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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Viver no nosso lugar


Para aprender a meditar, precisamos aprender a ser humildes. (...) O que significa ser humilde? Significa começarmos a compreender que há uma realidade fora de nós mesmos, que é maior que nós mesmos e, que nos contém. Humildade simplesmente, é aprendermos a encontrar nosso lugar dentro dessa realidade maior e. . . aprendermos a viver em nosso lugar. A primeira coisa a aprender, é que você é seu próprio lugar. Para fazermos as pazes com toda a realidade, precisamos primeiro fazer as pazes com nossa própria realidade. É na imobilidade da meditação, a imobilidade de corpo e de espírito que revela a unidade de corpo e de espírito, que adentramos a experiência de realmente sabermos que somos. Passamos a saber disso, com clareza absoluta e, certeza absoluta. Só então, estamos prontos para seguir para o próximo passo, que é o de irmos além de nós mesmos, de nos elevarmos além de nós mesmos. A tragédia da pessoa egoísta é que, ele ou ela não conhece seu lugar. O egoísta pensar estar no centro de tudo e, enxerga todas as coisas... apenas em relação a si mesmo.

A meditação e, o constante retorno a ela, todos os dias de nossa vida, é como abrirmos caminho em direção à realidade. Uma vez que conhecemos nosso lugar, começamos a ver tudo sob uma nova luz, por termo-nos tornado quem realmente somos. E, ao nos tornarmos quem somos, podemos agora ver tudo como realmente é e, assim começar a ver todas as pessoas como realmente são. A mais verdadeira maravilha da meditação é que começamos até mesmo a ver Deus como Deus é. A meditação, portanto, é um caminho para a estabilidade. Através da prática e, a partir da experimentação, aprendemos como lançar raízes em nosso ser essencial. Aprendemos que lançarmos raízes em nosso ser essencial, é lançarmos raízes em Deus, o autor e princípio de toda realidade. E, não é pouca coisa, adentrarmos a realidade, nos tornarmos verdadeiros, nos tornarmos quem somos, pois, nessa experiência, somos libertados de todas as imagens que nos afligem tão continuamente. Não precisamos ser nenhuma imagem que qualquer outra pessoa faça de nós, mas, simplesmente, a verdadeira pessoa que somos.

A meditação se pratica em solitude, mas, é o grande caminho para aprendermos a nos relacionar. A razão deste paradoxo é que, ao entrarmos em contato com nossa própria realidade, ganhamos a confiança existencial para alcançar as outras pessoas, para encontrá-las em seu verdadeiro nível. Por isso, o elemento solitário da meditação, misteriosamente é o verdadeiro antídoto para a solidão. Tendo entrado em contato com nossa conformidade com a realidade, não mais somos ameaçados pela diversidade de outrem. Não estaremos sempre buscando nos afirmar. Estaremos fazendo a busca do amor, buscando a realidade do outro. (...)

A meditação é exigente. Devemos aprender a meditar, quer estejamos dispostos, ou não, quer esteja chovendo, ou faça frio, ou o sol esteja brilhando, ou o que quer que esteja passando na televisão, ou qualquer que tenha sido o tipo de dia que tenhamos tido. Na visão cristã da meditação. . .encontramos a realidade do grande paradoxo ensinado por Jesus: Caso queiramos encontrar nossas vidas, deveremos estar preparados para perdê-las. Ao meditarmos, é exatamente isso o que fazemos. Nos encontramos por estarmos preparados para nos abandonarmos, para nos lançarmos às profundezas... que logo se mostram como sendo as profundezas de Deus.

- John Main, OSB
In THE HEART OF CREATION (New York: Continuum, 1998), pg. 9-10.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A crise do cristão

Foto: Iain Blake

... [P]ara que nos espiritualizemos, precisamos aprender a deixar para trás nossa própria identidade religiosa oficial, ou seja, deixar para trás o fariseu que se esconde em todos nós, porque, como Jesus nos disse, temos que deixar para trás toda a nossa identidade. Para que possamos nos tornar um com nós mesmos, com Deus, precisamos renunciar e transcender a todas as imagens de nós mesmos, todas elas originadas na mente febril do ego, para que nos tornemos verdadeiramente humanos, verdadeiramente reais, verdadeiramente humildes.

