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sábado, 29 de agosto de 2015

Eu sou lésbica!

Nesse dia importante de enfrentamento do desafio da invisibilidade, publicamos aqui um texto bonito e sensível enviado pela nossa amiga Andréa Balsan.

Todo nosso apoio e solidariedade às nossas irmãs, mulheres lésbicas!


Sinto-me corrompida em um mundo que me transforma em fetiche e demônio.
Muitas vezes sou só mais uma mulher invisível, algo a ser cobiçado pela falta de harmonia.
Matam, surram, abusam.
Me chamam de caminhoneira, sapatão, alguém possuído.
Mas sou só uma mulher.
Se corto o cabelo, se uso roupas diferentes...
Só penso em amor.
Homens, mulheres, poetas de todos os tipos, olhem os meus olhos!
Olhem em minha alma!
Vejam:

Eu sou lésbica!

E sou amiga, filha, trabalhadora, vizinha, irmã, mãe, companheira, namorada.

Eu sou lésbica!

Então não me vejam por estereótipos.
Vejam quem eu sou.
Ser humano como você.
Alguém que vive, sonha. E ama.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Eu, o Outro e Todos Nós: Intermediações possíveis entre homossexuais católicos e os cânones da Igreja

No próximo dia 27 de agosto, às 19 horas, o Diversidade Católica e a Edições Loyola, em parceria com a Blooks Livraria, organizarão no Rio de Janeiro o evento de lançamento do livro "Homossexuais Católicos: como sair do impasse", de Claude Besson, lançado no Brasil recentemente. Besson é uma das lideranças do grupo francês "Reflexão e Partilha", que tem uma história de mais de 10 anos de trabalho pastoral com pessoas gays e católicas, e seu livro promete oferecer pistas importantes para este apostolado aqui no Brasil. 

Em preparação para o evento, publicamos aqui uma bela resenha sobre o livro, a fim de oferecer uma pequena pitada das discussões. A análise é de Marcelo Maldonado, que é escritor e bacharel em Literatura Brasileira, e que será um dos palestrantes do lançamento. Para maiores informações, consulte a página do evento no Facebook. Divulgue e participe!



Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro

Quando Mário de Sá-Carneiro pôs fim à própria vida, às vésperas de completar 26 anos, num pequeno hotel em Paris, nos últimos dias de abril de 1916, aquele ato pareceu-lhe a única saída para o grande impasse de sua existência: como construir/ constituir uma identidade cujo conflito com a realidade não resulte na dispersão?

Não é à toa que este (Dispersão) é o título do único volume de poesias que publicou em vida e também do célebre poema em que declara: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim.” Grande parte da obra de Sá-Carneiro é permeada pela questão da alteridade, cujo sentido profundo reside na impossibilidade de ser, na inadequação do existir e na incomunicabilidade com o outro – grafado no poema com maiúscula, o que significa o outro enquanto entidade mítica. Preso em si mesmo e também aprisionado dentro de uma realidade hostil, o poeta não vislumbra qualquer possibilidade de diálogo para o estabelecimento de uma identidade concreta (e, portanto, de uma existência plena), quer no domínio da criação estética pura, quer no campo da vida cotidiana.

A homossexualidade surge, na obra de Sá-Carneiro, como uma espécie de mote para esse impasse: o espelhamento de um eu num outro que jamais pode se consumar porque se consome num jogo conflituoso de desejos e proibições. É o que declara Ricardo de Loureiro, personagem da novela A Confissão de Lúcio, de 1913: 
Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.[1]
Claude Besson, ao que parece, lida com uma questão bastante semelhante em seu estudo Homossexuais católicos: como sair do impasse (Edições Loyola, 2015), no qual expõe as contradições entre as rígidas posturas canônicas adotadas pelo apostolado católico em relação aos homossexuais que desejam não apenas professar a fé cristã, mas tornar-se parte atuante da vida de suas comunidades. Eu não sou eu nem sou o outro: como conciliar uma identidade – construída a duras penas em meio a uma realidade social que não contempla ou sequer legitima os modelos gays – com a fé cristã quando o discurso oficial da Igreja trata da condição homossexual de forma traumatizante, julgadora, culpabilizante e excludente?

Besson inteligentemente estrutura suas reflexões em três estágios distintos: em primeiro lugar, aplica um viés antropológico ao tratar da homossexualidade à luz de teorias que analisam suas possíveis origens e que, por fim, dada a complexidade da questão da formação da identidade pessoal – para a qual tanto características inatas quanto adquiridas tornam-se elementos constitutivos –, descartam o seu desenvolvimento enquanto fruto de uma escolha individual consciente e deliberada.

Ao avançar nesse sentido, o autor analisa o processo de reconhecimento da condição homossexual a partir das etapas da descoberta, da negação e rejeição, das tentativas de subverter a orientação sexual e da aceitação em si, após um percurso em que idas e vindas não raro expõem os indivíduos a sentimentos de vergonha, culpa, frustração, clandestinidade, estigmatização e violência, nos seus mais diversos graus e manifestações. Educado num mundo em que a heteronormatividade exclui e rechaça qualquer outra possibilidade de manifestação da sexualidade, o indivíduo homossexual carece de modelos positivos a respeito da própria condição e acaba por assimilar essa proibição, sofrendo um processo de homofobia interiorizada. 

O autor aborda ainda o mesmo processo de descoberta através do ponto de vista da família, para a qual o evento de percepção ou anúncio da homossexualidade de um filho ou filha na maioria das vezes representa um ganho significativo nas relações pessoais, no sentido de um maior entendimento e acolhimento entre seus membros. A importância do diálogo dos pais com os adolescentes é enfatizada para além das experiências sexuais que naturalmente ocorrem nessa fase da vida, devendo pautar-se no fortalecimento da confiança dos jovens em suas potencialidades e no desenvolvimento de uma afetividade mais amadurecida.

Encerrando essa primeira parte, a questão da alteridade se interpõe como importante discussão a respeito da noção errônea de que os homossexuais rejeitam a diferença entre os sexos, o que significaria a mera redução de homens e mulheres aos seus papéis sexuais. Eu não sou o outro: a alteridade se estabelece a despeito da igualdade sexual, pois se alicerça em bases mais profundas – o reconhecimento do outro em sua história pessoal, afetiva, educacional, em seus valores éticos, suas vivências e escolhas – do que apenas no valor diferencial (e impessoal) de um objeto de pulsão. 

Num segundo momento, Besson examina a aparente contradição contida na condição “gay católico”, no que considera a priori dois posicionamentos excludentes, uma vez que o indivíduo homossexual, ao confrontar-se com o parecer oficial da Igreja quanto à sua realidade, reveste-se de sentimentos de desonra, culpa, vergonha e desesperança, causando um inevitável afastamento e até mesmo um abandono da fé cristã. 

Como já havia feito na primeira parte, o autor entremeia suas reflexões com delicados e contundentes depoimentos de indivíduos que, através de suas experiências pessoais, descrevem as mais variadas reações diante da constatação das contradições entre os cânones do Magistério e a própria palavra de Jesus Cristo pregada pelos evangelhos. A maioria desses depoimentos refere-se a um sentimento doloroso de solidão e aponta para situações extremadas como as frequentes tentativas de suicídio relatadas. 

Ao contínuo e constante avanço das abordagens do tema no âmbito da sociedade civil e de uma ampla difusão de informações e discussões a seu respeito, o Magistério manteve-se num silêncio perturbador e omisso, quebrado apenas para reforçar as teses de que a manifestação da homossexualidade é reprovável e, portanto, pecaminosa. No entanto, a partir principalmente das reformas propostas pelo Concílio Vaticano II, houve uma ligeira evolução na postura doutrinal no sentido de reprovar os atos homossexuais, ao que o acolhimento ao indivíduo passou a ser estimulado com “respeito, compaixão e delicadeza.” Na prática, nas paróquias e comunidades, o que se deu foi que esse acolhimento manifestou-se na manutenção do silêncio em torno do assunto ou, quando muito, nos casos em que sacerdotes eram procurados por homossexuais para uma orientação, em conselhos sobre “a prática da sublimação dos instintos inferiores na castidade pelas virtudes do autodomínio.” Isso, obviamente, acabou por expor outro posicionamento excludente: como pode se dar esse acolhimento se, ao mesmo tempo, a doutrina rejeita e condena aquilo que, no homossexual, é parte constitutiva de sua identidade?

A esse respeito, Besson esmiúça na própria Bíblia as referências que alegadamente corroborariam a nomeação específica da homossexualidade como comportamento ou prática abominável e chega à (inevitável) conclusão de que não é possível fazê-lo, uma vez que as interpretações do texto bíblico à luz de suas contextualizações histórico-sociais não permitem reconhecer essa questão tal como ela se coloca na sociedade moderna: numa abordagem moral e ética individual. O autor expõe as análises de teólogos sobre as cinco passagens que mencionam a homossexualidade – a saber: dois versículos do Levítico, um versículo da Epístola de São Paulo aos Coríntios, um versículo da Epístola de São Paulo a Tito e um texto da Epístola de São Paulo aos Romanos – além da célebre narrativa de Sodoma e Gomorra e, finalmente, sobre as alusões à criação do homem e da mulher no livro do Gênesis para concluir que todas dizem muito mais respeito à prática em si em contextos ligados à conformidade ritual dos critérios de pureza, de pertença religiosa ou de idolatria do que à sua natureza sexual propriamente dita.

