sábado, 10 de agosto de 2013

Estai preparados!


A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 19º Domingo do Tempo Comum (11 de agosto de 2013). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Referências bíblicas:
1ª leitura: Sabedoria 18,6-9
2ª leitura: Hebreus 11,1-2,8-19
Evangelho: Lucas 12,32-48

Neste domingo, somos lembrados da importância da espera. E da alegria da espera: o Senhor voltará, mas nós já o possuímos. E Ele nos enche de felicidade: «O Senhor pousa o olhar sobre os que o temem!»

Possuir desde já o que se espera
Trazemos todos no fundo de nós mesmos uma insatisfação escondida: uma certeza confusa de que tudo poderia ser melhor, de que poderíamos ser diferentes, de que as coisas que determinam a nossa situação atual poderiam e deveriam ser outras. As leituras de hoje estão cheias de referências a esta espera por uma "pátria melhor" (Hebreus 11,16). E o que esperamos exatamente? Não sabemos. No âmbito da fé, chamamos isto de «vida eterna» que consiste, diz Jesus, em conhecer -em sentido forte- o Pai e Aquele que Ele enviou; o Cristo (João 17,3). Conhecer, nascer com, para viver de sua vida. Esta é a Terra prometida para onde nos dirigimos sem que jamais, nesta vida, cheguemos a atingi-la. Como os Hebreus (11,13), nós a saudamos de longe, considerando-nos estrangeiros e viajantes nesta terra. Somos locatários provisórios dos lugares em que moramos. Mas isto não deveria nos instalar na tristeza e insatisfação? Não, uma vez que "a fé é a garantia dos bens que se esperam e a prova das realidades que não se veem" (Hebreus 11,1). A fé as antecipa. Quando a prostituta de Lucas 7 manifesta seu amor de reconhecimento antes mesmo de ter ouvido a palavra de perdão, ela copia a atitude dos Hebreus que celebraram a Páscoa antes mesmo de terem deixado o Egito: entoaram o hino de louvor, de ação de graças, antes mesmo de serem libertados, "como se isto já tivesse sido feito" (1a leitura). Alegremo-nos desde agora por aquilo em que nos tornaremos, pela vida para a qual somos chamados.

Conservai vossas lâmpadas acesas
Nosso evangelho inscreve-se perfeitamente no contexto que acaba de ser evocado. No versículo 32, Jesus nos recomenda não ter medo; a renunciar, portanto, à inquietação com respeito ao futuro. A insatisfação quanto ao nosso presente, moral, físico, espiritual, certamente tem fundamento. Corresponde ao que somos e vivemos; projeta-nos para o futuro. Mas insatisfação não quer dizer inquietude e nem mesmo medo; estas duas atitudes sinalizam a ausência da fé. E por que podemos de fato não ter medo? É Jesus quem o diz: porque «foi do agrado do Pai dar a vós o Reino». Reino significa realização, paz alegria. Mas leiamos de novo a frase que acabamos de citar: o Reino não é apresentado simplesmente como promessa, mas como um dom já realizado. Acrescente-se a isto outra palavra de Jesus: «O Reino de Deus está no meio de vós.» Ou «entre vós», ou «em vós». O futuro está já aí, portanto, presente já. Um pouco como o adulto está presente na criança. Digamos que a promessa de Deus já foi realizada na medida em que cremos nela. A nossa maneira de possuí-la é esperá-la. Espera simbolizada pelas lâmpadas que é preciso conservar acesas. Finalmente, o que esperamos não é alguma coisa, mas Alguém. E sua presença nos irá saciar porque é presença do amor. Este Amor que é «o Outro», capaz de nos penetrar e de nos transformar.

Vigiar sem descanso
Nenhum repouso nesta espera; as lâmpadas não devem se apagar jamais. É este exatamente o sentido dos versículos 35-40. Na seqüência, introduz-se, no entanto, um novo tema. De fato, o que pode exatamente significar vigiar sem descanso? Será que iremos nos tornar obcecados por esta espera, tendo apenas isto na cabeça, como um pensamento único? É claro que não. Seria um esforço em vão e logo nos descobriríamos incapazes de uma constância deste tipo. Já não é difícil para nós perseverarmos em oração, em nossa participação na missa, por exemplo, sem a menor distração? Felizmente, a partir do versículo 42, Jesus nos explica em que consiste a espera perfeita. Não se trata de manter os olhos fixos na porta para observar o momento da entrada do mestre, mas de fazer o nosso trabalho conscienciosamente. Num certo sentido, a espera do Cristo passa pelo trabalho que se nos impõe. Mas não importa como: o desejo e a espera da vinda de Deus são como uma bem leve coloração que afeta tudo o que vemos, sofremos e fazemos. Uma atmosfera em que tudo está imerso. Uma espécie de distância que nos permite dominar todas as coisas e não nos deixa afundar nas águas que não nos são favoráveis, a não ser que permaneçamos na superfície. Se esta espera se esvanece, somos entregues a todos os demônios. O chefe da casa (o responsável, conforme o v. 42 do nosso texto) não se preocupa mais com o pão dos seus empregados, mas pensa apenas em dominá-los e explorá-los (v. 45). Ao contrário, esperar é amar.

Fonte

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Um retrato desanimador dos jovens brasileiros


Alessandra Saraiva em um artigo para o jornal analisa a situação precária de uma parcela significativa dos jovens brasileiros:

Cerca de 1,5 milhão de brasileiros entre 19 a 24 anos, concentrados nas faixas mais pobres da população e excluindo donas de casa e mulheres com filhos, nem trabalham, nem estudam e nem procuram emprego e esse perfil tem crescido dentro do total da população jovem do país.


É o que mostra o estudo "Os Nem-Nem-Nem: Exploração Inicial Sobre um Fenômeno Pouco Estudado", da pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), Joana Monteiro. Para a especialista, o avanço desse perfil preocupa. A maioria desses jovens, com parcela significativa de baixa escolarização, podem ajudar a elevar o desemprego, caso decidam tentar a sorte no mercado de trabalho, após os 24 anos. "A baixa qualificação limita muito o tipo de trabalho que podem conseguir."
Além disso, o fato de pertencerem a famílias mais pobres, com pouca capacidade de sustentá-los, eleva a probabilidade de se tornarem dependentes do governo, avalia a especialista. Do total de 1,5 milhão, em torno de 46% podem ser considerados pobres, pois vivem em domicílios que estão entre os 40% mais pobres na distribuição de renda, segundo cálculos de Joana.

O recorte por faixa etária a partir de 19 anos é proposital, visto ser difícil encontrar jovens abaixo de 18 anos fora da escola, tendo em vista o avanço da escolaridade entre os brasileiros na última década, bem como a legislação envolvida em manter os jovens na escola, até essa idade.
O levantamento, que trabalhou basicamente dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que, esses jovens desalentados, excluindo donas de casa e mulheres com filhos, já representavam 10% da população total de jovens nessa faixa etária em 2011 - um avanço em relação a 2006, quando a fatia era de 8%. "Nem mesmo a melhora nos indicadores de emprego, com aumento de vagas e de renda, estimulou a entrada desse jovem no mercado de trabalho", diz a pesquisadora da FGV.
O nome da pesquisa vem daqueles que "nem trabalham, nem estudam, nem procuram emprego", explicou Joana, usando expressão "nem-nem" que já vem sendo utilizada por economistas para delimitar jovens que não trabalham nem estudam.
Excluir donas de casa e mulheres com filhos, que também não trabalham, não estudam e nem procuram emprego, torna mais claro o possível impacto desse cenário no mercado de trabalho futuro, afirma Joana. A economista informou que, com a inclusão de donas de casa com filhos, essa fatia de "nem-nem-nem" na população entre 19 e 24 anos pularia para 17% dessa faixa etária - em torno de quatro milhões de pessoas.
No entanto, Joana observou que há probabilidade menor de que mulheres donas de casa com filhos, que não procuram vagas, conduzirem a um impacto negativo no emprego. Isso porque é relativamente baixa a perspectiva de que essa mulher vá procurar trabalho, em futuro próximo, porque já cuida da casa e dos filhos.
O mesmo não se pode dizer dos jovens desalentados sem filhos. Desses 1,5 milhão de jovens, 20% tinham menos de cinco anos de escolaridade - a maior fatia entre as faixas de estudo delimitadas. Ela considerou que, em um segundo momento, esses jovens podem se converter em adultos em busca de uma vaga. Mas a baixa qualificação tornaria difícil um lugar na população ocupada. Na prática, seriam mais pessoas em busca de trabalho, sem encontrar, impulsionando indicadores de desocupação.
Outro aspecto estudado por Joana é o ambiente domiciliar que permite esse jovem não trabalhar, não estudar e não procurar emprego. Ela admitiu que jovens de baixa escolaridade têm chance muito maior de serem inativos, quando estão em domicílios cuja renda conta com forte presença de benefícios sociais, como programas de transferência de renda. Mas essa não pode ser considerada a única explicação, frisou. "Impossível dizer se recebimento de benefícios sociais é causa ou consequência da inatividade", afirmou.
Para ela, o fenômeno não é puramente econômico. A figura protetora da mãe brasileira, disposta a sustentar os filhos até mais tarde, ajudaria na formação do cenário, segundo Joana. "Incentivar a entrada dos 'nem-nem-nem' na população economicamente ativa está longe de ser trabalho fácil. O grupo não responde às condições do mercado de trabalho. É possível que essa parcela entre 8% e 10% [sem donas de casa e mulheres com filhos] seja um nível normal de inatividade", disse.

Sodoma, homossexualidade, ataques de drones e oração



A reflexão a seguir é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998).

Francisco parece estar me encorajando a ser mais valente e a arriscar cometer erros.

No último domingo, eu preguei em San Francisco sobre a oração. Eu acho que essa foi uma boa decisão pastoral. As pessoas disseram ter gostado da homilia, mas eu fico me perguntando se talvez não foi apenas uma desculpa para evitar assuntos mais controversos.

Para entender o meu dilema, é preciso lembrar que a primeira leitura era do Gênesis 18, em que Abraão discute com Deus sobre a destruição de Sodoma. Por cerca de um nanossegundo, a leitura me levou a pensar a pregar sobre a homossexualidade. Eu não pensei que eu tinha algo de novo ou de interessante para dizer. Além disso, provavelmente não há uma única pessoa em San Francisco que não tenha tomado parte sobre esse assunto. Ah, sim, será que eu mencionei que o pároco que disse algo bom sobre os homossexuais no mês passado foi duramente criticado na blogosfera e denunciado ao arcebispo?

Depois, há o debate acadêmico sobre se o pecado de Sodoma foi sexual ou se foi um pecado contra a hospitalidade a estranhos. Abraão e Sara recentemente tinham mostrado hospitalidade para três estranhos e foram recompensados com uma gravidez. Os mesmos três homens vão a Sodoma, onde são recebidos por Ló e pela sua família, mas os moradores querem ter relações sexuais com eles. Quando Ló tenta proteger os seus convidados, a multidão volta-se contra dele, porque ele não é um cidadão de verdade, mas sim um "estrangeiro residente". Os hóspedes do Ló acabam salvando-o, puxando-o para dentro de casa e fechando a porta.