Nossas imagens de Deus, da mesma forma, deverão cair. Nós não podemos ser idólatras. Curiosamente, o que descobrimos é que elas caem, assim como caem as imagens de nossa identidade, o que sugere aquilo que nós já havíamos adivinhado, que nossas imagens de Deus são na verdade imagens de nós mesmos. Neste maravilhoso processo de entrada para toda a luz da Realidade, de afastamento da ilusão, um enorme silêncio emerge a partir do centro. Nos sentimos engolfados pelo eterno silêncio de Deus. Não estamos mais falando com Deus, ou pior, falando com nós mesmos. Nós estamos aprendendo a ser, a ser com Deus, a ser em Deus. [...]

Na jornada spiritual, aquietar-se consome mais energia do que correr... A maioria das pessoas gasta tantas das suas horas de vigília correndo de uma coisa para outra, que acaba por temer a quietude e o silêncio. Podemos ser acometidos por um certo pânico existencial, quando encaramos a quietude pela primeira vez, quando pela primeira vez entramos nesse estado de puro ser. Todavia, uma vez que possamos reunir a coragem para encarar este silêncio, adentramos a paz que está além de toda compreensão.

Sem dúvida, será mais fácil aprender isso em uma sociedade equilibrada e estável. Em um mundo turbulento e confuso, há muito mais vozes mais enganadoras, tantos apelos à nossa atenção. No entanto, a visão cristã é intransigente em sua sanidade, sua rejeição ao extremismo, no convite que faz a cada um de nós no sentido de termos a coragem para nos tornarmos nós mesmos, e não apenas reagirmos a alguma imagem de nós mesmos que nos seja imposta de fora. [...]

Em nossa experiência da meditação, o que cada um de nós deve aprender é que a energia para a peregrinação, de fato, está presente de modo inexaurível. Precisamos apenas de um passo de fé, para que possamos aprender isso a partir de nossa própria experiência. [E] aquilo que é importante lembrar, é que um passo real, ainda que vacilante, tem mais valor do que qualquer número de viagens vividas na imaginação.

- John Main, OSB
John Main OSB, THE PRESENT CHRIST (New York: Crossroad, 1991), pgs. 74-76.
Fonte: Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Tudo está consumado

Foto daqui

A Sexta-feira Santa é um dia de jejum de alimentos, de palavras e de tudo que nos distraia da contemplação da paixão e morte de Jesus. Vamos percorrer alguns pontos da Paixão segundo o Evangelho de João (Jo 18, 1 – 19,42), proposto pela liturgia deste dia.

O Evangelho de João narra a Paixão com características que o distinguem dos sinóticos (os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas) e coloca em evidência a soberania de Jesus. (...) João dá um destaque especial à liberdade com que Jesus aceita o sofrimento pela salvação da humanidade, diante da liberdade de quem o entrega a Pilatos e a do próprio procurador romano, fraca e covarde. “Como poderia salvar os pecadores, se tivesse resistido aos perseguidores?”, indaga S. Leão Magno.

Eis o homem
No processo que se desenrola diante de Pilatos, Jesus é rejeitado quer como Filho de Deus, quer como rei messiânico, quer como homem. Tanto é verdade que não encontra compaixão nem mesmo depois da flagelação. Ao ser apresentado à multidão por Pilatos com o “eis o homem”, é rejeitado pelo povo com o “crucifica-o, crucifica-o!”. A cena da flagelação, situada no vaivém de Pilatos entre Jesus e os judeus, dá a medida da dramática injustiça do processo, da dolorosa humilhação a que chega o caminho da Encarnação e torna-se o símbolo da violência do ser humano sobre o ser humano.

