sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O ícone e a caricatura


O ícone é um tipo de pictografia que se distingue de outras por ser um caminho de contemplação dos mistérios de Deus, a exemplo da Trindade e da Encarnação. A contemplação através de ícones é uma tradicional forma de oração e degustação do divino, sobretudo na tradição ortodoxa cristã. O encontro de Deus através de uma imagem visa a um encontro autêntico com a identidade divina sem o uso de palavras ou conceitos. Há, então, um duplo paradoxo. Eis o primeiro paradoxo desse meio de expressão: apesar do uso de imagens, ele tem em vista uma superação destas imagens para o acesso ao mistério de Deus. Outro elemento paradoxal é que tal degustação não fica estacionada numa percepção sensorial, mas busca uma experiência totalizante, cuja centralidade, aí sim, pode reverberar no emocional.

Num extremo antagônico a este temos a arte evanescente da caricatura. Se o ícone evoca o mistério absoluto, a caricatura foca a relatividade da esfera do cotidiano como se fosse uma crônica do dia-a-dia sob forma visual. A charge, como exemplo de caricatura, serve para relativizar e satirizar o que se apresenta como “poder” e “verdade”. Nos jornais, ela nos faz pensar sobre determinadas situações de modo simples e espirituosamente incisivo. Neste processo interpretativo, cabe acompanhar as notícias e saber do assunto nela tratado, frequentemente sobre situações políticas ou de nosso cotidiano.

Logo, na caricatura, tudo evoca o que há de mais relativo; enquanto no ícone, o que há de mais absoluto. Um estilo é o oposto do outro. Há uma diferença na técnica do caricaturista e do iconógrafo. Ademais, com metodologia e objetivos distintos entre si, caricatura e ícone apresentam duas abordagens imagísticas diferentes do real. Sobre isso, há de se considerar que ambas dessas abordagens não se pretendem um acesso nítido do real. O mistério e o cotidiano não são realidades constatáveis por meio de instrumentos empíricos de análise.

Não se encontram em ambas as artes uma postura objetiva à maneira de um espelho, que refletiria exatamente a realidade tal e qual. As interferências do inconsciente e dos valores de cada um são matérias-primas do iconógrafo e do caricaturista em suas ânsias por revelação.

Assim, uma separação muito rígida entre o ícone e a caricatura, além de estreitizante, seria infiel à rica dinâmica dessas duas expressões artísticas. Caso fossemos fortemente estanques em nossa vida cultural e pessoal, iríamos provavelmente aprisionar o ícone numa catalogação dos “meios contemplativos”, excluindo o mistério de modos alternativos (alter-natura) de manifestação, o que seria um contracenso. Do mesmo modo, o caricaturista deveria ser franqueado a expressar a sua espiritualidade, mesmo que seja por uma via irônica, ou seja, pela ironia diante de teologias que se arrogam ahistóricas, colocando uma gravidade e seriedade sobre Deus, que nos impediria de concordar com a afirmação de Nietzsche: “Eu somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar”.

Talvez tenhamos apenas caricaturas do divino. Deveríamos deixar de pretender explicar a Deus. Deus é o semper maior da tradição agostiniana e inaciana. Ainda que seja estranho conectar este semper maior com a caricatura e não com o ícone, usualmente associado à contemplação. Entendo que, paradoxalmente, a caricatura também pode servir a esse mote, pois Deus está além de nossa capacidade de acesso a ele.

Renunciar a isso, também poderia nos ajudar a entender as produções teológicas como produtos culturais, e assim mais próximos de discursos caricaturais sobre o seu mistério. Afinal, discursos que se apresentam como sendo descrições objetivas do mistério, além de pretensiosos e equivocados, não se abrem para as interpretações que discordam.

- Marcelo Barreira
Doutor em filosofia pela Unicamp e professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Reproduzido via IHU

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O que acontecerá com @s filh@s de casais “diferentes”?

Windoodles: Garrett Miller

Não sei o que acontecerá com crianças que serão criadas por casais LGBT, eu sei o que já está acontecendo! A criança criada por pais homossexuais ou transgêneros aprende desde cedo, que é tudo muito natural e, claro a relação com seus pais e/ou mães assim também o é. É a família que ela conhece e ama. Ela não julga, não acha errado, não vê coisa alguma de mais (nem de menos!). Ela tem orgulho del@s e assim é feliz. É como quando temos um pai e uma mãe heterossexuais. E mesmo quem não é filho de casais homossexuais, mas tem um tio, uma tia ou amig@s da família, cresce refletindo sobre a diversidade. Quando pessoinhas desagradáveis – para dizer o mínimo - dizem que a mãe é sapatão e o pai é viado, apontando isso como um demérito, como uma falha, como uma aberração, os pais normalmente explicam tudo direitinho – que o problema é dos outros! – e avisam e preparam os filhos para o que eles vão enfrentar. E quem, na infância ou na adolescência, nunca sofreu pelos amigos dizerem coisas horríveis, inclusive sobre nossos pais? Tudo depende de como somos preparados para o enfrentamento e de como nossos pais nos apóiam. E isso serve para qualquer constituição familiar.

Há apenas algumas décadas havia um grande alarde sobre como filhos de casais inter-raciais enfrentariam tal situação e que este seria um problema imenso. E, então, claro, os conservadores – novamente para dizer o mínimo – de plantão, logo se arvoravam de defensores de todas as crianças do mundo e se posicionavam contra relações inter-raciais. Imagine, então, uma criança negra filha de pais brancos ou uma criança branca filha de pais negros?! Isso seria, certamente, traumático para a criança. Como adultos iriam impor isso a criaturas tão indefesas e que não escolheram isso?! Foram os pais que traçaram tal destino para a pobre criança (Como se todos nós escolhêssemos os pais que queremos ter e jamais sofrêssemos agressões por causa deles e das mais variadas – pais gordos, pais velhos, pais baixos, pais carecas e mais uma infinidade de bobagens). Mas, claro, tais autointitulados baluartes da família “natural” não eram racistas, pensavam somente no bem da criança! Exatamente como fazem agora: eles não têm nada contra os LGBTs, preocupam-se somente com as criancinhas do Brasil. Por isso nos tratam tão bem, com tanto respeito e consideração, a questão é somente a criança. Ora, basta olhar para o que houve nestes anos. Claro que houve agressões por questões de racismo e, ainda hoje, por mais absurdo que seja, ainda acontece, mas todos vão muito bem, obrigada.