Ló é tão protetor de seus três hóspedes homens que ele oferece à multidão suas duas filhas virgens, ao invés. Você não precisa ser feminista para pensar que oferecer suas filhas para uma multidão para serem estupradas é uma ideia horrível. Mais tarde, essas mesmas filhas embebedam o seu pai e têm relações sexuais com ele para "assegurar a posteridade ao nosso pai". Talvez eu devesse ter pregado sobre o efeito corruptor da cultura patriarcal.

Em todo caso, sobre o tema da homossexualidade, eu não poderia dizer nada melhor do que o Papa Francisco disse no avião a caminho de volta para Roma do Rio de Janeiro. Quando perguntado sobre o "lobby gay" no Vaticano, ele respondeu:

"Acredito que quando nos encontramos com uma pessoa gay, deve-se distinguir o fato de ser uma pessoa gay do fato de fazer parte de um lobby, porque nem todos os lobbies são bons. Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, mas quem sou eu para julgá-la? (…) Não se deve marginalizar essas pessoas por isso. (…) O problema não é ter essa tendência [da homossexualidade]... Devemos ser irmãos".

Como os padres gays têm sido falsamente acusados pela crise dos abusos sexuais, a declaração do papa é muito significativa. Em 2005, o Vaticano emitiu um documento dizendo que os homens com tendências homossexuais profundamente enraizadas não deveriam ser ordenados ou admitidos no seminário. A maioria interpretou que isso significava que alguém com uma orientação homossexual não poderia ser padre, mesmo que fosse celibatário.

O Papa Francisco deixou claro que ser gay não é um impedimento para a ordenação. Para ele, a questão não é a orientação, mas sim se uma pessoa é um bom padre. Mesmo que um padre falhe no celibato, e depois "se converte, o Senhor perdoa e, quando o Senhor perdoa, se esquece. E nós não temos o direito de não nos esquecermos". O papa deixou claro que não há espaço para a homofobia, seja na Igreja ou na sociedade. Mas e se eu tivesse dito o que ele disse 24 horas antes que ele dissesse, eu teria sido denunciado ao arcebispo.

Na realidade, quando eu li Gênesis 18, os meus pensamentos se voltaram do sexo para a guerra contra o terrorismo. Até recentemente, o governo Obama tem usado dezenas de drones para perseguir terroristas no Afeganistão, no Paquistão e em outras partes do mundo. Ela ainda está lançando ataques aéreos de drones, mas em menor número.

O diálogo entre Abraão e Deus soou como uma conversa que deveria ocorrer na sala de guerra quando se planeja um ataque de drones. Quantas mortes de civis são aceitáveis quando se persegue terroristas?

Um dos princípios da teoria da guerra justa é que os civis devem ser imunes ao ataque direto, razão pela qual a maioria dos moralistas julgou o uso de armas atômicas e de bombardeios de saturação durante a Segunda Guerra Mundial como imorais. Mas a teoria da guerra justa também reconheceu que civis inevitavelmente morrem em guerras. Os militares falam de danos colaterais, o que é uma forma antisséptica de descrever as mortes de civis. O Pentágono já não contabiliza as mortes de civis por causa da reação negativa ao elevado número de mortes de civis no Vietnã.

Em Gênesis 18, Abraão soa como um eticista argumentando contra as mortes de civis.

"Tu destruirás o justo com o injusto? Talvez haja cinquenta justos na cidade! Destruirás e não perdoarás a cidade pelos cinquenta justos que estão no meio dela?" Cada vez que Abraão vence a discussão com Deus, ele pressiona por um valor menor, até que ele consegue fazer com que Deus concorde que ele não destruiria a cidade se houvesse dez pessoas inocentes.

A lição aqui é a de que Deus quer que poupemos uma cidade cheia de terroristas pelo bem de dez inocentes? Se você tomar essa posição, esqueça os drones. Tem alguém na sala de guerra dando ouvidos a Abraão? O sigilo nos impede de saber. As informações sobre os ataques com drones devem ser tornadas públicas, juntamente com os números de vítimas civis, para que nós, como uma nação, possamos nos unir a Abraão e a Deus nessa discussão.

Quando eu pensei sobre o quão pouco impacto a minha congregação de fiéis poderia ter sobre a política de drones dos EUA, eu desisti. Assim, eu abandonei os homossexuais e os drones como temas para o meu sermão e falei sobre a oração. Fui covarde ou pastoral? Eu não sei, mas Francisco parece estar me encorajando a ser mais valente e a arriscar cometer erros.

Autor: Thomas J. Reese
Fonte: Unisinos, via

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Desigualdade Social



Artigo de Leonardo Sakamoto publicado em seu blog, 06-08-2013

Nenhum indicador é perfeito. Afinal de contas, é extremamente complexo mensurar qualidade de vida, fugindo das armadilhas da subjetividade e considerando uma miríade de variáveis. Isso sem contar que, não raro, utiliza-se como referência a qualidade de vida de determinada sociedade, pasteurizando o bem-estar mundial.
Portanto, um indicador não pode ser usado solitariamente para entender o que acontece em um país.
Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros, baseado em medidas de expectativa de vida, escolaridade e renda per capita, subiu 47,5% em duas décadas, passando do patamar “muito baixo” para “alto”.
O problema é que “renda per capita” dá margem a grandes distorções. Se uma única pessoa de uma comunidade ganha 50 e as outras 9 ganham, juntas, 50, a renda per capita é a mesma se todas as dez pessoas ganhassem 10. Qual comunidade é mais justa? Em qual há menos chance da convivência pacífica dar chabu?
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o salário dos 10% mais pobres cresceu 91,2% entre 2000 e 2011, enquanto que a renda dos 10% mais ricos aumentou 16,6%. O Coeficente de Gini, que mede desigualdade social, vem caindo desde o início da década de 90 e estava em 0,527, em 2011, certamente estará menor quando saírem os números de 2012 (quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade). Salários, Previdência Social,Bolsa Família contribuíram fundamentalmente para que isso acontecesse.
Porém, mesmo com as mudanças, a maior parte das riquezas continua na mão de pouca gente. Ainda estamos entre os 12 países mais desiguais do mundo.
Pois você acredita que qualidade de vida significa apenas ter cidadania pelo consumo, alcançando eletrodomésticos, carros populares e iogurte? Ótimo, você até comprou uma TV de LED, mas está endividado por ter que pagar o plano de saúde mequetrefe que te deixa na mão (porque não é mais “pobre” e não quer enfrentar a fila do SUS) e com a corda no pescoço pela dívida contraída com a sua faculdade caça-níqueis de qualidade duvidosa (educação básica universalizou, mas a qualidade não acompanhou). Afinal, você não tinha dinheiro para pagar um colégio particular e, portanto, não conseguiu entrar em uma universidade pública para fazer aquele sonhado curso de medicina.
Ou seja, foi importante o que avançamos. Mas isso ainda é migalha se comparado com os recursos que deveriam ser investidos para garantir serviços públicos de saúde e educação de qualidade, por exemplo.
Agora, vamos para o campo: de acordo com os dados do último Censo Agropecuário disponível (2006), do IBGE, o grau de concentração de terras no país permaneceu praticamente inalterado desde 1985. O Coeficente de Gini para o campo registra 0,854 pontos, patamar próximo aos dados verificados nas duas pesquisas anteriores: 0,856 (1995-1996) e 0,857 (1985). Quanto mais perto essa medida está do número 1, maior é a concentração na estrutura fundiária.
Isso confirma a estrutura agrária nacional como uma das mais desiguais do mundo. Enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam 2,7% da soma de propriedades rurais, as fazendas com mais de 1 mil hectares concentram 43% da área total.
Mas parece que muita gente, inclusive quem se diz de esquerda, esqueceu que indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, camponeses, comunidades de fundo de pasto e trabalhadores rurais passam por um inferno por conta desses números acima. Gente que nunca deixou de protestar e ir às ruas levar bala da polícia, tendo que aguentar os beicinhos desabonadores de apresentadores de telejornais que leem notícias de ocupações de terra no teleprompter.
Enfim, ainda fazemos parte do seleto grupo de países ricos com altíssima concentração de riqueza e respeito insuficiente aos direitos humanos. Situação que não vai mudar tão cedo, tendo em vista que a estrutura que a sustenta muda muito lentamente. Não importa o quão forte torturemos os números, fazendo leituras descotextualizadas, para acelerar o processo.
Em tempo: estava com medo de parecer fora de moda ao falar de desigualdade social, mas aí o Itaú Unibanco divulgou, nesta terça (30), que lucrou R$ 7,055 bilhões no primeiro semestre deste ano. Matéria bem sacada do UOL mostra que esse valor é maior que a economia de 33 países. Ou seja, nenhuma crítica à desigualdade social é pesada demais neste contexto.