Minha participação no drama
[Na contemplação e oração,] com minhas atitudes, posso tomar parte nas diversas cenas: na traição de Judas, nas negações de Pedro, no zelo hipócrita dos sacerdotes; na volubilidade da multidão; na fraqueza de Pilatos; na crueldade gratuita dos soldados etc... Contemplando a Paixão, procuro em imaginação entrar dentro das cenas evangélicas e fazer um discernimento sobre minhas atitudes e comportamentos.

“Eis sua Mãe, eis seu filho”
Ao ver aos pés da cruz sua Mãe e o discípulo amado, Jesus revela seu coração, sempre orientado pelo bem do próximo. São as pessoas que ele mais ama e as confia uma à outra. A Virgem Maria, enquanto perde seu Unigênito, nos acolhe como filhos. Com João acolho Maria em minha casa, em minha vida. A Mãe de Deus se torna também Mãe da Igreja.

Tudo está consumado
O “tudo” não se refere só à Paixão, mas alarga-se ao plano de Deus na história. A chave de leitura da História da Salvação está na Cruz, onde a realização coincide com o fracasso. Mas esta palavra de Jesus se completa com outras, em que a Cruz se liga paradoxalmente à glória [escândalo e loucura]: a glorificação do Pai, de quem o Filho completou a obra, e a exaltação do Filho, que do alto atrai todos a si.

- Pe. José Marcos de Faria, SJ
Retiro Quaresmal 2012 (CEI-Itaici)

* * *

A injustiça e a violência se instalam no coração do Homem que se fecha e recusa a presença Deus, e sua brutalidade reside justamente na total ausência de sentido. A morte de Cristo reveste-se de significado não pela morte em si; seu sofrimento brutal ganha razão de ser não pelo sofrimento em si – mas pela atitude com que Ele, em seu profundo amor por nós, se esvazia de si mesmo, se humilha e se entrega nas mãos de seus algozes – que somos todos nós – em profundo respeito pela nossa liberdade. E, no entanto, que contraste entre o vazio absoluto que nos invade quando escolhemos nos apartarmos da nossa fonte de vida, e o esvaziamento amoroso com que Ele se apequena e entrega às mãos com que o trucidamos!

Paradoxalmente, é no momento do “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” – no momento em que, no silêncio do Pai, as trevas invadem o coração do Filho – que o Filho ultrapassa a experiência da Fé e da Esperança, e vive o Amor em sua plenitude. Porque não se trata mais de certezas ou da confiança no Pai, cuja presença o Filho já não sente; trata-se de amar inteiramente o Pai e se entregar a seu serviço, mesmo que Ele não esteja lá. Mesmo não se sentindo amado de volta. Mesmo sem retribuição. Nesse momento de escuridão, Cristo é pura gratuidade, é a plenitude do amor de Deus que se realiza em seu corpo agonizante de homem. Nesse momento, o Filho e o Pai são um só, um só corpo, uma só carne, porque só o Pai pode amar no Filho tão gratuita e intensamente – e nesse amor incompreensível está o seu Espírito, que nos será legado e nos acompanhará na construção do Reino. Quando Jesus ama mais plenamente, aí se efetiva a sua redenção, e a nossa n’Ele. Aí a Trindade transcende a Cruz para nos salvar, e somos resgatados para a eternidade.

- Equipe Diversidade Católica

* * *

Derrame, Senhor, a sua bênção sobre este povo
Que celebrou a morte de seu Filho na esperança de sua Ressurreição;
Concede-lhe o perdão e o conforto, aumente a sua fé
E confirme-o na esperança da salvação eterna.
Amém.

(Oração sobre o povo da Celebração da Paixão)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Para que os seres humanos possam ser Deus

Foto: Théo Gosselin 

Nascida de uma visão mais profunda do que palavras, e transmitida através do silêncio cheio do Espírito, a mensagem cristã é constrangedora. "Deus fez-se humano para que os seres humanos possam ser Deus."

Esta recorrente afirmação dos primeiros teólogos soa mais ousada do que muitos teólogos arriscariam dizer hoje, e resistiu com muita força às tentativas do dualismo gnóstico de diluí-la. É claro que só podemos compreender o que isso significa pela experiência de nossas vidas, quando tentamos viver – e fracamente, na maior parte do tempo – como se fosse a verdade central, a coisa real em todas as circunstâncias.

