sábado, 24 de setembro de 2011

Um novo tempo

Foto via Zoie loves

Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, cada um de nós pode começar agora e fazer um novo fim.

- Chico Xavier

Cismas e devaneios

Foto: Sam Gellman

A memória filtra o que deve ser lembrado. Ou põe fatos desagradáveis em algum escaninho tão escondido que nunca será encontrado. É defesa, sobrevivência. Melhor recordar o que de bom fizemos ou fizeram por nós, embora esses também sejam acontecimentos que podem e são esquecidos.

Penso nisso ao refletir sobre a intolerância que varre o país, certamente também o mundo. Pessoas que julgávamos esclarecidas babam de ódio quando se veem diante de opiniões diversas das suas. Há uma ditadura nos rondando em nosso cotidiano.

A tão querida pluralidade de pensamento parece ser apenas teórica. Na prática, se alguém não pensa como o grupo não passa de um idiota, um reacionário, um ser desprezível. Tenho muito receio desse tipo de gente que se fecha em alguns dogmas e desconsidera tudo o que seja o discernimento diferente. Se só existisse uma versão, uma possibilidade de compreender a realidade, que vida chata seria a nossa.

Não acompanho as tais redes sociais por saber que, além do que nelas existe de agradável, circula um mau humor, uma intransigência, rancor, raiva. Todos têm opinião formada sobre tudo e descarregam seus preconceitos, sua falta de paciência para ler e tentar compreender com mais profundidade o assunto em pauta. É vapt-vupt. Recebeu, bateu. Fico longe disso e prefiro, pacientemente, meditar, cismar, ruminar, cogitar, devanear.

Às vezes, agredido, tenho ganas de reagir prontamente. Mas a velha sabedoria que nos ensina a contar até 10 me leva a ir ao número mil. Quando a inquietude é grande, tenho boa companhia a me aconselhar. E, depois de uma noite bem dormida, tudo clareia, não só a manhã, mas também a mente. E eu me livro de arrependimentos futuros.

Nessas horas, respirar ao ar livre é bom. Procurar o que meus pais e o tempo vivido me deram, melhor. Educação e civilidade é um bom objetivo a alcançar, para viver. Nessas horas, me afundo nas imagens dos jardins de Monet, que a prima Vera me manda pelo correio eletrônico. Ou escolho entre LPs e CDs músicas que embalam, tocam, entusiasmam e me indicam os caminhos do prazer. Ou abro, na biblioteca, os livros dos poetas que amo, os novos poetas que aprendo a admirar. Ou procuro um filme daqueles que arrepiam, que instigam os sentimentos, que emocionam por sua beleza e humanidade.

E incorporo ao meu pensamento os que amei e os que amo. Os amigos de toda a vida e também os novos que a caminhada pode me apresentar. O passado, o presente e o futuro dos humanos que me cercam, e até o Miró e todos os cães que o antecederam em meu convívio, celebram uma sinfonia que me ajuda a viver a minha travessia.

- Fernando Brant
Reproduzido via Conteúdo Livre

Quem tem medo de Simone de Beauvoir?



Tá aí, uma mulher que gosto muito e que sem dúvida falaria melhor sobre as mulhes na Onu que a Dilma, rs.

Engraçado, em tempos em que nós LGBT's temos um grito contra hegemônico, é legal olhar como eles foram dados por outras pessoas em outras épocas. Já que propomos liberdade de consciencia, responsabilidade e independencia em meio a nossas angustias, sofrimentos, medos e frustrações.

Vale a Leitura:

Recentemente, tenho lido e ouvido muitos julgamentos, de teor e tom questionáveis, a Simone de Beauvoir. E essas acusações suscitam uma pergunta: por que sua figura e seu pensamento incomodam tanto? Sua bissexualidade, vários e várias amantes, a recusa do casamento e da maternidade, a liberdade e independência em um mundo cada vez mais conservador poderiam ser uma resposta. Mas a considero simplista e insatisfatória.

Simone de Beauvoir nasceu há 113 anos. Suas obras mais influentes foram escritas entre os anos 1940 e meados dos anos 1970. O Segundo Sexo, seu livro mais importante, foi publicado em 1949. Lá se vão mais de 60 anos. Mas tantas décadas parecem não ter sido suficientes para que sua obra fosse compreendida e criticada com propriedade. Ainda hoje, muitas pessoas se recusam a ler Simone de Beauvoir porque ela era “uma libertina”. E repetem-se afirmações forjadas para atribuir a ela tudo aquilo contra o que ela lutou no plano das ideias e no plano da ação. Acusam-na de submissão, de dependência, de pregar o feminismo para as outras mulheres e não praticá-lo.

Essa resistência a Simone de Beauvoir esbarra em questões mais profundas sobre nossa sociedade: a condição da mulher, especificamente a mulher intelectual; a relação entre a experiência vivida e a escrita da memória com a subjetividade; as expectativas que recaem sobre os intelectuais. Tentarei abordar brevemente, e de forma não sistemática, alguns desses temas tendo como referência a figura de Simone de Beauvoir.

Experiência vivida, matéria-prima do pensamento

A grande maioria dos julgamentos feitos a Simone de Beauvoir, acredito, baseiam-se em erro primário para qualquer reflexão: desconsiderar o fato banal de que intelectuais vivem. Ou seja, toda vida, inclusive a de uma pensadora, é um emaranhado complexo de descobertas, conquistas, falhas, inseguranças, afirmações, sofrimentos, retrocessos, sucessos. E é em meio a essa complexidade que seu pensamento e sua ação no mundo se desenvolvem, obviamente transformando-se. É, portanto, pouco racional deixar de considerar que, aos 20 anos, aquela pessoa, como qualquer um de nós, ainda não tem o terreno de todo seu pensamento arado e cultivado. Como é pouco racional ignorar que esse trabalho exige esforço.

Assim, por exemplo, há quem queira invalidar o pensamento libertário e antissexista de Simone de Beauvoir baseado em sua relação com Sartre. Afirma-se que ela se submeteu a Sartre durante toda a vida e aceitou um modelo de relação que ele impôs. Isso é incorrer no erro mencionado. Então, vamos a alguns fatos sobre essa relação.

Simone de Beauvoir e Sartre tinham 20 e poucos anos quando firmaram um pacto que previa um relacionamento aberto, cada um dos dois podendo envolver-se com outras pessoas. Quem propôs este pacto foi Sartre. E Simone de Beauvoir o aceitou. Logo depois, eles foram nomeados para lecionar em cidades diferentes da França. O que unia a ambos: o relacionamento sexual, amoroso, e uma afinidade intelectual que provavelmente nenhum de seus críticos ou seguidores jamais experimentou com alguém. A convivência entre ambos era, ao mesmo tempo, afetiva e instigante. Desejavam estar próximos. Sartre propôs casamento a Simone. Ela recusou. (Muito antes de conhecê-lo, já estava decidida a não se casar e não se submeteu ao desejo dele ou à paixão.)

Simone de Beauvoir sempre desejou ser livre, algo que a vida em uma família burguesa empobrecida de Paris – origem que ela jamais negou – nunca lhe permitira. Liberdade de pensamento, que exercia em suas aulas a alunas do ensino médio (ela só deu aulas em universidades durante a guerra). Liberdade sexual, envolvendo-se em alguns relacionamentos pouco mais do que casuais com homens e mulheres. Liberdade intelectual, trabalhando em seus primeiros livros, que não foram finalizados.

Sartre, no início, chocou-se com a bissexualidade de Simone. Depois, se apaixonou por uma de suas amantes, Olga, e propôs, com veemência e insistência, um novo modelo de relacionamento, que eles chamavam “o trio”. Os três aceitaram. Foram jogados em uma situação em que precisaram rever seus preconceitos e moralismos burgueses, em um turbilhão emocional repleto de sofrimento, conflito, meias-verdades, raiva, inveja. O “trio”, ela relatou tanto em A Força da Idade e em A Convidada, foi um fracasso. Todos sofreram mais do que se divertiram, todos os limites de suas liberdades foram testados, em geral ferindo um dos três. Para dizer o mínimo: Sartre era rejeitado por Olga, que provocava ciúmes em Simone, que era invejada por Sartre por ser a preferida da garota. O terceiro elemento na relação, percebia Simone, instaurava inexoravelmente uma barreira à liberdade e ao desejo de um dos integrantes do “trio”. E todos sofriam, ora por si mesmos, ora por ver pessoas queridas sofrendo. A partir dali, Simone não integraria novos trios, negando-se a manter um arranjo. Os triângulos, tal qual no início do pacto, voltaram a existir, mas as relações a três, não.

Há quem entenda o sofrimento de Simone como submissão. Considero uma percepção muito estreita do que é uma experiência de vida. O sofrimento faz parte das relações humanas. Simone nunca se esquivou dessa angústia. Afinal, primeiro como uma amante da liberdade e, depois, como existencialista, ela sabia que a angústia é inevitável. E também sabia que há uma responsabilidade a ser assumida em relação a si mesmo e aos outros.

A única vez que Sartre propôs casamento a outra mulher, sua amante norte-americana, Simone se retirou do relacionamento. Não queria submeter-se novamente aos conflitos e insucessos do “trio”. Ele desistiu do casamento. O amor necessário entre ambos sempre superou os amores contingentes. E isso não é resultado de uma magia romântica e cheia de coraçõezinhos que surgia no ar todas as vezes que um dos dois estava efetivamente envolvido em outras relações. Foram escolhas conscientes e livres de ambos.

Dizem também que Simone não conheceu o prazer sexual com Sartre e que logo ele se desinteressou sexualmente dela. Duas verdades. O que não é verdade é assumir que ela se submeteu a isso como uma vítima. Simone teve vários e várias amantes e encontrou o prazer sexual em várias relações. Quando o desejo sexual de Sartre deixou de existir, ela determinou que não precisariam mais relacionar-se por mera formalidade. Com o escritor Nelson Algren, foi confrontada com o amor romantizado e “tradicional” para sua época. Ele a pediu em casamento. Ela recusou. Muitos a condenam. Além de não estar disposta ao casamento e à maternidade – ele queria filhos –, Simone sabia que sua ligação, ainda que fosse apenas intelectual com Sartre, machucava Algren. Novamente, ela era confrontada com a fórmula do “trio”, em outro contexto. Melhor que cada um abraçasse sua liberdade.