Papa Francisco está sofrendo ataques dos conservadores


A reportagem é de Paolo Rodari, publicada no jornal La Repubblica, 06-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há mais excomunhões com Bergoglio, "o papa que já era um Francisco em Buenos Aires", como disse aoL'Osservatore Romano o seu amigo cardeal brasileiro Claudio Hummes. Em suma, um problema sério para o mundo tradicionalista que, sobre as condenações, construiu parte da sua própria fortuna.
Um dos posts mais determinados é do Blog.messainlatino.it, que se declara "pela renovação da Igreja no rastro da tradição". Ele fala abertamente da "crise de identidade do bispo de RomaFrancisco". Ele bate duro na pergunta que o papa se fez no avião, na segunda-feira, 29 de julho, no retorno do Brasil: "Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, mas quem sou eu para julgá-la?".
Palavras que são "uma verdadeira crise de identidade" e que, diz o blog convicto, "valem muito mais do que os miseráveis episódios do báculo de Lampedusa, do samba episcopal do Rio, da rejeição das insígnias pontifícias...". Porque são "o sinal tangível de uma confusão existencial que literalmente faz tremer os pulsos e o coração dos fiéis".
Mas, Santidade, pergunta ainda o Blog.messainlatino.it, "perdoe o atrevimento, vós não sois, talvez, o 'papa'? Não tendes, talvez, as chaves para abrir e fechar o Reino dos Céus?".
O submundo é extenso e ultrapassa as fronteiras nacionais. O site Traditioninaction.org – "A mais bela aventura do mundo é a nossa", declaram os moderadores – é um grupo tradicionalista com sede em Los Angeles. Para eles, Francisco é um "burlador", que, em vez de tirar o solidéu diante de Deus, prefere "colocá-lo na cabeça de uma menina [o papa faz isso frequentemente quando encontra os fiéis, assumindo como própria um costume que também era de seus antecessores] para brincar com ela e fazer as pessoas rirem. Desse modo, ele tenta parecer um velho avô que entretém a sua neta e, ao mesmo tempo, demonstra que os símbolos do papado são inúteis". E ainda: "Trata-se de mais um passo voltado a dessacralizar os símbolos do papado, a fim de desprezá-los e depois aboli-los".
Em suma, para os tradicionalistas norte-americanos, aqueles giros pela Praça de São Pedro entre a multidão, que paraFrancisco não são tempo perdido, mas sim missão, são "turnês democráticas/demagógicas", sinal de um estilo "miserabilista".
O recente comissariamento dos "Franciscanos da Imaculada" por parte da Congregação para os Religiosos, uma ordem tradicionalista que celebra a missa com o rito antigo, provocou a rejeição do site conservadorCorrispondenzaromana.it. Dizem eles: "Em uma única medida, não só foram desautorizados o fundador de uma ordem florescente e os líderes que o assistem, mas também o motu proprio de Bento XVI que liberalizou a celebração da missa no rito gregoriano, o pontífice que o emitiu e, em última análise, a própria massa".
E ainda: "Ocorre que, em nome do papa", o governo do Instituto é transmitido "a uma minoria de frades rebeldes, de orientação progressista, nos quais o neocomissário irá se apoiar" para "conduzi-lo ao desastre do qual até agora ele tinha escapado graças à sua fidelidade às leis eclesiásticas e do Magistério".
A galáxia tradicionalista que, na web, contesta o papa não está toda em comunhão com Roma, mas também está fora dela, tendo saído, em parte, no rastro do cisma lefebvriano, em parte, da divisão interna dos Legionários de Cristo depois da expulsão do padre Marcial Maciel Degollado. Dois mundos que sopram contra o pontificado e que, desde os tempos deRatzinger, boicotam todo impulso ecumênico.
A aversão tem raízes profundas. E nasceu quando, dentro do Celam – o Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho –, o futuro papa tinha estimulado uma purificação da galáxia Legionários-Regnum Christi que, nas duasAméricas, tem seguidores e simpatizantes.
Não por acaso, foi o conservador National Catholic Register que pronunciou palavras duras contra Francisco. Na sua opinião, a eleição ao sólio de Pedro foi "mais um acréscimo à pilha das recentes novidades e mediocridade católicas".
Entre essas mediocridades, para o site Una Fides, estão as missas celebradas no Brasil, onde os sacerdotes distribuíram a Eucaristia em copos de plástico: "O Senhor, um dia, pedirá contas pelos inumeráveis sacrilégios cometidos por milhões de crentes, milhares de sacerdotes, centenas de bispos, dezenas de cardeais e talvez até por alguns papas".

Videomensagem do Papa Francisco pela Festa de São Caetano na Argentina Quarta-feira, 7 de agosto de 2013


Boletim da Santa Sé
Tradução: Jéssica Marçal
Boa noite!
Como todos os anos, depois de ter percorrido a fila, falo com vocês. Desta vez, estou um pouquinho distante e não posso partilhar com vocês este momento tão bonito. Neste momento vocês estão caminhando rumo à imagem de São Caetano. Por qual motivo? Para vocês se encontrarem com ele, para se encontrarem com Jesus. Porém hoje, o tema desta peregrinação – tema escolhido por vocês, selecionado entre tantas possibilidades – hoje o tema fala de um outro encontro, e diz: “Com Jesus e São Caetano, vamos ao encontro dos mais necessitados!”. Fala do encontro com as pessoas que têm mais necessidade, daqueles que têm necessidade que nós demos uma mão a eles, que os olhemos com amor, que partilhemos a sua dor e as suas ansiedades, os seus problemas. Porém, a coisa importante não é olhá-los de longe ou ajudá-los de longe. Não, não! É ir ao encontro deles. Isto é cristão! Isto é aquilo que Jesus ensina: ir ao encontro dos mais necessitados. Como Jesus que ia sempre ao encontro do povo. Ele ia para encontrá-lo. Ir ao encontro dos mais necessitados.
Às vezes, eu pergunto a alguém:
“Você dá esmola?”.
Dizem pra mim: “Sim, padre”.
“E quando você dá a esmola, olha nos olhos da pessoa a quem dá a esmola?”
“Ah, não sei, não me dou conta disso”.
“Então você não encontrou a pessoa. Você jogou a esmola e foi embora. Quando você dá a esmola, toca a mão ou joga a moeda?”
“Não, jogo a moeda”.
“E então não o tocou. E se não o tocou, não o encontrou”.
Aquilo que Jesus nos ensina, antes de tudo, é encontrar-se e, encontrando, ajudar. Devemos saber encontrar. Devemos edificar, criar, construir uma cultura do encontro. Quantas divergências, problemas na família, sempre! Problemas no bairro, problemas no trabalho, problemas em todo lugar. E as divergências não ajudam. A cultura do encontro. Sair para encontrar-nos. E o tema diz: “Encontrar-nos com os mais necessitados”, com aqueles mais necessitados que eu. Com aqueles que estão passando por um momento difícil, pior que aquele que eu estou passando. Tem sempre alguém passando por algo pior, né? Sempre! Tem sempre alguém. Então, eu penso: “Estou passando por um momento difícil, estou na fila para encontrar-me com São Caetano e com Jesus e depois vou encontrar os outros, porque tem sempre alguém que passa por algo pior que eu”. Com estas pessoas, é com estas pessoas que nós devemos nos encontrar.
Obrigado por me escutarem, obrigado porque vieram aqui hoje, obrigado por tudo aquilo que levam no coração. Jesus ama muito vocês! São Caetano ama muito vocês! Peço a vocês somente uma coisa: que vocês se encontrem! Que vão e procurem e encontrem os mais necessitados! Porém não sozinhos, não. Com Jesus e com São Caetano! Vai convencer outro que é católico? Não, não, não! Vai encontrá-lo, é teu irmão! E isto basta. E você vai e o ajuda, o resto faz Jesus, faz o Espírito Santo. Recordem bem: com São Caetano, nós necessitados vamos ao encontro dos mais necessitados. Com Jesus, nós necessitados, que temos mais necessidade, vamos ao encontro daqueles que têm ainda mais necessidade. E Jesus vai indicando-nos o caminho para encontrar com quem tem mais necessidade.
O teu coração, quando encontra quem tem mais necessidade, começará a crescer, crescer, crescer! Porque o encontro multiplica a capacidade de amar. O encontro com o outro engrandece o coração. Coragem! “Sozinho não sei como fazer”. Não, não, não! Com Jesus e com São Caetano!
Que Deus vos abençoe e que concluam bem o dia de São Caetano. E por favor, não se esqueçam de rezar por mim. Obrigado.

Candidato gay de família cristã emociona o júri do X Factor Austrália


A quinta temporada da competição musical The X Factor Austrália começou com o pé direito. Isso porque, na última terça-feira (06/08), Ofisa Toleafoa, candidato homossexual que tenta uma vaga de cantor no mercado musical, emocionou jurados, espectadores e auditório com sua linda voz e uma triste história de rejeição.

A história do calouro começou na Nova Zelândia, seu país de origem, de onde Ofisa, 23 anos, disse ter deixado para trás para “se encontrar” na Austrália. Segundo o calouro, sua mãe nunca aceitou sua orientação sexual e seu namorado o incentivou a mudar de país para poder ser livre e se dedicar ao sonho de ser cantor. “Estou aqui porque meu parceiro me intimou a arriscar. Se eu realmente amo música, então deveria sair de lá. Ter o privilégio de subir no palco do X Factor é algo indescritível”, revelou o cantor.

O candidato ainda comentou sobre a dificuldade de se assumir gay em uma família religiosa. “Eu cresci numa família extremamente cristã que não acredita na homossexualidade. Não podia ser quem eu sou vivendo lá. Ainda estou tentando ter o apoio da minha mãe, mas ela não é mais a mesma. A última vez que falei com ela foi, provavelmente, ano passado”, desabafou no palco do programa.

Aprovado para a próxima etapa do reality, Ofisa conseguiu emocionar os jurados Ronan Keating, Danni Minogue e Red Fo cantando a música “I am changing”, da Jennifer Hudson. “Eu só quero mostrar a ela que ‘I am changing’, eu estou mudando. Porém, meu amor nunca vai mudar. Sempre serei a mesma pessoa que ela cuidou quando eu era criança”, finalizou.



Fonte

Obama cancela encontro com Putin após leis anti-gays


O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, cancelou uma reunião bilateral que teria com Vladimir Putin em setembro. A Casa Branca justificou o cancelamento devido à “falta de progresso” nas relações russo-americanas. O encontro estava previsto para acontecer antes da cúpula do G20, em São Petesburgo, também no mês que vem, evento no qual Obama pretende comparecer.

Em entrevista ao programa de Jay Leno na rede de TV NBC, na noite de terça (06/08), Obama fez duras críticas a nova lei russa de repressão a militância pelos direitos da comunidade homossexual. O presidente dos Estados Unidos disse que ele não tem “nenhuma paciência para os países que tentam tratar gays e lésbicas e transgêneros de maneiras que os intimidem ou que são prejudiciais a essas pessoas” (Obama se refere a Rússia e também a países africanos). 

A Rússia disse que vai aplicar a lei que proíbe a propaganda gay quando hospedar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 em Sochi. Questionado se a lei teria um impacto sobre os jogos, Obama disse que acredita que Putin e a Rússia têm muita coisa em jogo “ao garantir que os Jogos Olímpicos funcionem”. “Eu acho que eles entendem que para a maioria dos países que participam nos Jogos Olímpicos, nós não toleraríamos que gays e lésbicas fossem tratados de forma diferente”, disse Obama, em meio a aplausos da platéia.