Ela sugere que a Encarnação é Deus concentrado em um ser humano singular, para que Deus possa de fato "tornar-se plenamente humano". De que outra forma pode-se ser humano sem ser um ser humano em um tempo e lugar determinados? Os teólogos clássicos achavam que isso era necessário, mas que o sofrimento experimentado por este indivíduo era inevitável. Deus precisava ser humano. Jesus, o cumprimento dessa necessidade divina, assim como qualquer outro humano, não queria sofrer. (Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice!).

Para muitos, hoje em dia, essa doutrina pode parecer abstrata e paroquial. Na verdade, ela muda a forma como nós mesmos nos encarnamos em nossas próprias e únicas histórias de vida, através de todas as fases de nosso desenvolvimento. Ela nos ajuda a não ficar presos na mentalidade infantil ou no comportamento adolescente, como vemos acontecer na maioria dos conflitos violentos e, de fato, em muitos dos nossos próprios problemas pessoais.

Ele também nos ensina o modo autêntico de lidar com o sofrimento. Como diz Leonard Cohen, devemos aprender a lamentar nos estritos limites da dignidade e beleza. A tendência do ego à auto-piedade arrisca tornar-nos isolados e amargos. Mas saber qual é nosso destino, para onde o sofrimento nos leva, dá tanto compaixão quanto dignidade para a nossa abordagem da decepção, do sofrimento e da perda.

É por isso que a Quaresma é um tempo cristão. E que a meditação é uma oração cristã. Não devemos nos castigar por causa de nossas falhas, ou buscar a iluminação apenas como uma fuga do sofrimento. Mas para ser plenamente humanos, completamente acordados, a fim de que possamos realmente "tornar-nos Deus", como estamos programados a ser.

- Laurence Freeman OSB
Mensagem para a Segunda-Feira da Terceira Semana da Quaresma (12/03/12) à Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Chamados a um esforço escondido e solitário de recolhimento


«Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há de recompensar-te» (Mateus 6,6).

Como pessoas de oração, eis o nosso programa para a Quaresma: entrar neste lugar secreto, oculto aos homens, que só o Pai vê. Somos chamados a um esforço de recolhimento e aprofundamento. Um esforço escondido e solitário que ninguém pode fazer por nós. É preciso afastarmo-nos de todas as nossas pequenas preocupações e dependências do amor-próprio; encontrar tempo para entrar nas profundezas do coração, num esforço de abertura e lucidez, e aí rezar ao nosso Pai.

É uma tarefa que exige perseverança e coragem. Porque é preciso aceitar ser o que somos em toda a nossa pobreza. É preciso enfrentar no silêncio as nossas dores secretas de que tentamos fugir pelas nossas atividades e tagarelices. É preciso suportar a obscuridade da fé pois esse lugar secreto também está oculto para nós, que não vemos o Pai. É preciso que nos apoiemos sobre a Palavra de Cristo: «O vosso Pai sabe do que precisais antes que vós lhe pedis». O meu Pai sabe! Que paz encontramos na envolvência do seu amor que abraçamos no segredo, na escuridão, por vezes no sofrimento. Ele sabe, Ele compreende.

Tentemos deixar brotar em nós a oração de Cristo, a oração do Filho. A nossa oração não é uma questão de técnica, truques, emoções subjetivas, mesmo que sublimes, nem de conhecimentos, mesmo que profundos. Ela é algo de infinitamente maior que nós, excede por todos os lados as capacidades do nosso coração. Ela é a oração de Cristo em nós. Uma oração que tem a sua fonte no amor eterno do Filho pelo Pai, que é este amor voltado para o Pai, que dEle recebe tudo, a Ele dando tudo num dom de si perfeito. Uma oração-amor que se exprime na linguagem humana do “Abbá”, paizinho, sobre as lágrimas de Cristo, nas suas noites de contemplação solitária na montanha, em toda a sua vida, sobretudo na sua morte «por nós» no madeiro da cruz. Oração-amor que abraça todos os homens de todos os tempos. Que esta oração-amor que transcende o tempo e o espaço habite em nós, fazendo dos momentos transitórios da nossa existência momentos, de alguma forma, eternos.