Na terceira e última parte de seu estudo, Claude Besson aponta para algumas possíveis estratégias para provocar o avanço das intermediações entre indivíduos homossexuais e agentes ministeriais e romper o silêncio em torno do assunto. O autor aposta no aprofundamento da fé cristã através de postulados como os de André Fossion, que convidam a repensar o cristianismo e a uma nova compreensão da fé baseada na distinção dos seus cinco efeitos salutares, três dos quais dizem respeito intrinsecamente à experiência homossexual:

– Libertação do medo de Deus: restauração de uma relação de confiança e reconhecimento no amor divino;
– Libertação da dominação do pecado: o amor incondicional de Deus esvazia a necessidade de um castigo, livra o indivíduo da culpa e restaura a esperança;
– Liberdade para desejar: livre do pecado, o indivíduo engaja-se com mais compromisso no projeto de caridade do Cristo, em favor de uma humanidade mais fraterna.

A esse chamado, o sentido da vida e das relações humanas (leia-se, da própria afetividade) passa a ser construído a partir da realidade da vida, a partir do(s) outro(s) e com o(s) outro(s), cotidianamente, uma realidade na qual o desejo de amar pauta-se pela liberdade de consciência. Em certo ponto, Besson afirma: toda relação de amor é uma abertura para o outro. Desta maneira, abre-se um novo entendimento para o termo “fecundidade” quando aplicado a relações homoafetivas fundamentadas nessa intermediação, traduzido na expressão “parentalidade espiritual”, na qual um casal do mesmo sexo pode perfeitamente criar condições plenas de uma vida fecunda no envolvimento com o trabalho, com a comunidade, com o acolhimento, a caridade, a pastoral, o apoio mútuo, a criação artística, a pesquisa científica, etc. 

Tendo em vista esse engajamento espiritual, o autor propõe outros tipos de engajamento a fim de impulsionar um diálogo sereno e produtivo sobre a questão da homossexualidade e sua conciliação com a fé cristã e dá exemplos de como, na França, algumas iniciativas conseguiram criar espaços para a partilha de experiências e a troca de informações entre as comunidades e seus membros. Besson enfatiza em primeira instância a necessidade de se falar sobre o assunto, de tirar a palavra homossexualidade literalmente do armário e ter a coragem de mencioná-la nos cultos, nas reuniões paroquiais, sempre acompanhada da disseminação da informação correta e sem mistificações. O autor menciona, então, a experiência do grupo Réflexion et Partage (Reflexão e Partilha), do qual é um dos fundadores, e de seus esforços para ajudar as comunidades cristãs a acolher a realidade homossexual.

Em seguida, salienta que é preciso ocupar um lugar em que se possa começar um trabalho de integração dos indivíduos homossexuais nas comunidades. Embora não seja tão simples assim, o autor dá como exemplo bem sucedido o que aconteceu em Saint-Merry, cuja comunidade foi procurada por membros do grupo David e Jonathan para abrigar um núcleo de orações e troca de experiências. Sob a condição de também participar da vida da comunidade local, o inicialmente pequeno núcleo foi tomando proporções cada vez mais expressivas, diluindo preconceitos, assumindo uma postura positiva e inclusiva e ganhando ampla visibilidade nas atividades paroquiais.

Por fim, mas não menos importante, reforçando sempre o conceito de que uma igreja se faz com (e para) os seus membros, ressalta a importância do favorecimento de locais de acolhimento e escuta dentro das dioceses, através da criação de pastorais que se ocupem especificamente do tema de forma ordenada, estruturada e constante. As iniciativas nesse sentido, apesar de terem gerado frutos importantes e bastante significativos, infelizmente ainda são poucas e isoladas. No Brasil, núcleos como o Diversidade Católica, no Rio de Janeiro, e o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, em São Paulo, tem desenvolvido ações não apenas centradas no acolhimento e partilha de experiências, mas também no sentido de promover um diálogo com a sociedade e instâncias superiores da hierarquia eclesiástica.

Na conclusão do seu estudo, Claude Besson afirma que o seu maior intento foi o de abrir portas. Talvez tenha sido essa a sua compreensão para responder à questão proposta, contida igualmente no poema de Mário de Sá-Carneiro: eu sou Eu – em construção, muitas vezes disperso, fragmentado – e devo necessariamente me abrir, sair de mim, deixar de ser qualquer coisa de intermédio, cruzar a ponte e bater à porta do Outro, que, por sua vez, deve estar disposto ao diálogo, à troca de impressões, ao enriquecimento de experiências que estabelecem o entendimento. 

Como ensina Besson, para quem o medo é mau conselheiro, deve ser a Fé (e não o tédio) o pilar de sustentação desse processo.

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[1] SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. In: Obras Completas, pg. 376, Alexei Bueno (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Nota de esclarecimento e repúdio à homofobia na disputa eleitoral


Nós, cristãos católicos LGBT, reunidos na Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, expressamos nossa perplexidade e indignação diante da manifestação homofóbica de um dos candidatos à Presidência da República no debate transmitido pela Rede Record, na TV aberta e com transmissão nacional, no último domingo (28) à noite; do total silêncio dos demais candidatos em relação às suas palavras; e do riso audível da plateia presente no estúdio da emissora durante sua fala.

Como LGBTs, gostaríamos de esclarecer que a homofobia não se reduz à rejeição irracional ou ódio em relação aos homossexuais; compreende igualmente toda manifestação arbitrária que qualifica o outro como contrário, inferior ou anormal e, devido à sua (suposta) diferença em relação a determinado padrão preponderante, alija essa pessoa de sua humanidade, dignidade e personalidade. Portanto, desqualificar alguém a partir da desqualificação de uma categoria em que o indivíduo (supostamente) se insere é homofobia.

Do mesmo modo, reduzir todo o rico espectro afetivo e sexual de um grupo de seres humanos, como fez o referido candidato no debate de domingo; equiparar, sem nenhuma fundamentação em dados concretos, homossexualidade a pedofilia; classificar a homossexualidade como doença, numa visão patologizante ultrapassada e destituída de qualquer base científica; estimular o "enfrentamento" dessa população pela "maioria", contrariando o princípio democrático de proteção e asseguramento de direitos de todos, inclusive (e sobretudo) das minorias; sugerir que os homossexuais sejam "tratados" em "algum lugar distante", remetendo a práticas famigeradas de internação e isolamento que ainda é preciso combater - tudo isso é homofobia. Tudo isso constitui a tão danosa violência psicológica a que todos nós, LGBTs, estamos submetidos ao longo de nossas vidas. Tudo isso dá corpo à violência simbólica e social que se abate sobre nós diariamente e ganha expressão material nos números assustadores das agressões, tortura e assassinatos com requintes de crueldade que, em nosso país, atingem não só a população LGBT, mas também aqueles indivíduos percebidos como LGBTs - violência que, só neste ano de 2014, já matou pelo menos 216 pessoas pelo simples fato de serem LGBT.

Como cidadãos, gostaríamos de salientar que o direito à liberdade de expressão é sempre antecedido pelo direito de cada pessoa a ser respeitada em sua dignidade. Ninguém tem o direito de propalar racismo, misoginia nem homofobia em público, na medida em que isso fere a dignidade de outras pessoas e reproduz e incentiva, direta ou indiretamente, a violência física e psicológica.

Como cristãos, lamentamos que o cristianismo, em qualquer vertente, se veja sob a ameaça de se esvaziar da sua riqueza simbólica e espiritual, perdendo qualquer traço de humanismo e sendo reduzido a mera ideologia moral e instrumento de normatização social, tornando tantos crentes incapazes de qualquer solidariedade, empatia e identificação com a humanidade de seus próximos.

Como católicos, expressamos nosso sonho com uma Igreja efetivamente católica, isto é, universal; uma Igreja de portas abertas para todos, como diz o Papa Francisco, pronta a acolher a todos em suas diferenças, aberta ao diálogo e atenta à sua vocação de defensora da vida e da dignidade de toda e cada pessoa humana.

Em Jesus Cristo, Autor da Vida, somos todos chamados à caminhada-construção de um mundo de amor, justiça e paz. Convidamos todas as pessoas de boa vontade, em particular os cristãos, a refletirem sobre o preconceito e a violência para com as pessoas LGBT e a se empenharem na sua superação, guiados pelo auxílio do Senhor, que nos ensina a amar uns aos outros, e iluminados por Maria, mãe intercessora de todos nós.

Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT
Diversidade Católica do Rio de Janeiro (DCRJ); Grupo de Ação Pastoral da Diversidade - São Paulo;
Diversidade Católica de Belo Horizonte; Diversidade Cristã de Brasília; Diversidade Católica do Paraná (DCPR); Diversidade Católica Ribeirão Preto/SP e região (DCRP); Diversidade Católica de Passos (MG); Pastoral da Diversidade - PERNAMBUCO; núcleos em formação em Itajaí (SC), Anápolis (GO) e Fortaleza (CE)

2 de outubro de 2014

domingo, 20 de julho de 2014

Some gays are christians. Get over it! ;-)



E, num desses papos deliciosos que nascem nos comentários na internet, nosso querido Murilo comentou a postagem do Markos sobre como LGBTs não-religiosos às vezes tratam a religiosidade de outros gays, que reproduzimos aqui. E, claro, não podemos deixar de publicar as palavras do Murilo aqui também:

Nos últimos tempos, tenho tido recorrentes sofrimentos e embates relacionados a esse tipo de coisa. Outro dia vieram me dizer, com essas exatas palavras, que eu era tipo "judeu nazista". Às vezes são pessoas que conhecem todas as minhas posições e toda a minha visão aberta (e toda a minha atuação política) envolvendo sexualidades, identidade de gênero, direitos sexuais, direitos reprodutivos, feminismo e tudo mais... Pessoas que, apesar de tudo isso, no imediato momento em que digo que sou católico, deixam de considerar todas estas questões pra me tomar ou como um hipócrita, ou como um traidor, um inimigo. Como eu digo volta e meia: é todo mundo queer, mas quando envolve o sagrado, a política identitária ferve. Ou você é isso, ou é aquilo. Ou você tá com a gente, ou você tá com eles.