Simone de Beauvoir escreveu milhares de páginas em romances, ensaios, memórias abordando esses e outros fatos. Considerada uma das maiores memorialistas do século 20, produziu quatro volumes bem recheados, nenhum deles com menos de 300 páginas. Somente quem ignora totalmente essa produção, ou quem tenha lido sem nada compreender, pode dizer isso.

Há poucos temas que ela não aborde em detalhes em suas memórias, um deles é o processo movido contra ela pelos pais de uma aluna com a qual se envolveu sexual e afetivamente. Nesses e em outros casos, ela opta por não entrar em detalhes pelo simples fato de que as pessoas envolvidas estavam vivas no momento da publicação dos livros, o que poderia criar mais escândalos.

Em cada página das memórias, a honestidade de Simone é invejável. Ela reconhece, por exemplo, as críticas mal-informadas que ela (e Sartre) fizeram a Freud, os enganos que cometeram em algumas avaliações a respeito de personagens e colegas durante a guerra, o fato de que, durante muito tempo, ela e Sartre, embora lutando contra os ideais burgueses, se submeteram totalmente e sem sequer perceber ao estilo de vida que abominavam.

Simone de Beauvoir acreditava que a matéria-prima do intelectual, além da capacidade de compreender e criticar as teorias, é a própria experiência. É a partir daí, pensava, que podemos construir nossa relação com o mundo, talhar nossa subjetividade e, assim, produzir uma obra relevante intelectualmente, capaz de abordar assuntos e aspectos ainda inéditos. Simone não se negava a experimentar nada novo ou diferente. Pagava um preço caro por isso: nos anos 1930, em que uma mulher desacompanhada nem sempre era aceita nem mesmo em um café, ela optava por estar só. A solidão era a chave de sua abertura para o mundo. Nos anos 1940 e 1950, era cobrada por não ter "agarrado" o amor de Algren.

Uma intelectual no tempo

Outra crítica comum a Simone de Beauvoir é de que ela era feminista em seus livros, mas não era feminista em seu relacionamento com Sartre. Dizem que ela pregava o feminismo para outras mulheres e não o praticava.

Em suas memórias, Simone de Beauvoir afirma que jamais foi feminista e que O Segundo Sexo, publicado em 1949, nunca foi concebido como um livro feminista. Por isso, quem cobra dela uma postura feminista em todos os episódios de sua vida age de má-fé, tentando invalidar seu pensamento e suas ações de forma falaciosa. Simone de Beauvoir só se alinha ao feminismo nos anos 1970, na última década de sua vida.

Portanto, dizer que ela pregava o feminismo para as outras mulheres e não o praticava é, no mínimo, sucumbir a um banal anacronismo. Não, ela não podia viver a juventude de acordo com algo que ela só reconheceu e valorizou na velhice. Sim, os intelectuais mudam e se transformam ao longo do tempo, e isso não invalida seu pensamento. Quando passou a participar de ações do movimento feminista, ela mesma disse que isso demonstrava que suas ideias haviam se enriquecido e aprimorado.

A mulher e as divindades intelectuais

As críticas inadequadas a Simone de Beauvoir, na minha opinião, mostram como ainda é difícil – para pessoas que cultivam o pensamento pouco aberto a ideias inovadoras, diferentes e sempre em transformação – aceitar o papel de uma mulher intelectual nos dias de hoje. A mulher é sempre o Outro, lembra Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, o diferente. E o lugar do intelectual, nós sabemos, é o lugar do um, do poder, da dominação. Aceitar que uma mulher ocupe esse lugar implica superar um preconceito. A resistência ao reconhecimento do papel intelectual de uma pensadora é a expressão desse preconceito: só posso atribui-la ao sexismo que é, para dizer o mínimo, uma fraqueza intelectual em qualquer pessoa.

Entretanto, o julgamento que ataca Simone de Beauvoir não é apenas aquele forjado no sexismo. Há um outro substrato nas acusações levianas que enumerei aqui e em outras que não há espaço para detalhar. Esse substrato é a necessidade de fazer de intelectuais verdadeiros deuses, modelos de comportamento, pessoas infalíveis que têm soluções infalíveis e que não podem ser questionadas. Pessoas que sentem essa necessidade não estão em busca de ideias e propostas, muito menos de reflexão. Sua expectativa é de que os intelectuais lhes ofereçam fórmulas prontas. Se esses deuses falham – e os verdadeiros intelectuais sempre falham porque não são os donos da verdade nem das respostas certas, apenas pessoas honestamente dispostas a fazer perguntas – são invalidados, considerados ruins, incompetentes.

Há aí uma manobra ideológica e outra, inconsciente, por trás disso. Todas as vezes que acusamos veementemente alguém de ser aquilo que é indesejável, ruim, incompetente, negativo, criamos uma imagem positiva de nós mesmos. Somos exatamente o oposto daquilo que acusamos o Outro. Mas Freud já nos ensinou que, em geral, aquilo de que acusamos o Outro é aquilo que não suportamos constatar em nós mesmos.

Simone e Sartre construíram um sistema de pensamento que enfatiza: todos somos livres e a liberdade não traz soluções infalíveis, apenas nos confronta a cada segundo com a angústia de fazer escolhas e com o sofrimento de nos responsabilizarmos por elas. Esse é um pensamento radical que implica, a quem adotá-lo honestamente, viver na insegurança, na incerteza e em constante contato com sua própria falibilidade e a ambiguidade.

Acredito que essa é a principal causa a todas as críticas levianas feitas a Simone de Beauvoir (e a Sartre). Quando as pessoas se referem a ela (ou a ele) em termos como “rever o passado”, “desconstruir mitos”, “derrubar messias”, na verdade estão fazendo uso de termos ideológicos. Buscam desqualificar o pensamento libertário, radical, transformador que, por definição, se constrói com base na exploração de visões de mundo, atitudes e comportamentos fora dos padrões e na diversidade de ideias e de ação. Nesse sentido, criticar Simone de Beauvoir (e Sartre) é muito mais construir empecilhos para que os intelectuais de hoje se inspirem ou busquem referências em suas ideias e possam pensar algo novo e tão transformador como eles pensaram em suas épocas.

Quem resiste a pensadores como Simone de Beauvoir e Sartre teme que alguém possa continuar a trilhar os caminhos que eles abriram. Temem palavras como liberdade, ambiguidade, imperfeição, descoberta, independência e, principalmente, responsabilidade e consciência. Temem o debate de ideias. Buscam fórmulas que sustentem o status quo, o mainstream ou, para dizer de forma banal, "as coisas como elas estão". Talvez possam encontrar algo assim em alguma religião. Jamais encontrarão isso em pensadores livres e, felizmente, imperfeitos.


Fonte:
O Pensador Selvagem

Os grifos são meus mesmo, rs!

Rodolfo Viana

Perdão a todo o custo

Ilustração: Penpho

"É verdade que Deus nos torna capazes de perdoar, porque outros o testemunharam; mas, ao mesmo tempo, ele é incapaz de perdoar sem nós. Mesmo sendo divino, o perdão continua sendo humano, no sentido de que ele nunca é fácil de oferecer e de acolher. Requer muito esforço, vontade, renúncias, sacrifícios, generosidade e sobretudo muito amor"

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Les Reflexions de Raymond Gravel, 08-09-2011, comentando a leitura do Evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum.

A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.

No discurso sobre a Igreja do evangelho de Mateus e sobre as relações entre discípulos, na semana passada tínhamos um convite à misericórdia para com aquele ou aquela que rompe a unidade da comunidade, e hoje temos um convite ao perdão ilimitado e incondicional para com aquele ou aquela que nos fere.

1. O Perdão: uma necessidade humana e cristã

Pedro pergunta: "Senhor, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim? Sete vezes?" (Mt 18, 21). No primeiro século, rabinos judeus tinham legislado em matéria de perdão; haviam chegado à conclusão de que se podia perdoar a mesma pessoa por três vezes, mas, na quarta ofensa, era preciso se tornar mais severo.

Pedro, querendo mostrar a sua boa vontade, sugere sete vezes, o número perfeito... Mas a resposta do Cristo do Evangelho vai muito além: "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (Mt 18, 22). Portanto, o perdão cristão deve ser ilimitado e incondicional. Não há mais lugar para a vingança, o rancor, a cólera.

Ben Sirac, o Sábio, ainda no Antigo Testamento, reconhecia que o rancor e a cólera eram uma abominação que não resolvia nada, mas cuja obstinação criava situações ainda piores do que a ofensa que havia sido feita: "Cólera e furor são ambos execráveis; o homem pecador os alimenta em si mesmo" (Eclo 27, 33). O exemplo mais evidente que temos hoje é a situação entre Israel e Palestina. Mas, atenção! Isso não significa que não devemos buscar a justiça. É preciso fazer de tudo para restaurar a justiça. Mas não se deve fazer isso com rancor, cólera e vingança.

Mas por que Ben Sirac acrescenta: "Aquele que quer vingar sofrerá a vingança do Senhor" (Eclo 28, 1)? Deus seria rancoroso e vingativo? Não, eu não acredito nisso. As afirmações do Sábio reconhecem simplesmente a nossa responsabilidade diante do perdão. Se somos incapazes de perdoar, como podemos implorar o perdão de Deus para nós? "Um homem guarda rancor contra outro homem, e pede a Deus a sua cura!?" (Eclo 28, 3). Não é Deus que recusa o perdão; somos nós os incapazes de acolhê-lo. Porque, para acolhê-lo, é preciso ser capaz de oferecê-lo.

Essa é a nossa responsabilidade diante do perdão. É um pouco como dizia o evangelista Mateus na semana passada: "Tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu" (Mt 18, 18). A nossa missão consiste em libertar as pessoas, desligá-las, mas, como nós não temos a capacidade de fazê-lo, Deus não pode fazê-lo em nosso lugar.