A carta de São Paulo aos Filipenses (3, 10-11) resume a essência da nossa Quaresma: «Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos».

Paulo só persegue um objetivo: «Esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que vem à frente, corro em direção à meta, para o prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus» (Filipenses 3, 13-14).

A nossa preparação para a Páscoa deve ser motivada por impulso semelhante.

- Um monge Cartuxo
Reproduzido do site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Não vos preocupeis

Foto: Eric Cahan

No Sermão da Montanha, Jesus identificou as preocupações materiais como sendo nossa principal fonte de ansiedade. Como podemos nos sentir mais confortáveis e reduzir o sofrimento pessoal? Esta é a maior preocupação que obscurece o momento presente e nos desconecta das verdadeiras prioridades.

"Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais que o alimento e o corpo mais do que a roupa?" Mt 6:25.

Quando ele nos diz para não nos preocuparmos, Jesus não está negando a realidade dos problemas do dia-a-dia. Está nos dizendo para abandonarmos a ansiedade, e não a realidade. Aprender a não se preocupar é uma tarefa difícil....[No entanto], a despeito de sua síndrome de atenção deficiente, até a mente moderna também tem sua capacidade natural de se aquietar e de transcender suas fixações. Nas profundezas, ela descobre sua própria clareza onde está em paz, livre da ansiedade. A maioria de nós tem cerca de meia dúzia de ansiedades favoritas, tais como doces amargos que mastigamos sem parar. Ficaríamos assustados se nos privassem delas. Jesus nos desafia a superar o medo de abrir mão da ansiedade, o medo que temos da própria paz. A prática da meditação é uma forma de aplicar seu ensinamento à prece; através da experiência, ela prova que a mente humana pode realmente optar por não se preocupar.

Isto não significa que possamos facilmente esvaziar a mente e afastar todos os pensamentos, à nossa vontade. Na meditação, permanecemos distraídos e, contudo, livres da distração, porque - por menos que seja, a princípio - estamos livres para optar por onde colocar nossa atenção. Gradualmente, a disciplina da prática diária fortalece essa liberdade. Seria pueril imaginar que conseguiremos realizar isso plenamente, em curto prazo. Permanecemos distraídos por muito tempo. Logo nos acostumamos com as distrações, como companheiras de viagem no caminho da meditação. Mas, elas não precisam ser dominantes. Optar por repetir o mantra com fé, e voltar a ele, sempre que as distrações intervém, é o exercício da nossa liberdade de prestar atenção.

Não se trata de algo como uma opção por uma determinada marca da prateleira do supermercado. É a opção pelo compromisso. O caminho do mantra é um ato de fé, e não uma jogada de poder do ego. Em cada ato de fé existe uma declaração de amor. A fé prepara o terreno para que a semente do mantra germine no amor. Não criamos um milagre da vida e do crescimento sozinhos, mas, somos responsáveis por seu desabrochar. Chegar à paz da mente e do coração - ao silêncio, à tranqüilidade e à simplicidade - não exige a vontade de um campeão, mas a atenção incondicional, a fidelidade continuada de um discípulo.

- Laurence Freeman OSB
In "Jesus, o Mestre Interior" (São Paulo, Martins Fontes,2004), pp. 277-278
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Os oceanos de Deus


Nossa vida é uma unidade porque está centrada no mistério de Deus. Mas para conhecer essa unidade temos que olhar para além de nós mesmos e, com uma perspectiva maior do que aquela com a qual geralmente olhamos, quando nossa principal preocupação é o interesse por nós mesmos. Apenas quando começamos a abandonar o auto-interesse e a auto-consciência, é que essa perspectiva maior começa a se abrir. Uma outra forma de dizer que nossa visão se expande, é dizer que nós conseguimos ver além das meras aparências, em direção à profundidade e ao significado das coisas (...) não apenas (...) em relação a nós mesmos mas (...) ao todo do qual fazemos parte. Esse é o caminho do verdadeiro auto-conhecimento e, é por isso que o verdadeiro auto-conhecimento é idêntico à verdadeira humildade. A meditação nos revela essa preciosa forma de conhecimento, [e] esse conhecimento se transforma em sabedoria... uma vez que conheçamos, não mais por análise e definições, mas por participação na vida e no espírito de Cristo. [...]