Aqui na cidade do Rio de Janeiro, há escolas em que dependendo se é dia dos pais ou das mães, os alunos levam dois ou nenhum presente para casa. Simples assim. Sem traumas. Ninguém morre ou surta por isso. Na reunião de pais, revezam dois homens ou duas mulheres. Ao chegarem à escola, estes alunos são deixados por seus pais e/ou suas mães, todos sabem quem é quem e todos convivem muito bem, harmoniosamente e às claras. E há muito mais acontecendo neste sentido do que alguns imaginam e acontece assim, desta forma tranquila e agora, em nossos dias. Acho que esta discussão, inclusive, já deveria ter sido superada, pois todos sabem – exceto se a criatura tiver passado as últimas décadas em uma caverna no aconchego do centro da Terra! - que o casal não determina a sexualidade da criança e que o fato da constituição familiar não estar alinhada aos moldes conservadores, não impede um lar amoroso e uma vida saudável. Devemos, portanto, lutar contra as possíveis discriminações e nunca – jamais! – permitir o impedimento ao amor, ao afeto, à família. E por isso devemos nos unir e lutar cotidianamente: por nosso direito à felicidade, não somente a minha e a sua, mas a de cada um de nós tão diferentes e tão iguais em desejos.

- Ivone Pita
Publicado originalmente no Gay1 - Politicativa

Católicos "independentes''


Duas expressões de Bento XVI em sua visita de quatro dias à Espanha, que terminou neste domingo, evidenciam o diagnóstico que a hierarquia católica faz sobre a situação do catolicismo no mundo: a religiosidade, a relação com Deus, o catolicismo em particular, se vive cada dia mais à margem da Igreja, fora da instituição eclesiástica e, por acréscimo, sem atender às suas normas e determinações. Na Espanha o Papa falou, primeiro, de um “eclipse de Deus”. “Em nosso mundo moderno – disse – constata-se uma espécie de eclipse de Deus, uma certa amnésia, um verdadeiro rechaço do cristianismo”. Na realidade, mais que rechaço à experiência de Deus, em termos gerais, estava se referindo a um “eclipse” que afeta a Igreja católica em sua institucionalidade.

Bento XVI assumia em público e diante das multidões o mesmo dado assinalado aqui em Buenos Aires na semana anterior pelo grupo de “Padres da Opção pelos Pobres” quando, no documento de seu encontro nacional anual, usaram o conceito de “inverno eclesial”, do teólogo Karl Rahner, para qualificar o momento atual da Igreja. Palavras similares foram usadas pelo sacerdote Luis Farinello nos últimos dias em um programa de rádio assinalando que os seminários “estão vazios”, não há vocações sacerdotais, “os padres não são suficientes nem para celebrar missa” enquanto, disse, “continuamos a impedir às mulheres o acesso ao sacerdócio”.

Ao Papa, assim como à maior parte da hierarquia católica, incomoda a ideia dos “católicos independentes”, uma realidade que se multiplica no mundo, também nos países de maior tradição católica. Por isso, ao se despedir de Madri, Bento XVI pediu aos jovens para que não sigam a Jesus “de maneira solitária”. Porque, disse-lhes, “quem cede à intenção de ir ‘por sua conta’ ou de viver a fé segundo a mentalidade individualista que predomina na sociedade, corre o risco de nunca encontrar Jesus Cristo ou de acabar seguindo uma imagem falsa”. Qual pode ser a “imagem falsa” segundo Bento XVI? Seguramente, a que se opõe à “imagem verdadeira” que, supostamente, é aquela sustentada e legitimada pela institucionalidade da Igreja católica através de sua hierarquia.

Pode-se dizer que o Papa não erra o seu diagnóstico. Não há um avanço do ateísmo ou do agnosticismo no mundo, mas um abandono crescente da institucionalidade religiosa, porque as pessoas já não reconhecem a mediação da Igreja – de suas normas, suas formas e seus ritos – para vincular-se com Deus, um ser transcendente que se apresenta na vida de diferentes formas e não apenas através da representação católica, como tampouco de outras instituições eclesiásticas. A religiosidade se vive hoje com maior liberdade e de maneira desinstitucionalizada.

Mas para o Papa, não atender aos ensinamentos da Igreja equivale a “excluir Deus”. E na mesma visita à Espanha, diante de um auditório festivo, juvenil e massivo, insistiu na defesa do celibato sacerdotal e não desceu nem um pouquinho nas normas eclesiásticas sobre matrimônio e família. Pediu aos jovens que sejam “testemunhas”, que deem testemunho de sua fé, mas nada se ouviu sobre os “pecados” da Igreja: a pedofilia, os abusos institucionais, o autoritarismo, a repressão interna.

Bento XVI é uma fiel manifestação de uma instituição eclesiástica católica que – como dizem os Padres da Opção pelos Pobres – “nega” em sua prática as aberturas e a vocação de diálogo com a história e o mundo impulsionadas pelo Concílio Vaticano II há mais de 50 anos.

Mas também é inegável que, como ocorreu agora na Espanha, o Papa – como fato religioso, mas também de espetáculo e atração turística – segue congregando multidões. Os organizadores da festa juvenil espanhola asseguram que a última concentração na base aérea de Quatro Ventos, em Madri, reuniu um milhão e meio de pessoas de 193 países. A polícia espanhola também fala de mais de um milhão de participantes. Não menos certo é que para estas atividades, como a Jornada Mundial da Juventude, criada por João Paulo II no seu afã de se aproximar dos jovens, o Papa busca “refúgio” nos países onde ainda permanece a maior densidade de católicos. Por isso, também o anúncio de que a próxima Jornada Mundial da Juventude católica se realizará em 2013 no Rio de Janeiro, com um ano de antecedência em relação à data fixada inicialmente, para não coincidir com a Copa do Mundo de Futebol, que também se realizará neste país sul-americano em 2014.

- Washington Uranga, jornalista argentino
Publicado originalmente no jornal Página/12
Tradução do Cepat, reproduzida via IHU

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Casamento e casamentos


Bello Maasaba, curandeiro nigeriano de 87 anos, já casou em rito muçulmano com 107 mulheres.

Descontadas nove que já morreram e 12 que repudiou em divórcio, ele coabita com 86, de idades que vão de 19 a 64 anos.

Dos 185 filhos, sobrevivem 133; o caçula nasceu em abril último.

Embora excepcional, a família Maasaba é exemplo válido de uma instituição universal, o casamento fértil, processo natural de regeneração biológica e estabilidade social humana; sem tal casamento, não teríamos evoluído até aqui.

Igualmente próprio de toda sociedade humana é o status superior da mãe casada em relação às mulheres que, tenham filhos ou não, sejam descasadas, solteiras ou mesmo viúvas. À parte méritos ou deméritos, justiça ou injustiça, fato é que, considerada apenas em si, a maternidade dignifica a mulher.

