sábado, 12 de novembro de 2011

Juntos em paz

Pintura sem pincel: Amy Shackleton

"Ou aprendemos a caminhar juntos em paz e harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros.”

- João Paulo II

Encontro de Assis: uma ''viagem fraterna'' rumo a um horizonte maior

Foto daqui

Uma peregrinação "pela verdade e pela paz". Foi com esse propósito que Bento XVI e diversos outros líderes religiosos de todo o mundo estiveram reunidos em Assis, na Itália, entre 27 e 28 de outubro. Uma data e um encontro histórico, a 25 anos da primeira Jornada de Oração pela Paz, convocada por João Paulo II em 1986, para uma oração comum pela paz em um período histórico marcado pela Guerra Fria.

Na opinião do teólogo Faustino Teixeira, a iniciativa de João Paulo II “deixou importantes rastros no âmbito do diálogo inter-religioso, sobretudo um ‘espírito’ novidadeiro de respeito e abertura aos outros”. Por isso superou as críticas – inclusive as do atual papa, naquela época cardeal e presidente da Congregação para a Doutrina da fé – e recebeu uma nova edição, em 2002, após os atentados do 11 de setembro.

Nesta terceira edição, relembra Teixeira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, retorna a “linda imagem” utilizada por João Paulo II para expressar aquele momento inaugural: “uma ‘viagem fraterna’ em que uns acompanham os outros visando a meta misteriosa e transcendente que Deus estabeleceu para todos”.

Nos últimos anos, no papado de Bento XVI, “não houve nenhum documento ou gesto concreto que modificasse a nítida perspectiva teológica que eu nomeio como teologia do acabamento, pois traduz a ideia de que todas as religiões encontram sua realização na Igreja católico-romana”, pondera Teixeira.

Mas revela: “O novo encontro de Assis situa-se nessa perspectiva, mas pode favorecer novos sinais dialogais. É o que esperamos todos”. Ou seja, uma “possibilidade de transmitir a essencial vocação de acolhida e de busca da paz, sem as quais não poderá haver um futuro amoroso para o nosso tempo”.

Faustino Teixeira é professor do programa de pós-graduação em ciência da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, pesquisador do CNPQ e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em teologia pela Pontificia Universidade Gregoriana. Entre suas últimas publicações, encontram-se Catolicismo Plural: Dinâmicas contemporâneas (Ed. Vozes, 2009) e Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso (Ed. Santuário, 2008).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


O que significou o gesto de João Paulo II, há 25 anos, ao convocar uma Jornada Mundial de Oração pela Paz junto aos grandes líderes religiosos mundiais?

Foi um dos mais significativos gestos de João Paulo II em seu pontificado. Foi um encontro paradigmático, na medida em que facultou uma profunda ruptura no posicionamento tradicional da Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR no campo do diálogo inter-religioso. O próprio Papa João Paulo II se expressou a propósito em seu discurso natalício aos membros da cúria romana, em 22 de dezembro de 1986: “O acontecimento de Assis pode ser considerado uma demonstração visível (…) daquilo que pressupõe e significa o esforço ecumênico e o esforço pelo diálogo inter-religioso recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II”.

Foi um evento grandioso e deixou importantes rastros no âmbito do diálogo inter-religioso, sobretudo um “espírito” novidadeiro de respeito e abertura aos outros. E também a convicção firmada de que a oração de todos, no respeito às suas diferenças, é fundamental para a paz entre as nações. E, quando é autêntica, traduz um significativo fruto do Espírito.

Houve resistências a essa iniciativa?

Foi um evento que suscitou muitas reservas, sobretudo entre os tradicionalistas lefebvrianos, mas também entre cardeais da cúria romana, que manifestavam temor pelo risco de sincretismo. Marcel Lefebvre identificou o evento como um escândalo e uma “blasfêmia pública”. Mesmo o cardeal Ratzinger, na ocasião, não manifestou grande entusiasmo pela iniciativa, preferindo manter uma “reserva mais que morna”, para utilizar a expressão do historiador Alberto Melloni.

Apesar das resistências, prevaleceu a ousadia dialogal de João Paulo II, que soube reconhecer que o desafio da paz é mais amplo e urgente do que as diferenças religiosas. E dizia: “Ou aprendemos a caminhar juntos em paz e harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros”. E linda foi a imagem que utilizou para expressar aquele momento: uma “viagem fraterna” em que uns acompanham os outros visando a meta misteriosa e transcendente que Deus estabeleceu para todos.

Na preparação ao primeiro encontro, na década de 1980, grupos mais tradicionais da Igreja criticaram as tendências relativistas ou sincretistas do encontro, como os lefebvrianos. E as críticas retornam nessa nova edição. Que desafios o diálogo inter-religioso apresenta à Igreja?

De fato, os lefebvrianos continuam em sua rígida oposição. O superior atual do grupo lefebvriano, D. Bernard Fellay, reagiu de forma dura ao saber das intenções de Bento XVI em retomar o curso dos eventos de Assis. Ele comenta: “Todos os deuses pagãos são demônios e Assis estará cheia de demônios”. Sem comentários…

As maiores dificuldades, já no primeiro evento, estavam relacionadas ao tema da “oração comum”. Houve então uma preocupação permanente dos idealizadores de evitar o risco de sincretismo religioso, e isso se manifestava na fórmula escolhida para o encontro: “juntos para rezar” e não “rezar juntos”. Evitou-se fazer qualquer tipo de oração comum, mas as orações foram realizadas com muita liberdade, expressando assim os caminhos diversos, mas nobres, de relação amorosa com o Mistério Absoluto. E elas aconteceram no interior da Basílica inferior de São Francisco, em sucessão contínua, com a assistência reverencial de todos. Isso será modificado nos eventos sucessivos. Não se pode, porém, descartar a plausibilidade de eventos pontuados pela presença de uma oração comum, e isso não significa necessariamente recair no sincretismo. É o que expressou tão bem, Marcello Zago, em texto publicado no L'Osservatore Romano de outubro de 1986: “Estar junto para rezar, e às vezes rezar junto, é reconhecer este fato essencial da relação de todos os homens com Deus”.

O rico documento do então Secretariado para os não Cristãos, Diálogo e Missão (1984) – assinado também pelo então secretário, Marcello Zago – ressaltava como o nível mais profundo do diálogo a “partilha das experiências de oração, contemplação e fé” (DM 35). Infelizmente a dinâmica dos eventos sofreu mudanças substantivas nesse campo.

Desde 1986, houve algumas mudanças a partir do título: de “Jornada Mundial de Oração pela Paz” passou-se a “Jornada de Reflexão, Diálogo e Oração pela Paz e a Justiça no Mundo”. Como podemos entender essas novas ênfases?

A nova jornada de Assis, em comemoração ao 25º aniversário do primeiro evento, realizado em 1986, muda de fato o seu tom. De uma jornada de oração passa a ser, sobretudo, uma jornada de reflexão. Isso não significa a inexistência de um momento específico de oração silenciosa individual, que também ocorrerá. Mas o traço substantivo será de índole reflexiva, em favor da paz mundial. Como expressou o cardeal [Jean-Louis Pierre] Tauran, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, “no mundo tão precário e cheio de muros de separação físicas e morais, me parece mais do que nunca oportuno que as religiões, apesar de suas diferenças, promovam juntas a paz. O diálogo entre as religiões é sempre um chamado de Deus a redescobrir suas próprias raízes espirituais”.

De forma bem curiosa, o Papa Bento XVI, antes resistente aos eventos desta natureza, se vê agora diante de sua urgência e inevitabilidade. Redescobre, assim, o valor da intuição de João Paulo II. Mas a perspectiva agora é diferente, marcada por um controle doutrinal mais decisivo e com a ênfase voltada mais para a dimensão cultural do diálogo. A ausência premeditada de momentos públicos de oração comum é uma forma precisa de evitar o risco de um binômio que acompanha as lides desse pontificado: relativismo/sincretismo.

Quanto à novidade de estender o convite aos não crentes, julgo a ideia bem pertinente. O diálogo inter-religioso deve envolver, igualmente, as distintas opções espirituais, religiosas ou não. É uma ideia que vem corroborar o projeto ratzingeriano de transformar o diálogo inter-religioso num diálogo mais cultural.

Qual o significado e o valor da oração inter-religiosa? Ou, em outros termos, qual o medo da Igreja de rezar junto com as demais religiões?

Num belo livro em que recolhe seus sermões, "Passion de l’homme passion de Dieu" (1991), o teólogo Claude Geffré trabalha de forma magnífica a ideia da oração como “mistério de gratuidade”. Ele sinaliza que a oração é a “atitude fundamental do homem religioso, mais universal do que a fé explícita num Deus pessoal”. Há uma dimensão universal da oração que ultrapassa a dinâmica particular e restrita das religiões.

Na visão de Geffré, com a qual concordo plenamente, o primeiro encontro de Assis fez eclodir um “ecumenismo planetário”, pontuado pelo alcance universal da oração. A oração suscita, antes de tudo, um descentramento de si e um recentramento no outro, um grande aprendizado de gratuidade, de abertura e conversão do coração. Grandes momentos dialogais foram e são vividos pontuados pela oração em comum: veja os importantes exemplos dos monges de Tibhirine (Argélia) e dos religiosos da Comunidade de Mar Musa (Síria), no diálogo com os muçulmanos e outros tantos exemplos nessa linha.

Não sem razão, sublinha Jacques Dupuis: “A oração comum se apresenta como a alma do diálogo inter-religioso, mas também como a expressão mais profunda do diálogo e, ao mesmo tempo, como a garantia de uma conversão comum mais profunda a Deus e aos outros”.

O tema deste ano é Peregrinos da verdade. Peregrinos da paz. E a peregrinação dos líderes religiosos será também um ponto forte do encontro, seja de trem (do Vaticano até Assis) ou a pé (para a entrada na Basílica de São Francisco). Como essa imagem do “caminhar juntos” pode inspirar o diálogo inter-religioso?