A maior dificuldade é começar, dar o primeiro passo, lançar-se na profundidade e na realidade de Deus, tal como revelada em Cristo. Uma vez que tenhamos deixado para trás as praias do nosso próprio eu, rapidamente, navegamos nas correntes da realidade que nos dão direção e impulso. Quanto mais quietos e atentos estivermos, mais sensivelmente responderemos a essas correntes. E, então, nossa fé se torna mais absoluta e, verdadeiramente, espiritual. Pela quietude no espírito, nos movemos em direção ao oceano de Deus. Se tivermos a coragem de sairmos das praias, não fracassaremos em encontrar essa direção e energia. Quanto mais nos distanciamos, mais fortes se tornam as correntes e mais profunda a nossa fé. Por algum tempo, o paradoxo de que o horizonte ao qual nos destinamos está sempre recuando, desafia a profundidade da nossa fé. Para onde estamos indo com essa fé mais profunda? Gradualmente reconhecemos o significado da corrente que nos guia, e compreendemos que o oceano é infinito.
Deixar as praias é o primeiro grande desafio, mas é necessário apenas começar, para encarar o desafio. Ainda que, depois, os desafios possam se tornar maiores, nos é assegurado que tudo o que é necessário para encará-los, nos será dado. Começamos repetindo o mantra. Recitar o mantra é estar sempre começando, retornando ao primeiro passo. Com o tempo aprendemos que há apenas um passo entre nós e Deus...Cristo deu este passo. Ele mesmo é o passo (...) A única forma de conhecer Cristo é entrar no seu mistério pessoal, deixando idéias e palavras para trás. Nós as deixamos para trás, de modo a entrar no silêncio do pleno conhecimento e amor, para os quais a meditação nos está conduzindo, a cada um de nós.

- John Main OSB
In THE PRESENT CHRIST (NY: Crossroad, 1991), pgs. 111-112, 116-117.
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Silêncio do Amor


A linguagem é muito fraca para explicar a plenitude do mistério. É por isso que o silêncio absoluto da meditação é de tão suma importância. Não tentamos pensar em Deus, falar com Deus ou, imaginar Deus. Permanecemos naquele silêncio reverente, abertos ao silêncio eterno de Deus. Através da prática e do aprendizado diários, descobrimos, na meditação, que essa é a ambientação natural para todos nós. Fomos criados para isso e, nesse silêncio eterno, nosso ser floresce e se expande.

O “silêncio”, como palavra, entretanto, já falsifica a experiência e, talvez afaste muitas pessoas, por sugerir alguma experiência negativa, a privação do som ou da linguagem. As pessoas temem que o silêncio da meditação possa ser regressivo. Porém, a experiência e a tradição, nos ensinam que o silêncio da prece não é um estado pré-linguístico, mas, pós-linguístico, aquele no qual a linguagem já completou sua tarefa de nos indicar o caminho, através e além dela, e de todo o reino da consciência mental. O silêncio eterno não está privado de nada, nem nos priva de qualquer coisa. Trata-se do silêncio do amor, da aceitação indistinta e incondicional. Ali repousamos com nosso Pai, que nos convida a ali estar, que nos ama por ali estar, e que nos criou para ali estar. [...]

Sabemo-nos amados e, assim, amamos. A meditação se ocupa da complementação desse ciclo de amor. Por meio de nossa abertura para o Espírito, que habita em nossos corações, e que, no silêncio, é amor por todos, damos início à jornada da fé. Chegamos à fé, porque existe sempre um novo começo na dança eterna do estar amando.