Alfred Korzybski (1879-1950) recomendava que certos termos fossem distinguidos por "índices"; isto é, qualificativos numéricos ou de data, para evidenciar nuances de significado. Por exemplo, casamento1950 e casamento2011.

O uso dos "índices" não vingou, faltou-lhes necessária validade prática. Mas, sem extrapolar o julgamento da "semântica geral" inventada por Korzybski, há evidente procedência na distinção.

Isoladamente, o termo casamento evoca modelo algo idílico: jovem casal que pactua colaborar na formação de uma família, sabedor dos sacrifícios concomitantes e animado por pouco mais que o prestígio inerente a tal responsabilidade.

Korzybski talvez categorizasse tal instituição como casamento1.

Genericamente, casamentox é um contrato que, em sociedades monógamas, confere a duas pessoas status legal distinto, decorrente de certos direitos e deveres mútuos livremente assumidos por elas. Cabe ao Estado, em seu papel de garantidor de contratos, formalizar a validade diversificada dessa realidade civil.

Isto é, reconhecer não apenas casamento1, mas também casamento2, casamento3 e casamentoetc. (Korzybski recomendava o etc. para tais indeterminações.)

Afinal, nestes novos tempos, de novos costumes e de recursos contraceptivos, muito mais gente casa sem ser jovem nem ter propósitos de procriação.

Por que não admitir, afora casamentoxy, também categorias de casamentoxx ou casamentoyy para legalizar uniões hoje interditas à perseguida minoria homossexual? A relutância legislativa em codificar "de jure" tal situação "de facto" configura mais uma das contumazes prevaricações do Congresso.

Intimidado, no caso, por vociferações da direita bíblica. (Embora a reprovação do lesbianismo pareça ambígua em Romanos 1-26, a sanção de Levítico 20:13 é explícita: morte aos homens homossexuais.)

Mas se caducas prescrições do Levítico valessem hoje, seria legal comerciar escravos (e escravas, tabeladas a preços de 40% a 50% inferiores). Seria ilegal consumir frutos do mar, camarão e presunto. E seria proibido -atenção, moçada- adornar o corpo com tatuagem.

- Aldo Rebello
Ex-editorialista e colaborador especial da Folha de S. Paulo
Reproduzido via Conteúdo Livre

Ética e Amorosidade

Foto: Qi Wei

Ao longo da história, normas de conduta ética derivaram das religiões. Deuses e seus oráculos prescreviam aos humanos o certo e o errado, o bem e o mal. Forjou-se o conceito de pecado, tudo aquilo que contraria a vontade divina. E injetou-se no coração e na consciência dos humanos o sentimento de culpa.

Cada comunidade deveria indagar aos céus que procedimento convinha, e acatar as normas éticas ditadas pelos deuses. Sócrates (469-399 a.C.) também fitou o rumo do Olimpo à espera dos ditames éticos das divindades que ali habitavam. Em vão. O Olimpo grego era uma zorra. Ali imperava completa devassidão.

Foi a sorte da razão. E o azar de Sócrates; por buscar fundamentos éticos na razão foi acusado de herege e condenado à morte por envenenamento.

Apesar da herança filosófica socrática contida nas obras de Platão e Aristóteles, no Ocidente a hegemonia cristã ancorou a ética no conceito de pecado.

Com o prenúncio da falência da modernidade e a exacerbação da razão, o Ocidente, a partir do século 19, relativizou a noção de pecado. Inclusive entre cristãos, bafejados por uma ideia menos juridicista de Deus e mais amorosa e misericordiosa.

Estamos hoje na terceira margem do rio... Deixamos a margem em que predominava o pecado e ainda não atingimos a da ética. Nesse limbo, grassa a mais deslavada corrupção. O homem se faz lobo do homem.

Urge chegar, o quanto antes, à outra margem do rio. Daí tanta insistência no tema da ética. Empresas criam códigos de ética, governos instituem comissões de ética pública, escolas promovem debates sobre o assunto.

Basta olhar em volta para perceber a deterioração ética da sociedade: o presidente galardeado com o Nobel da Paz promove guerras; crianças praticam bullying nas escolas; estudantes agridem e até assassinam professores; políticos se apropriam descaradamente de recursos públicos; produções de entretenimento para cinema e TV banalizam o sexo e a violência.

Já que não se pode esperar ética de todos os políticos ou ética na política, é preciso instaurar a ética da política. Introduzir na reforma política mecanismos, como a Ficha Limpa, que impeçam corruptos e bandidos de se apresentarem como candidatos. Estabelecer mecanismos de rigoroso controle e eventual punição (como a revogação da mandatos) de todos que ocupam o poder público, de tal modo que os corruptos em potencial se sintam inibidos frente à ausência de impunidade.

“Tudo posso, mas nem tudo me convém”, escreveu o apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (6, 12). Este parâmetro sinaliza que a ética implica tolerância, respeito aos valores do outro, evitar causar desconfortos na convivência social.

O fundamento da ética é o amor. Era nele que Paulo “tudo podia”. “Ama e faze o que quiseres”, disse Santo Agostinho três séculos depois do apóstolo.

- Frei Betto
Reproduzido via Amai-vos

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Estatuto da diversidade sexual, entrevista com Maria Berenice Dias


A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB está preparando, por meio da Comissão da Diversidade Sexual, um Estatuto da Diversidade Sexual, para garantir, em uma única legislação, os direitos dos homossexuais. “A criação do Estatuto é uma reivindicação antiga do movimento Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais - LGBT. Eles sentem falta de uma legislação única, que trate de todas as questões envolvendo a diversidade sexual”, disse Maria Berenice Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual, em entrevista à IHU On-Line realizada por telefone.

Dignidade, igualdade e não discriminação são os princípios básicos que regem o Estatuto da Diversidade Sexual. Segundo Berenice Dias, a decisão do STF, de reconhecer a união homoafetiva deve ser considerada um avanço, mas, para garantir seus direitos, a comunidade LGBT deve lutar pela criminalização da homofobia. “Precisamos criminalizar a homofobia, porque não é possível condenar um agressor se não existe uma lei nesse sentido”.

Maria Berenice Dias é desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, advogada especializada em Direito Homoafetivo e vice-presidente e fundadora do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

Confira a entrevista, reproduzida via IHU.


Por que a OAB quer criar o Estatuto da Diversidade Sexual?
A criação do Estatuto é uma reivindicação antiga do movimento LGBT. Eles sentem falta de uma legislação única, que trate de todas as questões envolvendo a diversidade sexual. Há bastante tempo venho apoiando essa iniciativa e, desde que me aposentei, tenho buscado formação no âmbito da ordem dos advogados em todos os estados para capacitar os advogados a trabalharem com o direito homoafetivo e com a elaboração do Estatuto.