Fonte

Toda teologia é pastoral, toda pastoral é teologia


João Batista Libânio defende em entrevista que o papa Francisco coloca a dimensão pastoral em primeiro plano:
IHU On-Line - Como avalia a visita do Papa ao Brasil?  
João Batista Libânio - Chamaram realmente a atenção na pessoa do Papa em visita ao Brasil, antes de tudo, a simplicidade, o despojamento da pompa que costuma cercar tais visitas, a tranquila alegria do rosto acolhedor. Mostrou-se próximo das pessoas, especialmente das crianças e dos pobres. Não temeu, em momento nenhum, a cercania do povo. Circulava com vidro abaixado precisamente para saudar a gente e sentir-lhe o calor humano. Devolvia o mesmo afeto que recebia.
IHU On-Line - Qual foi o discurso mais importante do Papa Francisco no Brasil? Por quê?
João Batista Libânio - A importância dos discursos depende do ângulo de análise. Prefiro distinguir vários tipos de discursos, cada um com valor próprio e incomparável. Antes de tudo, falou aos jovens. Destinatário principal da viagem. Na maioria dos discursos referiu-se a eles. Três pontos me pareceram fundamentais. Antes de tudo, mostrou-se preocupado com eles na situação de crise em que estão por razões do desemprego, de exclusão por parte do sistema, do assédio da cultura presentista e do prazer e do dinheiro, sem falar do desânimo que os ameaça diante da corrupção, da política em curso. Em face de tal situação, fala-lhes de esperança, de utopia, de coragem, de não ter medo de enfrentar a realidade, dando testemunho da própria fé. E, finalmente, incentiva-os à ação, a sair às ruas, a protestar e a criar uma sociedade e Igreja novas. Chama-os “porta do futuro”.
Outros dois discursos parecidos na tônica se deram também fisicamente vizinhos. A visita a Manguinhos e ao hospital de dependentes químicos. Aí predomina o olhar da compaixão, do cuidado, do afeto, da palavra de incentivo e coragem na luta. De novo, revela fina atenção às pessoas que sofrem.
Há os discursos à sociedade, aos políticos, aos intelectuais. Recorda-lhes a responsabilidade de manter a memória da história do povo e a esperança de construir o futuro de sociedade justa, fraterna, solidária. E insiste fortemente na importância do diálogo.
Três discursos visaram antes ao interno da Igreja: ao CELAM, aos Bispos do Brasil e aos religiosos. Aos religiosos lembrou três pontos fundamentais: a origem da vocação que vem de Deus, a missão de anunciar o evangelho e a promoção da cultura do encontro. Sobre os dois discursos maiores aos Bispos do Brasil e do CELAM veremos mais a baixo
IHU On-Line - Teologicamente, o que é possível compreender pela Teologia do Povo, adotada por Bergoglio? Em que consiste a teologia do papa?
João Batista Libânio - A teologia do Papa se distingue dos anteriores pelo acento na dimensão pastoral. Evitando todo corte artificial e equivocado entre dimensão teológica e pastoral, como nos adverte K. Rahner – toda teologia é pastoral, toda pastoral é teologia -, a diferença retrata acentos diversos. Em que ela consiste? Os dois Papas anteriores se empenharam em transmitir nas viagens, com a consciência da própria responsabilidade da unidade e da guarda do  depósito da fé, a doutrina oficial da Igreja. E falavam longamente de temas teológicos ou da moral. O Papa Francisco fez outra opção. Preferiu o discurso direto, próximo das pessoas a tocá-las pela transparência da presença e por teologia simples, acessível com toque pessoal e afetivo. Para ele, sem sentir e ouvir as pessoas, as falas não atingem. Por isso, mostrou-se atento aos sinais do povo e falava, reagindo a eles.
IHU On-Line - Alguns especialistas estão chamando Francisco de Wojtyla de esquerda. Como vê essa interpretação?  
João Batista Libânio - Não creio que a distinção esquerda e direita sirva para o caso. Prefiro dizer que João Paulo II estava preocupado com a doutrina, com a verdade, com o perigo dos erros no campo da fé. O Papa Francisco centra no encontro pessoal, no diálogo, na transparência da presença, no sorriso, na acolhida das pessoas, no estímulo a não temer medo e testemunhar a fé cristã.
IHU On-Line - O papa Francisco reiterou a necessidade de uma “conversão pastoral”. Como vê essa mensagem aos bispos do Brasil e do CELAM?
João Batista Libânio - Conversão pastoral significa precisamente isso: proximidade do sofrimento, das angústias, da vida das pessoas e daí falar-lhes palavras de conforto, de estímulo, de coragem, de esperança, a partir da fé em Jesus Cristo e na Igreja. Repetiu em várias circunstâncias quase à guisa de refrão duas frases: Não tenham medo e mantenham a esperança viva! Espera, portanto, da Igreja institucional que saia dos rincões fechados e vá às ruas encontrar e dialogar com as pessoas em seus problemas e dificuldades. Portanto, uma Igreja mais pastoral que administrativa a visar ao encontro e diálogo com povo e não à organização. Eis a conversão pastoral!
IHU On-Line - Quais foram os pontos mais contundentes do discurso do papa para os Bispos da CNBB e do CELAM?
João Batista Libânio - Ao falar para os bispos, tomou como metáfora do discurso o evento das aparições de Nossa Senhora Aparecida. Usa expressões fortes do agir de Deus nela: humildade, surpresa, reconciliação. Toca-nos esperar a lentidão de Deus, o reconhecimento do mistério que habita o povo, em vez de enveredar-nos pelo caminho da racionalização apressada. Em lugar da riqueza dos recursos, desenvolvamos a criatividade do amor.
Insiste em não ceder ao medo, desencanto, desânimo, lamentações! Em seu lugar, coragem, ousadia, sair às ruas, dialogar com as pessoas, ouvi-las nas mais diversas situações, sem preconceitos, sem juízos prévios, caminhando a seu lado.
Entre si, que os bispos mantenham a colegialidade, solidariedade, diversidade sem forjar unanimidade que violente as riquezas regionais. Na sociedade, cabe à Igreja anunciar com clareza e liberdade o Evangelho.
Aos bispos do CELAM, fala de seu papel de colaborar solidária e subsidiariamente para promover, incentivar e dinamizar a colegialidade episcopal e a comunhão entre as Igrejas. Discurso bem diferente da verticalidade romana tão acentuada nos últimos tempos. Apoia-se em dois pontos importantes: o patrimônio herdado do Encontro de Aparecida e a renovação em curso das Igrejas particulares.
Chamou a atenção logo no início, ao recordar a Conferência de Aparecida, ao clima de partilha entre os bispos de suas preocupações, à oração e ao ambiente religioso com a “música de fundo” do cântico, das orações e da participação dos fieis peregrinos. Sentiam os bispos a presença do “Povo de Deus”. No horizonte, estava a Missão Continental. E tudo isso aconteceu em Santuário Mariano, em que se sentia a presença da Virgem Maria.
Ele aposta na mudança das estruturas da Igreja, não pela via “do estudo de organização do sistema funcional eclesiástico”, mas pela força do élan missionário, servindo as pessoas em comunidade. Isso implica renovação interna da Igreja e diálogo com o mundo.
Alerta para o risco da ideologização da pregação do evangelho. Sempre presente, sob diversas formas: reducionismo socializante, psicologização, atitude gnóstica e pelagiana. Haja discernimento! Alude aos fatores negativos do funcionalismo e do clericalismo que pedem a conversão pastoral de que se falou acima. Rejeita fortemente a Igreja autocentrada, auto-referenciada e insiste na proximidade e no encontro com o povo, como maneira de a Igreja atuar. Nesse discurso, o silêncio que pesava sobre a realidade das CEBs é rompido, colocando-as, porém, não no contexto diretamente da libertação, mas da piedade popular e da superação do clericalismo.
IHU On-Line - Considerando que Francisco participou da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, que postura a Igreja de Roma deve adotar em relação à Igreja do Brasil?
João Batista Libânio - Difícil de responder. Não sei até que ponto ele conseguiu no pouco tempo de convivência em Aparecida e em outros encontros conhecer a Igreja do Brasil. Pelo discurso que fez parece que vai insistir numa Igreja simples, próxima do povo, desclericalizada, voltada para o diálogo, saindo de si e assumindo o espírito missionário. Desagrada-o a Igreja auto-referenciada, voltada para dentro, para a sua organização em vez de ir ao encontro do Povo. Noutras palavras, prefere que o clero seja antes pastoral que jurídico, antes perto do povo que habitando palácios.
IHU On-Line - O papa tem organizado várias comissões para reformar a Cúria Romana. Que tipo de reforma vislumbra?
João Batista Libânio - Só depois das primeiras decisões que tomar, ao ouvir a Comissão, teremos ideia por que caminho irão as reformas. Aguardemos.
IHU On-Line - O Papa declarou na entrevista de volta a Roma que uma Igreja sem mulheres é como um Colégio Apostólico sem Maria, contudo, não é favorável à ordenação de mulheres e disse ainda que é preciso uma profunda teologia da mulher. Como avalia essas declarações, especialmente num contexto latino-americano, em que há uma expectativa em torno da ordenação de mulheres?
João Batista Libânio - O Papa Francisco não começa o pontificado como se a Igreja não tivesse nenhuma história e tradição que merecesse ser respeitada. Doutro lado, percebe que no passado se cristalizaram estruturas hoje caducas. O jogo difícil lhe é pedido de discernimento, aliás carisma dos jesuítas, de manter a tradição em tensão com a inovação. A ordenação das mulheres é um dos casos difíceis. É sabido que houve ordenações de diaconisas no início da Igreja, mas não de presbíteras. Até onde os conceitos de então são idênticos aos de hoje? O texto de João Paulo II fechando a questão da ordenação presbiteral da mulher tem tom bem incisivo, mas não definitivo no sentido dogmático do termo. Até onde um outro Papa pode abri-lo? Questão em discussão para sim e para não. Afirmações contundentes de papas anteriores manifestaram-se mais tarde equivocadas. Se o leitor tiver curiosidade neste ponto, consulte a obra de GONZÁLEZ FAUS, I..A autoridade da verdade: momentos obscuros do magistério eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1998.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

João Batista Libânio - Os gestos e as palavras do Papa Francisco no Brasil ficarão gravadas, como alguém que veio estar perto de nós e não descarregar sobre nós conhecimentos doutrinais, normas, fazendo valer sua autoridade de Papa. Simplicidade, proximidade, alegria, esperança, coragem, não ter medo, saída de nós para encontrar e dialogar com todos: eis as palavras chaves que nos deixou.
Imagem: São Camilo de Lellis

Papa Francisco e a teologia da mulher: algumas inquietações


Diante da aclamação geral e da apreciação positiva da primeira visita do Papa Francisco ao Brasil por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), qualquer ensaio crítico pode não ser bem-vindo. Mas, depois de tantos anos de luta, "ai de mim se eu me calar!”. Por isso, vão aqui algumas poucas linhas e breves reflexões, só para partilhar algumas percepções a partir do lugar das mulheres.

Não quero comentar os discursos do papa Francisco e nem a alegria que muitos de nós tivemos ao sentir a simpatia, o carinho e a proximidade de Francisco. Não quero falar de algumas posições coerentes anunciadas em relação às estruturas da Cúria Romana. Quero apenas tecer dois breves comentários. O primeiro é em relação à entrevista do papa no avião de volta a Roma, quando perguntado sobre a ordenação das mulheres e respondeu que a questão estava fechada, portanto NÃO. E acrescentou que uma "teologia da mulher” precisava ser feita e que a Virgem Maria era superior aos apóstolos, portanto nada de almejar um lugar diferente para as mulheres.

O segundo comentário tem a ver com a identificação do novo catolicismo juvenil com certa tendência carismática muito em voga na Igreja Católica hoje. Isto deveria nos levar a perguntas bastante sérias para além de nossa sede de ter líderes inspirados que falem ao nosso coração e dispensem os discursos teológicos racionalistas e dogmáticos do passado.