- John Main, OSB
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil, com grifos nossos

In WORD MADE FLESH (London: Darton, Longman, 1993), pgs. 29-30.
Tradução de Roldano Giuntoli

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sobre Deus

Foto: Isac Goulart

Três homens olham para o horizonte. O sol se anuncia colorindo de abóbora e sangue umas poucas nuvens escuras. Um deles diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Na janela, um vulto acena para mim." O segundo homem diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Mas não há nenhum vulto acenando para mim. A casa está vazia, é desabitada." O terceiro homem diz: "Não vejo vulto, não vejo casa. Vejo as nuvens abóbora e sangue... E como são belas! Sua beleza me enche de alegria!"

Essa é uma parábola metafísica. O primeiro homem vê, no meio das nuvens, um vulto, quem sabe o senhor do universo. Se eu gritar, ele me ouvirá. Para isso há as orações: gritos que pronunciam o Nome Sagrado, à espera de uma resposta. O segundo vê a casa, mas a casa está casa vazia, não tem morador. É inútil gritar, porque não haverá resposta. É o ateu... E como dói viver num universo que não ouve os gritos dos homens... O terceiro, que não vê nem casa e nem vulto, vê apenas a beleza -que nome lhe dar? Acho que o nome seria "poeta".

A beleza é o Deus dos poetas. Quem disse isso foi a poeta Helena Kolody: "Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo."

Borges relata que, segundo o panteísta irlandês Scotus Erigena, a Sagrada Escritura contém uma infinidade de sentidos. Por isso, ele a comparou à plumagem irisada de um pavão. Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um dos homens de Israel. Daí por que, de acordo com ele, existem tantas Bíblias quantos leitores da Bíblia. Cada leitor vê na Bíblia a imagem do seu próprio rosto.

O teólogo Ludwig Feuerbach disse a mesma coisa de forma poética: "Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita." Os deuses das flores são flores. Os deuses das lagartas são lagartas. Os deuses dos cordeiros são cordeiros. Os deuses dos lobos são lobos. Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do universo. Dize-me como é o teu Deus e eu te direi quem és...

Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas, se um artista os juntar segundo uma visão de beleza, eles se transformam numa obra de arte. As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se encontram poemas, histórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos portentosos, textos eróticos, matanças, parábolas... Ao ler as Escrituras, comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico. Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos.

Como no caso do labirinto literário de Borges cujos cacos eram peças de um quebra-cabeças que, juntos, formavam o seu rosto, também o mosaico que formamos com os cacos dos textos sagrados tem a forma do nosso rosto. Há tantos deuses quanto rostos há. Assim, quando alguém pronuncia o nome "Deus" há de se perguntar: "Qual?"

- Rubem Alves
Reproduzido via Conteúdo Livre

sábado, 15 de outubro de 2011

Os domingos precisam de feriados


Toda sexta-feira à noite começa o shabat para a tradição judaica. Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção, inspirado no descanso divino, no sétimo dia da Criação.

Muito além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta. Hoje, o tempo de 'pausa' é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações 'para não nos ocuparmos'. A própria palavra entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições. Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Entramos no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores, atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim. Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado.

Nossos namorados querem 'ficar', trocando o 'ser' pelo 'estar'. Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XXI - um dia seremos nossos? Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção. O dia de não trabalhar não é o dia de se distrair - literalmente, ficar desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que as pessoas se fazem no descanso é 'o que vamos fazer hoje?' - já marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

Quem ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este o grande 'radical livre' que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do tempo uma mercadoria. Em tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

- Rabino Nilton Bonder
Reproduzido via Amai-vos

sábado, 1 de outubro de 2011

Escutatório


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma." Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende a lua, pág. 65.)

- Rubem Alves
Reproduzido via Gospel LGBT, com grifos nossos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Desejo que não quer deixar de ser desejo

Foto: i can read

"Em hebraico, diríamos um 'desejo de Shalom'. O Shalom que normalmente traduzimos por 'paz' significa 'estar inteiro'. Nós não estamos em paz porque não estamos inteiros, daí a razão pela qual nós também chamarmos isso de desejo de 'realização': realizar o Ser, o Self que nós somos. O homem realizado é aquele que alcançou o Tudo no qual ele pode, enfim, conhecer a plenitude e o apaziguamento.