Essas comissões para elaborar o Estatuto começaram a ser criadas em todo o Brasil e, no último ano, levei à Ordem dos Advogados Federal a proposta de criar uma comissão nacional para elaborar uma legislação completa, que traga regras e penalização de posturas homofóbicas. Esse processo também está sendo elaborado em parceria com os movimentos sociais que integram as comissões em todo o país.

Qual a previsão para que esse Estatuto seja concluído e comece a vigorar?
Neste momento, estamos recebendo sugestões de toda a comunidade LGBT e da comunidade jurídica. A expectativa é apresentar o projeto ao Senado Federal no final do mês de agosto.

E como a sociedade pode participar de sua construção?
Todas as pessoas podem participar. Divulgamos o sumário do projeto e estamos agregando as ideias dos participantes. As pessoas podem encaminhar sugestões para o endereço de e-mail estatutods@mbdias.com.br.

Juridicamente, o Estatuto tem um caráter legal? Ele de fato irá garantir direitos aos homossexuais?
Sim. A proposta é dar um tratamento igualitário à população LGBT e aos seus vínculos afetivos. O Estatuto irá tratar a união homoafetiva da mesma maneira que trata do direito de família, por exemplo.

Quais serão os princípios fundamentais do Estatuto?
Os princípios fundamentais são aqueles que estão na Constituição. Os mais importantes são os princípios da dignidade, da igualdade e o da não discriminação. Outro princípio importante de ser ressaltado é do direito à felicidade, que ainda não está na Constituição brasileira. Felicidade é o que a população LGBT busca: eles querem ter o direito de serem felizes com as suas características, sem que isso seja alvo de preconceito, de discriminação, de exclusão no âmbito de tutela do direito.

Em que aspectos o Direito ainda deve avançar para garantir os direitos dos homossexuais?
O Direito ainda tem muito a avançar, pois não existe uma legislação para garantir os direitos homossexuais no Brasil. Embora não exista uma lei efetiva em relação aos homossexuais, os direitos deles estão sendo reconhecidos pela Justiça. Então, a partir de agora, precisamos criminalizar a homofobia, porque não é possível condenar um agressor se não existe uma lei nesse sentido.

E já está tramitando no Congresso algum projeto de lei nesse sentido?
Sim. Há vários anos. O projeto 122 já foi arquivado e desarquivado, posteriormente, pela senadora Marta Suplicy. As iniciativas a favor da comunidade LGBT avançam de uma maneira muito vagarosa no âmbito do Legislativo. Por isso, defendemos a ideia de criar um Estatuto que englobe todos os direitos dos homossexuais.

Que avanços jurídicos já foram alcançados em relação aos direitos dos homossexuais?
Há dez anos estamos lutando para que os direitos dos homossexuais sejam reconhecidos pelo Judiciário. Depois de muitos anos, eles começaram a avançar e culminaram com a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, no dia 5 de maio de 2011, que referendou a ação que a Justiça já vinha deferindo e reconhecendo como uma entidade familiar. Então, hoje os homossexuais têm direito ao casamento, um dos direitos fundamentais da pessoa: o direito de constituir família de uma maneira igualitária. De certa maneira, os poderes Judiciário e Executivo avançaram na medida em que adotaram várias políticas públicas e criaram institutos e espaços de discussão das questões da população LGBT.

Como avalia a postura do governo em relação aos homossexuais e o recuo na distribuição dos kits contra homofobia?
A não distribuição dos kits não chegou a ser um recuo, mas a perda da possibilidade de um avanço.

Como vê as manifestações após a aprovação do STF, principalmente em relação às igrejas evangélicas, uma vez que muitos se pronunciaram contra a união homoafetiva? A posição dessas igrejas reflete, de alguma maneira, a posição de parte conservadora da sociedade?
Em primeiro lugar, reflete. Porque eles têm uma grande maioria no Congresso. Essas igrejas acabam se escondendo atrás de dogmas religiosos para querer discriminar pessoas, quando a função do legislador é outra: incluir todos os cidadãos no âmbito jurídico. Os legisladores têm a obrigação de editar leis que protegem a todos. Essa movimentação das igrejas tem um caráter um pouco assustador, pois não estão agindo, como dizem, em nome Jesus para garantir os direitos de professar sua fé. Não vejo como os direitos dos homossexuais podem afrontar os princípios religiosos.

Existe alguma política pública para os homossexuais?
O Brasil ainda não tem políticas públicas nesse sentido, apesar de todo o interesse dos movimentos. As manifestações homofóbicas demonstram que não podemos viver numa sociedade em que os cidadãos se desrespeitam. No momento em que não se respeita o direito do outro, não se assegura o direito de ninguém. Isso gera muita insegurança à população.

É possível comparar o sistema jurídico brasileiro com o de outros países em relação à garantia dos direitos dos homossexuais?
Muitos países asseguram os direitos dos homssexuais. Eles têm acesso ao casamento e a uma legislação protetiva e de combate à homofobia. Em termos legislativos, o Brasil está muito atrasado comparado ao resto do mundo.

Que avanços se podem esperar com o Estatuto?
A ideia é fazer uma mobilização nacional, que acabe provocando o legislador a abrir mão desse descaso com que trata as questões homossexuais. O Estatuto seria um marco importante em termos de cidadania, em termos de democracia e em termos de igualdade.

As viagens do Papa e as viagens de Jesus

Map painting: Matthew Cusick

“Eu me pergunto algo que é muito mais grave, mais imperioso, mais forte: do jeito como estão as coisas nos países do Chifre da África, onde centenas de milhares de criaturas morrem de fome e de escassez, e em vista de que os países mais poderosos do mundo não encontram uma solução para essa situação tão angustiante, por que o Papa não vai, no momento ao menos, para a Somália e o Quênia, e fica ali, nos campos de refugiados, até que se encontre uma solução eficaz para esta situação de tantos seres inocentes que se debatem entre a vida e a morte?”, pergunta o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado no seu blog Teología sin Censura, 09-08-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU.

Eis o artigo.

Sem dúvida, muita gente vai pensar que é um despropósito relacionar as viagens do Papa com as viagens de Jesus. Vinte séculos separam umas das outras. E quase todas as circunstâncias que cercaram e cercam uma situação e outra são tão diferentes que relacionar aquilo com isto não pode ter outra finalidade que acabar dizendo que aquelas viagens não têm nada a ver com estas. Por essa razão, no final das contas e se tudo isto é assim, o que aqui se pretenderia seria simplesmente desprestigiar o Papa.