2. Um perdão a oferecer e a acolher

O perdão não pode ser acolhido se não for sobretudo oferecido. Esse é o sentido da parábola de hoje, no Evangelho de Mateus, que quer ilustrar o sentido do perdão e a grandeza do perdão cristão. O montante de dinheiro devido pelo servo ao qual o patrão pede as contas, 10 mil talentos ou 60 milhões de moedas de prata (Mt 18, 24) é tão enorme e desproporcional que é impensável reembolsar uma tal quantia. Está além de toda compreensão; seriam necessárias centenas de anos de trabalho para consegui-la.

Porém, o rei da parábola, Deus, se deixa enternecer pelo homem que chega até a fazer com que ele acredite que poderá ser reembolsado: "Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!" (Mt 18, 26). "Cheio de compaixão [comovido até as entranhas], o senhor o deixou ir embora e perdoou-lhe a dívida" (Mt 18, 27).

Essa primeira parte da parábola quer mostrar a grande generosidade de Deus, a grandeza e a gratuidade do seu perdão para todos nós, seus servos. Se Cristo nos mostra a grandeza e a gratuidade do perdão de Deus é oferecido e acolhido, é para nos convidar a fazer o mesmo com os outros. Mas eis que o próprio servo se dirige ao irmão, a um companheiro que lhe deve apenas 100 moedas de prata, uma soma ridícula com relação à sua dívida. E se recusa a oferecer o perdão que lhe foi oferecido tão generosamente: "Mas, sem nada querer ouvir, este homem o fez lançar na prisão, até que tivesse pago sua dívida" (Mt 18,30).

Nesse ponto, se assiste a uma inversão da situação, uma mudança na atitude do rei: "Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti?" (Mt 18, 32-33). Pode-se ver uma vingança da parte de Deus, ofendido pela atitude do servo, ou se pode ver um ensinamento sobre a justiça retributiva, que uma certa teologia continua promovendo na Igreja.

Não acredito que se possa fazer uma tal leitura da parábola. Acredito, ao contrário, que a parábola nos convida a revelar o rosto misericordioso de Deus, como Jesus de Nazaré soube fazer na sua vida até a morte na cruz: "Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem" (Lc 23, 34). Porque, se Deus se revela na história humana, mediante as mulheres e os homens da história, ele só pode ser o que se diz sobre ele. Por isso, ele assume o rosto que lhe damos, a partir do que nós somos.

Em outras palavras, é verdade que Deus nos torna capazes de perdoar, porque outros o testemunharam; mas, ao mesmo tempo, ele é incapaz de perdoar sem nós. Não é isso, talvez, o que dizemos no Pai Nosso: "Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido" (Mt 6, 12)? Não nos esqueçamos, sobretudo, que a misericórdia não dispensa o restabelecimento da justiça, mas não se trata de uma justiça retributiva com relação a Deus. A justiça se aplica entre nós: "Com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos" (Mt 7, 2), ou também "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles" (Mt 7, 12).

3. O perdão divino

Pode-se até dizer que o perdão humano também é divino, no sentido de que nos permite superar o reflexo humano da vingança, do rancor, da violência, do mal pelo mal. O perdão anula a lei do talião, a justiça retributiva. O perdão nos faz superar a nós mesmos: "Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos?" (Mt 5, 46).

Mas, ao mesmo tempo, mesmo sendo divino, o perdão continua sendo humano, no sentido de que ele nunca é fácil de oferecer e de acolher. Requer muito esforço, vontade, renúncias, sacrifícios, generosidade e sobretudo muito amor. Além disso, quando se sabe até que ponto o perdão liberta e dá novamente a vida, tanto àquele que o acolher, quanto àquele que o oferece, é lá que o humano toca o divino e torna todos os perdões possíveis.

Para terminar, o perdão não é esquecer a ofensa que foi feita, como se se pudesse fazer com que o passado não tivesse acontecido; o perdão é um compromisso para o futuro. A esse respeito, gostaria de lhes propor a reflexão do padre Jacques Sommet, ex-deportado a Dachau, que escreve:

"Um perdão verdadeiro é algo muito difícil, porque somos habitados pelo nosso próprio passado, fixados pelas cicatrizes recebidas ou pelas feridas que foram causadas; é como uma espécie de morte. A inimizade e o ódio não continuam sendo, talvez, realidades entre as mais duradouras da história pessoal e coletiva? Cristo, com a sua paixão, oferece a graça de uma fraternidade renovada... Ele mesmo está em atitude de perdão... A sua paixão é, de certo modo, um perdão realizado antes de ser uma palavra... Perdoar é fazer com que, lá onde haja ferida e injustiça, haja abertura de si e do outro à descoberta da grandeza do dom de Deus, uma abertura que passa justamente pela consciência das feridas que um faz ao outro. E quando isso é possível, vemos então uma promessa e uma esperança, lá, onde, caso contrário, estaríamos encurralados no desespero".

Leituras:
Eclo 27,33-28,9
Sl 103 (102)
Rm 14,7-9
Mt 18,21-35

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

É o que é?


Vocês sustentam que homem é homem e mulher é mulher. Eu sustento que nada é simplesmente o que é, e que o ponto em que isso acontece se chama morte.

- Oscar Wilde
Via What about?

Religiosidade para tempos de crise


A crise econômica, e a consequente crise política, que tem se desencadeado, está nos afastando cada vez mais uns dos outros, estamos nos enfrentando uns com os outros, estamos nos dividindo e a cada dia resulta mais difícil nos entendermos.

A opinião é do teólogo espanhol José Maria Castillo, publicada em seu blog, Teología Sin Censura, 07-09-2011. Castillo fala do ponto de vista da crise econômica na Europa, em especial na Espanha, mas tantos de seus comentários aplicam-se à nossa conjuntura sócio-político-econômica que achamos pertinente a publicação aqui. A tradução é de Benno Dischinger, reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Numa situação de crise econômica como a que estamos vivendo, muita gente se sente ameaçada, se vê em perigo e tem a sensação de ter perdido a segurança que antes tinha. Esta situação de medo e de insegurança tem consequências, como é lógico, em quase todos os âmbitos da vida. A muitas pessoas se lhes alteraram suas relações familiares, profissionais, laborais. Se lhes rompeu sua estabilidade interior. E tudo isto leva consigo muito sofrimento e, em bastantes casos, pouca esperança de encontrar saídas.

Pois bem, estando assim as coisas, eu me pergunto que papel está desempenhando a religiosidade de muitas pessoas numa situação como esta? Pergunto-me concretamente: as crenças e as práticas religiosas estão nos ajudando a superar esta crise? Ou, pelo contrário, a religiosidade está complicando e até agravando a penosa situação que estamos suportando?

Sem dúvida, haverá quem se surpreenda de que eu faça estas perguntas. É verdade que estamos sofrendo uma crise econômica e uma crise religiosa. Como estamos suportando uma crise política, uma frise social, uma crise cultural e tantas outras crises. Porém, neste enorme maremoto que nos está sacudindo a quase todos, o que tem que ver a religião? Não estamos cansados de repetir que as crenças religiosas estão em crise e a cada dia pintam menos? Então, a que vem falar do papel da religiosidade em tempos de crise?

Falo deste assunto e proponho estas perguntas, acima de tudo, porque é um fato que, em momentos de crise e dificuldade, o recurso a Deus e às crenças religiosas é uma das soluções e saídas que mais costuma buscar o povo. Foi dito milhares de vezes que nas trincheiras não há ateus. Este único fato já explicaria a proposição que acabo de fazer e as perguntas que acabo de formular.

Mas, aqui estou apontando a algo mais concreto e mais atual. Não estou seguro de que a crise econômica nos esteja aproximando de Deus ou, pelo contrário, nos esteja afastando dele. Em todo o caso, do que estou seguro é de que a crise econômica, e a consequente crise política, que tem se desencadeado, o que sem dúvida está causando é que nos estamos afastando cada vez mais uns dos outros, estamos nos enfrentando uns com os outros, estamos nos dividindo e a cada dia resulta mais difícil nos entendermos. O que leva consigo que a convivência resulta cada vez mais difícil e com freqüência desembocamos em momentos de tensão e crispação que nos rompem por dentro e rompem os grupos humanos até tornar muito complicadas e até impossíveis as relações humanas de uns com os outros.

Pois bem, na medida em que tudo isto é assim, não é certo que necessitamos de uma religiosidade que, em lugar de dividir-nos e enfrentar-nos, teria que servir-nos para aproximar-nos, para compreender-nos melhor, para unir-nos e ajudar-nos? É uma lástima o que está ocorrendo. Nos anos da transição política, nós espanhóis soubemos reduzir ou suspender nossas diferenças, tivemos o acerto de unir-nos e ficou patente que um país progride na medida em que os cidadãos se fundem no mesmo projeto que beneficia a todos. Naquele momento, a Conferência Episcopal Espanhola desempenhou um papel decisivo para unir-nos a todos. E o resultado foi o bem de todos. Agora, sem embargo, não estou seguro de que a religiosidade nos esteja unindo a nós, cidadãos deste país. Mas então, que demônio ou que anjo de religiosidade levamos nas costas que, em lugar de edificar-nos, nos está dividindo e nos tornando tão difícil a convivência e a possível saída da crise? Em definitivo, a pergunta que eu me coloco é esta: cremos em Jesus Cristo para unir-nos ou utilizamos Jesus Cristo para enfrentar-nos? Não viria mal, tal como estão as coisas neste momento, que todos – eu como primeiro – enfrentemos seriamente esta pergunta.

Para uma maior justiça: a bondade


Cristo nos convida a superar a justiça do cálculo, da negociação e do mérito, para aplicar a justiça da gratuidade e da bondade. Todas e todos são chamados, independentemente da hora do dia, e não cabe a nós decidir o salário a ser dado a cada um/a. A retribuição torna-se distribuição; à justiça, se sobrepõe a bondade, e é isso que faz a riqueza da Igreja.