Aí vem a hora em que essas pessoas vomitam em cima da gente todo o histórico de barbáries que a Igreja cometeu, e reiteram fervorosamente o quanto a Igreja é violenta, homofóbica, transfóbica, misógina, ignorando que eu, que estou dentro dela, sei mais do que ninguém a respeito dessas violências. Porque eu as sofro cotidianamente. Os enfrentamentos são constantes, pra mim. Não preciso que ninguém me fale disso de novo. A questão toda é que a vivência religiosa mecânica e pouco profunda vivida pela maior parte das pessoas (um pouco associada à cultura de proliferação evangélica que temos no Brasil) faz com que muita gente pense que, se eu discordo dos princípios de uma religião, tenho que sair dela e criar a minha. Ou virar agnóstico, "porque tudo bem você ter uma fé, mas você não precisa ter religião". As pessoas tomam as religiões (especialmente as maiores, mais institucionais) como organismos perfeitamente homogêneos, difundem e reiteram o pensamento de que se eu estou numa religião, concordo com tudo o que ela pensa, endosso todas os seus discursos e práticas e não estou aberto para criticá-la. E pior: pensam que eu estou nela JUSTAMENTE por endossar esses discursos e práticas. Dica: Felicianos, Sheherazades e Malafaias pensam e dizem a mesma coisa. Eu, pelo menos, escolho bem de quem discordar.

As pessoas ignoram a rede de vivências que a gente encarna cotidianamente, na nossa paróquia, na nossa comunidade, onde se constituem laços e onde se constrói uma vivência coletiva da fé que é o que realmente importa para a maioria de nós. Nesse contexto, se constroem outras vivências, outros pensamentos, outros afetos, de modo que o discurso ou a doutrina da instituição às vezes são as coisas que importam menos. Falando do meu caso, em particular: eu provavelmente seria um coxinha conservador e teria muitas crises com relação à minha sexualidade se não tivesse vivenciado o que vivenciei na minha pastoral. Vivi em contextos absurdamente reacionários toda a vida (na família, na escola, etc.), sendo que o único oásis de liberdade que eu tive nesse contexto todo foi a Igreja, onde eu conseguia pensar politicamente e coletivamente questões muito novas, inclusive relacionadas à sexualidade. A primeira vez em que eu ouvi falar sobre legislação sobre casamento gay ou sobre adoção por casais do mesmo sexo, foi numa palestra com a assessora jurídica de uma ONG LGBT, durante um curso de Teologia organizado por um movimento católico de esquerda da minha diocese. A primeira vez que eu parei para pensar na minha sexualidade com calma, foi depois de uma conversa com um padre, que veio me dizer que achava que eu era muito livre, mas que precisava encarar os meus medos. E acreditem, essa minha vivência não é tão incomum quanto parece. Ela só é invisibilizada, como qualquer dissidência.

Sair da Igreja, nesses casos, é um caminho que é ambíguo, porque é fácil politicamente, mas é difícil subjetivamente. Difícil porque é uma castração enorme pedir que deixemos essa vivência que organiza a nossa experiência de fé e de tantas outras dimensões da vida. Fácil porque é, de fato, bem mais simples deixar as instituições que não contemplam a nossa experiência, em vez de travar a luta por dentro, né? A questão é que esse não é um caminho eficaz. Se a gente começa a simplesmente abandonar as instituições homofóbicas, ou a condenar todas as vozes dissidentes que existem nelas (e isso vale não só para as igrejas, mas para a academia, para a política, para as mídias), a gente ajuda a fomentar o silenciamento que a própria Igreja está a costumada a provocar, e acaba fazendo exatamente o contrário do que se pretende: a gente contribui para que as igrejas continuem sendo vozes de ódio e fundamentalismo, e vozes cada vez mais fortes. Movimentos como o Diversidade Católica e as igrejas inclusivas, com todas as questões controversas que os envolvem (como em qualquer movimento político), ainda têm o mérito de lutar para que o cristianismo seja uma voz de ódio a menos no mundo, e eu ainda fico sem saber como militantes de toda ordem, do alto de suas consciências críticas, ainda conseguem deslegitimar esses movimentos e negar a importância de suas lutas, taxando-os de inimigos, porque estão "do lado" do opressor. Entendo perfeitamente a reação das pessoas contra a Igreja, até porque, quase sempre, eu compartilho dessa reação, e vivencio o mesmo enfrentamento. O que eu não entendo é que as pessoas neguem o direito à liberdade religiosa, encarnando, por vezes, os mesmos discursos fundamentalistas que dizem combater.

Com relação às religiões de matriz africana, sem dúvida que elas são um espaço beeeeeeem mais aberto que as religiões cristãs para muitas questões (acho que a gente tem muito pra aprender), inclusive para a questão da sexualidade. Mas é uma religião que também tem alguns problemas sérios nesse ponto, que por vezes passam despercebidos na atuação do movimento LGBT, especialmente porque o movimento das religiões afro-brasileiras é um grande parceiro nosso na pauta da laicidade, e a gente nem sempre está disposto a fazer críticas a quem está do nosso lado.

Quero deixar claro que não tô querendo inverter o discurso nem justificar a postura das igrejas cristãs, com o argumento fajuto de que "todo mundo faz". Só que me preocupa essa imagem difundida, de uma abertura muito grande das religiões de matriz africana, que às vezes invisibiliza algumas violências e contribui para que certas opressões sigam silenciosamente. São muito recorrentes, por exemplo, casos de lesbofobia contra as filhas de terreiro, de objetificação de seus corpos negros, por vezes havendo deslegitimação de suas sexualidades numa violência de que nunca se fala. Mesmo a própria aceitação da homossexualidade, por vezes está perpassada pela compreensão de que muitos homens podem ter "alma feminina" por terem orixás femininas como guia - o que envolve, na base, uma confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. Quer dizer... a religião não escapa de algumas questões, e ainda que sejam visivelmente mais abertas, também demandam novas reflexões e políticas sobre gênero e sexualidade. E assim funciona com diversas outras religiões e doutrinas, e a gente poderia gastar mais trinta comentários aqui enumerando isso.

Quando eu pontuo essas questões, reitero, não estou querendo inverter o discurso. O centro do que eu quero levantar não é exatamente a realidade dessa ou daquela religião, mas o fato de ficarmos nessa constante e infrutífera avaliação da legitimidade da pertença das pessoas, especialmente quando são pessoas ligadas à militância. Por vezes, isso ainda é feito sem sequer parar para escutar como cada um negocia e organiza a própria pertença ou a relação com valores institucionais hegemônicos. A gente se desvia do que é importante, e acaba incorrendo nessa hierarquização: "se for sem religião, é melhor; em tal religião pode; em tal religião até pode; mas nessa outra já é vandalismo". E fica parecendo que a nossa militância é feita ATRAVÉS da doutrina religiosa, e não APESAR dela, quando o que ocorre, na maioria das vezes, é justamente o inverso, porque entre a doutrina e o cotidiano há um abismo - não só para LGBTs, mas para religiosos de modo geral. O uso da camisinha por 99% dos católicos está aí pra não me deixar mentir. As pessoas vivem me tomando como um cúmplice do opressor, citando Beauvoir, sendo que às vezes eu me vejo mais como um agente infiltrado, hahaha. Não sei se me fiz entender ou se viajei no pensamento, mas acho que, de maneira geral, a gente precisa de um pouco mais de sororidade, pra começar a se reconhecer como parceiros de luta, sem se importar com o modo como cada um organiza sua fé ou sua religiosidade.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A terceira margem do rio

 

Nosso amigo Markos Oliveira postou ontem em seu perfil no Facebook a reflexão abaixo, que nos pareceu fundamental e reproduzimos aqui. De fato, é doloroso constatar como a violência tende a ensinar violência. Vemos pessoas que pertencem a uma ou mais minorias e são atingidas por exclusões e dilaceramentos de toda ordem muitas vezes permanecerem presas no ciclo da violência e, sem se darem conta, acabarem por reproduzi-la. Porque, diante de tensões e contradições, a lógica da violência e da exclusão e a impossibilidade da conciliação é tudo o que a gente aprendeu, e o lugar de vítimas imoladas onde fomos colocados é tudo o que a gente conhece.

Ainda bem que existem pessoas como o Markos, que de alguma maneira encontraram o caminho para transcender essas oposições. Acharam o caminho do meio, chegaram à terceira margem do rio - e, de lá, acendem fogueiras e acenam com lanternas, tentando mostrar o caminho para os que estão em busca.

Segue o comentário dele:


Infelizmente não é raro eu ver quem diz defender o respeito e a diversidade com um discurso de meio que querer obrigar que LGBTs abandonem sua religiosidade, principalmente se for o cristianismo. Se não obrigar, tratar tais pessoas de forma inferior ou pejorativa o que, pra mim, é uma atitude tão controladora da vida alheia quanto a atitude de fundamentalistas religiosos.

Dizem que tais LGBTs são idiotas, burros, gostam de sofrer por quererem ficar numa religião que os condena e os discrimina, mas é preciso compreender que o direito à liberdade de crença - e de não crença - e para todos e todas, inclusive para LGBTs.

Hoje sou ateu, mas tive criação evangélica. Minha família é admiradora de Malafaias e Felicianos e não foi fácil eu impor a minha vontade para a minha vida.

Eu preferi seguir outros caminhos, mas admiro e muito os LGBTs que permanecem com sua religiosidade e tentam mudar, de dentro, tais fundamentos e instituições, para que um dia sejam respeitosas com a diversidade.

