sábado, 19 de fevereiro de 2011

Os melhores tweets da semana

Ilustração: Mark Howell

Cultivar a “beleza interior” custa mais caro, mostra pesquisa da FGV http://migre.me/3RcW

RT@paroutudo Em ofício a entidade LGBT, Globo justifica porque não mostra beijo homo http://bit.ly/haGUjD

Campanha "Homofobia - as marcas desta violência não podem ser encobertas" http://twitpic.com/3yo9sx

Marcha contra #homofobia ocorre em #SP, no dia 19: http://mig... on Twitpic http://t.co/95KNSK8 via @AddThis

Garoto de 07 anos faz doação para ONG Gay e vira tema de campanha http://bit.ly/eT63RF via @Gilscofield

Annette Bening fala em defesa da família gay - Atriz concorre ao Oscar por sua atuação em Minhas Mães e Meu Pai: http://migre.me/3S1qS

Os ataques homofóbicos de "Insensato Coração" coincidirão com a discussão do PLC 122 http://migre.me/3S1x3

Frente Parlamentar pela Cidadania GLBT será reinstalada http://migre.me/3SDFc

Exportação da homofobia: Igrejas americanas ultraconservadoras influenciam políticas anti-gay na África [em inglês] http://migre.me/3SDHw RT@dolado

Apresentador gay visita Uganda para documentário sobre homofobia http://migre.me/3SDMN RT@dolado

Super Interessante explica como é a cirurgia de mudança de sexo http://migre.me/3SDNp RT@dolado

Reino Unido: Homossexuais terão direitos iguais para casar, inclusive no religioso http://migre.me/3SDQs RT@dolado

Menino de 6 anos é esfaqueado em escola da Suécia por usar roupa rosa e gostar de balé http://migre.me/3SDYA via Fora A Homofobia

"A escandalosa tolerância de Jesus": artigo do teólogo espanhol José María Castillo http://migre.me/3SE6Q

Sobre o dia do amor: http://migre.me/3SEaY

Campanha Tuberculose+HIV: essa combinação pode ser fatal http://migre.me/3SElu via Tantas Notícias

Campanha "Quer pegar?": sobre DSTs em relações entre mulheres http://migre.me/3SEpf

Centenário de nascimento de Elizabeth Bishop em 8/2/11 http://migre.me/3SErf via Tantas Notícias

Presença trans em reality show do SBT adiantou trajetória de Ariadna no BBB11 http://migre.me/3SEwu via A Capa

Algumas pessoas questionam a velocidade da beatificação de João Paulo II http://migre.me/3SEBh via Amai-vos

Comercial de campanha do movimento gay israelense: "tamanho não é documento: um país pequeno, mas de grande orgulho" http://migre.me/3SGef

Sem-teto gays de SP andam juntos para se proteger http://migre.me/3SGwX

Documentário sobre a vida dos moradores de rua LGBT de São Paulo: http://migre.me/3SGzr

Lady Gaga garante que Madonna adorou a nova música dela, Born This Way http://mixbrasil.uol.com.br/t/s487Nh

"Não é a vida + q o alimento,e o corpo + do q a roupa?" (Mt 6:25) Sobre o medo d abandonar a ansiedade e ficar em paz http://migre.me/3SGU0

Criamos mitos diante do que é incompreensível no momento. Sobre os mitos da sexualidade: http://bit.ly/e7sJMI RT@reginanavarro

Depois de muita polêmica, Playboy vai fazer edição especial para a transexual Ariadna http://mixbrasil.uol.com.br/t/uC2CHd

Disque 100 da Secr.Dir.Humanos tem serviço LGBT. É demorado, mas profissional, gentil e convence. http://migre.me/3QrnF RT@Andre_fischer

Disque Homofobia do Rio é capenga e não diz a que veio. Olhe só... http://migre.me/3Q3dm RT@Andre_Fischer

Polêmica na militância lgbt sobre o grau de bichice do #Gayme de #AmorSexo.Qual problema mostrar gays afeminados na tv? RT@Andre_Fischer

Radicalizar é preciso? Os LGBTs brasileiros têm de ir às ruas p/ não perder de vez sua razão de ser? http://migre.me/3NK3L RT@Andre_Fischer

Matéria de capa da Época sobre lésbicas no Brasil... em 2002. :-) http://migre.me/3SJ9C

Ato contra a homofobia e pelo PLC-122/06 em SP, dia 19/2, lança vídeo de divulgação http://migre.me/3SJak RT@gaybrasil