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Les Reflexions de Raymond Gravel, 14-09-2011, comentando a leitura do Evangelho do último domingo, XXV Domingo do Tempo Comum. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Neste domingo, nós reencontramos Jesus e os Doze a caminho rumo a Jerusalém. Para aqueles que o escutam, Jesus diz e repete que somos membros do Reino se buscamos a Deus, como sugere o profeta Isaías, na primeira leitura de hoje: "Buscai o Senhor, já que ele se deixa encontrar; invocai-o, já que está perto" (Isaías 55,6), e se aceitamos que ele é o "Totalmente Outro" : "Pois meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor" (Is 55,6).

No Evangelho, Jesus nos lembra que a justiça de Deus é diferente da nossa: "Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20,16a). Essa frase é a última palavra de Jesus antes da sua partida para Jerusalém, onde a morte o espera. O evangelista Mateus é o único que nos conta essa parábola dos operários da undécima hora. Que mensagens ele quis dar à sua comunidade? Quais mensagens nós podemos reter hoje?

1. A justiça retributiva
Esse episódio do Evangelho de Mateus dá um golpe mortal à teologia da retribuição. Nesse relato, Cristo nos convida a superar a justiça do cálculo, da negociação e do mérito, para aplicar a justiça da gratuidade e da bondade. De fato, Mateus quer ilustrar que a bondade não ofende a justiça de forma alguma; ao contrário, ela permite uma maior justiça, e não há porque nos sentirmos ofendidos quando ela é aplicada.

A comunidade cristã de Mateus é muito diversificada; ela é composta por judeus convertidos desde a primeira hora e por pagãos que chegaram mais tarde. Não foi fácil levar em consideração estes últimos, os pagãos, como cristãos por inteiro, da mesma forma que os primeiros, os judeus convertidos ao cristianismo. Na Igreja de Mateus, havia, sem dúvida, alguns desses "supercristãos", provenientes do judaísmo e do farisaísmo, que se acreditavam superiores aos outros, aos inumeráveis pagãos que se uniram à comunidade cristã. Como dizer-lhes que não são mais importantes ou melhores do que os outros? Essa parábola quer endireitar as coisas.

Todo trabalhador merece o seu salário: é uma questão de justiça. O acordo que o mestre faz com os seus operários é de lhes dar uma moeda de prata, que corresponde ao salário normal de um dia de trabalho. Todos aqueles que se engajavam na vinha estão de acordo sobre o combinado. É a justiça retributiva. O evangelista nos diz que é "no romper da manhã" que os operários, na praça, são chamados a trabalhar na vinha (Mt 20, 1). Mas, como se trata da Igreja, o mestre apela sem cessar: "Cerca da terceira hora, saiu ainda e viu alguns que estavam na praça sem fazer nada" (Mt 20, 3). A estes, ele diz simplesmente: "Ide também vós para minha vinha e vos darei o justo salário" (Mt 20, 4). Ainda se trata de justiça retributiva. O mesmo vale para aqueles que foram contratados ao meio-dia e às três da tarde (Mt 20, 5).

Além disso, não há um tempo limite para os apelos do mestre para trabalhar na sua vinha, para fazer parte da Igreja: "Pela undécima hora, encontrou ainda outros na praça e perguntou-lhes: Por que estais todo o dia sem fazer nada?" (Mt 20,6). E o mestre não acrescentou nada sobre o salário.

Mas como estão as coisas hoje? Ainda não há, talvez, na Igreja, esses supercristãos que se consideram mais importantes e melhores do que os outros? Não há, talvez, cristãos que trabalham desde o nascer do sol e outros que exercem funções importantes na Igreja, que acreditam merecer mais do que os outros que chegaram à tarde ou que não correspondem às regras que a Igreja estebeleceu?

A questão que devemos fazer é a seguinte: por que há aqueles que se engajam no último minuto? É por preguiça? Por ignorância? Por indiferença? Não! Segundo o evangelista Mateus, as razões, sem dúvida, são múltiplas. Mateus indica uma: "Eles responderam: É porque ninguém nos contratou" (Mt 20, 7). No tempo de Mateus, os retardatários podiam ser leprosos, enfermos, pobres, publicanos, prostitutas, excluídos, marcados ou feridos pela vida, que estavam lá, mas que ninguém queria ter ao seu lado. Nada lhes é dito nada sobre o salário justo; isso não lhes impede de ir trabalhar na vinha quando são chamados.

2. A justiça distributiva
Nessa parábola, o Cristo de Mateus nos convida a distinguir a bondade da justiça, não as comparando, mas sim sobrepondo-as. O que é justo é o acordo feito entre o mestre e os operários. O que é bom é a gratuidade com a qual são remunerados aqueles que são chamados no último minuto. O salário dado aos operários da vinha não leva em conta o tempo de trabalho de cada um. Muito mais: o mestre paga aos últimos antes que os primeiros. Deve-se falar de injustiça para com os primeiros operários que suportaram o peso da jornada e do calor? (Mt 20, 12). Não! Porque o acordo com eles foi respeitado: "Meu amigo, não te faço injustiça. Não contrataste comigo um denário?" (Mt 20, 13). O salário dado aos últimos transforma a justiça retributiva em justiça distributiva, e esta última é feita de bondade e de gratuidade por parte do mestre da vinha.

Surge uma outra questão: no fim da jornada, quando chega o momento de distribuir os salários, por que o mestre começa pelos últimos? Se ele tivesse pago antes aos primeiros o salário combinado, eles jamais saberiam quanto os outros haviam recebido. Além disso, já que haviam trabalhado todo o dia todo no calor, por que eles também têm que fazer fila agora para serem pagos?

Mateus, sem dúvida, quer fazer com que os os cristãos da sua comunidade compreendam que a justiça é um valor essencial na Igreja, mas que não é um absoluto. A bondade a supera, sem ofendê-la, e é por isso que, dando o mesmo salário tanto aos últimos quanto aos primeiros, o mestre não viola a regra da justiça, mas aplica aos últimos a bondade, para que se faça justiça aos menores, aos mais pobres e aos mais fragilizados. Estes não podem obtê-la de outro modo: "Não me é permitido fazer dos meus bens o que me apraz? Porventura vês com maus olhos que eu seja bom?" (Mt 20, 15).

No entanto, para o evangelista Mateus, há também outra coisa: "Assim, pois, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20, 16). Esse versículo, que é um acréscimo ao relato original, quer mostrar que, na Igreja de Mateus, os judeus, os primeiros chamados por Cristo, rejeitaram o salário combinado, enquanto os pagãos, ao contrário, chamados mais tarde, sem nem mesmo conhecer o salário, responderam afirmativamente ao chamado do Senhor. Para Mateus, estes últimos têm direito ao salário combinado e recusado pelos primeiros.

As comunidades cristãs de hoje são muito diversificadas, assim como no tempo de Mateus. Elas são compostas de mulheres e de homens que vêm de todas as partes, que participam da vida da Igreja, cada um/a da sua própria maneira. Há os praticantes, liturgicamente falando, há aqueles e aquelas que se engajam, em nome da sua fé cristã, em favor dos pobres e dos despojados, há aqueles e aquelas que se afastaram da Igreja porque se sentem julgados, condenados e excluídos pela instituição.

Porém, todas e todos são chamados, independentemente da hora do dia, e não cabe a nós decidir o salário a ser dado a cada um/a. A retribuição torna-se distribuição; à justiça, se sobrepõe a bondade, e é isso que faz a riqueza da Igreja.

O exegeta francês Jean Debruynne escreveu: "Nunca é muito tarde para se deixar contratar pela amizade, para se deixar contratar pelos projetos, para se deixar contratar pela fome e pela sede dos outros, pela oração, pela esperança, pela justiça, pela fé, pelo perdão, pela paz... Nunca é muito tarde, porque Deus é bom! Há pessoas que começam a sua vida aos 70 anos. Que descobrem Deus aos 65 anos. Há aquelas que se acreditavam últimas, ninguém, abaixo de tudo, e que se descobrem queridas por Deus em primeiro lugar. Eu sei que alguns pensam que isso não é certo, mas então criticaremos Deus por ser bom?".

E terminarei dizendo: quem pode pretender conhecer a justiça de Deus e definir os limites da sua bondade e da sua gratuidade? Como bem dizia Santo Afonso de Ligório: "Se tivéssemos que nos enganar sobre Deus, seria melhor fazê-lo exagerando a sua bondade do que endurecendo a sua justiça".

Leituras:
Is 55,6-9
Sl 145 (144)
Fl 1,20c-24.27a
Mt 20,1-16a

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Nem todas as reformas vêm para prejudicar


"Não seria preciso revitalizar o cristianismo com uma dose de paganismo: pelo contrário, é a nossa própria vida cristã que sofreu uma mutilação impondo uma homogeneização semelhante. A Igreja deveria ser o lugar em que os seres humanos, com todas as suas diferenças e os seus itinerários diversos, se reúnem: e, obviamente, estamos ainda bem distantes de alcançar esse objetivo".

Essa é a opinião do filósofo canadense Charles Taylor, em artigo publicado pelo jornal italiano Avvenire, 06-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Grande parte do nosso passado remoto não pode ser simplesmente abandonado, nem apenas por causa da nossa "fraqueza", mas porque há nisso algo de genuinamente importante e válido. Reconhecer esse fato, na nossa cultura atual, significa comumente ser anticristão, abraçar alguns valores do "paganismo" ou do "politeísmo".

Peter Gay, no seu célebre livro sobre o Iluminismo, descreveu isso como um "paganismo moderno". Assim, talvez, não se faça justiça ao fenômeno na sua inteireza, mas indubitavelmente colhe-se um aspecto importante dele: o que levou John Stuart Mill a exaltar "a autoafirmação pagã" com relação à "abnegação cristã", ou, para dar um exemplo diferente, levou Nietzsche a contrapor Dionísio ao "Crucificado".

Essa posição polêmica às vezes é plenamente devolvida pelos cristãos que se sentem atacados. Mas essa simples contraposição não faz justiça aos fatos. Obviamente, não se trata de colocar no mesmo plano as duas posições contrapostas. Pessoalmente, por exemplo, não ficaria feliz se nunca tivesse ocorrido a passagem ao monoteísmo judeu. Além disso, o fato é que isso e os sucessivos saltos históricos – como o longo processo de reforma no cristianismo latino – foram realizados (e talvez não teria sido possível ocorrer de outra forma) de modo a derrotar e marginalizar aspectos importantes da vida espiritual que, com efeito, floresceram nos antigos "paganismos", apesar de todos os seus erros.