Acredito que o trabalho de grupos como a Diversidade Católica e igrejas evangélicas inclusivas são fundamentais porque as instituições religiosas fazem parte e influenciam nossa sociedade e para que um dia possamos ter uma sociedade que não discrimine LGBTs, é fundamental que se faça um trabalho de educação e inclusão dentro destas instituições, pois os que as frequentam tais instituições não deixam lá dentro seus preconceitos aprendidos dentro delas, eles trazem para a sociedade.
Seguimos juntos, Markinhos... ;-)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Drag Queen de Seatle enfrenta protestos anti-gay que tentavam atrapalhar o início da Parada do Orgulho Gay





Por Jonathan Higbee, 01 de julho de 2014

Antes de me mudar para Seattle há um ano, fui conhecer um “brunch” dominical animado por uma drag no fim de semana em que eu e meu companheiro estávamos na cidade procurando um lugar para morar. Mama Tits, uma estrela-ícone de Seattle como eu viria a saber depois, era a âncora do brunch no Unicorn e uma das principais influências que tive com relação à decisão de ir morar lá; é durona como um prego mas também uma bicha histérica, que adora beber e tem um coração de ouro. Quando a vi na Parada que rolou no fim de semana depois de meses, sua efervescência e cuidado em relação à comunidade LGBT estavam plenamente à vista. Não imaginava que sem seu tenso enfrentamento aos que faziam protestos contra os gays e tentavam atrapalhar a Parada, ocorrido um pouco antes naquele mesmo dia, o evento teria atrasado muito e tumultuaria a programação.

Mama Tits descreveu com detalhes a situação para o site Seattle Gay Scene:

“Eu os vi subindo a rua antes da Parada e olhei para a Sylvia e a DonnaTella e disse, ‘Queridas, vamos fazer uma muralha!’ Antes que eu me desse conta, lá estava eu enfiando minhas tetas no nariz do líder deles que falava no megafone. Eu tinha a sensação de ter a força de todas as pessoas que já foram feridas por estes caras, uma energia que me apoiava e me fortalecia! Eu já estava quase entrando no piloto automático dos tempos em que eu era uma Sister of Perpetual Indulgence ["Irmã da Indulgência Perpétua" – referência a um grupo de "freiras" queer de São Francisco]. Me plantei no caminho dele e dali não me mexia. Quando ele passava por mim, eu voltava a ficar na frente dele diversas vezes. Encarava-o olhando no fundo dos seus olhos e dava pra perceber que havia dor no seu olhar, notava-se que estava assustado e não era pra menos. Ele tentou me bater com seu cartaz, mas como diz a Bianca Del Rio, 'Hoje não, Satanás!'

"Empurrei o cartaz para afastá-lo do meu rosto e do meu cabelo, porque, por favor, NÃO ENCOSTE no meu cabelo. E, era tudo o que podia fazer para NÃO ficar violenta e não fiz porque uma vez que isso acontece, todo mundo sai perdendo. Tentaram me cercar como uma tática de intimidação, mas convenhamos, eu sou IMENSA e aquilo não funcionou de jeito nenhum! A polícia veio até mim e pediu que os deixasse passar e ainda me disseram para não aborrecê-los e ainda me disseram que não deixasse que eles me irritassem. Disse aos guardas que não estava irritada, mas que IRIA me defender se fosse atacada e eles tinham que tirar aqueles caras da Parada. Então eu caminhei e peguei meu microfone e comecei a chamar a atenção das pessoas ao redor. Queria que fizessem uma grande e alegre algazarra para abafar o ódio… e, cara, foi o que fizeram! A multidão fez as paredes tremerem na esquina das ruas 4 e Pine!

"Um pouco depois de eu ouvi-lo citar o Levítico, eu declamei de volta todas as outras partes que ele estava deixando de lado para mostrar o quanto ele era hipócrita. É sempre interessante como esses malucos religiosos deturpam TUDO o que está na Bíblia e a distorcem à vontade para disseminar ÓDIO, quando tudo o que estão fazendo é na verdade demonstrar sua ignorância. Gritei, ‘Você NÃO TEM PODER aqui, suma antes que alguém atire uma casa sobre VOCÊ!’ Depois dele sairem acompanhados do itinerário da parada, percebi o quanto aquilo tinha me afetado. Estava tremendo e à beira de lágrimas, porque quando as pessoas cegamente odeiam e pregam esse ódio em público como fazem esses caras, eles não têm a menor consideração pela vida das pessoas que eles estão atingindo. "Há pessoas que tiram a própria vida por causa deste tip de ÓDIO, há pessoas que são ASSASSINADAS por causa deste tipo de ÓDIO. E eu só quero dar um basta a isso! Se esses instigadores do ÓDIO abaixassem seus cartazes e abrissem suas mentes e se ARREPENDESSEM de seus julgamentos, talvez então pudessem encontrar alegria e felicidade tornando-se parte da festa, ao invés de ser parte do Inferno.”

Fonte

Tradução: Lula Ramires

sábado, 17 de maio de 2014

17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia (1)

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Se há uma coisa que me dá orgulho na minha trajetória como católico, é o fato de toda ela ter sido na Pastoral da Juventude, que me garantiu toda a formação política que tenho hoje - especialmente aquela que pauta as minhas reflexões sobre gênero e sexualidade (ainda que esse tema não seja tão debatido nela). Enquanto todos os meu contextos de convivência me cercaram de discursos conservadores por toda a vida, foi (curiosamente) na Igreja que encontrei um oásis de sonho, de liberdade, de crítica e de comprometimento verdadeiro com a construção de uma sociedade livre de opressões - que é o sonho de Deus, o projeto de Cristo.
[Neste] Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, sinto reforçado esse meu orgulho - e essa minha pertença - ao ver essa nota da Caju Casa da Juventude, um dos principais centros de formação juvenil na América Latina, responsável por produzir alguns dos materiais mais presentes na minha formação cristã e no meu trabalho como liderança de pastoral. Vozes como essa reforçam a minha esperança e a minha vontade de ser Igreja, de ser Pastoral da Juventude, de ser "semente de transformação" - como disse um padre amigo certa vez, numa conversa sobre política, à beira da porta de casa.

- Murilo Araújo, no Facebook

domingo, 13 de abril de 2014

“A evangelização, em nosso tempo, só será possível por contágio de alegria”

 
A Mensagem do Santo Padre aos jovens em preparação à 29ª Jornada Mundial da Juventude (13 de abril de 2014, em nível diocesano) está centrada no tema “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). Trata-se da primeira mensagem que o Papa Francisco dirige aos jovens, incorporando-se assim na tradição iniciada pelo beato João Paulo II e continuada por Bento XVI, por ocasião de cada Jornada Mundial da Juventude. Depois da extraordinária JMJ vivida no Rio de Janeiro, no mês de julho de 2013, o Papa retoma seu diálogo com os jovens do mundo e apresenta-lhes os temas das três próximas edições do evento, dando início ao itinerário de preparação espiritual que, ao longo de três anos, levará à celebração internacional, em Cracóvia, em julho de 2016.

Os temas das três próximas JMJ, tomadas das Bem-aventuranças do Evangelho, mostram como o Santo Padre considera esta passagem do Evangelho de Mateus um ponto de referência fundamental para a vida dos cristãos, chamados a fazer dele um programa de vida.

Segue a mensagem, na íntegra.


Mensagem do Santo Padre Francisco para a XXIX Jornada Mundial da Juventude
(Domingo de Ramos, 13 de Abril de 2014)

«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3)

Queridos jovens,

Permanece gravado na minha memória o encontro extraordinário que vivemos no Rio de Janeiro, na XXVIII Jornada Mundial da Juventude: uma grande festa da fé e da fraternidade. A boa gente brasileira acolheu-nos de braços escancarados, como a estátua de Cristo Redentor que domina, do alto do Corcovado, o magnífico cenário da praia de Copacabana. Nas margens do mar, Jesus fez ouvir de novo a sua chamada para que cada um de nós se torne seu discípulo missionário, O descubra como o tesouro mais precioso da própria vida e partilhe esta riqueza com os outros, próximos e distantes, até às extremas periferias geográficas e existenciais do nosso tempo.

A próxima etapa da peregrinação intercontinental dos jovens será em Cracóvia, em 2016. Para cadenciar o nosso caminho, gostaria nos próximos três anos de refletir, juntamente convosco, sobre as Bem-aventuranças que lemos no Evangelho de São Mateus (5, 1-12). Começaremos este ano meditando sobre a primeira: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3); para 2015, proponho: «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8); e finalmente, em 2016, o tema será: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7).

1. A força revolucionária das Bem-aventuranças
É-nos sempre muito útil ler e meditar as Bem-aventuranças! Jesus proclamou-as no seu primeiro grande sermão, feito na margem do lago da Galileia. Havia uma multidão imensa e Ele, para ensinar os seus discípulos, subiu a um monte; por isso é chamado o «sermão da montanha». Na Bíblia, o monte é visto como lugar onde Deus Se revela; pregando sobre o monte, Jesus apresenta-Se como mestre divino, como novo Moisés. E que prega Ele? Jesus prega o caminho da vida; aquele caminho que Ele mesmo percorre, ou melhor, que é Ele mesmo, e propõe-no como caminho da verdadeira felicidade. Em toda a sua vida, desde o nascimento na gruta de Belém até à morte na cruz e à ressurreição, Jesus encarnou as Bem-aventuranças. Todas as promessas do Reino de Deus se cumpriram n’Ele.

Ao proclamar as Bem-aventuranças, Jesus convida-nos a segui-Lo, a percorrer com Ele o caminho do amor, o único que conduz à vida eterna. Não é uma estrada fácil, mas o Senhor assegura-nos a sua graça e nunca nos deixa sozinhos. Na nossa vida, há pobreza, aflições, humilhações, luta pela justiça, esforço da conversão quotidiana, combates para viver a vocação à santidade, perseguições e muitos outros desafios. Mas, se abrirmos a porta a Jesus, se deixarmos que Ele esteja dentro da nossa história, se partilharmos com Ele as alegrias e os sofrimentos, experimentaremos uma paz e uma alegria que só Deus, amor infinito, pode dar.