Congresso Nacional de Direito Homoafetivo acontece em março http://migre.me/3SJnK via@dolado

Testemunho da gratuidade da Salvação e da incondicionalidade do Amor do Pai, e a defesa da inclusão dos gays na Igreja http://migre.me/3T6qW

"Carta ao homofobico q arrancou meu sangue" http://migre.me/3TBqA e "Amar quem nos faz mal" http://migre.me/3TxbL

Enquanto Globo veta beijo gay, “Ti-Ti-Ti” avança no debate do tema http://migre.me/3TBY7

Casais gays firmam contratos de união homoafetiva no Brasil http://migre.me/3TBZy RT@homorrealidade

Querem saber a reação do público da conservadora Copacabana,quando dois gays se beijaram na boca, ontem,no Roxy? Leia: http://bit.ly/ftc09h RT@Hilde_Angel

“O que aconteceria se acabassem os sacerdotes na Igreja?”, pergunta o teólogo espanhol José María Castillo http://migre.me/3TPeU

"O declínio das vocações é a forma de Deus 'desclericalizar' a Igreja". http://migre.me/3TPfB

Como preservar o futuro da Igreja? Entrevista especial com Johannes Röser http://migre.me/3TPjR

O Bom Pastor e a ovelha perdida: Bento XVI, um papa revolucionário? http://migre.me/3TPlB

Papa diz que suas palavras sobre o preservativo não precisam de correção http://migre.me/3TPoR

Revista dos jesuítas americanos propõe que leigos participem do Colégio dos Cardeais http://migre.me/3TXf2

"A bênção original". Um livro polêmico. Entrevista com Matthew Fox. http://bit.ly/fa5Gnh RT@_ihu

Leia "Igreja 2011: uma virada necessária'' – Manifesto dos teólogos alemães, suíços e austríacos de 03-02-2011 http://migre.me/3TZkL

"Igreja mergulha em longo processo neoconservador": entrevista c/ J.B. Libânio a propósito do recente manifesto alemão http://migre.me/3TYnr

O que estamos aprendendo com as revoluções do século XXI http://bit.ly/f1vMkl RT@_ihu

Maior evento LGBT do governo federal e do movimento já tem data: novembro http://migre.me/3U6Nn RT@gaybrasil

Pelo fim dos rótulos. Pelo fim do estigma. http://migre.me/3U8qf

O mito da necessidade de família, composta de pai e mãe vivendo juntos, na formação sadia do indivíduo caiu, quase definitivamente. RT@reginanavarro

O serviço PADRE ONLINE do Amai-vos é um canal de comunicação criado para orientar o internauta que precise de ajuda ... http://ow.ly/3Z7Xb RT@Amaivos

Frei Betto, os sonhos de Kepler e a falta de tempo http://ow.ly/3Zb6P RT@Amaivos

Cardeal defende transparência nas finanças da Igreja http://ow.ly/3Z930 RT@Amaivos

Senado começa analisar PLC122/06 semana que vem. Peça sua aprovação ao senador(a) do seu estado: http://migre.me/3Uamb

Marcha contra a homofobia e pelo PLC-122/06 hoje em São Paulo, às 15h

Segui-lO aonde quer que vá


Porque mesmo quando o julgamento humano vê alguém como um marginal, como alguém carregado de pecados mais graves que a maioria, ou como alguém menos merecedor do Amor do Pai - tal como o irmão mais velho da parábola (Lc 15, 11-32) - Ele veio para que todos tenham vida, e vida em abundância (Jo 10, 10). E essa é a fonte maior de alegria, e por tudo Lhe damos graças. :-)

Eu O seguirei
Seguirei aonde quer que Ele vá
Perto dEle sempre estarei
Pois nada pode me afastar
Ele é o meu destino.

Eu O seguirei
Desde o momento em que Ele tocou meu coração eu soube
Não há oceano fundo demais
Nem montanha tão alta, capaz
De me afastar do Seu amor.

Eu O amo, Eu O amo, Eu O amo,
E aonde Ele for
Eu O seguirei.
Ele será sempre meu verdadeiro amor
Desde agora, e para sempre.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Vida e criação



A vida não é para você encontrar a si mesmo. É para você criar a si mesmo.
- George Bernard Shaw

Imagem de Deus e Diversidade (5): pluralidade, diversidade e o significado de “ser católico”


Reproduzo abaixo a quinta parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus (na primeira parte); a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na segunda; a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação, na terceira; e a atual relação da sociedade e da Igreja com os temas da sexualidade e da homoafetividade, na quarta, reflito aqui sobre a pluralidade de visões no seio da Igreja católica e o próprio significado de “ser católico”.