A repressão e a marginalização de um desses aspectos é o processo ao qual fiz referência com o termo "escarnação", a constante desencarnação da vida espiritual, pela qual ela é sempre menos conduzida em formas corpóreas dotadas de um significado profundo e reside sempre mais "na mente". Com isso, não pretendo dizer que o cristianismo, por exemplo, seja inferior ao paganismo, porque, a despeito de todos os seus feitos, faltaria o verdadeiro sentido da encarnação, que estaria presente, ao invés, nas formas mais antigas por ele substituídas.

Digo, pelo contrário, que o cristianismo, enquanto fé no Deus encarnado, nega uma componente essencial sua, até quando permanecer conjugado a formas que escarnam. A encarnação, além disso, está ligada a um medo e, portanto, a uma repressão da sexualidade, da qual deriva um tratamento hesitante ou muito tímido das interrogações sobre a identidade sexual. Uma outra característica negativa, seja das rupturas axiais, seja da Reforma, foi a sua tendência a homogeneizar.

Muitas vezes, o impulso à reforma se traduziu no sonho de remeter toda a vida à influência de um princípio único ou de uma exigência única: o culto do Deus Único, ou o reconhecimento de que a salvação é só pela fé, ou de que a salvação existe só dentro das fronteiras da Igreja. E essa Reforma, frequentemente, se realizou excluindo ou marginalizando tudo o que parece não concordar facilmente, na vida humana, com essa exigência única.

A intuição que muitos procuram expressar hoje invocando a superioridade do "politeísmo" tem justamente este teor: aquelas culturas precedentes levavam em conta a integridade dos diversos aspectos da vida e das suas exigências de um modo que as modernas perspectivas religiosas ou morais perderam. Divindades diferentes – Artemis, Afrodite, Marte, Atena – nos impõem que respeitemos a integridade dos diversos estilos de vida: o celibato, a união homossexual, a guerra, as artes da paz, que a vida conduzida em conformidade a um único princípio, pelo contrário, tende a negar frequentemente.

No fundo, em todos esses movimentos, esconde-se uma tentação protototalitária. Lutero e Calvino seguramente tinham razão ao condenar a ideologia da superioridade espiritual que infectava o monaquismo tardo-medieval, mas fazendo isso acabaram por desacreditar as vocações como tais, reduzindo grandemente a variedade das vidas cristãs. E a sua Reforma contribuiu para produzir, por meio de um outro estágio de "reforma", o mundo secularizado de hoje, em que a renúncia não só é vista com suspeita – em certa medida, isso é sempre oportuno e necessário –, mas também é considerada completamente absurda, uma forma de loucura ou de automutilação.

No fim, aquilo que sobra é um mundo mais estreito, mais homogêneo, mais hedonista. Mais uma vez, o ponto não é que seria preciso revitalizar o cristianismo com uma dose de paganismo: pelo contrário, é a nossa própria vida cristã que sofreu uma mutilação impondo uma homogeneização semelhante. A Igreja deveria ser o lugar em que os seres humanos, com todas as suas diferenças e os seus itinerários diversos, se reúnem: e, obviamente, estamos ainda bem distantes de alcançar esse objetivo.

A lição que devemos tirar disso é que esses momentos de ascensão – em que aquela que chamei de "a pedagogia de Deus" se exalta – são muitas vezes (talvez sempre) altamente ambíguos na sua forma histórica "realmente existente", que frequentemente comportam graves perdas além de inestimáveis ganhos. O indispensável passo adiante, na sua forma concreta, pode impor sacrifícios inaceitáveis. Eis porque sempre é preciso desconfiar dessas narrações dominantes que retratam uma superação simples e sem custos, independentemente se são defendidas pelos cristãos ou pelos protagonistas do Iluminismo.

De fato, justamente essas pretensões de uma superação completa de um passado problemático nos tornam cegos frente às nossas repetições de alguns dos seus horrores.

Perseverar na esperança


Publicamos aqui a Carta aos amigos, nº. 52, da comunidade monástica ecumênica de Bose, na Itália, por ocasião da festa de Pentecostes de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Caros amigos e hóspedes,

Aqueles dentre vocês que frequentam com maior assiduidade ou acompanham as intervenções do Prior [Enzo Bianchi] nos jornais e periódicos devem ter notado uma crescente preocupação nossa com a situação eclesial, italiana mas não só. Percebemos um clima de cansaço, de fadiga, de abatimento, que alguém resumiu em uma expressão muito eficaz: "Falta o ar".

Aquilo que há muitos anos havia sido definido de um "cisma submerso" assumiu mais os traços de um silêncio sofrido, de um recuo à parte, refletindo uma melancolia que, como névoa outonal, parece envolver e ensopar tudo. Mesmo entre nós, os mais velhos, que conheceram o impulso da primavera conciliar [referência ao Concílio Vaticano II], veem-se desfocar cada vez mais as esperanças nascidas então pela fé sólida e pela audácia profética, não de figuras individuais, mas da máxima autoridade magisterial católica: um concílio ecumênico cum Petro et sub Petro.

Os mais jovens ressentem-se do clima de horizonte fechado com o qual a sua geração deve se confrontar cotidianamente, à qual é negada a própria credibilidade de um possível futuro melhor. Sim, dizer que "falta o ar" não significa só perceber o afã de pulmões cansados ou não irrigados por ar fresco, mas significa também a constatação de que "o nosso ar" dos fiéis, o Espírito do Senhor ressuscitado, encontra obstáculos para abrir mente e coração à sua vontade de paz e vida plena.

Assistimos à voz sempre vez mais sufocada daquela que, na Igreja, não deveria se chamar de "opinião pública", mas sim de sensus fidelium: a sensibilidade, a percepção da fé e das suas implicações que todo batizado é habilitado pelo Espírito Santo para exercer e para alimentar mediante o debate com os irmãos e as irmãs na fé, mediante a correção fraterna, a escuta recíproca, a comum edificação daquele edifício espiritual do qual somos chamados a ser "pedras vivas" (cf. 1 Pd 2, 5).

Hoje, no torpor dominante, muitos dos próprios guias da comunidade cristã parecem ser incapazes de uma palavra convicta, decidida, obediente ao "sim sim, não não" evangélico, isto é, uma palavra capaz de fazer ressoar com vigor no hoje da história as absolutas exigências cristãs.

Quando a voz de um pastor também se levanta com parresia, esta cai sem ressonâncias posteriores, porque o paradoxal cruzamento de mutismo e barulho, unido ao costume e à mentira, a sufocam quando nasce ou a relegam ao campo das boas intenções de um personagem "singular".

Em contrapartida, quase todos os dias, há quem queira fazer com que a Igreja se pareça a uma arena em se enfrentam facções contrapostas, incapazes de se ouvirem e de buscarem juntas um caminho de comunhão e, ao contrário, inclinadas a calar o "outro", a prevalecer nos organogramas, a "vencer" sabe-se lá qual conflito ideológico.

Porém, Jesus advertiu com força os seus discípulos. "Não seja assim entre vós" (Mc 10,43). E os Padres do Concílio Vaticano II se comportaram "não assim", ao terem sabido confrontar as suas diversas visões de Igreja para submetê-las ao juízo da palavra de Deus e do seu fazer-se história no hoje da humanidade, até fazê-las convergir em uma leitura compartilhada, por ser dócil ao Espírito.

Este nosso tempo está se revelando como um tempo de prova e de sofrimento. Certamente, não a prova extrema da perseguição e do martírio, à qual tantos dos nossos irmãos e irmãs na fé vão ao encontro, mas sim a prova da perseverança, da fidelidade a perscrutar "como se fosse possível ver o invisível".

Mesmo depois da vitória de Cristo, depois da sua ressurreição e da transmissão das energias do Ressuscitado ao cristão, continua operante, de fato, a influência do "príncipe deste mundo" (2 Coríntios 4, 4). Portanto, o tempo do cristão permanece como tempo de exílio, de peregrinação, à espera da realidade escatológica na qual Deus será tudo em todos. O cristão sabe de fato – e jamais nos cansaremos de repetir isso em uma época que não tem mais a coragem de falar, nem em perseverança, muito menos em eternidade; em uma época achatada no imediato e na atualidade – que o tempo é aberto à eternidade, à vida eterna, a um tempo preenchido só por Deus: essa é a meta de todos os tempos, em que "Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre" (Hb 13,8). O télos das nossas vidas é a vida eterna, e, portanto, os nossos dias estão à espera desse encontro com o Deus que vem.

Ressoam, mais do que nunca atuais, as palavras de Dietrich Bonhoeffer, testemunha de Cristo em meio aos seus irmãos em uma época de martírio para aqueles cristãos que haviam recusado qualquer compromisso com a barbárie nazista: "A perda da memória moral não seria talvez a ruína de todos os vínculos, do amor, do matrimônio, da amizade, da fidelidade? Nada dura, nada é estável. Tudo é de curto prazo, de pouco fôlego. Mas bens como a justiça, a verdade, a beleza e, em geral, todas as grandes realizações requerem tempo, estabilidade, 'memória', senão degeneram. Quem não está disposto se responsabilizar por um passado ou construir um futuro é um 'desmemoriado', e eu não sei como se poderia agarrar, enfrentar, fazer uma pessoa como essa cair em si".

Escritas há quase 70 anos, essas palavras levantam o problema da fidelidade e da perseverança: realidades hoje raras, palavras que não sabemos mais pronunciar, dimensões às vezes sentidas até como suspeitas ou ultrapassadas e das quais – pensa-se – só algum nostálgico dos "valores de antigamente" poderia desejar um retorno.

Ora, se a fidelidade é uma virtude essencial para toda relação interpessoal, a perseverança é a virtude específica do tempo: portanto: elas, portanto, nos interpelam sobre a relação com o outro. Não só isso: os valores que todos proclamamos como grandes e absolutos existem e tomam forma só graças a elas: o que é a justiça sem a fidelidade de homens justos? O que é a liberdade sem a perseverança de pessoas livres? Não existe valor algum nem virtude alguma sem perseverança e fidelidade!