As Bem-aventuranças de Jesus são portadoras duma novidade revolucionária, dum modelo de felicidade oposto àquele que habitualmente é transmitido pelos mass media, pelo pensamento dominante. Para a mentalidade do mundo, é um escândalo que Deus tenha vindo para Se fazer um de nós, que tenha morrido numa cruz. Na lógica deste mundo, aqueles que Jesus proclama felizes são considerados «perdedores», fracos. Ao invés, exalta-se o sucesso a todo o custo, o bem-estar, a arrogância do poder, a afirmação própria em detrimento dos outros.

Queridos jovens, Jesus interpela-nos para que respondamos à sua proposta de vida, para que decidamos qual estrada queremos seguir a fim de chegar à verdadeira alegria. Trata-se dum grande desafio de fé. Jesus não teve medo de perguntar aos seus discípulos se verdadeiramente queriam segui-Lo ou preferiam ir por outros caminhos (cf. Jo 6, 67). E Simão, denominado Pedro, teve a coragem de responder: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68). Se souberdes, vós também, dizer «sim» a Jesus, a vossa vida jovem encher-se-á de significado, e assim será fecunda.

2. A coragem da felicidade
O termo grego usado no Evangelho é makarioi, «bem-aventurados». E «bem-aventurados» quer dizer felizes. Mas dizei-me: vós aspirais deveras à felicidade? Num tempo em que se é atraído por tantas aparências de felicidade, corre-se o risco de contentar-se com pouco, com uma ideia «pequena» da vida. Vós, pelo contrário, aspirai a coisas grandes! Ampliai os vossos corações! Como dizia o Beato Pierjorge Frassati, «viver sem uma fé, sem um património a defender, sem sustentar numa luta contínua a verdade, não é viver, mas ir vivendo. Não devemos jamais ir vivendo, mas viver» (Carta a I. Bonini, 27 de Fevereiro de 1925). Em 20 de Maio de 1990, no dia da sua beatificação, João Paulo II chamou-lhe «homem das Bem-aventuranças» (Homilia na Santa Missa: AAS 82 [1990], 1518).

Se verdadeiramente fizerdes emergir as aspirações mais profundas do vosso coração, dar-vos-eis conta de que, em vós, há um desejo inextinguível de felicidade, e isto permitir-vos-á desmascarar e rejeitar as numerosas ofertas «a baixo preço» que encontrais ao vosso redor. Quando procuramos o sucesso, o prazer, a riqueza de modo egoísta e idolatrando-os, podemos experimentar também momentos de inebriamento, uma falsa sensação de satisfação; mas, no fim de contas, tornamo-nos escravos, nunca estamos satisfeitos, sentimo-nos impelidos a buscar sempre mais. É muito triste ver uma juventude «saciada», mas fraca.
Escrevendo aos jovens, São João dizia: «Vós sois fortes, a palavra de Deus permanece em vós e vós vencestes o Maligno» (1 Jo 2, 14). Os jovens que escolhem Cristo são fortes, nutrem-se da sua Palavra e não se «empanturram» com outras coisas. Tende a coragem de ir contra a corrente. Tende a coragem da verdadeira felicidade! Dizei não à cultura do provisório, da superficialidade e do descartável, que não vos considera capazes de assumir responsabilidades e enfrentar os grandes desafios da vida.

3. Felizes os pobres em espírito…
A primeira Bem-aventurança, tema da próxima Jornada Mundial da Juventude, declara felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Num tempo em que muitas pessoas penam por causa da crise económica, pode parecer inoportuno acostar pobreza e felicidade. Em que sentido podemos conceber a pobreza como uma bênção?

Em primeiro lugar, procuremos compreender o que significa «pobres em espírito». Quando o Filho de Deus Se fez homem, escolheu um caminho de pobreza, de despojamento. Como diz São Paulo, na Carta aos Filipenses: «Tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens» (2, 5-7). Jesus é Deus que Se despoja da sua glória. Vemos aqui a escolha da pobreza feita por Deus: sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9). É o mistério que contemplamos no presépio, vendo o Filho de Deus numa manjedoura; e mais tarde na cruz, onde o despojamento chega ao seu ápice.

O adjectivo grego ptochós (pobre) não tem um significado apenas material, mas quer dizer «mendigo». Há que o ligar com o conceito hebraico de anawim (os «pobres de Iahweh»), que evoca humildade, consciência dos próprios limites, da própria condição existencial de pobreza. Osanawim confiam no Senhor, sabem que dependem d’Ele.

Como justamente soube ver Santa Teresa do Menino Jesus, Cristo na sua Encarnação apresenta-Se como um mendigo, um necessitado em busca de amor. O Catecismo da Igreja Católica fala do homem como dum «mendigo de Deus» (n. 2559) e diz-nos que a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa (n. 2560).
São Francisco de Assis compreendeu muito bem o segredo da Bem-aventurança dos pobres em espírito. De facto, quando Jesus lhe falou na pessoa do leproso e no Crucifixo, ele reconheceu a grandeza de Deus e a própria condição de humildade. Na sua oração, o Poverello passava horas e horas a perguntar ao Senhor: «Quem és Tu? Quem sou eu?» Despojou-se duma vida abastada e leviana, para desposar a «Senhora Pobreza», a fim de imitar Jesus e seguir o Evangelho à letra. Francisco viveu a imitação de Cristo pobre e o amor pelos pobres de modo indivisível, como as duas faces duma mesma moeda.

Posto isto, poder-me-íeis perguntar: Mas, em concreto, como é possível fazer com que esta pobreza em espírito se transforme em estilo de vida, incida concretamente na nossa existência? Respondo-vos em três pontos.

Antes de mais nada, procurai ser livres em relação às coisas. O Senhor chama-nos a um estilo de vida evangélico caracterizado pela sobriedade, chama-nos a não ceder à cultura do consumo. Trata-se de buscar a essencialidade, aprender a despojarmo-nos de tantas coisas supérfluas e inúteis que nos sufocam. Desprendamo-nos da ambição de possuir, do dinheiro idolatrado e depois esbanjado. No primeiro lugar, coloquemos Jesus. Ele pode libertar-nos das idolatrias que nos tornam escravos. Confiai em Deus, queridos jovens! Ele conhece-nos, ama-nos e nunca se esquece de nós. Como provê aos lírios do campo (cf. Mt 6, 28), também não deixará que nos falte nada! Mesmo para superar a crise económica, é preciso estar prontos a mudar o estilo de vida, a evitar tantos desperdícios. Como é necessária a coragem da felicidade, também é precisa a coragem da sobriedade.

Em segundo lugar, para viver esta Bem-aventurança todos necessitamos de conversão em relação aos pobres. Devemos cuidar deles, ser sensíveis às suas carências espirituais e materiais. A vós, jovens, confio de modo particular a tarefa de colocar a solidariedade no centro da cultura humana. Perante antigas e novas formas de pobreza – o desemprego, a emigração, muitas dependências dos mais variados tipos –, temos o dever de permanecer vigilantes e conscientes, vencendo a tentação da indiferença. Pensemos também naqueles que não se sentem amados, não olham com esperança o futuro, renunciam a comprometer-se na vida porque se sentem desanimados, desiludidos, temerosos. Devemos aprender a estar com os pobres. Não nos limitemos a pronunciar belas palavras sobre os pobres! Mas encontremo-los, fixemo-los olhos nos olhos, ouçamo-los. Para nós, os pobres são uma oportunidade concreta de encontrar o próprio Cristo, de tocar a sua carne sofredora.

Mas – e chegamos ao terceiro ponto – os pobres não são pessoas a quem podemos apenas dar qualquer coisa. Eles têm tanto para nos oferecer, para nos ensinar. Muito temos nós a aprender da sabedoria dos pobres! Pensai que um Santo do século XVIII, Bento José Labre – dormia pelas ruas de Roma e vivia das esmolas da gente –, tornara-se conselheiro espiritual de muitas pessoas, incluindo nobres e prelados. De certo modo, os pobres são uma espécie de mestres para nós. Ensinam-nos que uma pessoa não vale por aquilo que possui, pelo montante que tem na conta bancária. Um pobre, uma pessoa sem bens materiais, conserva sempre a sua dignidade. Os pobres podem ensinar-nos muito também sobre a humildade e a confiança em Deus. Na parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14), Jesus propõe este último como modelo, porque é humilde e se reconhece pecador. E a própria viúva, que lança duas moedinhas no tesouro do templo, é exemplo da generosidade de quem, mesmo tendo pouco ou nada, dá tudo (Lc 21, 1-4).

4. … porque deles é o Reino do Céu
Tema central no Evangelho de Jesus é o Reino de Deus. Jesus é o Reino de Deus em pessoa, é o Emanuel, Deus connosco. E é no coração do homem que se estabelece e cresce o Reino, o domínio de Deus. O Reino é, simultaneamente, dom e promessa. Já nos foi dado em Jesus, mas deve ainda realizar-se em plenitude. Por isso rezamos ao Pai cada dia: «Venha a nós o vosso Reino».

Há uma ligação profunda entre pobreza e evangelização, entre o tema da última Jornada Mundial da Juventude – «Ide e fazei discípulos entre todas as nações» (Mt 28, 19) – e o tema deste ano: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3). O Senhor quer uma Igreja pobre, que evangelize os pobres. Jesus, quando enviou os Doze em missão, disse-lhes: «Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento» (Mt 10, 9-10). A pobreza evangélica é condição fundamental para que o Reino de Deus se estenda. As alegrias mais belas e espontâneas que vi ao longo da minha vida eram de pessoas pobres que tinham pouco a que se agarrar. A evangelização, no nosso tempo, só será possível por contágio de alegria.