No entanto, se em nível das declarações oficiais a questão homossexual permanece inalterada, com pequenos avanços ainda não satisfatórios para quem se sabe gay e deseja viver a plenitude da pertença à Cristo na Igreja Católica, em outros níveis eclesiais timidamente começa a haver uma mudança. Há muitos leigos e leigas que, apesar do avanço de movimentos conservadores nas últimas décadas, individualmente percebem haver um equívoco em determinadas posições eclesiais. Sem contar iniciativas organizadas e sólidas de reflexão e atuação GLS católica, como a comunidade norte-americana Dignity.

Isto mostra existir outras posições além da oficial que se consideram também católicas, também inseridas na comunidade fundada por Jesus Cristo. Será que tais pessoas, comunidades, mentalidades podem de fato ser consideradas Igreja Católica?

A resposta vai depender do que significa “ser católico” para cada um. Se pertencer ao catolicismo significa adentrar nas fileiras uniformes sob o comando da mentalidade única do papa, poucos o conseguirão fazer, se forem sinceros. Mas se, assim fosse, haveria ainda catolicismo no sentido mais original do termo, ou seja, o chamado a ser Igreja seria de fato para todos os seres humanos?

Um chamado para todos os seres humanos desde que eles caibam em uma estrutura fixa e rígida e não ajam de acordo com o que são (já que a sexualidade é muito mais do que uma questão do gênero sexual da pessoa por quem um indivíduo se sente atraído) é ainda um chamado à liberdade? É ainda um chamado feito na gratuidade? A pergunta que está por trás ao se refletir não só sobre a pertença eclesial dos gays, mas de todos os outros que se encontram à margem do discurso oficial, não é sobre a moral católica, mas sobre eclesiologia, sobre a compreensão do que é a Igreja. É possível a diversidade de pensamentos, vivências, visões de mundo no catolicismo?

Se esta pergunta nos provoca, nos constrange de alguma forma, nos amedronta porque parece ameaçar o reino das verdades definitivas ao qual me agarro para ter segurança, mesmo que não consiga viver ou mesmo explicar o porquê das coisas serem assim me contentando com o argumento de que “Roma dixit” (“Roma disse”, ou seja, não há mais o que conversar) a resposta será: “não, é impossível”. Está resolvido. A Igreja é uma realidade monolítica e homogênea, guiada por autoridade não apenas central, mas centralizadora e que tem bem definida as mínimas configurações para quem deseja fazer parte dela. Quem não puder, tente, se arrependa, tente de novo, ainda que passe a vida angustiado e tenha a sua auto-estima esfacelada pela luta interna contra si mesmo, tenha a esperança de ser feliz, um dia, no céu, quando tudo se acabar. Mas cuidado, pode ser que ao chegar ao banquete eterno encontremos à mesa muita gente diferente, aparentemente não convidada (Mt 8,11).

Mas se a nossa opção for levar a sério a vocação católica/universal da Igreja? Sobre que base é possível experimentar um catolicismo plural, diverso e absolutamente autêntico?

Já disse que, antes de perguntarmos à moral sobre os gays, precisamos perguntar à eclesiologia sobre a compreensão do que é a Igreja. Mas, ainda há uma questão anterior, mais primordial para entendermos a comunidade eclesial: qual Deus se revela na Igreja, na comunidade de fé?

O Concílio Vaticano II pôs em primeiro plano uma característica da Revelação divina que se deve ao contexto judaico em que se deu a revelação: ela é uma experiência, feita através de atos e palavras, e não um conjunto de verdades comunicadas do intelecto divino ao humano. O judeu semita não era um teórico como o grego, mas precisava de imagens para compreender. Talvez por isso a insistência de Jesus nas parábolas que, de forma prática, transmitiam os ensinamentos da Nova Aliança.

O cristianismo ganharia uma conceituação mais elaborada quando entrou em contato com o mundo greco-romano, iniciado através de São Paulo, e prosseguido pelas gerações seguintes. Então foi preciso dialogar com as diversas correntes filosóficas e explicar “racionalmente”, de acordo com o pensamento grego, a fé vivida originariamente nas comunidades advindas do judaísmo. Desse encontro surge a Teologia, na forma como a conhecemos e toda explicação racional que procure “dizer” a experiência da Revelação.

