para as mulheres e de 14 anos para os homens. Isto hoje é inadmissível. O modelo patriarcal de família declinou em todo o mundo no século passado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabeleceu o livre consentimento dos cônjuges e também a igualdade de seus direitos no casamento. A Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II, louva as nações que promovem a igualdade de direitos do homem e da mulher na sociedade. A CNBB promoveu em 1990 uma Campanha da Fraternidade voltada para a igualdade de gênero, com o lema “mulher e homem: imagem de Deus”.

No longo prazo, portanto, é muito grande a mudança na configuração familiar e no papel de seus membros. Este processo continua. Na sociedade civil está se ressignificando o conceito de família, de modo a incluir as uniões homoafetivas. O casamento religioso, por sua vez, continua fortemente enraizado na heteronormatividade da tradição judaico-cristã. Mas em países escandinavos e em regiões onde as uniões homoafetivas são comuns, Igrejas como a Anglicana e a Luterana realizam bênçãos para estes conviventes, embora distinguindo estas uniões do casamento. As mudanças na tradição não são impossíveis de acontecer, trazendo novas compreensões e a aplicações da chamada lei natural. Mas é difícil saber o que vai permanecer, o que vai mudar e quanto tempo vai levar.

Uma nova questão vai surgir para as igrejas no Brasil: lidar com as crianças criadas por casais homoafetivos. O número delas deve aumentar devido ao crescente reconhecimento destas uniões. Os bispos católicos norte-americanos se depararam com esta questão em 2006. Eles se posicionaram contra a homoparentalidade. Mas aceitam que as crianças sejam batizadas desde que possam ser educadas na fé da Igreja. Convém considerar sempre o que for melhor para a criança.

- Luís Corrêa Lima
Padre jesuíta, historiador e professor da PUC-Rio.
Artigo publicado originalmente no site do CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos), em 02-06-11.
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