Em editorial da revista Concilium, cujo tema versava sobre as peregrinações (1996/4), Christian Duquoc e Vigil Elizondo sublinhavam que o senso da peregrinação parece responder a uma profunda necessidade que o ser humano tem de ir além dos limites da experiência ordinária e entrar no misterioso reino do além”. De fato, há algo de ousado na experiência das peregrinações, sobretudo a disposição de “expor-se a novas paisagens” e arriscar-se a ampliar as possibilidades. E as religiões, como fragmentos, estão desafiadas a fazer essa travessia. Volto aqui à bela imagem de João Paulo II, de uma “viagem fraternal” pontuada pelo mútuo aprendizado e pela troca de dons, rumo a um horizonte maior, ainda inominado.

A inclusão de não crentes no debate inter-religioso por parte do Vaticano também remete à proposta do “Átrio dos Gentios”, impulsionado pelo cardeal Gianfranco Ravasi. Qual a contribuição dos ateus e dos não crentes para o diálogo entre os que creem?

A proposta é interessante, mas a imagem ainda é precária. Falar em “Átrio dos Gentios”, tomando a metáfora de Bento XVI, é ainda realçar a disparidade entre aqueles que detêm a verdade e os “outros” que se encontram no pórtico exterior. É uma imagem que pressupõe, ainda que não intencionalmente, a apropriação da verdade por parte de alguns em detrimento de outros. Sobre isso chamou a atenção o sociólogo Peter Berger, sendo retomado por Marco Politi em sua recente obra sobre o papado de Joseph Ratzinger ("Joseph Ratzinger. Crisi di un papato" – 2011).

Não há dúvida, porém, da importância dessas novas presenças no evento de Assis, entre as quais [a filósofa e psicanalista búlgara-francesa] Julia Kristeva e [o filósofo italiano] Remo Bodei. Esse último autor, filósofo e professor na Universidade da Califórnia, acolheu prontamente o convite feito pelo cardeal Ravasi e sublinhou o significado dessa florescente consciência: “Se os dogmas religiosos entram em contato com as ideias do mundo e saem de sua clausura, isso se torna um fato positivo também para os ‘laicos’, isto é, aqueles não crentes que não querem viver na banalidade”. Também a Igreja vem enriquecida por essa pars paganorum, essa parte de paganidade, esse “lugar fora de sua residência”, capaz de favorecer a ampliação do olhar e a abertura atenta para as coisas deste mundo. Como indicou o teólogo belga Adolphe Gesché, “o Evangelho não é suficiente para tudo, não diz tudo sobre o ser humano”.

No livro "Joseph Ratzinger, Crisi di un papato" (Ed. Laterza), o vaticanista Marco Politi, como aponta o título, delineia uma forte crítica ao pontificado de Bento XVI em seus seis anos de pontificado. Como o evento de Assis se encaixa nessa análise? Que continuidades ou rupturas se apresentam nesse fato?

Vou aqui me fixar nos traços específicos do livro que tratam da questão das religiões, e em particular ao evento de Assis. Trata-se de um livro precioso, recheado de uma “impecável documentação” sobre o percurso do pontificado de Bento XVI. O diagnóstico feito por Politi é sombrio, apontando “sinais de incerteza” na condução estratégica do pontificado em vários âmbitos. Um deles é justamente o do ecumenismo e do diálogo inter-religioso.

Com precisão certeira, Politi sinaliza que a lógica que marca o itinerário do pontificado é tecida por uma “mecânica de passos em falso”. Atuações problemáticas são depois corrigidas por “intervenções de socorro”, que buscam amenizar o impacto das controvérsias. E são tantas as que podem ser nomeadas, como o fez brilhantemente Marco Politi em seu livro e não vem ao caso aqui retomá-las. O autor fala na presença de uma “mão invisível” a suscitar novas e previsíveis polêmicas.

Nesses seis anos de pontificado, seguindo a argumentação de Politi, o “lobby pró-Ratzinger”, que o impulsiona adiante, não apresenta um “projeto de respiro para o futuro da Igreja”. O que se verifica é uma dinâmica marcada pelo traço defensivo, de reação ao mundo contemporâneo, frágil para anunciar a alegria de um Deus misericordioso e atento aos sussurros do plural. Para muitos das novas gerações, como indica Politi, é um papa que “não transmite esperança”, que não suscita atração. Fala nele mais o homem das palavras, o teólogo racional, distante da possibilidade de mostrar uma “Igreja de misericórdia”.

Com respeito às religiões, os desencontros são inúmeros. A tensão com o mundo protestante vem acirrada desde a década de 1990, com a minoração eclesial das Igrejas protestantes, reduzidas a partilharem apenas “elementos da Igreja de Cristo”. Nesse período, estava na direção da Congregação para a Doutrina da Fé o cardeal Ratzinger, que defendia firmemente tal posição, que depois veio reiterada na Declaração Dominus Iesus, de 2000. Em sua obra "Igreja: carisma e poder" (na edição revista de 2005), Leonardo Boff relata com detalhes a tensão que marcou seu colóquio com o cardeal Ratzinger em torno da interpretação da passagem da Lumen Gentium 8, que trata da questão do subsistit in, ou seja, da forma de subsistência da Igreja de Cristo na Igreja Católica.

Para Boff, a Igreja de Cristo ganha sua forma na Igreja Católica, embora se concretize igualmente, de um modo particular, nas demais Igrejas, portadoras da herança de Jesus. Para Ratzinger, diversamente, a Igreja romano-católica é a “única Igreja de Cristo”, enquanto as demais têm apenas “elementos eclesiais”. Essa posição veio confirmada na Dominus Iesus. A relação com os judeus vem também tensionada nos últimos anos e isso se deve a certas atitudes como a liberação do rito tridentino e o motu proprio, summorum pontificum (de julho de 2007), que resgata a oração da sexta-feira santa, que fala dos “pérfidos judeus”; a reabilitação de quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, criada por Marcel Lefebvre, sendo que um deles, o bispo Richard Williamson, chegou a colocar em dúvida a existência do Holocausto. Acrescentam-se os percalços da viagem papal à Polônia, em maio de 2006. Mais recentemente, reacende-se a polêmica quando o cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, publica um artigo no L'Osservatore Romano (07-07-2011) assinalando que a cruz de Jesus é para os cristãos o permanente e universal Yom Kippur. O artigo provocou duras reações do rabino de Roma, Di Segni.

Com respeito ao islã, há uma certa “desconfiança de fundo” que acompanha boa parte do pontificado de Bento XVI. O ponto culminante foi o discurso na universidade de Regensburg, em setembro de 2006. Marco Politi fala na “catástrofe de Regensburg”, que joga ao chão 20 anos da política wojtyaliana nos confrontos do islã. Como sempre ocorre nesse pontificado, depois do desfeito sucedem-se as tentativas de reparo, e isso ocorreu com as declarações reparadoras do secretário de estado, cardeal Bertone, e também do próprio papa. Em suas viagens à Turquia e Terra Santa a tonalidade já foi outra, embora saliente com razão Politi, não se abriu em seguida novas páginas na relação com islã.

Um estranho episódio que diz respeito ao diálogo com o islã foi a destituição do antigo presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, Michael Fitzgerald, e seu encaminhamento para o “exílio” no Cairo. O seu dicastério funde-se com o Pontifício Conselho para a Cultura em março de 2006. A decisão mostra-se problemática já no ano seguinte, dada a importância estratégica da relação com o islã. E o processo vem refeito, em junho de 2007, com a nomeação do cardeal Jean-Louis Tauran para presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Como ex-ministro do exterior do Vaticano era um homem de diálogo e bom conhecedor do mundo árabe, como Fitzgerald.

Com respeito às outras religiões, fica ainda registrado na memória aquela infeliz expressão da Dominus Iesus, que indica que elas encontram-se numa “situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22). Não houve nenhum documento ou gesto concreto nesse atual pontificado que modificasse essa nítida perspectiva teológica, que eu nomeio como teologia do acabamento, pois traduz a ideia de que todas as religiões encontram sua realização na Igreja católico-romana. O novo encontro de Assis situa-se nessa perspectiva, mas pode favorecer novos sinais dialogais. É o que esperamos todos.

Assis também tem um imenso legado religioso por ser a terra de Clara e Francisco. Como esse legado pode inspirar, hoje, o diálogo inter-religioso, especialmente por parte de seus herdeiros “diretos”, ou seja, os cristãos católicos?

Não foi sem razão que João Paulo II escolheu Assis para a realização da primeira Jornada Mundial de Oração pela Paz. É, antes de tudo, um símbolo fundamental para o diálogo e entendimento entre as religiões. E dois nomes, como bem lembrou Wojtyla, estão intimamente ligados na lembrança dessa cidade: Francisco e Clara – “Dois nomes, duas vocações, que recordam os valores evangélicos da caridade, da pobreza, da pureza, da amizade espiritual, da oração e da paz”.

A imagem de Francisco, em particular, traz a singular marca do amor cortês, de um amor intenso e generoso para com os outros, de delicadeza única para com toda a criação. Como bem assinala Chiara Frugoni em sua bela biografia sobre Francisco ("Vida de um homem: Francisco de Assis", 2011), ele “está muito distante daqueles rostos tristes da espiritualidade monástica tradicional”. É dessa alegria e dessa esperança que tanto necessitamos hoje em dia, de uma alegria que possa reaquecer nossas energias vitais para fazer frente ao desencanto crescente.

E aqui me vem também à mente o lindo livro de [José Antonio] Pagola sobre Jesus. Não é fortuito o fato desse livro estar em sua quarta edição no Brasil. É um livro que traduz uma linda imagem de Jesus, como alguém que transmite alegria, saúde e vida. E um amor apaixonado à vida que se soma à sua impressionante capacidade de acolhida do outro. Acredito que é esse “espírito” que deve animar o encontro de Assis, que agora se inicia. Antes de tudo, a possibilidade de transmitir essa essencial vocação de acolhida e de busca da paz, sem as quais não poderá haver um futuro amoroso para o nosso tempo.

(Por Moisés Sbardelotto)

Os santos e os mortos da liturgia católica


Quando a Igreja Católica regia a cultura ocidental, novembro começava sob o signo de maravilhosa dialética: a festa de Todos os Santos e a comemoração de todos os defuntos. Proximidade intencional e carregada de simbolismo e de esperança. As pessoas não permaneciam unicamente entregues à fragilidade, à dor, à saudade, mas acendia-se-lhes a chama da esperança, do consolo.