Como pode o papa Francisco simplesmente ignorar a força do movimento feminista e sua expressão na teologia feminista católica há mais de trinta e/ou quarenta décadas dependendo dos lugares? Espantou-me também o fato que tenha afirmado que poderíamos até ter mais espaços na pastoral, quando, na realidade, em todas as paróquias católicas, são as mulheres em sua maioria que levam adiante os muitos projetos missionários. Tenho consciência que essas palavras em relação às mulheres, poucas palavras sem dúvida, limitadas a uma viagem de volta a casa, não possam e não devam criar sombras a uma visita tão exitosa. Entretanto, são os tropeços que fazemos, os nossos atos falhos que revelam a face escondida, a face sombria que também está em nós. São esses pequenos atos que abrem as portas da reflexão para tentarmos ir um pouco mais adiante em relação às primeiras impressões.

A teologia feminista tem uma longa história em muitos países do mundo e uma longa e marginalizada história nas instituições católicas, sobretudo, latino-americanas. Publicações em Bíblia, Teologia, Liturgia, Ética, História da Igreja têm povoado as bibliotecas de muitas escolas de Teologia em diferentes países. Têm circulado igualmente em muitos ambientes leigos interessados pela novidade tão cheia de novos sentidos. E estes textos não são estudados nas principais faculdades de teologia, sobretudo, pelo futuro clero em formação e nos institutos de vida consagrada. A oficialidade da Igreja não lhes deu direito de cidadania porque a produção intelectual das mulheres continua sendo considerada inadequada para a racionalidade teológica masculina. E, além disso, se constitui em uma ameaça ao poder masculino vigente nas igrejas. A maioria não sabe o que existe como publicação e como formação alternativa organizada, assim como desconhece os paradigmas novos propostos por essas teologias plurais e contextuais. Desconhece sua força inclusiva e o apelo à responsabilidade histórica por nossos atos. A maioria dos homens de Igreja e dos fiéis continua vivendo como se a teologia fosse uma ciência eterna baseada em verdades eternas e ensinada prioritariamente por homens e, secundariamente, por mulheres segundo a ciência masculina estabelecida. Negam a historicidade dos textos, a contextualidade de posições e de razões. Desconhecem as novas filosofias que informam o pensamento teológico feminista, as hermenêuticas bíblicas e as novas aproximações éticas.

Papa Francisco, por favor, informe-se no Google sobre alguns aspectos da teologia feminista, pelo menos no mundo católico. Talvez seu possível interesse possa abrir a outros caminhos para perceberem o pluralismo de gênero na produção teológica!

Quanto a dizer, talvez em forma de consolo, que a Virgem Maria é maior do que os apóstolos é, mais uma vez, uma expressão da teologia masculina do consolo abstrato. Ama-se a Virgem distante e próxima da intimidade pessoal, mas não se escutam os clamores de mulheres de carne e osso. É mais fácil fazer poemas à Virgem e ajoelhar-se diante de sua imagem do que estar atentos ao que se passa com as mulheres nos muitos rincões de nosso mundo. Entretanto, se os homens querem afirmar a excelência da Virgem Maria terão que lutar para que os direitos das mulheres sejam respeitados através da extirpação das muitas formas de violência contra elas. Terão, inclusive, que estar atentos às instituições religiosas e aos conteúdos teológicos e morais veiculados que podem não apenas reforçar, mas gerar outras formas de violência contra as mulheres.

Temo que muitos fiéis e pastoralistas necessitados da figura do bom papa, do pai espiritual, do papa que ama a todos se rendam à simpática e amorosa figura de Francisco e reforcem um novo clericalismo masculino e uma nova forma de adulação do papado. O papa Ratzinger nos levou a uma crítica do clericalismo e da instituição papado através de suas posturas rígidas. Mas, agora com Francisco, parece que voltam nossos fantasmas do passado, agora adocicados com a singela e forte figura de um papa capaz de renunciar ao luxo dos palácios e aos privilégios de sua condição. Um papa que parece introduzir um novo rosto público a essa instituição que fez história e nem sempre uma bela história no passado. O momento exige prudência e uma crítica alerta, não para desautorizar o papa, mas para ajudá-lo a ser cada vez mais conosco, Igreja, uma Igreja plural e respeitosa de seus muitos rostos.

Meu segundo breve comentário é em relação à necessidade de identificar a maioria dos grupos de jovens presentes na Jornada e aclamando calorosamente o papa. Em que Evangelho e em que teologia estão sendo formados? De onde vêm eles? O que buscam? Não tenho respostas claras. Apenas suspeitas e intuições em relação à presença marcante de uma tendência mais carismática conservadora e mais celebrativa na linha Gospel. Manifestações de paixão pelo papa, de intenso e repentino amor que leva às lágrimas, a querer tocá-lo, a viver milagres repentinos, a dançar e agitar o corpo têm sido comuns também nos movimentos neopentecostais nas suas muitas manifestações. Sem querer fazer sociologia da religião, creio que sabemos que esses movimentos buscam uma estabilidade social para além das transformações políticas em vista do direito e da justiça para todos os cidadãos e cidadãs. Creio que correspondem, sem dúvida, ao momento atual que estamos vivendo e respondem a algumas necessidades imediatas do povo. Entretanto, há outro rosto do cristianismo que quase não pode se manifestar na Jornada. O cristianismo que ainda inspira a luta dos movimentos sociais por moradia, pela terra, pelos direitos LGBT, pelos direitos das mulheres, das crianças, dos idosos etc. O cristianismo das comunidades de base (CEBs), das iniciativas inspiradas pela Teologia da Libertação e pela teologia feminista da libertação. Estes, embora presentes, foram quase sufocados pela força daquilo que a imprensa queria fortalecer e, por conseguinte, era de seu interesse. Isso tudo nos convida ao pensamento.

Não faz uma semana que o papa viajou e já os jornais e as redes de televisão pouco falam dele. E o que acontece nas comunidades católicas depois dessa apoteose? Como vamos continuar nossas jornadas cotidianas?

Para além da visita do Papa e de uma possível nova forma do papado de Francisco, estamos sendo convidadas/os a pensar a vida, a pensar os rumos atuais de nossa história e a resgatar o que há de mais forte e precioso na tradição ética libertária dos Evangelhos. Não basta dizer que Jesus nos ama. É preciso que descubramos como nós nos amamos e o que estamos fazendo para crescer na construção de relações mais justas e solidárias.

- Ivone Gerbara é escritora, filósofa e teóloga.
Fonte

Um pequeno erro no começo torna-se muito maior ao final: rumos da discussão eclesial sobre a questão gay


É uma honra e uma alegria para nós reproduzir aqui esta palestra ministrada por nosso amigo Pe. James Alison no XXXVII Congresso de Teologia Moral, São Paulo 2-5 de Setembro de 2013 (via). É longo, mas vale muito a pena deixar separado para uma leitura com calma e reflexão.

Uma versão deste texto, com aparato científico, está incluída no livro que reúne os textos do XXXVII Congresso de Teologia Moral, e que sairá em setembro 2013: Zacharias e Pessini (Eds.). ÉTICA TEOLÓGICA E JUVENTUDES: interpelações recíprocas - diversidade sexual – drogas – violência – redes sociais virtuais. Aparecida: Santuário 2013.


i. introdução

Minhas irmãs, meus irmãos, agradeço enormemente o convite para participar deste congresso, e fico muito comovido por vocês terem me oferecido o uso da palavra no mesmo. Fico particularmente honrado com o convite já que vocês são teólogos moralistas com especialidades e áreas de perícia muito específicas. A minha formação, por contraste, é de teólogo sistemático. Tenho-me dedicado nos últimos anos à elaboração de um novo paradigma para a evangelização, tendo criado um curso de introdução à fé cristã para adultos. Meu envolvimento, então, com a matéria sobre a qual vocês pedem a minha intervenção tem sido eclesial, espiritual e pessoal: uma questão que incide na vivência de um cristianismo básico no mundo de hoje antes do que uma discussão moral. Necessariamente, então, a minha abordagem do assunto vai faltar muito em termos da finura da vossa disciplina, e por isso peço desculpas de antemão.

Proponho deixar de lado aquela nuvem de sentido, e de disfarce de sentido, que vem com a frase “diversidade sexual” por considerar que abrange demasiados temas para que seja útil num tempo limitado como este – temas onde tanto as realidades biológicas, químicas e neurológicas, quanto as possíveis consequências espirituais e morais delas decorrentes são suficientemente diferentes para que seja realmente uma curiosidade querer falar delas como se de uma categoria única se tratasse.

Em vez disso, vou me limitar muito mais a um assunto relativamente fácil de circunscrever: à parte LG da sigla LGBTQQ, ou à parte GL da sigla GLS. Ou seja, aquelas pessoas, homens e mulheres, que se sentem principalmente atraídos por pessoas do mesmo sexo. E vou falar disto sendo eu mesmo uma de tais pessoas. Se há uma primeira interpelação eclesial aqui, seria que, a meu ver, o uso correto da primeira pessoa, singular e plural, é muito importante. Uma das coisas que passa por apenas uma mentirinha nos meios eclesiásticos, mas que esconde na verdade algo muito mais grave é o uso de “eles” ou “vocês” em ocasiões quando “eu” ou “nós” seria mais certeiro. Pessoalmente creio que se não sou capaz de honestidade num assunto relativamente pouco importante, como este, então, por quê vou merecer credibilidade quando falo sobre coisas bem mais importantes, como o amor de Deus, a ressurreição dos mortos, ou a presença de Jesus nos sacramentos?

Gostaria, então, de desenvolver para vocês uma meditação sobre três dimensões daquilo que é, na minha opinião, a principal interpelação que faz a questão gay à vida eclesial, antes de terminar numa breve reflexão sobre o assunto “juventudes”. As três dimensões da mesma interpelação são estas: verdade, veracidade e honestidade. Na vida real, evidentemente, as três dimensões vêm juntas. As distingo com a intenção de facilitar uma discussão mais estruturada.

ii. a questão da verdade


Primeiro, o assunto da verdade. No fundo, há uma só questão a ser abordada entre as pessoas gays e a vida da Igreja, e é uma questão simples. Será que existem mesmo pessoas gays? Ou é mais verdadeiro dizer que no universo dos humanos, todos os quais são intrinsecamente heterossexuais, existem alguns que sofrem de uma desordem objetiva que poderia ser chamada de “inclinação homossexual”, ou num falar um pouco mais moderno, “atração pelo mesmo sexo”? Dito de outro modo: será que ser gay se trata de uma variante minoritária não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana, ou será antes que se trata de uma desordem objetiva? Se for o primeiro, uma analogia poderia ser o ser canhoto, onde os atos típicos decorrentes da variante minoritária seriam bons ou ruins conforme as circunstâncias. Se for o segundo, então uma analogia talvez possa ser a anorexia. Todos entenderíamos a anorexia como sendo uma desordem objetiva, uma patologia do desejo cujos comportamentos típicos, se não forem corrigidos, controlados e superados, levam à autodestruição da pessoa.