Como vimos, a Bem-aventurança dos pobres em espírito orienta a nossa relação com Deus, com os bens materiais e com os pobres. À vista do exemplo e das palavras de Jesus, damo-nos conta da grande necessidade que temos de conversão, de fazer com que a lógica do ser maisprevaleça sobre a lógica do ter mais. Os Santos são quem mais nos pode ajudar a compreender o significado profundo das Bem-aventuranças. Neste sentido, a canonização de João Paulo II, no segundo domingo de Páscoa, é um acontecimento que enche o nosso coração de alegria. Ele será o grande patrono das Jornadas Mundiais da Juventude, de que foi o iniciador e impulsionador. E, na comunhão dos Santos, continuará a ser, para todos vós, um pai e um amigo.

No próximo mês de Abril, tem lugar também o trigésimo aniversário da entrega aos jovens da Cruz do Jubileu da Redenção. Foi precisamente a partir daquele acto simbólico de João Paulo II que principiou a grande peregrinação juvenil que, desde então, continua a atravessar os cinco continentes. Muitos recordam as palavras com que, no domingo de Páscoa do ano 1984, o Papa acompanhou o seu gesto: «Caríssimos jovens, no termo do Ano Santo, confio-vos o próprio sinal deste Ano Jubilar: a Cruz de Cristo! Levai-a ao mundo como sinal do amor do Senhor Jesus pela humanidade, e anunciai a todos que só em Cristo morto e ressuscitado há salvação e redenção».

Queridos jovens, o Magnificat, o cântico de Maria, pobre em espírito, é também o canto de quem vive as Bem-aventuranças. A alegria do Evangelho brota dum coração pobre, que sabe exultar e maravilhar-se com as obras de Deus, como o coração da Virgem, que todas as gerações chamam «bem-aventurada» (cf. Lc 1, 48). Que Ela, a mãe dos pobres e a estrela da nova evangelização, nos ajude a viver o Evangelho, a encarnar as Bem-aventuranças na nossa vida, a ter a coragem da felicidade.

Vaticano, 21 de Janeiro – Memória de Santa Inês, virgem e mártir - de 2014.


Fonte

quarta-feira, 5 de março de 2014

Por uma nova experiência de transformação


Sempre acreditei que todos nós LGBTs estivéssemos ligados intrinsecamente por meio do sofrimento que enfrentamos em nosso processo de aceitação. Mas refletir sobre um texto me levou a perceber que descobrir o que realmente nos liga pode mudar nossa percepção de identidade e justiça.

No dia 21 de fevereiro, a queridíssima companheira Ivone Pitta publicou em seu blog um texto tão bonito quanto instigante, cujo título é “Apenas um Aniversário” (aqui). Ao lê-lo, me identifiquei imediatamente com a história e decidi deixar um comentário breve acerca daquilo que eu havia percebido como pontos mais importantes. Mas senti que eu poderia colaborar um pouco mais e daí nasceu o presente texto, onde estendo as ideias que levantei a partir do relato de Ivone.

Segue seu texto:
“Há pouco mais de 20 anos conheci minha primeira namorada. Eu católica daquelas de sábado e domingo na igreja, homotransfóbica, tímida daquelas de ter vergonha da própria sombra, ela com o namorado, na festa de aniversário de uma amiga em comum. E o que seria apenas um aniversário como tantos outros, tornou-se um marco divisório em minha vida.

Nos vimos logo após minha chegada, olhamos uma para a outra: olhos brilhantes, sorrisos rasgados. Havia algo diferente. Olhei pro céu e implorei para o deus no qual eu ainda acreditava que não fosse verdade aquilo que eu estava sentindo. Ela, mais corajosa e sem as mesmas amarras, fez a aproximação que eu desejava mais que tudo naquele momento.

Começamos a namorar 20 dias depois e eu hoje nem lembro por que razão há esse intervalo, mas lembro que durante a primeira semana de namoro eu ligava para ela pela manhã para terminar a relação que implantaram dentro de mim ser errada, pecaminosa, anormal, doentia, mas que a noite estava mais feliz do que jamais havia sido, estando na companhia dela.

Ela ter suportado minhas crises de homofobia internalizada fez toda diferença para tudo o que veio depois entre nós e para que eu me tornasse quem sou hoje. E aqui penso como nós LGBTs não vivenciamos nossa adolescência, juventude e até a vida adulta como quem se alinha bem à heterocisnormatividade, como somos reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente. E me emociono em pensar no que tive de vencer em mim mesma nestes últimos 20 anos até chegar nesta militante que vocês veem hoje. E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.”

Minha história se confunde com a dela. A descoberta do amor aos 20 e poucos anos, a prática do catolicismo paroquial que me tirava do mundo aos finais de semana e o extremo medo e raiva dos gays, lésbicas, trans e toda sua corja de depravados. As histórias de muitos de nós, católicos que se descobrem gays, encontram eco nesse relato. A dicotomia constante com retoques de transtorno bipolar: longe da pessoa amada sobrevinha a sensação de erro, pecado, anormalidade, doença; ao lado dela, amor, companhia, segurança.

Talvez por ter lido tantos relatos como este, desenvolvi uma crença de que todos nós gays estamos de alguma forma conectados uns aos outros por termos experimentado, ao longo da nossa trajetória, o sofrimento de extrema exclusão gerado pela homofobia interna e/ou externa. Esse sofrimento tornou-se, para mim, como que uma insígnia, uma distinção, um elemento que ao mesmo tempo em que nos marca e nos separa de tantas pessoas importantes, nos une a outras. Ele fez com que nós nos organizássemos em associações e reivindicássemos voz e direito no campo social, e em torno dele se erigem discursos afirmativos que hoje começa a mobilizar uma parcela da sociedade que não tem ligação direta com esse sofrimento. Em outras palavras, no caminho transcorrido até aqui, nossos sofrimentos individuais e coletivos enquanto LGBTs tem sido o pilar central da nossa unidade ideológica. E no tocante a nós, católicos gays, identificar a Igreja como uma das principais instituições por trás da construção histórica do preconceito faz com que nossos sofrimentos individuais se relacionem com a crença num Deus impossível, que não me amava, que não era próximo a mim, que não havia me criado como eu sou.

Mas as nossas histórias não pararam aí. Uma espécie de força de vida nos fez caminhar para fora da condenação e nos conduziu em direção a um autoconhecimento. Somente partir daí é que o amor a mim mesmo e ao outro se tornou possível. No entanto, se lançarmos um olhar mais profundo sobre essa tal “força de vida”, poderemos perceber que ela é formada por muitos níveis. Em sua periferia habitam experiências da minha própria história e da história de outros que de alguma forma comigo se relacionaram. Lembro-me das falas relativas a um parente assumidamente gay que, mesmo condenado por diversas vozes importantes da família, insistia em ser uma referência de liberdade exótica para mim. Ou a estranha imagem do casal gay que foi vizinho nosso e de quanto incomodava ao condomínio o carinho que demonstravam ter um pelo outro. Num nível mais interno, percebo que essa “força de vida” é formada por exemplos de liberdade verdadeira que podiam vir, inclusive, de pessoas infelizmente homofóbicas, como meus parentes. A luta dos meus pais para que eu tivesse acesso a uma educação que me permitisse olhar o mundo com olhos de quem quer ser livre, os torna também parte dessa força. Ainda mais por dentro dessa força, encontramos as experiências de verdadeiro afeto, carinho e amor que muitas pessoas tiveram para conosco, como algumas avós que insistiam em nos amar de tal maneira como se quisessem nos mostrar que nós poderíamos ser verdadeiramente felizes. Em especial, lembramos também daqueles que conosco se relacionaram afetivamente quando ainda não nos aceitávamos. Sua paciência e dedicação nos deram a perceber a natureza de um amor verdadeiro, pois foram capazes de suportar nossas intensas crises de autocondenação.

Observar com mais cuidado como essa não tão óbvia rede de personagens atuou na construção e manutenção daquilo que chamei de “nossa ‘força de vida’”, me faz perceber que meu caminho em direção à aceitação não foi tão sem referências quanto eu imaginava. Se como diria Eric Fromm "a principal tarefa do ser humano nesta vida é dar a luz a si mesmo", pode ser que meu nascimento em direção à autoaceitação tenha se baseado numa importante rede de condições de possibilidades e que, dada sua intensidade, foram capazes de semear em mim o gérmen de uma coragem irredutível e, sobre certos aspectos, inexplicável. Hoje, vejo essa mesma força nos fazendo assumir com tanto orgulho a grandiosidade da nossa sexualidade, nos fazendo querer ser pessoas melhores para o mundo, nos fazendo querer ajudar aqueles que estão passando por esses mesmos sofrimentos, nos fazendo lutar por uma sociedade mais justa, nos fazendo optar pela verdade em todas as circunstâncias. Essa força nos motiva e nos faz acreditar no bem, na liberdade do amor, nas verdades inscritas em nossas consciências, na felicidade ímpar em ser você mesmo.

Assim, poderia arriscar uma nova luz sobre aquilo que nos liga enquanto gays: hoje, eu creio que é essa “força de vida” que nos conecta verdadeiramente, inclusive mais do mais que os nossos sofrimentos pessoais e coletivos. O que dá coesão às nossas histórias e as conectam entre si é muito mais o nosso nascimento para uma nova e verdadeira vida do que a dolorosa morte que o precedeu. Porque todo sofrimento foi enfim justificado é que podemos dizer que nossa luta não foi somente contra a sociedade, ou contra a igreja, ou contra nossos pais, foi contra o que nós mesmos acreditávamos e contra toda a estrutura de poder que internalizamos. Mas nossa batalha não foi tão solitária: diversas sementes estranhas aos nossos preconceitos brotaram e floresceram lindas em nossos corações, ao sabor d’um certo vento vindo não sei de onde.