"Para alguns, o Ser, o Self, é o fim do desejo. O que mais poderíamos desejar além do "tudo"? Para outros, uma experiência de plenitude, de inteireza, em que há lugar para o outro*, é possível. Ela dá lugar a um outro desejo, desejo do Outro, que não é apenas desejo de ser desejado, mas desejo do Outro que é querido por si mesmo na sua alteridade e não como um Ser que preenche meu desejo; pelo contrário, como Ser que aviva o meu desejo, água viva que jamais sacia completamente a minha sede..."


- Jean-Yves Leloup, em Deus não existe! (...eu rezo para Ele todos os dias), p. 28.
Via meu amigo, o Leitor, com grifos dele.

_______________
* Nota da tradutora, Karin Andrea de Guise: "No original francês: Pour d'autres, une expérience de plénitude, d'entièreté, qui 'n'affiche pas complet' est possible. O autor procura passar a idéia de uma pessoa inteira, mas que não se apresenta como auto-satisfeita, cheia de si mesmo, sem um lugar para o outro em sim. Ele fala de alguém inteiro, mas não completo ou repleto; o "completo" só é possível graças à presença do outro".

domingo, 7 de agosto de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

Abandonar-se


Uma das coisas de mais difícil entendimento para os ocidentais é a de que a meditação nada tem a ver com procurar fazer com que alguma coisa aconteça. Todavia, todos nós estamos tão acostumados com a mentalidade da técnica e da produção que, inevitavelmente, pensamos primeiro que estamos tentando arquitetar um evento, um acontecimento. De acordo com nossa imaginação, ou predisposição, poderemos ter diferentes idéias do que viria a acontecer. Para alguns, trata-se de visões, vozes, ou lampejos de luz. Para outros, profundas reflexões e compreensão. Para outros ainda, um melhor controle sobre suas vidas e problemas do dia a dia. A primeira coisa que precisamos entender, no entanto, é que a meditação nada tem a ver com fazermos com que alguma coisa aconteça. O objetivo básico da meditação, muito ao contrário, é o de simplesmente aprendermos a passar a ser completamente conscientes do que é. O grande desafio da meditação é o de aprendermos diretamente da realidade que nos sustenta.

O primeiro passo nessa direção, e que somos convidados a dar, é o de entrarmos em contato com nosso próprio espírito. Talvez a maior tragédia de todas seja a de termos que completar nossa vida sem nunca termos entrado em pleno contato com nosso próprio espírito. Esse contato significa descobrir a harmonia de nosso ser, nosso potencial para o crescimento, nossa integralidade, tudo aquilo que o Novo Testamento, e o próprio Jesus, chamaram de “a plenitude da vida”.

É tão freqüente que vivamos nossa vida em cinco por cento de nosso pleno potencial. Mas, é claro, não há medida para nosso potencial; a tradição cristã nos diz que ele é infinito. Se apenas nos voltássemos do eu para o outro, nossa expansão de espírito se tornaria ilimitada. Isso muda tudo, isso é aquilo que o Novo Testamento chama de conversão. Somos convidados a abrir as algemas da limitação, para que sejamos libertos de dentro da prisão do ego que nos limita. A conversão é apenas a libertação e a expansão que surgem quando nos voltamos de nossos eus para o Deus infinito. Trata-se também de aprendermos a amar a Deus, assim como, ao nos voltarmos para Deus, aprendermos a amar uns aos outros. Ao amar, somos enriquecidos para além de qualquer medida. Aprendemos a viver a partir da infinita riqueza de Deus.

- John Main, OSB
In ESSENTIAL WRITINGS, Modern Spiritual Masters Series (Maryknoll, NY: Orbis, 2002), pg. 127.
Tradução de Roldano Giuntoli. Reproduzido via Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil. Grifos nossos.
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