Acompanham-nos diariamente as fraquezas, os erros, as falhas, de um lado, e, de outro, a morte está a roubar, ininterruptamente, entes queridos de nossa companhia. Em face dessa dupla realidade, restavam-nos o sentimento de culpa e a dor da ausência. Vida escura sem luz no túnel. A liturgia católica trouxe a dupla experiência daqueles que triunfaram sobre o mal - os santos - e a comemoração dos mortos na fé. Assim, ao terminar esta semana, o coração ultrapassava as trevas que o envolviam.

A festa de Todos os Santos tem beleza singular. O calendário litúrgico católico, ao longo do ano, semeia-nos inúmeros exemplos de homens e mulheres extraordinários, desde os seguidores primeiros de Jesus, os mártires, as virgens consagradas, até homens e mulheres de nossos dias. Mas essa ladainha hagiológica soa talvez para muitos como mitos ou ideais muito longínquos. Não lhes toca de perto o coração. Exemplos antes para admirar que para imitar ou para abrir sendas a seguir.

A liturgia vem-nos em auxílio. Resolveu celebrar num único dia todas as pessoas que morreram no amor de Deus e hoje participam da plenitude da vida. Todos eles e elas merecem o nome de santos. Alguém olha para sua casa e recorda-se de uma mãe ou de um pai, ou de uma empregada que primaram pela piedade, por vida simples e humilde. Nunca eles/elas galgarão os altares e se colocarão ao lado de são Francisco ou de santo Inácio. No entanto, na pureza serena de uma vida de fidelidade aos seus, à própria vocação realizam o que rezamos na missa: "A todos que chamastes para outra vida na vossa amizade, e aos marcados com o sinal da fé, abrindo vossos braços, acolhei-os. Que vivam para sempre bem felizes no reino que para todos preparastes". Se eles lá estão, um dia gozarei também da mesma felicidade. Acorda-nos a esperança por força de todos esses santos desconhecidos do grande calendário, mas muito conhecidos de nós no cotidiano. Festa de alegria e encorajamento.

E a comemoração de todos os mortos arranca-nos da tristeza definitiva da morte. Com a cremação, a solidão da morte parece ainda maior. A terra, ao ocultar os mortos, deixa-nos um lugar de lembrança, de consolo, de tipo diferente de presença. As cinzas aludem, porém, de modo forte, a ausência sem lugar. Nada restou a não ser aquele pozinho perdido. Então a celebração litúrgica da Igreja, que ontem não aceitava a incineração, mas hoje o faz, resgata a lembrança dos mortos no correr das orações e ritos religiosos. A festa de Finados tem a força de reatar-nos liames com aqueles que partiram. Eles voltam à lembrança. Em algumas igrejas, lê-se lista interminável de nomes. Embora alguns sintam enfado, no entanto, os ouvidos dos fiéis se abrem atentos para ouvir os nomes queridos. Toda lembrança soa benfazeja!

- João Batista Libânio, S.J.
Reproduzido via Amai-vos

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Qualquer amor


"Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."

- Guimarães Rosa

Vamos quebrar o silêncio

Quebrar o silêncio é necessário, é o que diz uma organização americana que incentiva e dá subsídios a inclusão dos LGBT nas Igrejas protestantes.


Jesus Cristo chamou cada um de nós a amar uns aos outros.

Na sua essência, o Believe Out Loud (BOL) procura ajudar as igrejas viver esse princípio cristão, tornando-as plenamente inclusivas a todas as pessoas, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.

Believe Out Loud é um conjunto de clérigos e líderes leigos, ativistas LGBT e pessoas envolvidas, trabalhando em conjunto para ajudar a comunidade protestante se tornar mais acolhedora para gays e lésbicas.


Veja o site original aqui.


E o belo vídeo:



Então, "sejam TODOS bem-vindos"!

Excelente feriadão!


Rodolfo Viana

Crentes em luta contra a ''rejeição'' das religiões

Hanging sculpture @Guggenheim: Maurizio Cattelan

Está aí um tema que dá um belo debate: a intolerância contra os religiosos. Temos observado por aqui, cada vez mais, manifestações de intolerância com relação às religiões em geral, e ao cristianismo (sobretudo católico) em particular. Já ouvimos que ser "gay católico" é tão paradoxal quanto ser "judeu nazista". Noutra ocasião, ouvimos de um antirreligioso: "vocês, gays católicos, precisam de ajuda para deixar de ser católicos, pois isso faz mal para vocês". (Leia nossa resposta aqui.) Não é assustador ouvir, invertido, o mesmo discurso intolerante que justifica as chamadas "terapias de reversão" da homossexualidade?

Entende-se que houve uma posição de poder ocupada pela Igreja Católica durante séculos da história ocidental e que, a partir do momento em que esse poder se vê abalado, é natural que grupos tradicionalmente oprimidos por esse poder se insurjam - mas até onde a radicalização e a inversão da situação (isto é, a mesma demonização e repressão agora usada contra os religiosos) é de fato necessária politicamente? A partir de onde a denúncia do uso da religião como instrumento de poder e exclusão adquire feições de uma violência injustificável e contra-producente? Por que adotar uma postura extremista que apenas serve para promover e aguçar segregações e violências fundamentalistas de parte a parte?

Curiosamente, por algum motivo desconhecido um dos posts mais lidos aqui no blog nos últimos 7 dias foi um texto sobre a querela entre jovens católicos e manifestantes (em sua maioria, ligados ao movimento LGBT espanhol) por ocasião da Jornada Mundial da Juventude e da visita do Papa a Madri, em agosto passado (leia aqui). A propósito dessa questão, pois, reproduzimos a seguir uma interessante reportagem a respeito da intolerância contra os religiosos na Europa.


Cristianofobia, islamofobia, blasfêmia. Essas palavras, novas ou retomadas do passado, parecem encontrar novamente um efeito raramente igualável. Desejo das religiões de estabelecer "fronteiras 'intransponíveis' e de responder golpe contra golpe", como sugere o antropólogo das religiões Malek Chebel? Sintoma do estado de ânimo de grupos minoritários? Discriminações reais, ou percebidas, dos crentes? Enrijecimento vitimista ou visualização identitária diante de uma secularização inédita? Hipóteses não faltam para explicar as atitudes, mais ou menos espetaculares, assumidas pelos crentes há algum tempo.

Por julgarem-na "blasfema", às vezes até mesmo sem tê-la visto, integristas católicos perturbam há semanas a representação de um espetáculo teatral em Paris. Por ter anunciado a publicação de um número com a imagem do profeta Maomé, o jornal Charlie Hebdo viu o seu site ser hackeado em nome de Alá, e as suas instalações serem incendiadas, na quarta-feira, 2 de novembro. A investigação vai esclarecer as motivações dos incendiários, mas a nova provocação da revista satírica foi a oportunidade para que os muçulmanos lembrassem que a representação do profeta do Islã é considerada pela maioria deles como uma ofensa a Deus, uma blasfêmia.

"Para a maior parte dos crentes, o profeta, mensageiro de Deus, se beneficia por derivação da sacralização outorgada a Deus. Mas não está escrito em nenhum lugar do Alcorão que a sua representação é proibida", lembra Chebel, tradutor do Alcorão. Em sua opinião, o grito de blasfêmia também é "um grito de adesão das pessoas que se sentem minoritárias ou anatematizadas". Mas ele aposta na "maturidade dos muçulmanos" franceses "para encontrar o justo equilíbrio entre o ridículo e a blasfêmia".

"A reabilitação da noção de blasfêmia pode parecer anacrônica para os não crentes, cada vez mais numerosos, enquanto historicamente o blasfemo era necessariamente um fiel", explica o sociólogo das religiões Olivier Bobineau. "Hoje, denunciar uma blasfêmia é um meio para que os crentes recordem, aos olhos, a importância do sagrado. Isso também pode ser interpretado como um sobressalto de fé em uma sociedade desconfessionalizada".

As violências provocadas por obras ou por palavras julgadas blasfemas por crentes não são uma novidade. Em 1988, integristas católicos tinham incendiado o cinema Saint-Michel, em Paris, que projetava A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese, ferindo 13 pessoas. Mas esses modos de ação violentos, executados por grupos ultraminoritários, são geralmente rejeitados pelos seus correligionários.

Em compensação, o que parece ser mais novo é que o sentimento de difamação da religião denunciado por esses militantes exaltados é amplamente compartilhado pelo resto dos crentes. "Tendo se tornado uma minoria na sociedade francesa, os católicos não aceitam mais sofrer diante de um denegrimento que era suportável quando eles eram uma maioria mais sólida", analisa Herve-Pierre Grosjean. Este jovem padre provocou um debate na blogosfera católica, distanciando-se dos integristas que se manifestam contra a peça de Romeo Castellucci.

Diante da percepção de serem "os malvistos" de uma sociedade em grande parte indiferente, os católicos buscam novas formas para se fazerem ouvir. Sinal dessa preocupação é o colóquio previsto para o dia 9 de novembro em Paris, intitulado "O cristianismo ainda terá lugar na Europa?". Organizado pelo movimento Aide à l'Eglise en Détresse (AED) [Ajuda à Igreja que Sofre, em português], reconhecido pelo Vaticano e fundado para apoiar os cristãos perseguidos, especialmente nos países de maioria muçulmana, esse dia de reflexão pretende denunciar "as discriminações contra os cristãos e a rejeição do cristianismo na Europa, onde a fé cristã e a Igreja são regularmente ridicularizadas ou ostracizadas".

"Trata-se de promover a liberdade religiosa", afirma Marc Fromager, diretor nacional da AED, que constata "um movimento de fundo de renegação da nossa cultura". "A cristianofobia também toca ao Ocidente", considera, citando o exemplo da "cultura ou do ambiente da saúde em que as equipes encontram cada vez mais dificuldades para afirmar a objeção de consciência".

Denunciado pelo papa, cujos colaboradores falam abertamente de "cristianofobia", o risco de "marginalização do cristianismo" na Europa tem suscitado a criação de um Observatório Europeu da Intolerância e da Discriminação contra os Cristãos, apoiado pelo Vaticano. Ele pretende chamar a atenção para a "retirada dos símbolos religiosos do espaço público, os estereótipos negativos na mídia" ou as profanações de igrejas e de cemitérios, que os católicos consideram ser insuficientemente denunciados pelos poderes públicos e pela mídia com relação aos mesmos atos cometidos contra lugares judeus ou muçulmanos.