Nós, os “reprimidos, agredidos, violentados emocional e simbolicamente”, como diz Ivone, poderíamos agora nos olhar sob uma nova perspectiva: porque não deixar que o testemunho de renascimento se sobreponha ao do sofrimento nos nossos discursos enquanto LGBTs? E especialmente nós, gays católicos, porque não nos tornar os vanguardistas desta postura? Proponho que troquemos a chave de nossos discursos: em vez de “nós, os reprimidos”, diríamos “nós, os renascidos”. Digo isto em defesa de um olhar que nos conectaria não apenas entre nossos iguais, mas aos nossos Outros, e que por ser tão mais útil e agregador não se trataria de um processo de enquadramento da memória, mas da percepção de que talvez as antigas lágrimas tivessem a função de regar o solo para que neste brotassem as novas sementes de uma vida, e vida em abundância.

O papel da denúncia que leva à frente os nossos sofrimentos individuais e coletivos é ainda muito importante, pois muitas violências morais e físicas precisam hoje gritar o nome de seus mortos diante de seus assassinos. Mas agora proponho um novo passo ainda mais ousado para dentro da estrutura daquela “força de vida” que eu havia mencionado. Um passo tão intenso e visceral que muitos poderiam taxá-lo de descabido, sentimental ou mesmo romântico. Proponho um passo de fé. Olhemos para o centro dessa coragem exótica que nos fez aceitarmo-nos como somos mesmo em face de toda adversidade para fazê-lo. Lá, escondido no âmago desta força, há algo que a torna viva e cada vez mais operante, tanto que descobri-la não nos paralisou em nossas memórias, mas a usamos como alimento para nossa jornada. E de tal sorte pode esta força nos cativar e iluminar que hoje me portador de uma luz para o mundo, compreendo minha responsabilidade para com uma nova proposta de civilização, onde verdadeiramente compreendamos a essência de uma velha expressão: “dar a outra face”.

Uma leitura rasa dessa expressão bíblica traz consigo o perigo de uma postura que cria uma série de “vítimas santificadas”, conceito que margeia um masoquismo hedonista. Ao permitir que nos conectemos a partir de nossos sofrimentos, estamos o convidando para compor nossa identidade, o que de maneira nenhuma poderia acontecer. Assim como aquele que dá a outra face não será elevado por ser o coitadinho indefeso, não seremos elevados por ostentarmos nosso sofrimento. E o gay católico tem a enorme responsabilidade de convidar a comunidade LGBT e a sociedade como um todo a compreender que esta expressão não defende o derrotado ferido que dá a outra face para se livrar da responsabilidade da denúncia e, talvez por sua submissão, receber a "recompensa" do "céu". A “outra face” aqui tem um sentido simbólico muito mais profundo: seríamos capazes de abrir mão em definitivo da justiça parcial – baseada nas leis que legitimam a vingança violenta – praticada pelo homem através de tantas gerações para assumirmos a responsabilidade da nova justiça proposta por Jesus – baseada na misericórdia? “Dar a outra face” é abandonar a vingança legal e a violência permitida e estabelecer princípios de justiça que faça meu coração solidário com a condição miserável do meu agressor, ainda que eu seja a vítima mais óbvia. A nossa “outra face” deve esta: misericórdia e não sacrifícios.

Abrir mão da vingança violenta legitimada desde a Lei de Talião é o passo para dentro de uma renovação poderosa não só do movimento gay, mas das estruturas desumanizadoras que, ao mesmo tempo em que o comportam, contra ele batalham. Isto porque nossas críticas às instituições de poder não podem ser nossa única palavra no campo nos quais atuamos. Como ponto de partida, elas são fundamentais, mas se nos detemos neste caminhar em direção à compreensão do ser humano em todas as suas dimensões, não conseguiremos nos solidarizar com os nossos Outros. Nosso discurso perderá sua força profética, trará frutos por ora interessantes, mas que se mostrarão inversamente discriminatórios porque estão pensados dentro da mesma lógica dicotômica na qual fomos forjados. Se restringirmos nosso olhar às nossas questões, secaremos como uma figueira amaldiçoada.

“E choro de gratidão e amor por minhas amigas mais próximas, tão importantes e essenciais nessa caminhada de aceitação, reconstrução e fortalecimento.” Não me parece à toa que Ivone demonstre sentir-se grata àquelas que estavam próximas. Este sentimento também me invade quando me lembro de tantos amigos que me apoiaram, estiveram ao meu lado, próximos a mim. E hoje convido você a revisitar sua trajetória e dar uma resposta afetiva positiva de gratidão a todos que direta ou indiretamente contribuirão para seu processo de aceitação. Gratidão poderia ser mais uma característica desta “outra face” a oferecer para o mundo, mais uma vez, não em “agradecimento” pela agressão sofrida que nos confere a confortável posição de oprimido, mas por tantas situações que nos permitem hoje sermos misericordiosos, solidários com nosso opressor para, enfim, ajudá-lo a também se libertar de sua opressão.

E finalmente, te proponho uma possibilidade. E se eu chamasse de "Deus" àquele que reside no centro de nossa força de vida? Seria apenas um nome. Mas diante de tantas conexões, de tantas novas visões e de tanto renascimento, não seria impróprio eu agradecê-lo por ter a oportunidade de conhecer e me conectar com histórias fantásticas como a de Ivone. Se abrirmos mão do sofrimento como única ligação entre nós, talvez passássemos a enxergar quão intensa é a ruptura que nós propomos, e quanto ela é capaz de oferecer outras respostas para as dores do mundo. Talvez essa nossa nova postura incentive na busca por uma justiça social verdadeira e profunda, só possível em toda sua plenitude se atrelada à misericórdia. Talvez esse lugar dispense a sua identidade, mas certamente hoje eu agradeço a Deus por essa força que você, eu e tantos outros tivemos.

Super beijo!

Pedro

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Quando o papa voltou a ser ''só'' um homem



Há um ano, "um raio em céu sereno", como disse o cardeal Sodano, atingiu a Igreja Católica, despreparada para viver uma situação inédita há muitos séculos: um bispo emérito de Roma vivendo sob um novo pontificado. O que levara Bento XVI a fazer o gesto da renúncia? A situação de conflitualidade, de escândalos na Cúria Romana estimulava ainda mais as perguntas, que também assumiam contornos inquietos. (...)

Mas também havia nele outra razão que o levou à renúncia: a sua convicção teológica – bastante rara para um pontífice – de que, embora tendo se tornado papa, permanecia uma distinção profunda entre o seu ministério e a sua dimensão de simples homem e cristão. Não por acaso, quando publicou a sua trilogia sobre Jesus de Nazaré, ele quis assinar os livros como simples autor e teólogo, sem muni-los com o magistério papal.

Podemos dizer que Bento XVI nunca esqueceu o que Bernardo de Claraval escreveu ao Papa Eugênio III: "Lembra-te de que és um homem, nascido de uma mulher...". Assim também, na renúncia, Ratzinger soube mostrar a sua humildade, o fato de querer acima de tudo o bem da Igreja, de confessar a sua própria fraqueza e fragilidade, de aceitar ver reduzidas todas as competência a um só mandato: a intercessão.

- Enzo Bianchi, aqui

* * *

Um ano depois daquele 11 de fevereiro que mudou a história do papado e revolucionou a Igreja Católica, há uma única palavra que pode ser dirigida a Bento XVI: "Obrigado!". Obrigado por ter permitido, com o seu gesto humilde, nobre, lúcido e corajoso, a reviravolta que levou à eleição do Papa Francisco.

A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 11-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Há uma expressão alemã, "Selbstlos", que significa "privar-se de si". É mais forte do que "desinteressado", porque implica a força de saber se despojar do apego que cada um sente por si mesmo.

Bento XVI, na manhã de 11 de fevereiro, despojando-se do manto papal na frente dos cardeais, deu prova dessa força. O destino de Ratzinger sempre foi o de ser classificado em caixas estereotipadas. Ele teve admiradores cegos que, por oportunismo, se calaram quando as coisas não iam bem e que hoje, com desenvoltura, passam dos conteúdos da era ratzingeriana aos conceitos de Bergoglio como se se tratasse de uma mudança de menu sazonal. E adversários por princípio, prisioneiros da imagem de Panzekardinal a ele ligada.

Joseph Ratzinger teve uma riqueza de pensamento que será lembrada pelo seu esforço de conjugar fé e racionalidade, fugindo de toda patologia integralista, e de refletir sobre o papel do cristianismo como força de minoria ativa em uma sociedade secularizada na urgência de transmitir ao mundo contemporâneo uma mensagem principal: "Deus é amor, e Jesus é o seu rosto".

Outros aspectos da sua doutrina – começando pelos chamados princípios inegociáveis – foram amplamente criticados. Mas o que importa no aniversário da sua renúncia é o percurso do personagem histórico. Bento XVI tinha e tem muitos dotes: de teólogo, de pregador e de pensador. Não tinha o carisma do governante. A política é uma arte como saber tocar piano. Ratzinger não a possuía como Pio XII, ou Paulo VI, ou João Paulo II (cada um com seu viés particular).

Menos ainda ele possuía a arte de dominar as crises. E, no entanto, no momento em que se deu conta de que o governo central da Igreja Católica estava entrando em uma paralisia destrutiva, Bento XVI não se agarrou ao cargo confiando na tradição quer o quer eterno (até que a morte intervenha). Ele não se fechou em uma atitude rancorosa, culpando os outros e autoabsolvendo a si mesmo. Ele tirou as conseqüências, com sentido de dever alemão, assim como por sentido de dever – e não por ambição – tinha aceitado a eleição papal por ele não buscada, mas sim sofrida. A lucidez do seu gesto consiste em ter demitologizado o cargo papal e em ter dado novamente a palavra ao único corpo eleitoral que existe na Igreja Católica: o colégio cardinalício.

Sem a sua abdicação, os cardeais – a maioria dos quais são bispos residenciais nas mais variadas nações diferentes – não teriam tido a liberdade de fazer um exame crítico imparcial do estado da Igreja e da Cúria, e não
teriam tido o impulso de buscar um pontífice saindo das fronteiras já estreitas da Europa.


O conclave de 2013 mundializou a Igreja, e o fato de ter permitido a virada epocal, sacrificando a si mesmo, é merito de Ratzinger.