Hoje, no tempo despedaçado e sem vínculos, essas realidades se configuram como um desafio para todo ser humano e, em particular, para o cristão. Mas como reconhecer a própria fidelidade senão a partir da fé nAquele que é fiel? Nesse sentido, o cristão "fiel" é aquele que é capaz de memoria Dei, que recorda o agir do Senhor: a memória sempre renovada da fidelidade divina é o que pode suscitar e sustentar a fidelidade do fiel ao mesmo tempo em que lhe revela sua própria infidelidade. E é exatamente isso o que, no coração da vida da Igreja, ocorre na anamnese eucarística.

É para ali, ao coração da nossa fé, que devemos voltar para reencontrar esperança contra toda esperança, para reencontrar um fôlego capaz de nos abrir horizontes de vida plena novamente, porque nada jamais pode nos separar do amor de Deus e do Evangelho que no-lo narrou.

Irmãos e irmãs de Bose

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diálogo de namorados


Copiei e colei do ótimo e recém-descoberto What about?, nosso mais recente seguidor (gracias, amigo!):

Estavam no dia do feriado nacional à mesa para o café da manhã, quando ele leu na embalagem de cereais:

-Recomenda-se uma alimentação saudável, rica em frutas e verduras para todas as crianças em fase de crescimento.

O outro respondeu:

- Amor, você será responsável pela educação alimentar de nossos filhos.

- Ah! Você quer que eu seja a mãe!

- Não! Claro que não! Mas, como você tem uma alimentação mais regrada do que a minha, tem mais condições de repassar isso pros nossos filhos.

- Huuum.

- Você come bem mais frutas e verduras do que eu.

- Então você não quer que eu seja a mãe.

- Quem tem dois pais responsáveis não precisa de mãe.

(... quem tem duas mães responsáveis não precisa de pai, on the other hand)

O antídoto das religiões contra os fundamentalismos e a papolatria


Publicamos aqui a mensagem final do XXXI Congresso de Teologia da Associação João XXIII, realizado em Madri, na Espanha, e que concluiu dez dias atrás, em 11-09-2011.

A mensagem foi publicada no sítio Religión Digital, 11-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


De 8 a 11 de setembro, celebramos o XXXI Congresso de Teologia, com a participação de 700 pessoas de diversos continentes e múltiplas identidades culturais, religiosas e étnicas, para refletir sobre o fenômeno dos fundamentalismos, suas principais manifestações, causas e consequências nos diversos cenários geoculturais: Ásia, África, América Latina e Europa.

1. Os fundamentalismos são a manifestação mais eloquente da incapacidade dos seres humanos para viver em harmonia em meio à diversidade e convertem as discrepâncias em barreiras de incomunicação. Alimentam a intolerância, são inimigos da diversidade e podem se manifestar em qualquer ideologia.

2. O fenômeno fundamentalista, cada vez mais generalizado, se apropria de todas as parcelas da existência humana: pessoal e social, religiosa e cultural, política e econômica. Isso pode ser comprovado no avanço dos partidos xenófobos e islamófobos, no fanatismo de líderes religiosos que queimam livros sagrados e nos atentados terroristas cometidos em nome de Deus. Coincidindo com o 10º aniversário do 11 de setembro, queremos ter uma recordação especial pelos atentados desse dias nos Estados Unidos, sem esquecer os do 11 de março em Madri, do 7 de julho em Londres, do 21 de julho em Oslo, e outros, assim como as invasões violentas de países e as agressões contra sua população civil por parte das potências imperiais.

3. Prestamos uma atenção especial aos fundamentalismos religiosos, cujas características mais importantes são: a absolutização da tradição; a busca de um fundamento inamovível em um mundo em mudança; a pretensa compreensão literalista dos textos sagrados fora do marco cultural e histórico em que foram escritos; o esquecimento da inevitável crítica; a pretensão de verdade absoluta em um mundo caracterizado pela complexidade e pela incerteza; a dependência de uma autoridade indiscutível frente à insegurança crescente; a defesa de uma moral imutável em uma sociedade em permanente transformação; a fé em um Deus conhecido, que legitima suas próprias convicções e opções; a sacralização do profano; a dogmatização do opinável; e a recusa ao diálogo.

4. Na Igreja Católica, o fundamentalismo costuma se canalizar através dos movimentos neoconservadores, empenhados em levar a cabo a restauração eclesiástica ao extremo, e de não poucas atuações intolerantes da hierarquia, que minimizam e inclusive negam aspectos fundamentais do Concílio Vaticano II e condenam o trabalho dos teólogos, teólogas e movimentos renovadores.

5. Pudemos comprovar algumas dessas atitudes na recente Jornada Mundial da Juventude, que ofereceu uma imagem autoritária e patriarcal da Igreja, alheia aos problemas reais dos jovens, e fomentou a exaltação do pontífice, até cair na papolatria, uma das mais nítidas expressões do fundamentalismo. E tudo isso com o apoio e a legitimação das diversas instituições municipais, autonômicas, militares e empresariais.

6. Objeto de rigorosa análise crítica por parte das teólogas feministas das diversas tradições religiosas foi o fundamentalismo patriarcal, que fomenta a desigualdade, mantém os papéis de gênero e se traduz no controle absoluto da ordem social pelos homens, que impõem a submissão das mulheres, recorrem à violência e chegam ao extremo do feminicídio.

7. Os fundamentalismos se estendem pelos diversos setores sociais e instalados nas cúpulas da maioria das religiões, da política, da economia e inclusive dos Estados, que tomam suas decisões autoritariamente, sem a consulta da sociedade e sem fomentar a democracia participativa. Nós mesmos, por muito longe que creiamos estar de atitudes fundamentalistas, não estamos livres de nelas incorrer. Por isso, é necessário estar vigilantes e ter uma atitude sempre autocrítica.

8. Cremos que o melhor antídoto contra os fundamentalismo são: a renúncia à possessão absoluta da verdade e sua busca coletiva, o respeito ao pluralismo, a convivência frente à coexistência, o direito à diferença, a interculturalidade e o diálogo inter-religioso orientados ao trabalho pela paz e pela justiça, a solidariedade com os excluídos, a defesa da natureza e a igualdade entre homens e mulheres. As religiões possuem em suas próprias fontes exemplos luminosos e recursos para superar os fundamentalismos, que são: a dignidade das pessoas, o tecido comunitário, a aceitação dos outros, o perdão, a misericórdia, a opção pelos pobres e marginalizados e a hospitalidade.

Madri, 11 de setembro de 2011.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Deixa que digam, que pensem, que falem...

Foto via blog do autor

Reproduzimos aqui a lúcida reflexão do sempre ótimo Tony sobre este momento que atravessamos - aquele momento crítico que se nota em toda luta por direitos civis (como se viu antes com as mulheres e os negros, por exemplo), em que o aumento da visibilidade, o mostrar a cara para demandar direitos, o fomento ao debate e a lenta conquista de espaço provocam uma violenta reação, tanto mais violenta quanto mais clara é a inevitabilidade do resultado. Esperemos, de olhos abertos, línguas despertas e mãos ativas. Porque a esperança pode, sim, ser uma atitude crítica, como bem colocou Frei Betto em artigo que recentemente reproduzimos aqui.

Outro dia me ocorreu uma coisa. É super-válido reagirmos aos ataques de Bolsonazis, Malafaias e similares; não podemos deixar barato a mais leve ofensa. Mas é preciso termos um pouco de perspectiva histórica e percebermos que, a médio e longo prazo, os homofóbicos já perderam. Eles podem impedir a aprovação de uma lei agora, ou retardar a distribuição de um kit pró-igualdade mais adiante. Mas, mais cedo ou mais tarde, o casamento gay será uma realidade legal. Lutar contra ele é enxugar gelo. Senão, vejamos: muitos países avançados já oficializam a união entre casais do mesmo sexo. O próximo será a Grã-Bretanha, onde a união civil já é uma realidade há anos: em breve eles terão casamento com todas as letras, todos os direitos, todos os deveres. Nos Estados Unidos, a questão será resolvida estado por estado, como aconteceu há pouco na enorme Nova York e em breve na ainda maior Califórnia. Ali na Argentina, gays já se casam há mais de um ano, e adivinha? O tecido social não se desfez e a presidente Cristina Kirchner será reeleita com facilidade em outubro. Não bastasse o cerco geográfico, há o demográfico também. Os contrários ao casamento igualitário se concentram nas camadas mais velhas da população. Ou seja, morrerão em pouco tempo. Não há renovação na base: os jovens são, cada vez mais, totalmente favoráveis - e, surpreendentemente, até entre os evangélicos. Além do mais, gays em cargos importantes são cada vez mais visíveis, na iniciativa privada e até nos governos. Apesar de tudo, o Cheque Bolsonazi provavelmente será reeleito, assim como toda sua ninhada. Mas isto não quer dizer que eles venceram. Uma sociedade democrática dá voz para todos, até para os mais reacionários, e eles agora estão com mais notoriedade do que nunca. Mas deixa que digam, que pensem, que falem, deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que há: são todos perdedores, assim como eram os que defendiam a escravidão no final do século 19. A história irá jogá-los no lixo, e é assim que eles devem ser tratados. Como lixo.

- Tony Goes
Reproduzido via blog do autor

Filho assume a sua Heterossexualidade aos pais

Vem rolando na rede, vale a pena conferir a ironia da situação.



Quem achar que vale pode encabeçar no debate dos comentários no próprio link do vídeo.

Da lei da natureza para a lei da graça


Régis Debray estava na cidade de Calvino em março passado, a convite da Companhia dos Pastores e dos Diáconos da Igreja Protestante de Genebra. Foi uma oportunidade para fazer uma análise do estado de saúde do sentimento religioso na Europa e de descobrir algumas chaves para os seus últimos livro, Le moment fraternité e Eloge des frontières.

A reportagem é de Emmanuel Rolland, publicada na revista "Riforma", publicação das Igrejas evangélicas batistas, metodistas e valdenses, 21-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via Amai-vos, com grifos nossos.