Bom, sobre este assunto, como vocês sabem muito bem, existe uma clara manifestação das Congregações Romanas, um ensinamento de terceira ordem na hierarquia das verdades, mas que se impõe em toda discussão oficial sobre o assunto. Este ensinamento, que foi acunhado em 1986, reza assim: “é necessário precisar que a particular inclinação da pessoa homossexual, embora não seja em si mesma um pecado, constitui, no entanto, uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada”. Ou seja, o ensino comum das Congregações Romanas é clara: “a inclinação homossexual ... deve ser considerada objetivamente desordenada”.

Pessoalmente, e contrariamente àquilo que poderia se supor, agradeço esta lucidez do autor, ou autores, da “Homosexualitatis problema” [2], porque nos permite avançar claramente na questão da verdade. Ele, ou eles, vinculam indissoluvelmente a intrínseca ruindade dos atos a uma desordem objetiva. E nisso, são pessoas muito mais finas do que aqueles lobos em pele de ovelha que tem abundado no nosso meio nos anos recentes. Tais lobos querem dizer algo assim: “Nós amamos todos os seres humanos, todos são filhos e filhas de Deus. Não temos nada contra as pessoas gays em si, só dizemos que devem se abster dos atos homossexuais. O nosso ensino é sobre os atos, e não sobre o ser”. Bom, a pele de ovelha está em “nós amamos todos” e os dentes do lobo se escondem sob “é só se abster para sempre dos atos”, como se fosse possível que os atos pudessem ser desligados da inclinação de uma maneira simples. Graças a Deus, as Congregações Romanas, neste ensinamento, são mais honestas, sendo ou todo ovelha, ou todo lobo, mas nada de híbrido disfarçado. Porque as Congregações Romanas sabem muito bem que é um absurdo moral, espiritual e de doutrina católica imaginar que a partir de uma condição neutra ou positiva, podem fluir atos típicos que seriam intrinsecamente ruins. Se aquilo que chamam de “inclinação homossexual” for uma coisa neutra ou positiva, os atos daí decorrentes não poderiam ser intrinsecamente ruins, mas bons ou ruins segundo o uso. As Congregações Romanas são claras: se queremos chamar os atos de intrinsecamente maus, não há como evitar categorizar a condição em si como uma desordem objetiva.

Esta lucidez deles nos leva, agradecidos, àquela questão de fundo que falei para vocês. Será que é verdade que ser gay é uma desordem objetiva? Ou será que é antes verdade que é uma variante minoritária e não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana? E gostaria de agradecer mais uma vez o(s) autor(es) da Homosexualitatis problema porque ele(s) indica(m) os termos de referência desta questão da verdade ao utilizar a palavra “objetivo”. Indicam, muito claramente, que aqui não estamos diante de uma questão de perspectiva pós-moderna, ou de “achismo”, não podemos fugir da questão por meio do relativismo, alegando questões de consciência, ou do direito humano ou civil de manter uma opinião subjetiva errada. Estamos diante de algo que é ou não é.

Ou ser gay é uma desordem objetiva, ou não é. No caso afirmativo, todos os avanços científicos no mundo da genética, dos neurônios, da química cerebral, da endocrinologia, dos hormônios intrauterinos, da psicologia infantil e assim por diante, tenderão a demonstrar o fato. E todas as evidências de vida testemunhadas pelas pessoas afetadas vão ser sinais da sua verdade: que as pessoas que são gay só levam uma vida sadia, só tendem a florescer, na medida em que tratam esta característica delas como sendo algum tipo de defeito a ser controlado ou superado. Por outro lado, pela evidencia da vida das pessoas que tratam esta sua característica como uma coisa normal, e se empenham em procurar um florescimento por meio de desenvolver esta característica como se fosse uma simples variante minoritária e não patológica, vai ficar cada vez mais público e notório que estas pessoas não são capazes de um florescimento humano e que a suposta autoaceitação delas não é na verdade senão uma forma de autodestruição. Nem todo o autoengano deste mundo vai conseguir abafar a verdade objetiva: pois lentamente, e apesar das formidáveis barreiras que a nossa cultura humana, fruto da queda de Adão, costuma levantar contra a verdade, aquilo que é termina se impondo, se nos faz presente e resplandece em nosso meio, porque o Criador de todas as coisas está por detrás dele.

E, é claro, as consequências decorrem com exatamente o mesmo rigor no sentido contrário se a verdade não for aquela da desordem objetiva, mas da variante minoritária não patológica. Apesar das formidáveis barreiras levantadas contra a verdade pela nossa cultura humana, fruto da queda de Adão, que neste caso incluiriam barreiras idolátricas levantadas por autoridades religiosas, aquilo que é termina se impondo, se nos faz presente e resplandece em nosso meio, porque o Criador de todas as coisas está por detrás dele. Todos os avanços nos diversos campos científicos acima citados tenderão a mostrar que se trata de uma variante minoritária, não patológica, na condição humana, e que ocorre regularmente. E todas as evidências da vida das pessoas também tornarão público e notório que quem aceitar esta característica dele como algo normal vai florescer na medida desta aceitação de que seu crescimento passa pelo desenvolvimento normal deste elemento da vida. E por outro lado, quem vive no engano, ou autoengano, de imaginar que o seu florescimento só pode se dar apesar desta característica e não com a contribuição da mesma, que deve ser então escondida, abafada, ou até “curada”, esta pessoa se diminui e colabora para a sua autodestruição.

Estamos falando então de uma questão de verdade objetiva. E uma das coisas boas da verdade objetiva é que não depende de nós. Não depende de quem seja melhor no debate, ou mais poderoso, ou mais rico, ou sequer mais inteligente, nem muito menos de qualquer autoridade religiosa. Simplesmente é. Se ser gay é uma desordem objetiva, então todos os supostos lobbies gays no mundo não vão fazer uma mínima diferença em alterar esta realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. E por outro lado, se for o caso que ser gay é uma variante minoritária não patológica dentro da condição humana, então nem os cientistas do exército americano, ou soviético, dos anos 1950, nem os propulsores da chamada terapia reparativa em suas várias versões, os doutores Nicolosi, Van Aardweg, Polaino e Anatrella, nem os exorcismos dos pastores Malafaia ou Feliciano, por exemplo, vão fazer a mínima diferença em alterar a realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. Como seus antecessores aprenderam no caso Galileu, nem o Papa tem o poder de alterar uma realidade objetiva deste tipo. E não é amigo verdadeiro do Papa aquele cuja bajulação leva o mesmo a ter pretensões de uma autoridade além do seu alcance.

iii. do ponto de partida, todo o resto flui

Desculpe a lentidão em chegar a este ponto, mas quis sinalizar uma coisa que é, em certo sentido, óbvia. Dependendo de qual destas posições seja verdadeira, todo o resto flui. Donde decorre que não vale a pena sequer começar a discutir os detalhes menores daquilo que segue – quais direitos humanos seriam aplicáveis, se deve ser lícito o casamento ente pessoas do mesmo sexo, ou antes a punição, talvez drástica como em certos países islâmicos, de qualquer ato que delate a existência desta inclinação na vida de uma pessoa, – não vale a pena discutir estas questões até cumprirmos a tarefa de nos colocar diante da verdadeira caracterização da pessoa em questão. Santo Tomás nos oferece uma bela frase para descrever as graves consequências de não ter acertado o primeiro passo: Error parvus in principio, magnus est in fine. Mesmo que um erro seja só aparentemente pequeno no começo, se não for corrigido, termina levando o caminhante muito longe mesmo do caminho certo. Aqui poderíamos dizer que a diferença entre a analogia do canhoto e a analogia do anoréxico não é, aparentemente, muito grande. Porém, as consequências para a vida da Igreja, das famílias e das pessoas, de partir da falsa e não da verdadeira analogia, vão muito longe mesmo.

Bom, como vocês sabem, a esta altura do jogo, na segunda década do século 21, a evidência da razão está se mostrando contundentemente pelo lado de uma destas duas caracterizações: não há evidência alguma de tipo genético, neurobiológico, químico, endocrinológico, hormonal, nem de psicologia infantil ou adulta para indicar que ser gay é uma desordem objetiva. Ao contrário, toda a evidência atualmente disponível, e ainda estamos nos primórdios de muitos campos novos de estudo, leva a pensar que não há patologia alguma que seja intrínseca ao ser gay, mas que as pessoas gays têm as mesmas tendências à saúde e à patologia que as pessoas heterossexuais. Ou seja, que ser gay é mesmo uma variante minoritária e não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana. Não somos nem mais nem menos “fodidos” só pelo assunto da orientação sexual; antes, em termos de “fodidez”, somos bem iguais. E estas evidências de tipo científico estão recebendo uma confirmação de tipo popular cada vez mais forte a cada dia, na medida em que, por todo o planeta, a começar pelos países de ocidente, as pessoas gays vão perdendo o medo de viver de maneira transparente, e por isso a gama das nossas características, em toda a sua variedade, chega a ser cada vez mais visível. Com a visibilidade some o mistério, e percebe-se que não somos nem mais nem menos generosos, irresponsáveis, ignorantes, ciumentos, paranoicos, inteligentes, honestos, preguiçosos, violentos ou confiáveis que os outros. Antes, somos banalmente muito parecidos.

Vale a pena insistir nisto ante este público já que alguns de vocês dependem para o vosso sustento de um meio eclesiástico onde ainda há um abismo entre a primeira categoria de evidência, aquilo que se conhece formalmente de tipo científico, e a segunda categoria de evidência, a sua confirmação cotidiana em meio ao povo pelo conhecimento de parentes e amigos que vivem isto de maneira transparente e sem distúrbios. No meio eclesiástico, não dá para perceber tal vivência transparente e sem distúrbios. De fato, qualquer pessoa hétero morando num seminário, ou comunidade religiosa, e que não tinha antes muito conhecimento de pessoas gays talvez vá se dando conta que tem uma desproporção muito grande de pessoas gays no meio religioso, porém nenhuma delas consegue ser plenamente honesta nem com os outros, nem consigo mesma. Antes paira uma nuvem de chantagem e de esconde-esconde sobre toda a convivência. Não seria de se surpreender que tal pessoa hétero chegasse a deduzir, a partir da evidência que tem diante do nariz, que existe um elo intrínseco entre a homossexualidade e a desonestidade. Para que tal pessoa chegue a suspeitar que talvez a desonestidade que tem razão em detectar ao seu redor seja uma dimensão estruturante da vivência eclesiástica atual, que impõe como premissa uma caracterização falsa da psique de boa parte dos seus integrantes clericais, e não um elemento intrínseco às pessoas gays, será ainda necessário caminhar muito.

iv. recusa do binômio “verdade objetiva e honestidade”