Evidentemente, não faltam razões para isso a quem pensa como acabo de indicar. Mas também digo que, se tão somente o título deste artigo deixa algumas pessoas nervosas, talvez se possa pensar razoavelmente que, ao menos de entrada, ninguém teria porque ter prevenções de que, a propósito da viagem do Papa, se diga algo como, por que, para que e com quem Jesus viajava. Não dizemos que o Papa é o Vigário de Cristo na terra? O Dicionário da RAE diz que Vigário é aquele “que tem as vezes, poder e faculdades de outros ou os representa”. Pois – digo eu –, se o Papa representa Jesus, salvando todas as diferenças, algo estas viagens terão a ver com aquelas. E assim é. Jesus viajava para falar de Deus. E para isso o Papa vem a Madri. Jesus viajava em busca dos afastados de Deus. E para isso foi organizada a Jornada Mundial da Juventude, já que há razões para pensar que os jovens são um dos setores da população mais afastados da fé em Deus. Jesus viajava para consolar os que sofrem. E não há dúvida de que a visita do Papa servirá de consolo para não poucas pessoas atribuladas.

Tudo isto é certo. Mas também é verdade que Jesus viajava de forma que as “multidões”, que acudiam a ele para ouvi-lo, eram pessoas que os evangelhos designam normalmente com a palavra grega “óchlos”, que aparece 170 vezes nos Evangelhos. E que designa, não apenas uma grande quantidade de pessoas, mas também pessoas ignorantes, de condição social humilde e que eram consideradas pelos piedosos como “gente que desconhecia a lei religiosa e era maldita”, segundo diziam os religiosos mais observantes (Jo 7, 49). Se os autores dos Evangelhos dispunham de outras palavras gregas (“démos”, láos”, “éthnos”...) para designar o povo que acudia a Jesus, por que normalmente utilizam a palavra mais despectiva que tinham em mãos? Que atrativo estranho tinha aquele itinerante incansável que foi Jesus?

Ao me fazer estas perguntas, não pretendo questionar nem o custo econômico da viagem do Papa, nem o que pretendem os organizadores desta viagem, nem o que buscam aqueles que viajam até Madri para ouvi-lo. Eu me pergunto algo que é muito mais grave, mais imperioso, mais forte: do jeito como estão as coisas nos países do chifre da África, onde centenas de milhares de criaturas morrem de fome e de escassez, e em vista de que os países mais poderosos do mundo não encontram uma solução para essa situação tão angustiante, por que o Papa não vai, no momento ao menos, para a Somália e o Quênia, e fica ali, nos campos de refugiados, até que se encontre uma solução eficaz para esta situação de tantos seres inocentes que se debatem entre a vida e a morte? Se há fundadas esperanças de que um gesto assim do Papa seria uma sacudida nas consciências de tantos bilionários que poderiam aliviar o presente estado de coisas, por que o Papa não faz isso? Não é mais necessário, mais importante, mais humano, mais evangélico, neste dramático momento, ir com os pobres moribundos do que ser recebido apoteoticamente em Madri?

E conste que vou colocar o remendo antes que os grãos se percam. Porque são muitos os que vão dizer que tudo isto é demagogia barata, utopia inútil, etc., etc. Mas mesmo com o risco de que me joguem tudo isso, e muito mais, na cara, não vou deixar de dizer o que sinto, diante de uma necessidade tão urgente e que tanto clama ao céu. Mais, se digo isto não é para atacar a Igreja ou o Papa. Pelo contrário. Digo isso porque tenho a firme convicção da força que a Igreja e o Papa têm para mover corações e consciências quando a vida ou a morte de tantos seres frágeis, os mais indefesos e desamparados, estão em jogo.

Evidentemente que o Papa, ao se reunir com os jovens, vai lhes remover as consciências, vai lhes indicar o caminho do Evangelho e vais lhes descobrir horizontes de humanidade. Mas, por favor, o primeiro é o primeiro. E, sem dúvida alguma, o mais urgente, neste momento, é salvar a vida de tantas pessoas que são os “Zé Ninguém” deste mundo.

Termino afirmando que isto não vale apenas para o Papa e os bispos. Vale para todos. Para mim, em primeiro lugar. Para que tenhamos a coragem de enfrentar uma situação que não admite espera.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Tuitadas

Imagem daqui

O ecumenismo hoje. Uma reflexão teoecológica bit.ly/nDvcfr

Arcebispo de Viena dá tempo para sacerdotes dissidentes refletirem bit.ly/pLMIxD

RT @Conteudo_Livre: OAB discute casamento e adoção para casais gays bit.ly/nbc5Kc

"Sob as bênçãos do arco-íris": o casamento de uma transexual e um gay em Cuba, no aniversário de Fidel bit.ly/oEux3L

RT @mberenicedias: Estatuto da Diversidade Sexual e PEC serão entregues amanhã. Textos disponíveis no site bit.ly/rnQ6lu Divulguem!

The Scientist

Foto fornecida pelo autor

E aqui estamos nós: uma formulação química impossível, um improvável encontro de antagonismos, uma harmônica tensão de dissonantes.

Você, a personificação de todos os valores burgueses, o cabelo certinho, o terno bem alinhado, a eficiência como meta, o sucesso na carreira como a suprema justificação da existência.

Eu, com minha rebeldia - que a cada hora muda de causa -, minha incansável verborréia contra o sistema, minha utópica revolução para extinguir a fome, minha insistência em permanecer “new hippie” e démodé.

Agora, com o mundo girando em torno de nós, seu beijo redime a música do Coldplay, enquanto Chris Martin trina as notas de “The Scientist”.

Sim, questões de ciência e progresso não falam tão alto meu coração. Com você tudo se torna inexplicavelmente suave e eu descubro uma outra fome disfarçada entre meus anseios. A única revolução possível em nossa vida ocorre quando é despertado em nós o amor. Todas as outras decorrem desta primeira. Eu sei, isso soa como um clichê, ainda mais quando o amor se encontra deformado por inumeráveis caricaturas. Talvez muitas verdades tivessem algo a nos dizer antes de seguirem o caminho da banalização, tornando-se clichês.

Eu sinto o calor do teu corpo responder ao meu e me dou conta da estupidez de todas as guerras travadas até agora, de todo ridículo preconceito que me fazia dividir as pessoas em “conscientes” e “alienados”; de todo julgamento que proferi a quem, na realidade, estava tão perdido e faminto quanto eu, tão desejoso de um momento como este que rompesse as despóticas divisões do “isto sim/ aquilo não”. Quem nos tornou tão ávidos de rótulos? Seria essa uma armadilha – vingança – da nossa absurda confiança na dominação conceitual da realidade?
Quando tantas teorias e sistemas caíram por terra, cedendo seu lugar a novidades que muito provavelmente terão o mesmo destino, que estranha segurança haurimos em impor a verdade abstratos limites que negam a maravilhosa pluralidade de seus matizes?