Caiu um raio na noite de 11 de fevereiro justamente sobre a cúpula de São Pedro. A foto pareceu testemunhar o evento inédito, porque, desde a Idade Média, não se tinha assistido mais a uma renúncia de um pontífice, e uma comissão secreta, instituída por João Paulo II, tinha desaconselhado decididamente essa hipótese.

Devia ser um dia de rotina, com um discurso normalíssimo de Bento XVI no consistório dos cardeais em vista da canonização dos mártires de Otranto, mortos pelos turcos mais de meio milênio antes. Discurso de rotina que a vaticanista da Ansa, Giovanna Chirri, acompanhou do seu cubículo na Sala de Imprensa vaticana – com os olhos fixos em uma pequena tela de televisão – sem ceder ao tédio.

E foi o seu dia de glória, porque, depois do discurso oficial, Bento XVI tomou um pedaço de papel e começou a ler em latim o ato de renúncia, e Chirri não deixou escapar a palavra "ingravescente aetate... idade avançada" e entendeu que o impensável estava acontecendo.

Captar de relance a notícia histórica, avaliá-la, obter a confirmação e transmiti-la por primeiro é o máximo que um jornalista pode fazer. Giovanna Chirri, às 11h46min, anunciou ao mundo o fim do pontificado ratzingeriano. Primeira em absoluto em comparação com todos os meios de comunicação. Menos preparados do que Chirri, naquele momento muitos cardeais na sala do consistório não entenderam bem do que se tratava. Bento XVI falava em voz baixa, com pressa, com frases cortadas, e o latim, para muitos, era uma recordação de outros tempos. Compreenderam apenas quando o cardeal Sodano, decano do colégio cardinalício, fez um breve discurso de resposta consternado.

Um mês depois, cinco votações no conclave apagaram qualquer hipótese de um papa italiano ou europeu. Escolheu-se o arcebispo de Buenos Aires, que durante semanas no pré-conclave não havia sido cotado como papável.

O eleito foi além das previsões dos seus eleitores. Não se limitou a um programa de racionalização da Cúria e de reorganização do banco vaticano. Francisco mudou a abordagem da Igreja diante da sociedade contemporânea e dos problemas dos fiéis, especialmente noo campo sexual; está criando um papado em que os episcopados do planeta inteiro participam das escolhas estratégicas da Igreja; levantou a questão da mulher nos centros de decisão eclesiais. E não acaba por aí.

Fonte

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

“O que seria um ‘Sínodo da Família’ sem incluir aqueles que vivem em família?”


"Em nossa opinião, seria muito positivo se o estudo, que está em processo inicial, pudesse ampliar-se mediante a expressão do Espírito Santo, através das vozes dos fiéis que participarão ao longo de todo o processo previsto”, escreve em carta a Rede mundial de católicos e organizações católicas, publicada por Religión Digital, 05-02-2014. A tradução é do Cepat.

Eis a carta.

Querido Papa Francisco:

Esperamos que tenham sido úteis nossas propostas incluídas nas cartas de 19 de setembro e de 27 de novembro de 2013, assinadas tanto por organizações católicas como por pessoas, de maneira individual, de todo o mundo. Antes de se reunir pela terceira vez com o Conselho Assessor, te enviamos agora esta carta sobre o Sínodo Extraordinário dos Bispos, previsto para outubro de 2014. [Leia a carta que os grupos de LGBTs católicos brasileiros enviamos aos bispos aqui, e assine a petição online que a apoia aqui]

Alegramo-nos com tua decisão de convocar este Sínodo e com o compromisso para os desafios pastorais urgentes em relação à família no contexto do Evangelho. Em uma homilia recente fizeste a seguinte pergunta: “Como manter nossa fé no âmbito da família?”. Confrontamo-nos com essa questão precisamente por nos parecer como um aspecto crucial para nossa própria vida, assim como para a de tantas pessoas em nossas próprias comunidades eclesiais. Vemos hoje a nossa Igreja em uma encruzilhada de caminhos, em que você oferece uma esperança, numa renovação misericordiosa.

Alegramo-nos especialmente também com sua convocação, sem precedentes, para obter “contribuições das fontes locais”, mediante a distribuição dos questionários pelo Arcebispo Baldisseri, reconhecendo assim a importância do sensus fidelium para a autoridade magisterial da Igreja universal. Esta iniciativa é um início para o enfrentamento da necessidade, identificada na exortação Evangelii Gaudium, da promoção do crescimento da responsabilidade dos leigos, recorrentemente excluídos “das tomadas de decisões”, por um “clericalismo excessivo”. Em nossa opinião, seria muito positivo se o estudo, que está em processo inicial, pudesse ampliar-se mediante a expressão do Espírito Santo, através das vozes dos fiéis que participarão ao longo de todo o processo previsto.

Sem dúvidas, és consciente de que há muitas reações distintas por parte dos bispos e suas conferências episcopais, em relação ao requerimento de repostas das Igrejas locais mediante as 39 perguntas do questionário sobre a temática do Sínodo. Enquanto algumas conferências têm facilitado à participação dos fiéis neste estudo, que representa tantos desafios, a maioria têm feito mínimas tentativas para compreender as comunidades das paróquias neste diálogo tão importante.

Mantemos nossa convicção profunda de que, além da informação que possa ser obtida mediante os questionários, um Sínodo eficaz sobre a Família requer a participação de mulheres e homens católicos comprometidos, de diferentes regiões da igreja universal, em todas as etapas do Sínodo. Por exemplo, para que seja possível investigar, intercambiar opiniões, debater e fazer recomendações, sugerimos que peça a cada diocese do mundo que organize um sínodo diocesano em 2014, para discutir o tema, e que incite a cada bispo diocesano a animar a todos os católicos de sua diocese para que deem suas contribuições.

Nestes sínodos os debates devem ser abertos e respeitosos. As conclusões e recomendações de cada sínodo diocesano seriam então enviadas, ou diretamente para a comissão preparatória do Sínodo dos Bispos, ou, preferivelmente, a um Sínodo Nacional ou Plenário, especialmente convocado, com uma participação leiga de, ao menos, metade de todos os membros sinodais, com uma alta proporção de mulheres para compensar a sua carência no governo da Igreja.

Antecipamos que este processo levaria, de uma maneira natural, a uma representação significativa dos leigos no Sínodo da Família. Afinal de contas, o que seria um “Sínodo da Família” sem incluir aqueles que vivem em uma família?

Papa Francisco, respeitosamente oferecemos nosso assessoramento e experiência, obtidos ao viver nossas vidas cristãs em famílias de todos os tipos.

Esperamos ansiosos a confirmação de que tenhas recebido esta carta e, em seu devido tempo, sua resposta a nossas propostas, que envolve católicos e católicas comprometidos com o Sínodo Extraordinário e em seus preparativos formais. Mais uma vez, asseguramos-lhe que você está em nossas orações e temos um profundo desejo de fazer visível a missão de Cristo, de amor e justiça nas famílias de todo mundo.

Contigo em Cristo.

Rede mundial de católicos e organizações católicas.

Carta com cópia para:

Cardeal Giuseppe Bertello, Presidente da administração do estado da Cidade do Vaticano
Cardeal Francisco Javier Errázuriz Ossa, Arcebispo Emérito de Santiago do Chile
Cardeal Reinhard Marx, Arcebispo de Monique e Frisinga , Alemanha.
Cardeal Laurent Monsengwo Pasinya, Arcebispo de Kinshasa, Congo
Cardeal Sean Patrick O Malley, Arcebispo de Boston, EUA.
Cardeal George Pell, Arcebispo de Sydney, Austrália
Cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, Arcebispo de Tegucigalpa, Honduras

Fonte

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Repartir o pão


"O jejum que eu prefiro é este: soltar as amarras do jugo, dar liberdade aos cativos e acabar com qualquer escravidão."

A religião bíblica não é, essencialmente, de dízimos e cobranças, de penitências e exercícios heroicos de ascese e rezas sem limites. Tanto quanto ser fiel a Deus, a pessoa religiosa é instada a ser humana e solidária. Com o mesmo coração que ama a Deus, amar seu irmão. Por isso, disse Jesus: "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo", ou seja, dando a ele "o que mais gostarias de comer" ou repartindo com ele o teu pão. Nossa religião é simples e é igualmente para todos. Quanto ao segundo mandamento - amar ao próximo como a si mesmo - os judeus são um exemplo. Nós, cristãos, temos ainda muito que aprender. Reparte o teu pão com o faminto e não dê as costas aos pobres. Poderíamos começar por estas simples ações, porque somos bíblicos e evangélicos.

Abraços e boa semana para todos.

Rosilene Luiza

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

"A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus"


Na nossa reunião deste sábado discutimos a Exortação do papa sobre a evangelização. Foram selecionados e destacados em negrito (abaixo) os conteúdos que mais nos ajudam em nosso apostolado, seja para refutar posições legalistas e intransigentes, seja encorajar um cristianismo aberto e inclusivo.

Estamos convencidos de que ventos muito favoráveis estão soprando a nosso favor. Podem conferir.

Equipe Diversidade Católica

Papa Francisco - Exortação Apostólica Evangelii gaudium
sobre o Anúncio do Evangelho no mundo atual

1. A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria.

[...] 10. um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e desalentados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo» (Paulo VI).

[...] 34. No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a selecção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não supor que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos, ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.

35. Uma pastoral em chave missionária não está obsecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.

36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou ‘hierarquia’ das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.

37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que atua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência».

38. É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.

39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».

40. A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se indaga e reflete com grande liberdade. As diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho (nota nº44:...temos necessidade de ouvir-nos uns aos outros e completar-nos na nossa recepção parcial da realidade e do Evangelho).

[...] 43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos.

44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais» (nº1735). Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas.

45. [...] Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada.
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