Esta inculturação (a fé vivida no contexto de determinada cultura) foi extremamente importante para a Igreja. Ela, de certa forma, abriu as portas para a evangelização de todo o Ocidente então conhecido, dominado politicamente pelo Império Romano e influenciado culturalmente pela herança grega.

Este encontro entre fé cristã e racionalidade ocidental atingiu o seu momento de maior comprometimento mútuo durante a Idade Média, quando toda a produção de conhecimento se dava em vistas da religião, a máxima “Filosofia, serva da Teologia” sintetiza bem esse momento.

Pode-se elencar muitas contribuições que este encontro entre fé cristã e pensamento grego gerou, uma das mais importantes é o conceito de pessoa humana. Porém, se a Teologia influenciou o conhecimento que hoje denominaríamos “laico”, também o contrário se deu.

Muitas vezes a Teologia não apenas serviu-se da Filosofia enquanto instrumental para a sua reflexão a partir dos dados específicos da fé cristã, mas também foi influenciada por esta mesma Filosofia ao refletir sobre Deus.

Não que isso signifique um erro, mas a palavra final sobre Deus é, sem dúvida, a da Revelação que, mesmo quando concorda com os atributos descobertos pela luz natural da razão, os reformula em muitos âmbitos.

Desta maneira, a Revelação pode e deve contar com os auxílios humanos que a Graça também inspirou, a partir da capacidade racional dos grandes filósofos. Mas quem tem em si, de acordo com a nossa fé, a prerrogativa única de ser a própria auto-compreensão divina, é a Revelação.

"Igreja mergulha em longo processo neoconservador": entrevista com J.B. Libânio


Reproduzimos parcialmente a entrevista com o teólogo João Batista Libânio publicada originalmente no site do IHU, a propósito do recente manifesto de teólogos alemães, suíços e austríacos pedindo por renovação da Igreja.

Recentemente, teólogos e teólogas alemães, suíços e austríacos lançaram um manifesto propondo reformas para a Igreja em 2011. A convite da IHU On-Line, o teólogo João Batista Libânio leu o documento e analisou as propostas, concedendo por e-mail a entrevista a seguir. Resumindo, ele é enfático: “A tônica do projeto do Papa e a do manifesto divergem”.

Com a experiência de quem presenciou “nítidos momentos no processo eclesiástico” da Igreja nas últimas décadas, Libânio ressalta que o manifesto “alude ao fato de que em 2010 ‘tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição’”. A constatação do êxodo cristão, entretanto, “não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica”, assinala.

Para ele, Roma reforça a autoridade sobre as igrejas locais porque elas a solicitam. “A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte”, lamenta. (...)


João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor e teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de inúmeros livros, dentre os quais "Teologia da revelação a partir da Modernidade" (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), "Qual o caminho entre o crer e o amar?" (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e "Qual o futuro do Cristianismo?" (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).

Confira a entrevista.


Qual sua reação ao manifesto que propõe reformas para a Igreja em 2011, elaborado por teólogos alemães, suíços e austríacos?
Impressiona, logo à primeira vista, o conjunto de assinaturas de teólogos da mais alta competência e responsabilidade. Portanto, não subscreveriam nenhum manifesto superficial, imprudente. Concordemos ou não com as proposições, ele merece séria consideração e detida atenção.

Parte do inegável mal-estar que afetou não só a Igreja Católica alemã e de alguns países por causa do escândalo da pedofilia, mas de toda a Igreja por ver-se nele a ponta de um iceberg de maior amplitude: a falta de liberdade e de transparência no interior da Igreja devido ao cerceamento das instâncias de poder eclesiástico. Por isso, o manifesto bate forte na tecla das estruturas de governo da Igreja Católica.

A partir da sua trajetória sacerdotal, o senhor também concorda que a Igreja precisa ser reformada? Quais seriam as reformas urgentes?
Os anos me permitem perceber três nítidos momentos no processo eclesiástico das últimas décadas. Ainda conheci estruturas hieráticas no pontificado de Pio XII, que lançava a imagem do poder eclesiástico onisciente e onipotente. Roma pronunciava-se sobre os mais diversos assuntos e com a consciência de dizer verdades inquestionáveis. Não se percebia sinal de dúvida ou perplexidade. Isso acontecia com duplo efeito. Positivamente, oferecia aos católicos fieis enorme segurança sobre temas desde a astronomia até a intimidade da vida conjugal. Para aqueles que já tinham recebido o impacto da modernidade liberal, democrática, marcada pela subjetividade, autonomia das pessoas, consciência história, práxis transformadora, tais declarações romanas produziam enormes dificuldades e mal-estar.