Bom, parece que deslizei da questão da verdade para a da honestidade. Mas curiosamente, não é o que quero fazer. De fato, é demasiado fácil saltar do elemento “verdade objetiva” para o elemento “honestidade” como se o mundo e a nossa vivência real fossem divididos entre verdades conhecidas objetivamente, por um lado, e por subjetividades mais o menos desonestas, por outro. E que por algum mandamento moral, ou força de vontade, teriam de se adequar estas subjetividades à verdade objetiva. A meu ver, uma grande parte da dificuldade que a Igreja tem para lidar com esta questão é justamente neste ponto: fora alguns redutos rigoristas, mais ou menos todo mundo minimamente informado sabe que aquela premissa básica que é a caracterização da desordem objetiva é falsa. E mais ou menos todo o mundo quer ser honesto. Por outro lado, todo mundo sabe que reconhecer a falsidade da premissa equivale a dizer que a Igreja está ensinando um erro. E mesmo que seja só um erro antropológico, e não sobre uma questão de revelação divina, dá muito medo no nosso meio assumir esta posição. Em simples termos de colocar em risco o emprego: a gente deixa de ser gente se não se é “confiável” em manter a fachada sobretudo nesta questão, que tem tão íntimas consequências na vivência eclesiástica, especialmente a masculina. Juntam-se a isto as consequências deste reconhecimento, mesmo no nível intelectual. Se retirar este naipe da desordem objetiva das pessoas gays do castelo de cartas da antropologia sexual católica oficial, então deixa de ser possível manter que todos os atos entre pessoas do mesmo sexo seriam intrinsecamente ruins. E basta que um ato sexual entre pessoas do mesmo sexo não seja ruim, no qual por razões evidentes a função unitiva está sem ligação com qualquer função procriativa, e o castelo de cartas desaba. Deixa de ser possível insistir que é somente bom o ato heterossexual onde as funções unitiva e procriativa não são deliberadamente separadas. Pois, seria um absurdo manter um maior rigor para as pessoas heterossexuais do que para os gays.

Porém, não quero saltar do assunto da verdade objetiva para o assunto da honestidade subjetiva das pessoas individuais na Igreja. Mesmo que seja este binômio, entre verdade e desonestidade, ou entre verdade de fachada e vida dupla, que nos faz, como católicos, tão suscetíveis à acusação de hipocrisia. De fato, qualquer acusador nosso, seja do lado secularizante – por exemplo, um ativista gay que vê na Igreja só um inimigo da felicidade –, seja do lado sacralizante – no caso de um paladino da tradição que vê nos gays só inimigos da fé e dos valores familiares se assemelham no seguinte: os dois lados têm em nós um alvo demasiado fácil. Nos pegam de mãos atadas. Os dois lados estão com raiva do estado atual das coisas na Igreja, e com justa razão. Entendendo as coisas por um lado, a Igreja deve simplesmente reconhecer a verdade científica, e os seus integrantes simplesmente deveriam aprender a ser honestos. E entendendo as mesmas coisas pelo outro lado, todos os integrantes eclesiásticos devem reconhecer honestamente a verdade do atual ensinamento, e os que são gay deveriam reconhecer a sua inadequação para o ministério e se retirar, ou não se propor para qualquer ministério público na Igreja.

v. o “skandalon”

Nos termos de Bateson é um “duplo vínculo” perfeito: se falar a verdade, você fica de fora (do grupo); e se não falar a verdade, fica de fora (do sentido para o qual existe o grupo). Então muitos integrantes da Igreja preferem ficar num espaço ambíguo, uma espécie de “Don’t ask, Don’t tell” onde tudo é cinzento. Mesmo sem falar da miséria psíquica que este ambiente produz, nem dos relacionamentos disfuncionais e inapropriados que nele abundam, isto é evidentemente o ambiente mais propício para toda classe de chantagem.

Bom, aquilo que Bateson teria chamado de “duplo vínculo”, o meu guru, o René Girard, chama pelo nome mais clássico em termos teológicos de “skandalon” [3]. E é mesmo. A vivência eclesial desta questão merece mesmo o nome de escândalo, não no sentido jornalístico, mas no sentido estrito, de um mecanismo que é pedra de tropeço, algo que atrai e repele a seus integrantes ao mesmo tempo, atando-nos em ritmos de desejo insuportáveis de viver com e insuportáveis de viver sem. É um escândalo vivido na carne própria pelos de dentro, e tende a se reproduzir como escândalo nos inocentes que são induzidos a formar parte deste mundo escandalizado. Este processo de ficar atado num “skandalon” leva à paralisia do coração, passo muito próximo à perda da alma. Mas é aqui onde me parece que vem em jogo aquele terceiro elemento da interpelação que mencionei ao começo, a da veracidade.

Aqui, a meu ver, é a área mais frutífera para a interpelação entre pessoas gays e a vivência eclesial. Pois se estamos diante de um “skandalon” no sentido de Girard, que creio ser o do Evangelho, procurar, então, esticar as pessoas escandalizadas entre a “verdade” e a “honestidade” é mais uma maneira de nos deixarmos cozinhar pelo inexorável fogo baixo da acusação. Ora, a qualidade da acusação é que só atiça e estreita os nós do escândalo, mas não oferece nenhuma saída dos seus laços.

Por isto, gostaria de oferecer para vocês algumas observações sobre a dimensão da veracidade neste campo. A minha tarefa, como cristão, como padre, e como teólogo, não é atiçar os laços do escândalo, mas reconhecendo sem fingimento o skandalon por aquilo que é, procurar desatar aqueles nós, oferecendo caminhos pelos quais seja possível sair de tanta dor e autodestruição.

vi. a veracidade

Quando falo veracidade, então, falo do processo pelo qual o grupo humano e os seus integrantes chegam a adquirir uma disposição estável de se deixar ajustar àquilo que realmente é, e poder falar a respeito. Por exemplo, durante os últimos séculos temos crescido muito no conhecimento da meteorologia. Temos chegado, como sociedade, e com pouquíssimas exceções, a compreender sem sequer pensar muito no assunto, que as forças do vento, do mar, da chuva, as temperaturas altas e baixas, a produção de furacões, etc. seguem certos ritmos e leis da física, e que são interdependentes. Temos nos ajustado a esta maneira de entender as coisas, e de dar certo crédito aos meteorólogos, suas predições e explicações. Se um membro de uma comunidade recentemente afetada por uma tempestade nos propusesse que aquele evento é o resultado de uma bruxaria, e que a pessoa que lançou o feitiço deveria ser achada e punida pelos estragos causados, duvidaríamos primeiro da inteligência do nosso informante e, caso o mesmo se revelasse inteligente, e ainda insistente, duvidaríamos da saúde mental ou da honestidade das intenções dele. Teria se mostrado uma pessoa com um defeito sério na veracidade, na capacidade para ser esticada por aquilo que é. Em contrapartida, muitos de nós recitamos sem escândalo o salmo 147 que diz de Deus: “Ele atira seu gelo em migalhas”. Mas consideraríamos muito estranho que alguém propusesse que a explicação real das chuvas de granizo é mesmo uma confusão divina entre gelo e pão. Sabemos muito bem distinguir entre as causas secundárias, em termos de Santo Tomás, e a primeira causa, e também sabemos que aquelas não estão em rivalidade com esta.

Ou seja, conseguimos distinguir entre acontecimentos meteorológicos por um lado e projeções sobre a divindade ou alterações sociais produzidas pela inveja e rivalidade dos membros de uma comunidade, por outro. E fazemos esta distinção sem escândalo. Este processo de ajuste dos seres humanos à realidade não foi imediato; de fato, demorou séculos, mas uma vez feito, resultou ser estável.

Proponho para vocês que é precisamente a um processo de veracidade deste tipo ao qual somos chamados como Igreja pela questão gay. E gostaria de sublinhar que sair de um escândalo não é um processo puramente intelectual. De fato, funciona muito mais ao nível do desejo que nos estrutura do que naquele nível relativamente secundário que é o do raciocínio. Dou-lhes um exemplo. Recentemente um Bispo amigo meu foi chamado pelo Vaticano para responder por uma pastoral gay na diocese dele. Os acusadores tinham outros motivos para incomodar o Bispo, mas acusar um bispo de demasiado liberal no assunto gay é sempre uma boa arma no campo minado do amor cristão. O Bispo me consultou a respeito, e eu disse para ele aquilo que digo para vocês: que, havendo seguido os estudos durante anos, a meu ver, trata-se de uma variante minoritária não patológica e que ocorre regularmente na condição humana, com as consequências normais que disto decorrem. O Bispo, muito inteligentemente, e não querendo depender numa questão de evidência científica da opinião de um mero teólogo que é também um homem pessoalmente envolvido no assunto, procurou os principais médicos, psicólogos e cientistas da diocese dele, um por um, e perguntou qual era o parecer deles na matéria. E todos, sem exceção, disseram para ele a mesma coisa. Então, durante a entrevista dele no Vaticano, ele levantou esta questão, sugerindo que estamos diante de um fato já aceito pacificamente no universo científico. Os seus interlocutores romanos informaram ele que não era para ele ser enganado deste jeito, e que a pretendida cientificidade deste fato é simplesmente o resultado de um lobby gay muito poderoso e influente.

Agora, espero que vocês vejam a diferença entre as duas maneiras de proceder. Por um lado tem alguém que está disposto a perder a reputação dele no grupo que o sustenta, ao reconhecer a possibilidade, mas não a certeza, de que a realidade talvez seja diferente do que pensava. Por isto ele se dá o trabalho de estudar o assunto, confiante de que, seja qual for o resultado da pesquisa, a verdade é aquilo que nos faz bem, e que é muito exatamente uma parte do exercício do dom da Fé confiar em que Deus nos mostrará aquilo que é realmente bom para nós se estivermos dispostos a correr o risco de nos percebermos errados. Ou seja, por um lado alguém se encontrou com suficiente liberdade no meio do grupo dele como para se permitir o exercício da virtude da studiositas como parte do caminho para se ajustar à verdade das coisas.

Por outro lado, temos uma pessoa ou grupo de pessoas de tal modo escandalizadas pela possibilidade de que a verdade objetiva não esteja conforme aquilo que deve ser, segundo o entendimento deles do ensino da Igreja, que resolvem o problema por meio de uma teoria de conspiração. “Só os médicos e psicólogos que estão de acordo conosco são aceitáveis. Se existem muitas pessoas alegando que estamos diante de uma verdade de tipo científico discordante do nosso ensinamento, mas que agora é pacificamente aceita pela imensa maioria dos estudiosos, então a explicação é que um poderoso grupo de malfeitores teria adulterado a ciência a favor do autoengano deles.” Espero que dê para perceber que uma teoria da conspiração deste tipo é o equivalente intelectual da premissa da bruxaria causadora da tempestade, e é um empecilho perfeito à possibilidade da veracidade. Quem se aferra a uma causalidade social acusadora desta maneira nunca vai ter acesso à possibilidade do conhecimento científico, nem da meteorologia, nem das ciências modernas que estão nos permitindo entender a orientação sexual. Ou seja, o pensamento escandalizado é justamente o oposto do caminho da veracidade. Nos mantém longe da possibilidade de nos ajustar àquilo que realmente é e menos ainda de poder falar a partir de dentro daquele processo de ajuste.

vii. passos para sair do “skandalon”

Graças a Deus, os nós do “skandalon” são desatáveis. Se os mecanismos do constante atiçamento dos nós do skandalon são potenciados pela acusação, aquilo que potencia o soltar os laços é o perdão. E de fato, no epicentro da fé cristã e católica entendemos muito bem que a chave para abrir a verdade que nos libera é o Espirito d’Aquele que estava disposto não a fugir do skandalon mas Ele mesmo entrar no lugar do skandalon, sendo definido Ele mesmo como escandaloso, e suportando o peso da violência, das falsas acusações, da vergonha, da desfiguração e da morte. E o fez tudo para que nós pudéssemos passar pelo espaço dos escândalos sem ficar escandalizados: “Feliz aquele que não se escandalizar em mim”.