Empenhada na denúncia das discriminações que se presumem estar relacionadas à religião, a comunidade muçulmana também elevou o tom nos últimos anos. Organizado pelo Coletivo contra a Islamofobia na França (CCIF), um congresso também reuniu centenas de pessoas no dia 30 de outubro, com o objetivo de "decretar o estado de emergência perante atos islamofóbicos".

O Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM) promete para dezembro um balanço desses atos e denuncia regularmente um "clima antimuçulmano".

Por capilaridade, uma mesma evolução parece se delinear dentro dos grupos religiosos para defender a visibilidade das religiões no espaço público, revivificar a noção de "sagrado" e (re) estabelecer seus "valores inegociáveis".

- Stéphanie le Bars
Reproduzido via Amai-vos

A irrealidade do medo

Foto: Sarah

À medida em que lemos o Evangelho vemos que há uma escolha diante de nós. A alternativa está entre o amor e o medo. O medo é destrutivo e corrosivo, seja ele medo de doença, guerra ou fome, seja medo do sobrenatural, ou de deuses raivosos e vingativos que precisam ser aplacados com rituais compulsivos. A diferença entre o mundo da barbárie e o mundo civilizado é que a barbárie prospera no medo. A civilização prospera no amor que impulsiona o vigor, a energia, a vitalidade e a criatividade. A energia bárbara é negativa; seu principal impulso é destrutivo, e sua principal arte é a da guerra. A principal arte da vida cristã é a da paz.

Nosso compromisso com a meditação é nossa abertura para a paz do amor redentor de Deus, nossa total aceitação dele, nossa renúncia à fixação em si mesmo e nosso compromisso com a auto-entrega. Enquanto estamos repetindo nosso mantra, não podemos ficar pensando em nós - e é precisamente a obsessão por nós mesmos que nos reconduz à fantasia. Assim, quando percebemos que paramos de repetir o mantra, que nossa mente está divagando, devemos simplesmente retornar a ele e, com ele, para a realidade. Isto é, retornar para Deus, presente em nossos corações. Em outras palavras, retornamos para uma fé que nos impulsiona para além de nós mesmos, para Deus. Todos nós sabemos que esta auto-transcendência é nossa salvação. Fundamentalmente, todos nós sabemos que precisamos encontrá-la no silêncio de nossos corações. As alternativas são: realidade ou ilusão.

A função fundamental da fantasia é tentar nos afastar dos medos e ansiedades que sentimos, criando uma realidade alternativa. Mas o que acontece é que apenas enterramos o medo mais fundo... A função fundamental do Evangelho, que é na verdade seu único fundamento, é a de expulsar o medo, de arrancá-lo com suas raízes, para que possamos ir cada vez mais fundo dentro de um coração sem medo, para lá encontrarmos o amor mais profundo. O grande dom que precisamos compartilhar com o mundo, então, é o de nossa experiência da realidade.

Medite por Trinta Minutos
Lembre-se: Sente-se. Sente-se imóvel e, com a coluna ereta. Feche levemente os olhos. Sente-se relaxada(o), mas, atenta(o). Em silêncio, interiormente, comece a repetir uma única palavra. Recomendamos a palavra-oração "Maranatha" (em aramaico, "Vem, Senhor"). Recite-a em quatro silabas de igual duração. Ouça-a à medida que a pronuncia, suavemente mas continuamente. Não pense, nem imagine nada, nem de ordem espiritual, nem de qualquer outra ordem. Pensamentos e imagens provavelmente afluirão, mas, deixe-os passar. Simplesmente, continue a voltar sua atenção, com humildade e simplicidade, à fiel repetição de sua palavra, do início ao fim de sua meditação.

- John Main, OSB
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil, com grifos nossos

In THE HEART OF CREATION (New York: Continuum. 1998), pgs. 24-25.
Tradução de Roldano Giuntoli

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

"Sou eu inteiro, teoria e prática"


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Meus Queridos,

Tenho um grande amigo que adora fórmula 1, acorda de madrugada, assiste a todas as provas, entende de tudo, mas... nunca aprendeu a dirigir. Não sei porque pensei imediatamente nele quando li o depoimento de um gay ortodoxo. Fui muito tempo um gay não praticante, tanto quanto fui um católico não praticante. De certa forma o "não praticar", seja lá o que fosse, me foi sempre um lugar muito seguro. Também já fui um "super praticante", tanto como gay quanto como católico, e da mesma forma que a "não prática", o "excesso" era também uma forma de defesa, uma forma de não fazer contato com minha inteireza. Hoje acredito cada vez mais que é pelo outro que sou nutrido, que é através do outro que Deus se manifesta a mim. Assim não praticar, seja ser gay ou ser católico, é impossibilitar o encontro com Deus, é cortar Sua palavra, é fechar os olhos ao Seu amor divino. Hoje pela graça de Deus sou praticante, tanto como gay, quanto como católico, e me sinto extremamente confortável com isto, pois sou eu inteiro, teoria e prática.

Paz e Bem

R., Rio de Janeiro

Este depoimento foi publicado originalmente no site do Diversidade Católica, aqui.

Secularismo no Brasil: o novo desafio da Igreja

Imagem: Max De Esteban

Dois terços da população católica do mundo, hoje, está no hemisfério Sul, uma parcela que deve chegar a três quartos até a metade do século. Para discernir para onde a Igreja está direcionada, é fundamental olhar para o que está borbulhando no Sul, e algumas histórias recentes merecem estar na tela do radar católico mundial.

Uma delas vem do Brasil, uma superpotência católica, entre os quatro principais países católicos em termos de população, destinado a ser um definidor do ritmo da Igreja do século XXI.

No Brasil, um respeitado instituto nacional de pesquisa, a Fundação Getúlio Vargas, publicou um novo estudo que sugere que o secularismo – definido, neste caso, como o ato de jogar a toalha em termos de fé e prática religiosas – está fazendo rápidas incursões entre os jovens brasileiros. Com base em 200 mil entrevistas realizadas para o Censo do Brasil de 2010, o estudo conclui que a parcela católica da população brasileira caiu para 68%, seu nível mais baixo desde que os dados do censo começaram a ser coletados em 1872, em parte por causa do elevado percentual de jovens que negam ter qualquer filiação religiosa.

A principal conclusão é a seguinte: o número de pessoas com menos de 20 anos que dizem não seguir nenhuma religião está crescendo três vezes mais rapidamente do que entre as pessoas com mais de 50 anos, sendo que 9% dos jovens brasileiros dizem não pertencer a nenhuma religião.

Esses resultados vão no rastro de outros dados do Brasil. Em 2007, o Pe. José Oscar Beozzo, que dirige o Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular, em São Paulo, disse que, entre 1980 e 2000, o percentual da população brasileira que se identifica como protestante, cuja maioria é pentecostal, subiu de 12% para 17%. No mesmo período, o percentual de pessoas sem filiação religiosa passou de 0,7% para 7,3%, um aumento de dez vezes.

"Esse é o movimento infinitamente mais importante na situação religiosa brasileira", disse Beozzo na época.

Em termos numéricos, o Brasil é o maior país católico do mundo, com seus 163 milhões de católicos, que representam 85% da população. Esses, entretanto, são os totais batismais, enquanto o novo estudo reflete a parcela que realmente se identifica como católica. Entre outras coisas, a diferença entre os dois indica que 17% dos brasileiros hoje nasceram católicos mas posteriormente abandonaram a Igreja.

Abundam as explicações díspares, com vários comentaristas apontando para alguma versão de pelo menos quatro teorias:

  • O boom econômico do Brasil, que convenceu uma parte da juventude de hoje que eles simplesmente não precisam da religião;
  • Suposto distanciamento e arrogância por parte do oficialismo católico, combinado com elementos da doutrina da Igreja que não lidam bem com a juventude de mente progressista, incluindo as posições da Igreja sobre aborto, contracepção e homossexualidade (não surpreendentemente, essa ideia é especialmente popular na ala liberal da Igreja brasileira);
  • Uma excessiva concentração na política por parte da Igreja brasileira, especialmente do que restou do movimento da teologia da libertação, com o resultado de que os jovens de hoje estão espiritualmente à deriva (esse tende a ser a explicação favorita da direita católica);
  • A crescente falta de padres no Brasil, juntamente com as dificuldades na mobilização de leigos para compensá-la (isso é o que muitas vezes se ouve da linha de frente dos agentes de pastoral do país).

Qualquer que seja a explicação que se favoreça, a imagem básica parece clara: uma parcela crescente da geração mais jovem do Brasil está efetivamente se secularizando.

Isso poderia ter implicações para além das fronteiras do país, porque, dada a nova força econômica e política do Brasil, as tendências locais envolvem um vigor regional e internacional mais amplo.

Dois pensamentos sobre o significado disso:

Primeiro, a pergunta do milhão sobre a religião no hemisfério Sul foi, durante muito tempo, se o progresso econômico e político necessariamente andaria lado a lado com a secularização. Não parece haver nenhuma lei férrea. O crescimento econômico da China no último quarto de século, por exemplo, foi acompanhado por uma explosão espiritual.

No entanto, esse parece ser o caso do Brasil, que leva à seguinte reflexão: a América Latina, em alguns aspectos, está mais próxima dos padrões históricos da Europa, em que a Igreja Católica tradicionalmente foi um monopólio imposto pelo Estado. Se o secularismo tomar conta da América Latina mais do que outras regiões, isso poderia ser a confirmação final de que confiar no poder do Estado é, a longo prazo, sempre perigoso para a fé?

Segundo, a ideia fixa da classe dirigente da Igreja no Ocidente se tornou a defesa da identidade católica, como um meio de proteger a Igreja contra a sua assimilação pelo secularismo. Em termos sociológicos, essa é uma "política da identidade", que é um mecanismo de defesa clássico para subculturas em apuros. Os desdobramentos no Brasil sugerem que políticas de identidade semelhantes poderiam tomar forma em outras partes do mundo católico, dando a essa tendência ainda mais resistência.

- John L. Allen Jr.
Reproduzido via Amai-vos

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Depoimento de Leda Ozório, mãe de uma das gaúchas que conquistaram o direito ao casamento igualitário


Duas semana depois de o STJ aprovar o processo sobre o casamento igualitário, trazemos o depoimento de Leda Ozório, mãe de uma das gaúchas que venceram o processo. Confira!