Veio então João XXIII. Convoca o Concílio Vaticano II que inicia, com certa coragem, o diálogo da Igreja com a modernidade. Usando a imagem da música “andante ma non troppo”, a Igreja caminha em direção ao repensamento doutrinal e pastoral, provocado pelos questionamentos teóricos e práticos levantados nos últimos séculos. No entanto, o tempo de aggiornamento não durou muito. Já no próprio Pontificado de Paulo VI, a partir de 1968, despontam sinais de contenção e retrocesso. E depois a Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador que dura até hoje. As inovações iniciadas no Vaticano II se interromperam e outras não surgiram, exceto em um ou outro gesto ousado de João Paulo II, como a Oração pela Paz em Assis com os líderes das diferentes religiões do mundo. Ainda que o clima geral não fala de abertura, entretanto percebe-se-lhe a necessidade.

O manifesto também propõe uma reconversão da Igreja. O que o senhor entende por esta proposta?
A Igreja tem a enorme graça de pôr como referência última, principal, insuperável a pessoa de Jesus Cristo. E quanto mais se conhece o Jesus histórico, mais se percebe a força revolucionária de sua pessoa. Ele não deixa nenhuma estrutura esclerosar-se, sem que lhe seja acicate de mudança. Menciono de passagem o maravilhoso livro de J. Pagola, Jesus: aproximação histórica (Petrópolis: Vozes, 2010), que nos descreve e narra um Jesus colado à realidade no projeto maior de devolver às pessoas a dignidade.

Diante dessa figura de Jesus, muitas estruturas eclesiásticas sofrem terrível crítica. A partir dele, cabe falar de contínua reconversão da Igreja. Basta comparar a figura de Jesus andarilho, de Pedro pescador e crucificado em Roma com certas aparências poderosas clericais para ver a gigantesca distância e a força crítica de Jesus. Santo Inácio de Loyola apostava na força de conversão da contemplação dos mistérios de Jesus. Isso vale em nível pessoal, comunitário e eclesiástico. Em confronto com a pessoa de Jesus, a Igreja se vê questionada continuamente a assumir formas de humildade, simplicidade, pobreza, abandonando o luxo, o esplendor, a arrogância triunfante. (...)


É possível a Igreja romper com tradições, se renovar sem perder seus princípios básicos?
Não se trata nem de romper nem de engessar a Tradição, ou mais corretamente as tradições. Na polêmica com Mgr. Lefebvre, que defendia a literalidade da Tradição e das tradições, Paulo VI insistia na necessidade de interpretá-la(s). Eis a questão! Os princípios permanecem no nível universal, abstrato. Importa ver como eles são entendidos nas situações concretas. E aí está o problema. O trabalho interpretativo tem exigências. Implica esforço da inteligência de captar três coisas. O significado da questão no contexto primeiro em que ela foi formulada e respondida. Esta mesma questão como se entende hoje. E, então, como o significado de ontem se reinterpreta para hoje. Por exemplo, a usura, cobrar mais do que se emprestava, até o nascimento do capitalismo se considerava roubo, portanto eticamente condenável. Hoje, ela se chama juros e ninguém os considera imorais. Então, como se fez a transposição de um princípio ético no pré-capitalismo para o capitalismo?

Numa economia estável sem circulação monetária parecia injusto receber mais do que se emprestava. Nisso consistia a injustiça. Numa sociedade em que o dinheiro se tornou fonte de renda, se considera injustiça só quando as taxas de juros superam de muito a força de rentabilidade. Recebe o nome de agiotagem. Mas cobrar taxas razoáveis não contradiz o princípio ético pré-capitalista no significado, embora materialmente pareça opor-se a ele (usura). Problemas semelhantes se levantam em muitos campos.

O documento também chama a atenção para a necessidade de reconhecer a liberdade de consciência individual, referindo-se também a opção sexual dos indivíduos. Entretanto, observa que “a alta consideração da Igreja pelo matrimônio e pela força de vida sem matrimônio está fora de discussão”. Parece algo contraditório?
A consideração anterior que fiz no campo das finanças vale no campo da sexualidade. Os ensinamentos morais da Igreja sobre o matrimônio permanecem válidos na linha dos princípios. E cabe perguntar-nos pelo seu significado profundo que diz respeito à dignidade humana, ao respeito das relações afetivas. Que significam o respeito e a dignidade nas relações humanas na união homoafetiva? Não se responde em abstrato, mas a partir das experiências que se fazem no concreto da vida. Tanto nas relações matrimoniais como nas homoafetivas existem tanto dignidade, respeito como o oposto. E as considerações éticas descem ao concreto de tais relações para aí interpretar o princípio fundamental da dignidade humana, do respeito entre as pessoas, o projeto de amor de Deus.