Somos tão parecidos e tão singularmente irrepetíveis!

Deus, quanto tempo desperdicei enquadrando o mundo na estreiteza de minha pré-compreensão!
Viva a semelhança! Aquilo que nos torna, ao mesmo tempo, construtores e vítimas de uma mesma humanidade.

Viva as diferenças! De pensamento, idéias, anseios, sexualidades...

Quantas barreiras tivemos de transpor ou derrubar, eu e você, para deixar ao outro o espaço para ser ele mesmo?

Sim, “ninguém disse que seria fácil. Mas ninguém disse que seria tão difícil.”

E talvez tenha de ser assim. Criar um mundo de respeito e acolhida implica uma batalha contra tudo o que impede a concretização deste ideal em si mesmo e nos relacionamentos mais próximos, em primeiro lugar. Deixar o conforto do re-conhecido, do seguro, para aprender a amar o diferente pode ser fascinante, mas também doloroso. A Bíblia diz, no livro do Cântico dos cânticos, que o Amor é forte como a morte. Decididamente o amor não é o sentimento transbordante dos folhetins românticos. Ele surge sempre como avidez, desejo de posse e satisfação. As repetidas frustrações da imagem que idealizamos no outro são como pedras de toque para sairmos de nós mesmos e abraçarmos o real, inevitavelmente marcado pela incompletude, pelo devir. A decisão de ir além da auto-satisfação egóica abre inesperadas paisagens de uma riqueza apenas pressentida naquele que nos atraiu. É preciso estar disposto a suportar os atritos entre “o que se é” e “o que se gostaria que fosse”.

Quando eu vejo seu rosto assim, tão perto do meu, pesa o meu coração de tanta ternura e eu descubro que isto também é fruto do amor, ensinando-me que sou demasiado pequeno para acolher a vastidão sem fronteiras que cada vida humana é. Para acolher a vida, esse mistério escondido no sopro que percorre o teu corpo, que o aquece e anima.

Seria isso o que chamam de um tempo de graça? Perceber a maravilha de existirmos, de estarmos juntos e sermos agradecidos por termos a nós mesmos e uns aos outros, ao invés do nada? Seria esse instante que arranca do cotidiano toda máscara cinzenta da repetição e deixa tudo se mostrar nas vibrantes cores que encheram de admiração o primeiro homem criado?

Oh, sim, seria uma pena nos separarmos. Umas vezes eu quis, outras você, pois ninguém nunca nos alertou como seria difícil amar de lados tão opostos do abismo, de idéias transitivas que teimávamos em tornar perenes. Que bom, a vontade de permanecermos juntos superou o desejo de evitar a dor.

Então, aqui e agora, na improbabilidade do tempo, eternizemos esse instante, esse beijo, essa entrega.

“ I´m going back to the start...”

Sempre…

- Thiago
Lins

Enviado pelo Facebook

Cristianismo, uma mensagem de convívio fraternal

Foto: Li Hui

Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)

* * *

Para o filósofo Álvaro Valls, docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, um dos motivos para ser cristão no século XXI é que “cada um de nós deve fazer a sua opção, se prefere tentar viver uma vida para o amor e o perdão, ou para curtir a raiva, o ressentimento e o ódio, a ganância, a ambição desenfreada e a busca incessante do prazer. Amor não é só um sentimento, mas é também um mandamento, um dever sagrado”. E continua: “O cristianismo, descontados os desvios que sempre ocorrem na história dos homens, é uma mensagem do convívio fraternal, antes de se constituir numa instituição de poder universal”. Em sua opinião, mais do que uma doutrina, no sentido teórico, a mensagem de Jesus é uma “mensagem de vida, deixando-nos uma mensagem existencial”.

Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade de Heidelberg, da Alemanha, com a tese O conceito de história nos escritos de Soeren Kierkegaard, Valls é autor dos livros O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 1986; Da ética à bioética. Petrópolis: Vozes, 2004. É o tradutor e organizador da obra Do Desespero Silencioso ao Elogio do Amor Desinteressado - Aforismos, novelas e discursos, de Sören Kierkegaard. Porto Alegre: Escritos, 2004, da qual a edição 123 da IHU On-Line, de 16-11-2004, publicou a orelha do livro. A obra foi apresentada no Sala de Leitura nessa mesma data. Sua contribuição mais recente à IHU On-Line aconteceu na edição 175, de 10-04-2006, quando concedeu a entrevista Paulo e Kierkegaard. Nas Notícias Diárias do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, em 16-11-2006, concedeu a entrevista Uma Filosofia brasileira surgirá com tempo e muito trabalho, na qual comenta sobre sua recente indicação à presidência da Anpof na gestão 2007-2008.


Por que ser cristão hoje
Só o fato de que muitos deixaram de ser cristãos nos últimos 150 anos (depois, aliás, da crítica de Kierkegaard à cristandade), não basta para nos levar a abandonar a fé de nossos pais. Mas, dito de modo positivo, há no quarto evangelho, no capítulo 13, 34-35, uma boa razão: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” Ou seja, cada um de nós deve fazer a sua opção, se prefere tentar viver uma vida para o amor e o perdão, ou para curtir a raiva, o ressentimento e o ódio, a ganância, a ambição desenfreada e a busca incessante do prazer. Amor não é só um sentimento, mas é também um mandamento, um dever sagrado. Uma religião do amor, baseada nas palavras do profeta da Galiléia, e transmitida com todas as falhas humanas que a história de nosso gênero relata, não é incompatível com uma visão de mundo secularizada, ou seja, onde não há espaços sagrados separados dos profanos. Ora, a técnica e a ciência, se não são neutras, pelo menos são bastante relativas, podendo ser usadas para o bem ou para o mal. Já uma economia centrada só no lucro, na ganância, no aumento da riqueza e do poder de pequenos grupos, não é neutra, e precisa ser infiltrada por uma inspiração religiosa que busque aumentar o espaço do amor.

Por que acreditar em Jesus
Creio que podemos repetir, com São Pedro, que só Jesus tem palavras de vida eterna. Então, sendo assim, a quem iremos? A Marx, a Freud, a Darwin, a Einstein, a Hegel, a Nietzsche? Não seria melhor e mais correto reconhecer que os diversos cientistas e filósofos trouxeram contribuições mais ou menos importantes para compreendermos aspectos da realidade, mas que também, quando se trata da pergunta pelo sentido da vida, não há comparação? A fé não se baseia em argumentos, pois estes apenas servem numa propedêutica, para mostrar onde está o lugar em que é preciso parar e decidir se queremos crer ou nos escandalizar, - pois estas são as duas opções, apesar de todas as grandes sínteses. Por sua vez, nem Maomé, nem Confúcio, nem Buda me tocaram mais do que a vida e o ensinamento do Nazareno.