Sou Leda, mãe da Kátia, companheira, amiga e parceira de todas as horas da Leticia, as duas meninas (para as mães sempre serão meninas) que conseguiram, após anos de tentativas e negativas, o direito de legalizarem sua união tal como todo casal que constrói um lar em convivência de paz, amor e harmonia.

Meu depoimento é para deixar público que me orgulho desta filha carinhosa, inteligente, batalhadora, trabalhadora, estudiosa, de fibra, que OUSOU este fato inédito.

Pois infelizmente nossa sociedade é hipócrita. Convive com homens espancando esposas, matando ex-companheiras, incendiando namoradas, mas finge não aceitar pessoas do mesmo sexo convivendo com carinho e afeto.

Conflitamos ainda com religiosos que se dizem portadores da palavra de Deus e condenam o homossexualismo. Quantos dogmas da Igreja foram derrubados depois de muitos anos, provando que a palavra dos homens não é infalível? Pois sendo Deus Puro Espírito não vê o físico das pessoas, cor da pele, religião, sexo, comprimento do cabelo, etc., mas sim a leveza de sua alma e a pureza de seus pensamentos.

Quero deixar duas conclusões:
1º - Este fato inédito teve tanto assédio da mídia quanto o de Leila Diniz, que ousou ser a primeira mulher grávida a usar biquíni. Torçamos para que se torne tão trivial quanto aquele;
2º - Um ser humano não é melhor somente por ser heterossexual.

ESTÁ NA HORA DE ACABAR COM PRECONCEITOS.

- Leda Ozório
Reproduzido via SOMOS

Como mudou a ideia de ''natureza''

Imagem: Globaia 

O ser humano está geneticamente programado para mudar continuamente. A análise é do filósofo italiano Roberto Esposito, em artigo para o jornal La Repubblica, 30-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Eis o texto.


Natureza humana. O que devemos entender por essa expressão? Como se conjuga a aparente fixidez da natureza com a fluidez da experiência humana? Em suma, a nossa vida pertence ao cenário móvel da história ou ao repetitivo da natureza?

A essa questão – no centro do próximo Festival de Filosofia de Modena –, a filosofia do século XX deu duas respostas diferentes. De acordo com a primeira, a natureza humana não é propriamente uma natureza, mas sim uma condição, definida precisamente pela distância da simples vida biológica. Para Heidegger, só se souber se subtrair aos próprios vínculos naturais, antecipando a experiência da morte, é que o homem experimentará a sua própria dimensão mais autêntica.

Hannah Arendt retomou, pelo menos a partir desse ponto de vista, as teses do mestre. Para expressar a própria politicidade original, o indivíduo deve ultrapassar a esfera da reprodução biológica e entrar no mundo da ação e do discurso. Não é muito diferente, sob esse perfil, a posição de Sartre. Quando ele defende que "o homem faz a si próprio", ele retoma a ideia humanista segundo a qual, ao contrário de todos os outros animais, o ser humano sempre pode modificar a sua própria vida, transcendendo a situação dada com um livre escolha.

Esses discursos implicam em uma radical historicização da experiência humana. Para Heidegger, o nosso "existir" tem um caráter constitutivamente temporal. É história e não natureza. O próprio corpo do homem – não por acaso substancialmente ausente da sua reflexão – é algo secundário com relação aos elementos propriamente humanos da existência. É curioso que algumas vertentes da cultura pós-humanista se situam no mesmo horizonte no momento em que imaginam, à luz dos extraordinários desenvolvimentos da biotecnologia, uma espécie de libertação da existência do seu substrato natural e até da dimensão corpórea.

A essa perspectiva, ainda desde o final do século XIX, se opõe uma outra concepção, que visa, ao contrário, a identificar a realidade inteira do homem com o seu substrato natural. Arrancado da sua dimensão histórica e espiritual, o ser humano é espremido do seu simples dado biológico. Naturalmente, nesse caso, ele não pode dispor de si mesmo. A sua vida está vinculada a um elemento hereditário que ele jamais poderá transcender. Quem a decide não são as suas escolhas voluntárias e racionais, mas sim seus componentes orgânicos e, em última análise, o seu sangue. Embora distantes das consequências nefastas às quais essa concepção foi levada, algumas tendências da filosofia contemporânea assumem tal modelo determinista, apenas com a substituição da bagagem genética pelo dado hereditário. Se o homem é tão caracterizado pelos seus próprios genes a ponto de não poder escapar da sua influência, independentemente das vicissitudes da história e dos estímulos ambientais, então seu destino está selado.

Mas, nesse projeto de naturalização da vida humana, há algo ainda mais preocupante. Trata-se da tendência de assumir aquilo que se apresenta com a linguagem científica da descrição em termos de prescrição, deslizando-se assim da esfera do ser para a do dever-ser. O que é apresentado como um dado é imposto como uma norma da qual não se pode derrogar. Além disso, desde sempre, a imagem da natureza humana foi construída, e utilizada, em função do contraste ou da exclusão em relação a categorias de homens considerados diferentes ou inferiores.

Nesse ponto, pareceria não haver alternativa: ou se dissolve a natureza na história com um claro efeito antirrealista ou se bloqueia a história na natureza com resultados hierárquicos e excludentes. Na realidade, existe uma possibilidade diferente, capaz de não anular nenhum dos dois polos na exclusividade do outro. Trata-se do caminho já aberto por Darwin. Situando o homem em um horizonte natural constituído pela cadeia das espécies vivas, ele estava longe de contrapor a natureza à história. Ao contrário, deve-se justamente a ele um conceito de "história natural" que não exclui, mas sim implica uma modificação da natureza em formas sempre casuais e imprevisíveis.

Nunca como hoje está claro que os elementos de invariância natural – ou seja, as características específicas que distinguem a nossa espécie de todas as outras espécies vivas – também pode, ser submetidos a mutação. O que qualifica a natureza humana é precisamente a sua capacidade de enriquecer a sua própria dotação inata, abrindo uma gama de possibilidades aquisitivas que, por sua vez, se refletem na sua própria constituição genética: a partir desse ponto de vista, pode-se dizer que o homem está geneticamente programado para mudar continuamente a sua própria programação.

Se a história é amplamente determinado pela natureza, a natureza é, por sua vez, sempre modificada pela história. Naturalmente, quando se fala de natureza humana, é preciso ter presentes os riscos desse cruzamento. Mas, diante de tudo isso, pareceria vão opor uma atitude nostálgica e regressiva. O caminho para um retorno às velhas dicotomias que estruturaram o saber moderno está agora bloqueado. Só podemos nos confrontar com o novo cruzamento de público e privado, pessoa e corpo, natureza e história, embora conscientes das enormes responsabilidades que daí derivam.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O psicanalista explica: por que a homossexualidade incomoda tanto?


Da Revista Trip de outubro, edição especial sobre diversidade sexual:

De onde vem a homofobia? Como funciona o preconceito de quem acha que não o tem? Para responder a essas e outras perguntas, convocamos o psicanalista Contardo Calligaris - que sonha com um tempo em que ser homo, hétero ou bi não seja fundamental para definir nossas identidades.


Contardo Calligaris é um homem acostumado a temas espinhosos. O psicanalista italiano de 63 anos, nascido em Milão e radicado em São Paulo, assina colunas toda quinta-feira na Folha de S.Paulo, e a trinca sexo, amor e relacionamentos é uma de suas constantes. Nesta edição de Trip dedicada à diversidade sexual, convidamos o terapeuta para refletir sobre por que, afinal, a homossexualidade provoca tanto incômodo. “Ninguém se incomoda com algo a não ser que isso seja objeto de um conflito interno. O homofóbico tem dificuldade em conter traços de homossexualidade que estão dentro dele”, responde Contardo. Segundo o psicanalista, as piadinhas sobre gays, tão comuns nas rodas de homens, celebram um laço que, no fundo, é homossexual. “Ninguém conta uma piada de veado para uma mulher, porque para ela é uma coisa totalmente ridícula. Ela vai virar e dizer: ‘Hein?’.”

Na entrevista a seguir, Contardo aponta para o enorme preconceito contra gays e lésbicas que ainda persiste no Brasil, fala sobre o papel das novelas na formação da opinião pública e defende a aprovação da lei que criminaliza a homofobia. “Essa garantia legal é crucial”, afirma. O psicanalista sai em defesa do “politicamente correto”, que, aqui, não funciona como nos EUA. “Lá, alguém como o [deputado federal Jair] Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo”, acredita. Seu desejo, diz, é que a sociedade avance para um estágio em que se possa viver livremente de forma “junta e misturada”, ou seja, em uma realidade na qual ser heterossexual ou homossexual não seja tão importante para definir as nossas identidades.

Por que a homossexualidade incomoda tanto?
Vários psicanalistas e psicólogos já formularam sobre isso. Existe quase uma regra que quase nunca se desmente na prática. Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o que acontece é: “Estou com dificuldades de conter a minha própria homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente porque isso me ajuda a conter a minha”. O problema de toda neurose é que a gente reprime muito mais do que precisa. A neurose multiplica a repressão. Se eu tenho uma vaga impressão de que eu poderia ter uma atração por um colega de classe, então acabo construindo uma série de comportamentos que me convençam de que não só não tenho atração nenhuma como eventualmente posso chamar esse colega de veado, criar um grupo de pessoas que compartilham daquela opinião e esperar ele sair da escola para enchê-lo de porrada.

O homofóbico necessariamente é um gay enrustido?
Eu não diria que é um gay enrustido. A homofobia responde a uma necessidade de reprimir uma parte da sexualidade, mas não significa necessariamente que essa pessoa seja homossexual. É alguém que está reagindo neuroticamente a traços de homossexualidade que estão em cada um. Isso já é suficiente para criar a homofobia.