E é isso mesmo: na medida em que achamos que nesta situação de vivência eclesial, não há nada para ser perdoado, é só insistir nas definições de sempre com maior rigor frente a um mundo perverso cada vez menos disposto a nos ouvir. Deste modo, só conseguimos atiçar o skandalon até o ponto onde a nossa perda de razão fica evidente para todo mundo menos para nós. Assim ficamos ainda mais escandalizados ao percebermos como os outros consideram tabu irracional aquilo que chega a ser para nós pedra de toque da nossa sacralidade. Por outro lado, na medida em que reconhecemos que tem algo para ser perdoado, quer dizer solto, permitido a fluir, e que somente na medida em que nos deixamos perdoar é que vamos perceber a realidade daquilo que é, assim veremos o skandalon se esfumar e vamos ficar livres.

Repito isto, porque é um dos segredos do cristianismo que a Igreja muitas vezes consegue esconder de si própria. O principio da realidade flui a partir da vítima que nos perdoa, e que nos dá o poder de segui-la sendo perdoados e espalhando o perdão, fazendo dos lugares escuros e aparentemente tóxicos da vergonha e do escândalo, lugares onde podemos morar pacificamente, e por isso, começar a detectar e descrever sem medo aquilo que realmente está acontecendo. Aquele que diz “Eu sou a verdade, o caminho e a vida, ninguém vem ao Pai a não ser por mim” soprou nos apóstolos o Espirito Criador mandando-os perdoar, e é aquele Espírito que nos leva a toda a verdade, e nos assegura que a verdade nos libertará.

Ou seja, o primeiro passo para sair do skandalon que é a atual vivência eclesial do assunto gay é se deixar perdoar. E o segundo passo, que flui automaticamente do primeiro é na medida em que começamos a nos descobrirmos perdoados, e por isso capazes de caminhar com maior leveza de espírito em meios perigosos, onde só o perdão nos dará a capacidade de não nos preocuparmos pela perda de reputação e assim por diante, a perdoar aqueles que ainda ficam escandalizados e por isso são pessoas violentas, ainda filhos da ira, que não entendem bem as forças cruéis do desejo escandalizado que as agitam. Os escandalizados não serão capazes de deixar de mentir, de atacar, de acusar, se pensando justos ao fazê-lo, e agindo até com maior ferocidade na medida em que perceberem a liberdade e a tranquilidade alheia. Com o escandalizado, nunca entrar em debate. Ao escandalizado se perdoa sem que ele o peça, pois não sabe o que faz, e porque, não o perdoando, ficamos com o risco de sermos contagiados pelo mesmo escândalo.

O terceiro passo, e é um grande privilégio da fé católica, é poder ver com aquela racionalidade tranquila de quem passou pela perda de tudo, e ainda se descobriu mantido em vida, como é que esta pequena abertura para uma antropologia mais verdadeira não é, como se poderia pensar, uma ruptura da fé, ou uma brecha na bela totalidade da vivência católica, mas, ao contrário: é o seu desenvolvimento, a partir de dentro, mais orgânico. É uma daquelas coisas que do lado de fora parece um obstáculo, e por isso uma pedra a ser rejeitada, mas pelo lado de dentro, percebe-se o seu vínculo íntimo com a pedra angular. Ou seja, uma vez que a gente está além do escândalo, a gente olha para atrás e percebe que o pleno reconhecimento da humanidade das pessoas gays foi, e está sendo, o desenvolvimento mais íntegro da vivência cristã, seguindo muito exatamente aquilo que Jesus nos prometeu. Curiosamente, este desenvolvimento integralmente cristão tem sido liderado por pessoas que pouco sabiam o quanto eram cristãs a ousadia, a humildade e a perseverança delas, e tem sido obstruído por pessoas que pouco sabiam que a rigidez, o escândalo e a desonestidade delas nada de cristão tinham. Um fato assim deveria ser motivo de vergonha para nós que levamos o nome de cristão, porém só pode ser motivo de surpresa para quem não tiver dedicado o mínimo de tempo a ler os Evangelhos…

O quarto passo, descobrindo-nos, sem mérito nosso, por dentro da dinâmica orgânica do Evangelho é nos dar conta de que a fé católica sempre previa possibilidades deste tipo. O ensinamento católico com respeito a Fé e a Razão, a Graça e a Natureza, mantido nos conselhos de Trento, Vaticano I e II, e ensinado com particular lucidez pelo Bento XVI nos facilita muito a tarefa de sair dum escândalo que é muito mais forte para grupos que não tem este ensinamento. Pois, uma vez que é o ensinamento constante da Igreja que a razão humana, por débil que seja, não ficou totalmente danificada na queda, e por isso ainda é capaz de aprender a verdade, mesmo que por caminhos árduos e onde avançamos só em meio a muitos erros; e que a natureza humana, e junto com ela o desejo humano não é radicalmente depravado, mas em si uma coisa boa, mesmo que vivido por todos nós de uma forma distorcida e debilitada; uma vez lembradas estas coisas, então podemos entender que é absolutamente conforme à nossa fé o poder aprender, ao longo do tempo e de maneira árdua, que alguma coisa que parecia ser um defeito da natureza humana não o é e que aquilo que se pensava uma condição viciada ou patológica não o é. Devido justamente a esta compreensão, a fé católica entende que Deus, porque nos ama, não proíbe coisas de maneira caprichosa, só proíbe aquilo que nos faz mal. Quando se pensava que ser gay era um defeito numa natureza humana intrinsecamente heterossexual, então não se colocava em questão que a proibição fosse para o nosso bem. No momento em que se descobre que, antes, ser gay diz respeito a uma variante minoritária e não patológica na condição humana, então automaticamente fica claro que aquilo que se pensava ser uma proibição divina não é, e nunca foi, tal. É e foi um tabu humano, parte daquele mundo de ignorância e violência que ainda não tinha aprendido a respeitar a dignidade, a beleza, e a capacidade para o florescimento de diversos membros da raça humana. Mas que agora, e como parte integrante da Boa Nova, estamos descobrindo que ser humano é uma aventura maior e mais rica do que se pensava antes.

viii. a catolicidade do caminho proposto

Quero insistir nisto, porque significa que o descobrimento da condição não patológica do ser gay, um autêntico descobrimento de tipo antropológico, um autêntico ganho para a humanidade, não é um ataque frontal a uma doutrina da Igreja. Ao contrário, é parte de um mecanismo absolutamente normal, e interno à vida da Igreja, pelo qual chegamos a perceber um conflito entre duas doutrinas que antes não pareciam ter nenhum conflito entre elas: a doutrina acerca da fé, da razão, da natureza e da graça, por um lado, e a proibição absoluta de todo ato de amor entre pessoas do mesmo sexo, por outro. As duas doutrinas de fato têm um conflito, se aquilo que chegamos a perceber e apreciar ao seguir a primeira doutrina, que é, de toda evidência, central para a visão católica do mundo, nos leva muito obedientemente a relativizar e finalmente a rejeitar, como sendo expressão de um tabu, a segunda doutrina. A primeira doutrina nos teria ensinado que a segunda não pode ser de origem divina, sendo que é incompatível com a benevolência e a sabedoria do Criador ter querido frustrar por meio de uma proibição absoluta o desenvolvimento e crescimento normal de uma condição que ele mesmo teria se comprazido em introduzir na nossa experiência de filhas e filhos dele. A bondade ou ruindade dos atos de amor entre pessoas do mesmo sexo dependeria de seu uso, como é de fato a experiência das pessoas gays, e os critérios para isto deveriam ser aprendidos por nós, guiados por aquela inapagável tendência em nós para a verdade que a Igreja tanto preconiza e à qual tantas pessoas gays e lésbicas têm dado testemunho na face de tanta rejeição eclesiástica.

Acho que vale a pena lembrar disto: como o ensinamento da Igreja vem de Deus, quando descobrimos um erro, é evidente que aquilo não era, na verdade, o ensinamento da Igreja. E os que insistiam que era, resultaram ser os que foram na verdade pouco leais à Igreja, preferindo uma aparente continuidade tingida com erro a uma vivacidade sempre mais ricamente portadora da verdade [4].

ix. conclusão

E isto me leva ao ponto com o qual quero concluir. Estamos reunidos para falar sobre as recíprocas interpelações entre juventudes e teologia moral. Conforme lhes disse no começo, não sou formado em teologia moral, e o meu interesse principal é no cristianismo básico e a evangelização. Espero que tudo que disse até agora sirva para sublinhar a tarefa que temos em comum: até descobrirmos as maneiras, internas às nossas disciplinas, de entender que o processo de crescente veracidade em matéria de orientação sexual, que tem ocorrido muito mais fora da Igreja do que no seu meio, tem sido, e é, parte orgânica da Boa Nova que vem de Cristo, e não o inimigo daquela Boa Nova. Até que descubramos isto por nós mesmos, a única interpelação que teremos para as juventudes é querer trazê-las para dentro da nossa vivência escandalizada. Neste caso, seria muito apropriado que tivéssemos medo de que venham a cair sobre nós os “ai” de Mateus (23, 13-36) com todo seu peso. Enquanto, por outro lado, a principal interpelação das juventudes para nós, se é que sequer se preocupam em procurar o diálogo, vai ser “Onde estavam vocês quando tivemos de crescer sem apoio, sem modelos, sem exemplos, quando tivemos de passar pelo vale da sombra da morte? Ficamos a sós com o Senhor, como nosso único Pastor, muitas vezes sem que sequer o percebêssemos, já que vocês, que foram formados para nos ajudar, e tinham tudo para fazer brilhar o sinal eficaz do pastoreio d’Ele, tiveram medo do lobo e fugiram.”

São Paulo e Londres, Maio/Junho/Julho de 2013

Endnotes

[1] Agradeço ao meu amigo Lula Ramires por ter revisado a redação deste meu texto, escrito originalmente em português.

[2] #3.

[3] Por exemplo, na IIIª parte do seu livro Coisas ocultas desde a fundação do mundo.

[4] Veja Marcos 7, 13
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...