O mistério da Trindade
O mistério da Trindade, em que se deve crer, às vezes, é muito mal-apresentado por padres ou catequistas que se reduzem a paradoxos aritméticos mirabolantes, jogando com os números um e três, daí não saindo nada. Uma das vantagens da religião trinitária é que afirma a ação do Espírito Santo, tão negligenciado entre os católicos. A grande questão, que me faz refletir todo o tempo, é a da ressurreição do Salvador, pois se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé, como já o dizia Paulo. E então seríamos, malgrado as apostas de Pascal, as criaturas mais dignas de lástima. Porém, se ele ressuscitou, temos uma vida eterna e pessoal, de alguma maneira, pela frente, depois desta curta existência.

Convívio fraternal
O cristianismo, descontados os desvios que sempre ocorrem na história dos homens, é uma mensagem do convívio fraternal, antes de se constituir numa instituição de poder universal. Esta verdade ensinou e viveu, recentemente entre nós, um Dom Luciano Mendes de Almeida , bispo e jesuíta (e dos bons) ou, há poucos anos, mais distante de nós, Madre Tereza de Calcutá. Viver para fazer o bem, como antigamente Francisco de Assis, não é hoje em dia um posicionamento trivial, e sim fruto de uma escolha, uma conversão (metánoia). Mas temos de ter clareza sobre um fato, que já a Igreja pós-concílio (Vaticano II) reconheceu: os católicos vêm perdendo o contato com o povo, sem reconquistar um espaço no mundo da cultura atual. O messianismo demagógico, que identifica sem mais a mensagem de Cristo com um partido político mais popular (ou com uma política populista, lembrando Mussolini), voltou nos últimos anos, repetindo a ação dos católicos dos tempos do Integralismo, mas não passa de uma tentativa desesperada, que não nasce da fé e da esperança. As lições de Jesus Cristo continuarão sempre um escândalo e uma loucura: não substituem simplesmente os estudos sociais.

Quanto aos animais não-humanos, uma dissertação defendida em nosso mestrado mostrou que o conceito de “próximo”, enfatizado por Kierkegaard, ou do “outro”, por Levinas , bem poderiam ser aplicados de várias maneiras aos seres vivos que nos rodeiam. E na perspectiva franciscana, também para a natureza circundante: a criação, que de algum modo também espera pela salvação.

A complementaridade da fé e da razão
Fé e razão são complementares, por isso muitos doutores da igreja falaram da fé, buscando o conhecimento, e do conhecimento buscando a fé. Santo Agostinho é um pensador atual, depois de um milênio e meio. E se um pensador como Nietzsche ataca violentamente o cristianismo, sempre se pode aprender com ele e com as partes de verdade que há em suas críticas, mas também podemos ler Dostoiévski, para ver como é possível ser cristão apesar dos nossos tempos. O convívio com os cientistas seria muito facilitado, em todo caso, se certas autoridades eclesiásticas não opinassem tanto sobre assuntos que ignoram completamente, ou que conhecem superficialmente. A ética e a moral estruturam seus discursos, de certo modo, a posteriori, ou seja, refletem, com base nos grandes princípios e mandamentos, sobre os casos que vão surgindo (às vezes inéditos). Interditos apriorísticos em geral só atrapalham, e havia um grande mérito na verdadeira casuística (que depois se tornou expressão pejorativa): o cuidado com os detalhes concretos, para o que, aliás, a ciência certamente pode ser indispensável. Os próprios escolásticos, antigamente, gracejavam entre si: “Se tivesses estudado melhor a teologia, não dirias tais coisas”.

Paulo de Tarso e o Cristianismo
Paulo de Tarso foi um tipo genial, um intelecto espantosamente produtivo, e não é totalmente errada a afirmação de Nietzsche de que foi ele que “inventou” o cristianismo; ou ao menos teríamos de estranhar quando, ainda hoje, um livro de moral cristã dedica metade de suas páginas ao ensino de Jesus e a outra metade (!) ao de Paulo de Tarso. E por que toda missa tem que ter, antes da leitura dos Evangelhos, também uma das epístolas, quase sempre (ao menos supostamente) de Paulo? Será que ainda se pode dizer então que, como apóstolo, Paulo apenas transmitiu a mensagem, ou ele de fato a refundiu numa síntese grandiosa, eclipsando os outros apóstolos, como Pedro, Tiago ou até mesmo o discípulo amado? Mas tudo bem, em vez de apenas criticarmos as epístolas, não seria o caso de lermos com mais atenção os quatro evangelhos, meditando sobre o sermão da montanha, tão descurado em nossa política ocidental?

Os desafios do cristianismo no século XXI
O grande desafio do cristianismo é sempre o mesmo: ser vivido na prática. Jesus não era um professor a ensinar uma teoria, ou um pensador a esboçar um sistema, aberto ou fechado. Veio para trazer a vida, e vida em abundância. Mais do que uma doutrina, no sentido teórico, o que fez foi pregar, com as palavras e o exemplo, uma mensagem de vida, deixando-nos uma mensagem existencial. Não consta que ele tenha feito uma verificação escrita sobre os ensinamentos do sermão da montanha, ou que mandasse os discípulos analisarem criticamente as parábolas. O Evangelho fala outra linguagem: “Vai e faze o mesmo!” O que mais interessa é portanto a dimensão pragmática. Ou, conforme aquela outra tese: não basta interpretar, é preciso transformar o mundo em que vivemos. Rumo à comunidade dos santos, dos filhos de Deus (sem esquecer que a Igreja triunfante não pertence a esta terra, onde se esforça a Igreja militante).

domingo, 21 de agosto de 2011

Diante da noite


Diante da noite não acuses as trevas, aprenda a fazer lume.

- Chico Xavier

Tuitadas do fim de semana

Imagem daqui

RT @gondimricardo: Religiosos, em sua grande maioria, não captam que eles são os maiores beneficiários de um Estado laico.