A sociedade brasileira ainda é muito preconceituosa? O politicamente correto mascara isso?
O politicamente correto no Brasil é muito precário se comparado ao dos Estados Unidos. Aqui as pessoas se autorizam a dizer coisas que lá seriam impensáveis. O Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo. Não tenho nada contra o politicamente correto, mesmo os seus excessos, porque não estou convencido de que as falas sejam inocentes. As piadas de discriminação deveriam ser proibidas. Deveria ser possível agir legalmente contra isso. Mas, sim, acho que a sociedade brasileira ainda é fortemente preconceituosa. O engraçado é que as formas mais triviais de preconceito se expressam em grupos que acabam sendo homossexuais. O clássico é a piada de veado, que faz todo mundo rir e ocorre numa roda de homens na padaria. Esses homens celebram rindo um laço entre eles que, no fundo, é homossexual. Os quatro skinheads que saem à noite para dar porrada na praça da República substituem o que seria uma homossexualidade neles batendo em quem eles supõem ser homossexual.

Você é a favor da lei que criminaliza a homofobia?
Sou totalmente a favor. Incitar o ódio e a exclusão não dá. A liberdade de expressão não justifica ir contra direitos fundamentais.

Como funciona o preconceito das pessoas que dizem não ter preconceito? Como reagem pais que se consideram esclarecidos quando descobrem que o filho é gay?
No caso dos pais, tem uma parte da reação que não é necessariamente homofóbica. Há um sentimento de perda e preocupação. Eles presumem que não terão netos, isso é uma perda. Eles têm uma apreciação realista da sociedade. Pensam: “Se o meu filho for gay, a vida dele será mais dura. Não poderá viver em qualquer lugar, vai ter que morar em grandes metrópoles. Quando for alugar um apartamento, talvez encontre um dono que não vai gostar de saber que ele vive com outro homem. Uma noite pode estar na praça da República e ser agredido. Quando for fazer a queixa na delegacia, pode ouvir que, se não fosse veado, isso não teria acontecido. Vai trabalhar numa multinacional e todo mundo vai ter a foto da mulher ou do marido em cima da mesa. Ter a foto de alguém do mesmo sexo provavelmente não vai contribuir para o progresso da carreira dele. Enfim, haverá uma série de limitações”. Pode ser que para nossos filhos e netos isso evolua, mas a realidade hoje é essa.

Esses pais se culpam? Perguntam: “Onde foi que eu errei?”
Hoje muito menos, o que prova que a homossexualidade está sendo menos considerada como patologia do que no passado. A homossexualidade é produzida por uma série de coisas complexas, algumas, aliás, não têm nada a ver com o tipo de criação que a pessoa recebeu. Responsabilizar os pais é algo grotesco. Agora, nos anos 70, sim. Eu atendi pais que se recusavam completamente a aceitar que os filhos eram gays. E tive pacientes homossexuais que tinham perdido o contato com os pais a partir do momento em que saíram do armário.

Como você vê a representação dos gays nas novelas?
A existência de gays como personagens positivos ou simplesmente aceitos tem um efeito importante. A novela das nove é a grande formadora de opinião no Brasil. Às vezes tem até uma capacidade de antecipar e transformar a visão sobre as coisas. Nem sempre o que aparece nas novelas é porque os brasileiros mudaram. Às vezes os brasileiros mudam porque apareceu na novela. É pequena a antecipação, mas ela existe. A novela pode se propor a escandalizar um pouco, permitir que as pessoas pensem um pouco além do que elas pensavam antes.

Homossexualidade é genética ou construída? Ou nem cabe mais essa questão?
É um debate aberto. O que todo mundo sabe hoje é que a genética não é o destino de ninguém. Mesmo que existisse um gene da homossexualidade, que, se existe, ainda não foi encontrado, ele precisaria ser posto em ação. Os nosso genes se realizam ou não a partir de uma série de questões relacionadas ao ambiente – geofísico e humano. Imaginar que exista uma separação rigorosa entre o genético e o construído é ingênuo. As coisas se misturam. O grande argumento a favor da tese de que é genético é que existem pesquisas com gêmeos que mostram que, em univitelinos, se um é homossexual a maioria dos irmãos também é. Algo em torno de 60%. Agora, isso é um argumento a favor da tese? Na verdade, é um argumento contra porque, se são univitelinos, deveria ser 100%, já que o patrimônio genético dos dois é rigorosamente igual. O caso é interessante porque mostra que a coisa é mais complexa.

Crianças criadas por casais homossexuais sofrem de dificuldades específicas? Seu desenvolvimento é diferente do de crianças de casais heterossexuais?
Isso já está totalmente estabelecido. Há um campo de pesquisas importante nos EUA e em alguns países da Europa, onde já há um bom tempo os casais homossexuais foram autorizados a adotar crianças. Está absolutamente claro que as estatísticas, tanto do futuro da vida sexual dessas crianças como da patologia eventual delas, são absolutamente idênticas às das crianças criadas por casais héteros. Acho que isso não deveria nem mais ser tema de conversa. Porque os resultados estão lá, são conhecidos.

O preconceito é maior em relação a casais de homens que desejam adotar filhos?
É possível. Até porque um dos grandes mitos da homofobia é que as pessoas, sobretudo as mais ignorantes, confundem homossexualidade com pedofilia. Então elas perguntam: “Mas como um casal de homossexuais masculinos vai adotar crianças? Eles vão estuprá-las”. E a pedofilia pode ser totalmente heterossexual.

Você já sentiu atração por homens? Teve vontade de beijar e transar com um homem?
Não, atração nesse sentido não... Mas cresci nos anos 60, uma época de amor livre. Tudo aquilo era bastante aberto e misturado.

Deu para experimentar bastante coisa?
Sim.

Você já questionou a sua orientação sexual?
Questionar a orientação sexual já é em si um problema porque, no fundo, eu não acredito muito nessa distinção entre homossexual e heterossexual como um divisor de águas. Do ponto de vista da personalidade de alguém, é um fato muito marginal. Muito mais do que se ela transa com pessoas do mesmo sexo ou não, o que define uma pessoa é a fantasia sexual com a qual ela funciona. Um homossexual cuja sexualidade é alimentada numa fantasia sadomasoquista tem muito mais a ver com um heterossexual com fantasia parecida do que com outro homossexual que, ao contrário, gosta de transar ternamente, dando beijinhos. O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais.

Há quem diga que no futuro as pessoas vão se relacionar independentemente do gênero. Seria tudo meio “junto e misturado”. Você concorda com isso?
Eu preferiria que fosse assim. A homossexualidade se tornou uma identidade necessária para tempos de luta. Nos últimos 30 ou 40 anos e certamente nas próximas décadas ainda terá que se afirmar para que haja uma paridade de direitos real e concreta. Mas, uma vez retirada essa necessidade de luta, não sei se a escolha de gênero do objeto sexual será o mais importante para definir a identidade de alguém... Sou homossexual ou sou heterossexual. Sim, e daí? Good for you. Não sei se verei esse novo mundo, mas espero que isto aconteça: que essa identidade se torne insignificante, pois não será tão necessária.

''Salvemos a Igreja''


Em seu novo livro Salviamo la Chiesa (Ed. Rizzoli), o teólogo Hans Küng aborda os abusos sexuais e a crise do catolicismo: "O que torna doente a situação atual é o monopólio do poder e da verdade, o clericalismo, a fobia sexual e a misoginia". Das mulheres ao celibato, o teólogo apresenta as reformas necessárias depois dos escândalos.

O trecho do novo livro foi publicado no jornal La Repubblica, 01-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Eis o texto.


Na situação atual, não posso assumir a responsabilidade de me calar: há décadas, com resultados alternativos e, no âmbito da hierarquia católica, modestos, chamo a atenção para a grande crise que se desenvolveu no interior da Igreja, de fato, uma crise de liderança. Foi necessário que surgissem os inúmeros casos de abuso sexual no seio do clero católico.

Abuso ocultados por décadas por Roma e pelos bispos de todo o mundo, para que essa crise se manifestasse aos olhos de todos como uma crise sistêmica que requer uma resposta sobre bases teológicas. A extraordinária encenação das grandes manifestações e das viagens papais (organizadas de vez em quando como "peregrinações" ou "visitas de Estado"), todas as circulares e as ofensivas midiáticas não conseguem criar a ilusão de que não se trata de uma crise duradoura. Isso é revelado pelas centenas de milhares de pessoas que, só na Alemanha, ao longo dos últimos três anos, abandonaram a Igreja Católica e, em geral, a distância sempre maior da população com relação à instituição eclesiástica.

Repito: preferiria não escrever este texto. E não o teria escrito:

1) se tivesse se cumprido a esperança de que o Papa Bento XVI indicaria à Igreja e a todos os cristãos o caminho para proceder no espírito do Concílio Vaticano. A ideia havia nascido em mim durante o amigável colóquio de quatro horas ocorrido com o meu ex-colega de Tübingen em Castel Gandolfo, em 2005. Mas Bento XVI continuou teimosamente no caminho da restauração traçada pelo seu antecessor, tomando distância do Concílio e da maioria do povo da Igreja em pontos importantes e fracassou com relação aos abusos sexuais dos membros do clero em todo o mundo;

2) se os bispos verdadeiramente tivessem assumido a responsabilidade colegial com relação a toda a Igreja conferida a eles pelo Concílio e se tivessem se manifestado nesse sentido com palavras e com os fatos. Mas, sob o pontificado de João Paulo II e Ratzinger, a maior parte deles voltou ao papel de funcionários, simples destinatários das ordens vaticanas, sem demonstrar um perfil e autônomo e uma tomada de responsabilidade: as suas respostas aos recentes desenvolvimentos no seio da Igreja também foram titubeantes e pouco convincente;

3) se a categorias dos teólogos tivesse se oposto com força, publicamente e fazendo frente comum, como ocorria antigamente, à nova repressão e à influência romana sobre a escolha das novas gerações de estudiosos nas faculdades universitárias e nos seminários. Mas a maior parte dos teólogos católicos alimenta o fundado temor de que, ao tratar criticamente de modo imparcial os temas que se tornaram tabus no âmbito da dogmática e da moral, serão censurados e marginalizados. Apenas alguns poucos ousam apoiar a KirchenVolksBewegung, o Movimento Popular pela Reforma da Igreja Católica difundido internacionalmente. E não obtêm apoio suficiente nem mesmo dos teólogos luteranos e dos líderes dessa Igreja, porque muitos deles descartam as demandas de reforma como problemas internos ao catolicismo e, na prática, alguns às vezes antepõem as boas relações com Roma à liberdade do cristão.