Eis a entrevista.


Como nasceu o seu interesse pelo fato religioso?

Se eu acompanhei longamente o socialismo revolucionário - que é, assim como todos os milenarismos, uma ideia cristã que enlouqueceu -, eu também constatei a extraordinária perenidade do fato religioso no espaço e no tempo. E me perguntei: o que leva as pessoas e os povos a acreditar? Não só a crer, mas também a formar comunidades? E assim, pouco a pouco, subi novamente para a fonte, para o Antigo Testamento, para o cristianismo, em um processo, se se quiser, de regressão reflexiva.

E o que aprendeu?

A minha primeira descoberta na América Latina é que existe o outro, outras culturas, costumes de vida aos quais eu sou estranho. Todas essas culturas são arcaicas, ancestrais, de uma profundidade de tempo considerável e estão sempre ali. Portanto, a ideia muito do século XIX, segundo a qual quando se abre uma escola se fecha uma igreja – ou seja, que a crença se dissolve no racionalismo –, é uma ideia falsa. Ao contrário, há uma permanência do religioso que é preciso tentar entender. Tudo isso levanta questões, ainda mais quando se provém, como eu, de um ambiente ateu em que a religião é considerada o ópio do povo, uma força reacionária e conservadora. Acho que essa também é a vitamina do fraco, uma força ativa de proposta, e que a religião pode levar as pessoas a resistir à opressão.

A crença não se dissolve no racionalismo, o senhor diz. Mas a religião se dissolve na secularização?

Eu nunca acreditei na tese da secularização entendida como desaparecimento do religioso. Pode haver um transplante do religioso, não um desaparecimento. Uma sociedade, mesmo que se acredite irreligiosa, tem necessidade de totens, de deuses, ao mesmo tempo evocativos e reparadores, e de lugares onde se faça silêncio, onde se recolha e onde se tire o chapéu, um lugar e um momento em que não se ri.

Quais são os elementos indispensáveis para a formação de uma comunidade?

Primeiro, uma transmissão. A transmissão é o contrário da comunicação, que consiste em fazer circular uma informação no espaço em um momento T. A transmissão é portar uma informação no tempo, isto é, construir uma duração, uma tradição, uma memória, e é exatamente isso que distingue o homem do animal. O animal se comunica muito bem, mas não transmite. Além disso, uma comunidade humana sempre pressupõe um ponto de coerência, isto é, um ponto federador que pode ser de texto, uma figura de herói, um evento, enfim, algo que reúne. E aquilo que reúne é chamado de sagrado.

O sagrado é aquilo que nos mantém juntos e que nos permite resistir à usura e à dispersão. O sagrado é o que permite que uma comunidade não morra ou pelo menos retarde o momento da sua morte e da sua degradação. Em outros termos, o sagrado é aquilo que compõe, e não há nenhuma necessidade de uma religião institucional para isso. Além disso, reconheço que, quanto menos há religião, mais há sacralidade. Um lugar que havia me impactado pela abundância de sacralidade havia sido a antiga União Soviética, tão petrificada de sacralidade que havia se tornado imóvel. A hierarquia, o mausoléu de Lênin, a Praça Vermelha que se tornou um lugar de devoção, na qual é proibido fumar, os ícones políticos fixados em todos os lugares. Enfim, sempre é possível se livrar do religioso na sua forma institucional, mas ele retorna em uma forma mais selvagem, onipresente.

A comunidade, seja ela religiosa ou civil, perde velocidade. Qual o seu papel para as igrejas?

É evidente que há uma espécie de divisão do "nós" em benefício do "eu", uma espécie de "tout à l'ego" [trocadilho com a expressão "tout à l'égout", que indica a rede pública de esgoto], mas eu não acho que isso vai durar. No fundo, existem dois tipos de sociedades ou, nas palavras de Paul Valéry, duas coisas que ameaçam o mundo: a ordem e a desordem, ou seja, o excesso de individualismo e a ausência de individualismo. Os protestantes desempenharam um papel na desritualização do mundo. Pois bem, eu acredito que os rituais são essenciais.

O protestantismo contribuiu, com o seu culto da sinceridade, com a marginalização dos gestos, dos lugares, das liturgias que levam as pessoas a estar em comunhão juntas e a se elevar acima do seu interesse imediato. Portanto, estou preocupado hoje com o esfacelamento dos Estados-nação na Europa que, longe de desembocar em um reino harmonioso e juridicamente controlado de fraternidade internacional, caem em um comunitarismo cada vez mais exasperado. Neste momento, eu acredito que o religioso tem um papel a desempenhar. Não nos esqueçamos da dupla etimologia da palavra religião: religare, aquilo que une, ou religere, aquilo que recolhe. Qualquer que seja a religião que se escolha, a sua função é sempre de reunir, porque cada um sabe que há um momento em que o "tout à l'ego" se dirige contra si mesmo e se torna perigoso para todos.

No tempo da globalização e das uniões supranacionais, o senhor defende uma ideia de fronteira contracorrente: o que o senhor vê de positivo nas fronteiras?

A priori, a fronteira é o que é antipático, é o que resiste... Mas é algo ambíguo. Constatei que há cada vez mais fronteiras, enquanto falamos cada vez menos delas. Vinte e seis mil quilômetros de fronteiras foram criadas dos anos 1980 em diante e há outros 23 mil em construção. É verdade que, como os impérios eclodiram, há cada vez mais Estados territoriais e, portanto, sempre mais fronteiras. Mas que sentido dar a essa multiplicação de fronteiras políticas, territoriais, no tempo da globalização técnico-econômica?

Segundo ponto, diz-se: a fronteira é a guerra, é o fronte. De acordo, mas a fronteira também é a paz, isto é, o reconhecimento do outro. Descobri no Oriente Médio, onde eu fui um pouco a vagar: onde não há fronteiras, há muros. A fronteira é a vacina contra o muro, porque a fronteira é o reconhecimento do outro, isto é, a legitimidade de que haja um outro e que você não está em sua casa em todos os lugares.

Finalmente, a fronteira protege o fraco. Tome o direito de asilo: se não houver mais fronteiras, o que se faz dele? Uma fatwa poderia ser exequível em todos os lugares. Em outras palavras, a fronteira também é uma hospitalidade. O forte não gosta das fronteiras. O forte gostaria de poder ir a todos os lugares, mas na realidade o que ele tem? Um território em que ele entra na toca. É a sua casa e é preciso admitir que os outros também têm direito a uma casa própria. Portanto, para mim, a fronteira é uma cortesia, um sinal de civilização.

Como a "fraternidade" pode ser um fermento de paz?

A fraternidade não é a fratria, não é o vínculo de sangue. É o vínculo do sentido. Se lermos a Bíblia, observamos que a fratria sempre termina muito mal: Caim e Abel, Jacó e Esaú, José e seus irmãos. A fraternidade consiste em fazer uma família com aqueles que não são da sua própria família. É fazer um "nós" não genérico, mas simbólico, não fundado na herança, mas na vontade. O imenso mérito que eu reconheço ao cristianismo é o de ter permitido a ruptura com o "nós" étnico, do clã ou familiar, para instaurar o "nós" de São Paulo, um "nós em Cristo", no seguimento a Cristo, e dos famosos "família, te odeio" da sua pregação! É uma ruptura de civilização capital da qual é preciso ver o lado um pouco subversivo. É a passagem da lei da natureza para a lei da graça. Ela consiste em sair daquele "nós" hereditário para encontrar uma comunidade voluntária.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sol e sombras


"Mantenha o rosto voltado para o sol, e as sombras estarão sempre atrás de você."

- Walt Whitman

O garoto de rosa-shocking*

Ilustração: Kareena Zerefos

Meu filho se chama Marina. Ou pelo menos, é assim que ele gosta de ser chamado na maior parte do tempo. Ninguém sabe o motivo da escolha do nome, ou a razão da rejeição pelo nome que seu pai e eu lhe demos, o fato é que se um estranho lhe pergunta “Qual é o seu nome?”, a resposta é invariavelmente “Marina”.

Antes de ser Marina, ele fora Yellow, Blue Meanie, leãozinho, Pato Fu, e uma infinidade de nomes que não me recordo no momento. Depois de Marina, ele eventualmente se transforma em Sonequita, Denguinho, Pocoyo… Certa vez, entre sorrisos amarelos, justifiquei que a escolha do nome Marina viria de uma personagem de desenho animado, quando ele me olhou, inquisitivo. Não, não era esse o motivo. Marina era ele, não era uma personagem. Mas liderado pelo desconforto causado pela resposta, vez ou outra ele completa “É Marina por causa do Peixonauta.”

Pergunto-lhe se não gosta de seu nome – Benjamin. Nome bonito, que papai e eu escolhemos. Não gosta, quer bater no Benjamin. Benjamin foi embora, jogou-se no mar. Benjamin atravessou a rua sem a mamãe. Em outra palavra, a qual ele ainda não consegue captar o significado, Benjamin morreu. E ele, quem é? É Marina.

Se eu disser que nunca me preocupei com isso, estarei mentindo. Quando a fase do nome Marina passou da primeira semana, uma luz se acendeu eu minha cabeça. Yellow durara bastante, mas havia um motivo explicável para isso, ao contrário de Marina, que surgira do nada. Mas o bicho pegou quando ele respondeu para outra pessoa que seu nome era Marina, Yellow nunca havia respondido isso. A questão é que nos importamos sempre com o que os outros pensam, pois o julgamento alheio é fermento para quaisquer conflitos internos que possamos ter.

Perguntei a duas psicólogas de correntes diferentes, e ambas responderam que era natural. Perguntei à coordenadora pedagógica da escola, que não viu nenhum problema. Tentei relaxar, mas sempre sinto uma contração involuntária de vergonha quando ele fala em vídeo para milhares de leitoras que seu nome é Marina. Certa vez, em um centro de compras, Marina pediu que lhe alugasse um carrinho especial. Estávamos de férias, sem nada para fazer ali, cedi. Marina queria o carro verde do Palmeiras? Não, Marina pediu o carro cor-de-rosa. A funcionária me olhou chocada: eu deixaria tal transgressão ocorrer? Mas rosa é de menina, ela ainda arriscou. Nem foi ouvida por ele, embora tenha sido por mim. Então Marina passeou no shopping no carrinho cor-de-rosa.