RT @pefabiodemelo: Tem música morando dentro de mim. Irrompe na memória, aguça os sentidos, faz rezar a alma. Obedeço. :-)

RT @ACapacombr: Entre avanços e censura, "Insensato Coração" é um marco na abordagem gay em horário nobre acapa.co/?n=14498

Carta do Grupo Arco-Íris ao Pres. do PMDB Jorce Picciani sobre projetos de lei criando Dia do Orgulho Hétero bit.ly/r3oh0O

Dia do orgulho reacionário (Laerte) twitpic.com/68x95o

"Podemos não chegar ao melhor dos mundos, mas a um mundo melhor" bit.ly/mQrIX9

Espiritualidade e elementos para uma teologia da comunicação em rede bit.ly/qFqVx6

De "autoritário" a "fraternal": os desafios do papado no século XXI. Entrevista especial com Hermann Häring bit.ly/okioid

"Mas que conservador! Ratzinger é um reformista" bit.ly/nChNX6

Alemanha: homossexualidade divide a Igreja bit.ly/ooVMFY

Papa oficializa Rio como sede de Jornada Mundial da Juventude bit.ly/no3njU

Brasil propõe beatificação de d. Luciano bit.ly/pFiYqf

Os católicos alemães estão "cansados", diz jesuíta bit.ly/qu7OvW

Inácio de Loyola em perspectiva luterana bit.ly/qWP2mB

Policiais gays e lésbicas formam rede para lutar contra homofobia no Brasil glo.bo/roLZPV

O vira


Início dos anos 2000 minha filha caçula participava de uma gincana na escola que incluía uma dança da turma com música dos anos 70. Ela sugeriu “O Vira”, dos Secos & Molhados, que adorava. Seus colegas aderiram e criaram uma coreografia para o rock antigo. A letra fala de seres mágicos, é fácil de decorar, o ritmo lembra uma música folclórica portuguesa. O estribilho repetia: “-Vira, vira, vira homem, vira, vira. Vira, vira, lobisomem”. Nós, os adultos, ficamos entusiasmados por ver revitalizada uma música que fora significativa para nossa geração, até que um pai se desesperou. Não queria que seu filho participasse da dança que, para ele, era uma apologia aos homossexuais. Não conseguiu impugnar a música, que defendemos com unhas e dentes, mas impediu seu filho de participar da apresentação. Estaria preservada a heterossexualidade do garoto?

Havia uma lenda que o nome original do conjunto seria Secos, Frescos & Molhados e que eles teriam sido impedidos de registrar tal afronta moral, afinal, eram anos duros. De qualquer forma, voz ambígua de Ney Matogrosso não mentia: feminino e masculino não possuem fronteiras tão claras como se queria crer. A suposta contrariedade dos censores era compreensível, os músicos estavam brincando com a ambigüidade sexual. Mas no que isso influiria no destino erótico de qualquer um?

Corta para o ano 2011: uma grande iniciativa, o kit anti-homofobia – composto de material de divulgação sobre a intolerância frente às relações e comportamentos homoafetivos nas escolas – enfrenta um caloroso debate. Um dos temores dos críticos é que o material instigue os jovens a serem homossexuais. Talvez a campanha possa passar por alguns ajustes, mas é sempre bom lembrar que não há propaganda, imagem ou música que possa pender a identidade e escolha de objeto sexual de alguém. Acredito que não se nasce gay, torna-se, mas é por caminhos nada óbvios. É a forma como nos situamos dentro de uma família, de uma época, que vai determinar com quem vamos parecer e a quem vamos amar. Um homem, por exemplo, pode ter uma identificação feminina e amar mulheres ou ser perfeitamente viril e desejar outros homens.

É nas sutilezas da história de alguém que sua sexualidade se define. Nenhuma influência pontual mudará a complexidade de um destino, ela pode, no máximo, dar-lhe voz. Mas os rumos imprevisíveis da sexualidade mexem com os ânimos dos mais inseguros: a revelação da diferença angustia, pensam que seus desejos secretos, tão comuns, podem ser revelados ou ativados por manifestações culturais. O pânico de nada serve, exorcizar supostas influências não oferece a garantia que os inquietos gostariam de ter. A sexualidade se constrói junto com a identidade e a cada um cabe viver a dor e a delícia de ser o que é.

- Diana Corso
Reproduzido via blog da autora

Maria, seguidora fiel de Jesus


Os evangelistas apresentam a Virgem com traços que podem reavivar nossa devoção a Maria, Mãe de Jesus. Seu olhar nos ajuda a amá-la, meditá-la, imitá-la, orar e confiar nela com um espírito novo e mais evangélico. Maria é a grande crente. A primeira seguidora de Jesus. A mulher que sabe meditar no seu coração os feitos e as palavras de Seu Filho. A profetisa que canta a Deus, salvador dos pobres, que ele anuncia. A mãe fiel que permanece ao lado de seu Filho perseguido, condenado e morto na cruz. A Testemunha de Cristo Ressuscitado, que recebe junto aos discípulos o Espírito que acompanhará sempre a Igreja de Jesus.

Lucas, por sua vez, nos convida a fazer nosso o cântico de Maria, para deixarmos conduzir pelo seu espírito até Jesus, pois no “Magnificat” resplandece mais ainda a fé de Maria e sua identificação materna com seu Filho Jesus.

Maria começa proclamando a grandeza de Deus: “Meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque ele olhou a pequenez de sua serva”. Maria é feliz porque Deus tocou em sua pequenez. Assim é Deus com os pequenos. Maria canta com a mesma alegria que Jesus abençoa o Pai, porque ele fica oculto para os “sábios e prudentes” e se revela “aos simples”. A fé de Maria no Deus dos pequenos nos faz sintonizar com Jesus.

Maria proclama o Deus “Todo Poderoso”, porque “a sua misericórdia chega aos fiéis de geração em geração”. Deus coloca o Seu poder ao serviço da compaixão. Sua misericórdia abrange todas as gerações. Jesus prega a mesma coisa: Deus é misericordioso para com todos. Então, ele disse aos seus discípulos de todos os tempos: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. Desde seu coração de mãe, Maria percebe como nenhuma outra pessoa a ternura de Deus Pai e Mãe, e nos introduz ao núcleo central da mensagem de Jesus: Deus é amor compassivo.

Maria proclama também o Deus dos pobres, porque “tira de seus tronos os poderosos” e deixa-os impotentes para continuar com sua opressão; pelo contrário, “exalta os humildes” para que recuperam sua dignidade. Clama aos ricos o que é roubado dos pobres e “os despede de mãos vazias”. E aos famintos, “ele os enche de bens” para desfrutar de uma vida mais humana. Jesus clama o mesmo: “os últimos serão os primeiros”. Maria leva-nos a aceitar a Boa Nova de Jesus: Deus é dos pobres.

Maria nos ensina, melhor que ninguém, a seguir Jesus anunciando o Deus de compaixão, trabalhando para um mundo mais fraterno, confiando no Pai dos pequenos.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via IHU

Leitura para reflexão:
Lc 1,19-52
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