Como em outras discussões públicas, nos debates mais recentes sobre a Igreja Católica e as outras Igrejas, a teologia também teve um papel reduzido e se deixou escapar a possibilidade de exigir, de modo decisivo, as reformas necessárias.

Em muitos lugares, me pedem e me encorajam continuamente a tomar uma posição clara sobre o presente e o futuro da Igreja Católica. Então, no fim, em vez de publicar artigos dispersos na imprensa, decidi redigir um texto coeso e abrangente para ilustrar e motivar aquilo que, depois de uma análise atenta, eu considero o núcleo da crise: a Igreja Católica, essa grande comunidade de fiéis, está seriamente doente, e a causa da sua doença é o sistema de governo romano que se afirmou ao longo do segundo milênio, superando todas as oposições e que rege ainda hoje.

As suas características salientes são, como será demonstrado, o monopólio do poder e da verdade, o juridicismo e o clericalismo, a fobia sexual e a misoginia, e um uso da força religioso e também profano. O papado não deve ser abolido, mas sim renovado, no sentido de um serviço petrino orientado à Bíblia. O que deve ser abolido, ao contrário, é o sistema de governo medieval romano. A minha "destruição" crítica está, portanto, ao serviço da "construção", da reforma e da renovação, na esperança de que a Igreja Católica, contra toda a aparência, continue sendo vital no terceiro milênio.

(...)

Certamente, alguns sacerdotes vivem a sua condição de celibato aparentemente sem grandes problemas, e muitos, por causa da enorme carga de trabalho que paira sobre eles, quase não seriam capazes de se preocupar com uma vida de casal ou de família. Vice-versa, o celibato obrigatório também leva a viver situações insustentáveis: vários sacerdotes desejam ardentemente o amor e o calor de uma família, mas, na melhor das hipóteses, só podem ter, escondida, uma relação eventual, que em muitos lugares se torna um "segredo" mais ou menos público. Se, depois, de uma relação, nascem filhos, as pressões que vêm de cima levam a mantê-los escondidos com consequências devastadoras sobre a vida dos interessados.

A correlação entre os abusos sexuais dos membros do clero contra menores e a lei sobre o celibato é continuamente negada, mas não podemos deixar de notá-la: a Igreja monossexual que impôs a obrigação do celibato pôde afastar as mulheres de todos os ministérios, mas não pode banir a sexualidade das pessoas aceitando, assim, como explica o sociólogo católico da religião Franz Xaver-Kaufmann, o risco da pedofilia. As suas palavras são confirmadas por muitos psicoterapeutas e psicanalistas.

É desejável que seja reintroduzido o diaconato feminino, mas essa medida, por si só, é insuficiente: se não for acompanhada pela permissão de ter acesso ao presbiterado (sacerdócio), ela não levará a uma equalização dos papéis, mas sim a uma deferência da ordenação feminina. Um serviço que lhes dá a mesma dignidade dos homens, completamente diferente da posição e da função subalterna que inúmeras mulheres dos "movimentos" ocupam recentemente no âmbito da Cúria Romana.

O fato de que, no seio da Igreja Católica, a resistência e, em determinadas circunstâncias, também a desobediência podem recompensar é demonstrado pelo exemplo das coroinhas. Anos atrás, o Vaticano proibiu que meninas e jovens mulheres servissem a missa. A indignação do clero e do povo católico foi grande e, em muitas paróquias, simplesmente continuou-se a mantê-las. Em Roma, a situação foi, a princípio, tolerada e, por fim, aceita. Assim mudam os tempos.

De fato, um artigo publicado no dia 7 de agosto de 2010 no L'Osservatore Romano elogiou essa evolução como uma superação de uma importante fronteira, já que hoje não se pode atribuir à mulher alguma "impureza", e, desse modo, foi eliminada uma "desigualdade profunda".

Quanto tempo será preciso para que, no Vaticano, entendam que o mesmo argumento vale para a consagração sacerdotal, ou melhor, a ordenação feminina? Muito depende da posição e do compromisso dos bispos.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Para onde rumam as crenças religiosas?

Imagem daqui

Dois livros recentes oferecem uma interessante perspectiva sobre a situação da religião nos Estados Unidos e o que podemos esperar de quem está chegando à idade adulta.

O primeiro, FutureCast: What Today's Trends Mean for Tomorrow World (Barna Books), foi escrito por George Barna, um prolífico escritor que fundou o Barna Research Group. Baseado em pesquisas de opinião, o livro analisa onde está a sociedade atual numa série de temas sociais.

Três dos capítulos tratam da prática religiosa. A pertença religiosa se manteve estável, com 84% das pessoas se considerando cristãs em 1991 e 85% em 2010. Barna observa, porém, que muitos se consideram cristãos mas não praticam a religião.

Por exemplo, só 45% crêem “firmemente” que a bíblia acerta em todos os princípios que ensina. Esta cifra cai para 30% entre os nascidos de 1984 em diante. Só 34% dos adultos acreditam que existe uma verdade moral absoluta.

Barna indica que entre os adultos pertencentes a uma igreja cristã só a metade afirma estar comprometida de modo profundo com a fé cristã.

Espiritual

Uma das últimas mudanças na identidade religiosa é o aumento dos que se consideram “espirituais mas não religiosos”. Cerca de um quarto dos adultos se qualificam assim; entre os menores de 30 anos, esta é a norma.

Também há um aumento de formas alternativas de igreja. As igrejas-lar, de grupos de pessoas que se reúnem numa casa, começam a ficar populares nos Estados Unidos. Outras formas alternativas incluem o que Barna denomina cyberigrejas, com reuniões via internet.

Tornou-se também comum que os norte-americanos mudem de igreja. Barna descobriu que não são os fatores doutrinais os que mais motivam a trocar de igreja, e sim razões muito mais subjetivas, ligadas a personalidades, conveniência, potencial de relações e experiências.

Adultos emergentes

O segundo livro se concentra num grupo mais reduzido de pessoas. Christian Smith, professor de sociologia na Universidade de Nôtre Dame, fez uma série de entrevistas com uma ampla gama de pessoas de 18 a 23 anos, grupo que os sociólogos chamam de “adultos emergentes”. Os achados estão no livro Lost in Transition: The Dark Side of Emerging Adulthood (Oxford University Press).

O livro enumera fatores cruciais da formação desses jovens:

- O espetacular crescimento da educação superior, que significa que muitos estendem sua educação até depois dos 20 anos de idade.

- O adiamento do casamento, que trouxe uma liberdade sem precedentes durante a década posterior ao fim dos estudos.

- Mudanças econômicas que tornam mais difícil para os jovens encontrar um trabalho estável e bem remunerado.

- A vontade dos pais de apoiar economicamente os filhos até bem depois dos 20 anos.

- A disponibilidade do controle de natalidade, que desligou as relações sexuais da procriação.

- A difusão de teorias pós-estruturalistas e pós-modernistas que promovem o subjetivismo individualista e o relativismo moral.

O livro começa com o longo capítulo “À deriva moral”. Os jovens têm uma visão muito individualista da moral, que os leva a dizer que não devemos julgar ninguém moralmente, porque todos têm direito a opiniões pessoais. Uma estudante universitária explicou, por exemplo, que não colava nas provas, mas se abstinha de julgar os companheiros que colavam.

Bobo

Segundo esta postura, “algumas coisas estão certas e outras são bobas, mas não está provado que algo seja objetiva e moralmente bom ou mau”.

O relativismo moral caracteriza muitos dos entrevistados, grande parte dos quais expressaram ideias racionalmente inconsistentes.

A ideia de que a moral é uma construção da sociedade e da cultura pode chegar tão longe num debate que um jovem não exprimiu juízo negativo algum sobre a escravidão. Outro defendeu a retidão moral dos terroristas que causam a morte de multidões.

“Eles [os terroristas] são assim, fazem o que acham que é o melhor, e por isso fazem o bem”. Esta foi uma parte da explicação dada por esse jovem.

Um terço dos entrevistados manifesta um relativismo muito forte, e os outros dois terços, embora menos intensamente, também se mostram relativistas.

Todos os adultos emergentes acreditam, de alguma forma, em algo chamado “moral”. Os sociólogos descobriram que, ao serem perguntados sobre as fontes da moral, a maior parte de suas respostas não resistia a um exame crítico básico.

34% declarou que não sabia o que tornava algo moralmente correto ou incorreto, e alguns sequer entenderam as perguntas sobre o assunto.

As respostas dos demais foram bastante diversas. Alguns acham que a moral se baseia no que outras pessoas pensam de alguém. 40% citou este critério.

Outros descreveram a base da moral em função de melhorar ou não a situação das pessoas.

Em sua conclusão do capítulo sobre a moral, os autores apontaram que os adultos emergentes têm muito pouca bagagem para encarar os desafios do presente e do futuro, e formam uma geração que fracassou na formação moral.

Mesmo evitando generalizar as pesquisas de opinião feitas com grupos pequenos, as evidências em ambos os livros indicam a dimensão dos desafios das igrejas e de todas as pessoas preocupadas com a moral.

- Pe. John Flynn
Reproduzido via Amai-vos

A fé é a experiência íntima do ser amado por Deus

Arte: Judith Braun

Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)

* * *

Didier Long, 40 anos, foi monge beneditino durante dez anos. Artista plástico, é hoje chefe de uma empresa, após ter sido consultor em McKinsey. Seu site pessoal é www.didierlong.fr. Ele aceitou conceder uma entrevista por e-mail para a IHU On-Line, na qual fala da experiência de viver como monge e passar a ser marido e pai de família. Ele é autor de diversos livros, dentre os quais citamos o mais recente Pourquoi nous sommes chrétiens ["Por que nós somos cristãos"], sobre o qual ele também fala em suas respostas. Confira a visão que esse cristão tem ao argumentar sobre sua fé.

As razões para ainda ser cristão na sociedade da tecnologia e da ciência
As ciências e as tecnologias não são contrárias à fé. Elas nasceram da razão humana. Esta razão, este “verbo” designa a capacidade de abstração que possui o estranho animal chamado homem. Esta faculdade de simbolização ligada à linguagem permite fabricar um avião em três meses, enquanto a história da evolução levou milhões de anos para que os pássaros voassem. As ciências e as tecnologias podem ajudar a combater a doença, a morte, o sofrimento. Elas são “boas” no sentido em que o Gênesis diz: “E Deus viu que isto era bom”.