É curioso que eu tenha ficado extremamente revoltada com o comentário da moça do shopping de que rosa era para meninas. Não, respondi, não é para meninas. Você pode usar a cor que quiser. No entanto, me contorço com a escolha de nome. Mas Marina é nome de menina, arrisco eu. Marina é o nome da sua coleguinha da escola, é o nome da nossa vizinha. A Marina do Peixonauta é menina também. E o Benjamin, é menino ou menina? É Marina.

Meu filho tem 2 anos e 4 meses. Ele não tem distinção de sexo, e nunca foi ensinado a diferenciar brinquedos de meninos ou meninas. Brinca de bonecas, brinca de cozinha, mas troca tudo por um carrinho. Com sua familinha de pano, ainda não se identifica com o menininho, ou a menininha. Ele permanece sendo o bebê, de sexo neutro. Meu filho gosta de colocar colares e pulseiras cor-de-rosa, e gosta também do relógio do papai. Meu filho é uma criança normal, e refrear qualquer impulso natural dele é transformar isso em um bloqueio que ricocheteará daqui a alguns anos em forma de frustração e negação do que ele possa vir a ser: hetero, homo, trans. Chamar-se de Marina não vai causar isso, e certamente não mudará sua orientação.

Então, meu filho se chama Marina.

- Nanda, no blog Mamíferas

_______________
*O título do post é uma cópia descarada de um artigo da revista Mothering, que pode ser ouvido em áudio (inglês) aqui. Esse artigo, juntamente com outros da revista Mothering, foi um dos que me fez perceber que não há problema algum em meu filho se chamar Marina às vezes, e até quando ele quiser.

Ser e viver juntos


Com atraso, reproduzimos aqui o comentário o padre Raymond Gravel acerca das leituras do 23º Domingo do Tempo Comum, 4 de setembro de 2011, publicado originalmente no sítio Culture et Foi e aqui publicado com tradução do Cepat (via IHU). Achamos tão pertinente que, apesar da demora, pareceu-nos necessário reproduzir... Para começar bem a semana! :-)

Hoje começa o quarto dos cinco discursos de Mateus e diz respeito à Igreja, à vida em comunidade. A grande questão à qual esse discurso quer responder é a seguinte: como garantir a unidade da Igreja, uma vez que é composta de homens e mulheres diferentes, limitados e frágeis? Em relação à leitura do Evangelho de hoje e da primeira leitura, tirada do profeta Ezequiel, há um perigo que nos espreita na interpretação literal e legalista desses textos, o de que a interpretação contradiz a mensagem do evangelista Mateus.

1. A responsabilidade cristã.
Infelizmente, durante muito tempo esta passagem foi chamada de “A correção fraterna”. Esta expressão tem necessariamente uma conotação negativa e pejorativa de punição. Parece-me que o termo mais apropriado seria "O viver juntos dos discípulos" e "A responsabilidade cristã", ou seja, alguns que se encarregam de outros, respeitando a individualidade de cada um. Além disso, deve-se notar que Mateus está se referindo aqui a nenhuma estrutura hierárquica de sua Igreja do primeiro século... O que significa que a responsabilidade pelo ser juntos e pelo viver juntos dos discípulos é confiada a todos os membros da Igreja, a todos os cristãos, para garantir a unidade de toda a Igreja.

Basicamente, Mateus não reconhece um poder específico aos dirigentes para garantir a unidade da Igreja; ele reconhece, no entanto, uma responsabilidade partilhada de todos os discípulos da Igreja do seu tempo. Cabe a cada cristão trabalhar para construir a unidade, e isso só é possível se cada um for responsável pelo outro, pelos outros...

2. Tornar-se vigia.
Mas como garantir a unidade da Igreja, uma vez que todas e todos somos seres humanos limitados e frágeis? Existe uma expressão na primeira leitura de hoje que é muito bonita, mas que precisa ser explicada: cada crente é chamado a ser um "vigia", missão confiada ao profeta Ezequiel, na primeira leitura de hoje. O que significa ser vigia? (Ez 33, 7).

Ser vigia não é espionar as pessoas para encontrar nelas falhas ou culpas, a fim de denunciá-las e puni-las. Se este for o sentido que lhe dermos, ele supõe que ela ou ele que vigia é perfeito e nele não há nada que precise ser reprovado. Esse é, geralmente, o comportamento dos legalistas e fariseus. Ser vigia significa ser um sentinela para os outros para protegê-los dos perigos que os ameaçam. Isso também supõe que a pessoa que desempenha esse papel, reconhece suas próprias limitações e pode compartilhar sua experiência com os outros, respeitando a sua liberdade. Mateus, no seu evangelho, oferece uma caminhada em três tempos...

3. Um vigia cristão.
Quando um irmão ou irmã, portanto um discípulo, cometeu um pecado, não uma falha pessoal, mas um ato que rompe a unidade da comunidade (Mt 18, 15a), Mateus oferece um processo em três etapas.

Primeira etapa: "Vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois" (Mt 18,15b). O resultado desta abordagem dependerá da atitude que eu tiver para com o meu irmão ou minha irmã: se eu pedir para encontrá-lo com uma atitude condescendente e desdenhosa em relação a ele por sua ação, é evidente que eu devo passar diretamente para a segunda etapa. Entretanto, se eu me reconheço tão frágil quanto ele e eu me mostro cheio de compreensão e compaixão para com ele, haverá boas chances de que o problema será resolvido rapidamente.

Segunda etapa: "Se ele não lhe der ouvir, tome com você uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas" (Mt 18, 16). Novamente, esta reunião de várias pessoas pode ser bem sucedida, se a palavra de duas ou três testemunhas for uma mensagem de reconciliação e de amor. O amor é a única dívida que devemos ter para com os outros: "Não fiquem devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo. Pois quem ama o próximo cumpriu plenamente a Lei" (Rm 13, 8). Se um irmão ou irmã, culpado de ter quebrado a unidade da comunidade, não se sente amado por aqueles que vêm para reconciliá-lo, é óbvio que passamos automaticamente para a terceira etapa. Mas se ele sente que é ouvido e compreendido, é provável que o conflito seja resolvido ali mesmo.

Terceira etapa: "Caso ele não dê ouvidos, comunique à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele der ouvidos, seja tratado como se fosse um pagão ou um cobrador de impostos" (Mateus 18, 17). Infelizmente, esta etapa nem sempre foi bem interpretada na Igreja. Por muito tempo, serviu para justificar as condenações, os julgamentos, as exclusões e as excomunhões na Igreja... E, portanto, se Mateus nos convida a considerar um irmão ou irmã, no final do processo, como um pagão ou um publicano, todos nós sabemos qual o lugar que os gentios e os cobradores de impostos ocupam no coração do Cristo ressuscitado. Ele os prefere aos outros, de sorte que ele nunca hesitou em recomendá-los, em dar-lhes um exemplo e em incluí-los na comunidade.

Deve ser visto como um convite a nos redobrar de empatia, de compaixão, de reconciliação e de amor por um irmão ou irmã, tornado pagão ou publicano. Tanto mais que a parábola que precede o relato de Mateus de hoje é a parábola da ovelha perdida e reencontrada (Mt 18, 10-14), que termina da seguinte maneira: "Do mesmo modo, o Pai que está no céu não quer que nenhum desses pequeninos se perca" (Mt 18, 14). E a passagem que segue é a resposta dada a Pedro que pergunta a Jesus quantas vezes deve perdoar seu irmão (Mt 18, 21). Jesus respondeu: "Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (Mateus 18, 22)... Portanto, o perdão é ilimitado e incondicional.

4. Uma Igreja da reconciliação e da inclusão.
Ao longo dos Evangelhos, a mensagem do Cristo ressuscitado é um convite à reconciliação, ao perdão, à partilha, à inclusão, ao respeito, à liberdade, à justiça, à paz, à esperança e ao amor... e o evangelista Mateus parece reconhecer em todos os cristãos o poder de perdoar ou de reter o perdão: "Eu lhes garanto: tudo o que vocês ligarem na terra, será ligado no céu, e tudo o que vocês desligarem na terra, será desligado no céu" (Mt 18, 18). Esta frase não é um convite para recusar o perdão; ela diz simplesmente que os discípulos de Cristo têm a capacidade de recusá-lo, assim como eles têm a capacidade de oferecê-lo gratuitamente... Não é isso que Cristo fez e ele nos convida a fazer hoje?

Portanto, à questão, pode-se excluir alguém da comunidade, da Igreja?, penso que a resposta é “não”! Em nome do Evangelho que nós servimos! É como a violência: não se pode combatê-la senão pela não-violência; caso contrário, criamos situações piores do que aquelas que queremos denunciar e corrigir. Para ilustrar meu propósito, vou concluir justamente com uma passagem de um mestre da não-violência, Lanza del Vasto, que disse: "Se você retribui o mal com o mal, não repara o mal, você o aumenta. Como você pode chamar bem, o mal que faz? Se, para punir o assassino, você o mata, isso não vai trazer de volta a vida à sua vítima. Isso provocaria duas mortes em vez de uma e dois assassinos, ele e você... Como você pode acreditar que é uma maneira de estancar o mal, enquanto você mesmo acrescenta um elo ao qual outros vão se somar? Porque o perdedor aguarda a sua hora para se vingar. E se você acabar com ele, seu irmão irá vingá-lo. Se você o reduzir à servidão, você se verá ligado à outra extremidade da sua corda. A violência é um encadeamento. Quem pensa se libertar por ela, forja sua próxima cadeia... Só a não-violência é solução eficaz, ruptura da cadeia de libertação. Mesmo se o adversário for tão teimoso e tão errante que você não possa chegar ao fim, a luta vai lhe forçar a vitórias sobre si mesmo, a experiências e descobertas interiores, cujos frutos irá colher".

Referências Bíblicas:
Primeira Leitura: Ez 33, 7-9
Segunda Leitura: Rm 13, 8-10
Evangelho: Mt 18, 15-20
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