O processo de “modernidade” é este lento trabalho da razão ocidental, que permitiu ao homem controlar a natureza pela ciência e pela tecnologia. Quem gostaria de voltar atrás? Ao tempo da vela e da carroça? O “velho bom tempo” é, sem dúvida, uma ilusão. O problema, como destacam pensadores como Adorno, é que a razão operacional que organiza toda nossa existência, colocando cada coisa em seu devido lugar, parece em seguida ter controlado o próprio homem no século XX. Corremos o risco de nos tornarmos marionetes de sistemas oriundos da razão operacional: a globalização, as trocas financeiras mundiais, as crises econômicas, os desajustes climáticos, o esgotamento dos recursos fósseis do planeta, que ninguém mais parece controlar.

Entretanto, ninguém se satisfaz em ser uma função. Não somos coisas. A questão mais exata é, então, como encontrar a esperança neste mundo desencantado de seus deuses no qual o homem tem cada vez menos lugar? O que é o homem na verdade? E é aí que a fé pode nos ajudar. A fé não diz como ir ao céu. Para isso, existem boas companhias aéreas... E, que eu saiba, as igrejas não querem ser concorrentes! Mas, por que ir ao céu? A fé questiona o sentido de tudo isso. “Os céus proclamam a glória de Deus” como diz um salmo, mas é uma afirmação poética. Parece-me, então, que pode existir uma visão humanista, uma paixão por este mundo, pelas ciências e as tecnologias, que é acompanhada de uma reflexão sobre seu poder de liberação do homem. Como ser verdadeiramente humano?

A fé em Jesus, no Deus Uno e Trino, na ressurreição e na segunda vinda do Cristo.
Não há argumento para crer. A fé não é da ordem da razão e da inteligência, nem uma receita. É a experiência íntima do ser amado por Deus. Essa experiência de ser seu filho e sua filha que cada um de nós pode fazer simplesmente “se recolhendo em seu secreto”, como diz o evangelho: “Teu pai te vê no teu secreto...”, encontrando-se no fundo de seu coração. A fé é como o amor, ela é sensível, experimental. Quanto mais se acredita, mais se compreende e quanto menos se acredita, menos se compreende. Assim sendo, podemos, em seguida, refletir sobre tudo isso para tentar compreender. O que pensar de um lugar onde faz noite a metade do tempo e onde toda vida se estagna, apodrece e morre? Pode-se de fato ter esta terra como único horizonte? A realidade é que somos projetados desde o nosso nascimento nesta terra hostil, onde a morte é mais provável que a sobrevivência. Seja lá o que fizermos, a vida humana é um combate perdido por antecipação, cada dia que passa nos aproxima da morte. O homem é talvez este deus que ele acredita, mas a humanidade não pode ser nada além de uma fina camada de mofo na superfície de uma laranja azul! O horizonte no qual vivemos é o caos, e a fé nos ajuda a não nos desesperarmos. Tudo isto tem uma razão de ser, tem um sentido.

Esta meditação “atéia” da realidade pode nos ajudar a nos seguramos às únicas coisas que finalmente ficam: a amizade, o amor, e tudo o que já nos permite experimentar um pouco da eternidade. Tudo o que não damos está perdido. É a verdadeira lógica da vida. Esta lógica de doação que é o coração da vida, seu motor, nos mantém no ser a cada instante e este motor não morre. A fé é então uma boa aposta! A Trindade é uma maneira um pouco complicada de contar esta troca gratuita de amor e doação, este desinteresse total ao coração de Deus.

Os valores do cristianismo e as lições de Jesus
Parece-me que é uma verdade que temos dificuldades de aceitar: a perfeição que proclama o cristianismo é que a vida cristã é somente uma vida humana, uma humanidade realizada em plenitude. É o que os primeiros gregos que se tornaram cristãos tiveram mais dificuldades em admitir. Que Jesus seja Deus causava menos problemas no mundo antigo, no qual os ancestrais eram divinizados e adorados. Entretanto, que Deus tenha se tornado homem era um escândalo insuportável. Esta humanidade de Deus era tão difícil de ser aceita que as assembléias de administradores diocesanos, os concílios, vão levar quatro séculos para defini-la contra Marcio, Valentin e outros docentes que diziam que Deus não havia verdadeiramente sofrido neste mundo, que ele era mais Deus do que homem... “A glória de Deus é o homem vivo” dirá Irenée de Lyon, acrescentando também “a vida do homem é de ver Deus”. A camaradagem com Cristo não nos instala então em um céu desumano que correria o sério risco de ser somente a projeção de nossos sonhos ilusórios, tudo o que não somos ou sonhamos ser: poderosos, belos, ricos... Deus nos acolhe em nossa miséria e não no que acreditamos ser nossa grandeza, é uma bofetada para nossas maneiras habituais de pensar, e isso nos liberta de nossos velhos ídolos cansados.

Para sermos mais humanos
Este cuidado de Deus com nossa fraqueza que é manifestado por sua morte na cruz, seu perdão, sua presença misteriosa no próximo que vem a nós em sua fragilidade e sua miséria, deveria fazer de nós, seres infinitamente humanos. De um cuidado do qual somos incapazes por nossas próprias forças e que todos os seres vivos compreendem, acreditando ou não. Fomos acolhidos neste mundo, braços nos carregaram, fomos alimentados, caminhamos em estradas que não construímos. A vida carrega todos os vivos e somos seus hóspedes de passagem... Acreditando ou não, todos os seres vivos compreendem intuitivamente o que é o amor.

Quais são os maiores desafios do cristianismo para o século XXI?
O grande desafio para o cristianismo no século XXI é o encontro de outras culturas e religiões. É claro que as religiões não esperaram a globalização para proclamar a “Boa Nova”, por meio do mundo inteiro, ou seja, a universalidade não data do século das luzes, mas o que é novo é que o próprio mundo “encolheu”. As trocas que se faziam em torno do globo pelos oceanos em vários meses, se seguiram em avião em algumas horas e pela internet em uma fração de segundos. Estamos então todos infinitamente próximos e as civilizações e culturas muito antigas são desestabilizadas por este fenômeno. Quem se lembra de sua cidade, de suas fontes sagradas, da badalada noturna, dos lugares mágicos onde uma vovó cantava desafinada no barulho infernal das megalópoles trepidantes? O grande desafio do cristianismo é o de não deixar populações inteiras desorientadas, perdendo suas antigas referências éticas nos diversos fundamentalismos. O grande desafio é de chegar a traduzir nossa fé, nossa crença, no cuidado de Deus humano em suas palavras, desta globalização como se fez em todas as gerações antes de nós. O crescimento geográfico da Índia e da China, o encontro com o Islã, são os grandes desafios mundiais que o Cristianismo vai encontrar.

A passagem do monastério para a vida familiar e o mundo virtual
A passagem do monastério em McKinsey para a tecnologia Internet é um pouco a passagem de um monastério aos jesuítas do capitalismo, aos nerds da Silicon Valley! Para resumir: após uma juventude agitada, me tornei cristão aos 16 anos. Uma vez que Deus era Deus, decidi dar-lhe minha vida, o que era o mínimo. E me tornei monge beneditino na Abadia de “La Pierre-Qui-Vire”, na Borgonha, um monastério perdido na floresta. Encontrei pessoas formidáveis, verdadeiros filhos de Deus. Esta comunidade austera (cair da noite, silêncio, a vida monástica, nada de carne e vinho...) me estruturou espiritualmente e humanamente durante dez anos. Como eu era responsável pela editora do monastério, fizemos um Cd-rom sobre a arte romana. Uma jornalista do jornal televisivo veio fazer uma reportagem e me apaixonei por ela. Então deixei a vida monástica. Como as tecnologias online chegavam a Europa, decidi continuar meu caminho e tornei-me consultor em McKinsey e após montei meu próprio escritório de consultoria. Em alguns anos, passei então da Idade Média ao terceiro milênio. Tentei ir até o final das coisas. Deus nunca me abandonou.

O livro Pourquoi nous sommes chrétiens
Em Pourquoi nous sommes chrétiens tento descrever por meio de meu percurso o que encontrei saindo de minha vida monástica: a acédia, a falta de empatia e de carinho na qual vivemos, o consumo como único horizonte, o capitalismo que se esvazia de seu ideal, a democracia e o debate político largados ao pensamento único, o mundo do trabalho que se preenche de palavras vazias, o cinismo ambiente que destrói as raízes de nosso desejo e nos faz ansiar pela felicidade. Todos esses elementos que cavam pouco a pouco a “era do nada”.

“Nada” é a palavra da acédia. Esta doença da alma que experimentavam os monges que partiam para viver nos desertos do Egito no século. A acédia, a doença da alma que torna o corpo pesado como uma pedra e faz crer ao meio-dia que o dia vai durar ainda cinqüenta horas: o demônio do meio-dia. Se quisermos compreender porque nosso desejo e nossa civilização, que chegaram a seu apogeu, estão em pane, devemos reler as tradições espirituais e filosóficas que fundaram o Ocidente.

Quem somos nós? Em que acreditamos?
Quem somos nós? Os herdeiros de uma civilização muito particular herdada da fé na palavra judia, o dever que realiza o que é dito: “Que a luz se faça!” e da clareza do logos grego. Os lares da palavra sintetizados na razão cristã medieval produziram crenças que carregamos – crendo ou não. Elas nos integram em uma civilização muito original. Em que acreditamos? Ao mesmo tempo na palavra dada, no respeito absoluto do outro e de sua vida, na igualdade de todos os homens sejam quais forem suas convicções, na igualdade do homem e da mulher, no sentido do trabalho, na fraternidade de todos os seres humanos, no sentido da história.

A acédia em que vivemos não é então um fim. Esta crise é uma chance de ultrapassar uma etapa, de reinventar nossos valores vitais. Nossa civilização conheceu nas etapas-chaves de seu desenvolvimento, dos renascimentos, buscando em suas próprias fontes: Renascimento da Idade Média, Reforma e nascimento do capitalismo... Esta reinvenção de nossas raízes é coletiva, mas sobretudo individual. Ela é uma arte de viver o cotidiano. A “moral” é primeiramente uma arte da felicidade.
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