O que significam os casos de pedofilia na Igreja?
Revelam a face pecadora dos homens e mulheres de Igreja em todos os níveis: do simples fiel até pessoas da alta hierarquia. Em face do pecado, cabem, em primeiro lugar, a conversão e o perdão de Deus. Quando o direito de outras pessoas é lesado, como no caso da pedofilia que fere gravemente a criança envolvida, entram fatores de reparação desde a econômica até a judicial. Nada justifica o ocultamento, mas importa tomar as medidas concretas para evitar outros casos, sanear o acontecido, reparar o estrago feito.

Evidentemente, não tem sentido entrar no sensacionalismo da mídia. Está em jogo algo sério demais para ser simplesmente assunto de folha policial em ocasião para jogar pedras na Igreja. Não se pensa em acabar com a família, embora nela aconteça a imensa maioria dos casos de pedofilia. A mesma mídia que divulga, “escandalizada” casos de pedofilia, termina sendo uma das causas importantes da decadência moral da sociedade com a enxurrada de programas de banalização do amor, de sexualização das crianças, de exibicionismo e voyeurismo sexual, da perda de senso de responsabilidade social. A luta contra a pedofilia exige programa complexo de purificação das fantasias, de presença maior de educação sadia, de melhoria de cultura veiculada pela mídia.

Quais são as perspectivas e os desafios da Igreja para esta segunda década do século XXI?
Distingamos os níveis. No momento, em nível das estruturas internas da Igreja não se veem perspectivas animadoras. Durante o longo pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica viveu o paradoxo, de um lado, de rasgos de abertura na prática do diálogo inter-religioso, na defesa dos direitos humanos, na oposição a toda guerra enfrentando, inclusive, as pretensões americanas, na proximidade com o mundo dos pobres e, de outro, de enrijecimento doutrinal e disciplinar interno. No horizonte, não se percebe que a Igreja enfrentará os novos desafios da cultura contemporânea por meio de mudanças internas, como fez, em parte, logo depois do Concílio Vaticano II. Falta o clima de abertura, de otimismo e de profetismo para lançar-se em transformações profundas. Em termo de hierarquia, reina antes momento de silêncio, de prudência sem muita inspiração e lanço de coragem inovadora. A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte.

No universo dos leigos há sinais de esperança nas comunidades de base, na crescente participação consciente e ativa das mulheres, no maior desejo de espiritualidade e teologia, na vitalidade de novos ministérios, na criatividade litúrgica, no acesso amplo às Escrituras pela via da leitura orante. Em algumas igrejas particulares a Assembleia do povo de Deus anuncia algo de novo, desde que a clericalização não a prejudique.

O senhor concorda com a tese de que o Vaticano está enquadrando a Igreja no Brasil?
Cícero chamou a história “mestra da vida”. Lancemos um olhar para os últimos séculos a fim de entender a relação entre o Vaticano e as igrejas locais. Gregório VII, no século XI, deu a decisiva guinada da autonomia das igrejas locais para crescente poder de Roma. Ele pautou o governo pontifício pelo dictatus papae, que ressuda centralismo, autoritarismo desmedido. Esse longo processo de quase mil anos marcou uma linha de comportamento em que Roma exerce imensa influência sobre as Igrejas particulares ou regionais. O Concílio Vaticano II, com a colegialidade, tentou diminuir tal tendência, mas com pouco resultado. Faz parte, portanto, da consciência comum eclesiástica a dependência em relação a Roma. E a dialética de dependência de uma parte pede o exercício de domínio da outra.

A criança que pergunta a mãe que meia vai usar pede uma mãe cada vez mais absorvente que termina ditando-lhe tudo. Assim na Igreja. Roma responde com autoridade e a reforça porque as próprias igrejas locais a solicitam e ficam à espera. A liberdade se entende como relação entre duas liberdades. Não há liberdade de um lado só. Que o diga Erich Fromm no magistral livro "Medo da liberdade". As análises que lá faz, baseadas em sua experiência do nazismo, valem para toda relação de submissão e de autoritarismo, onde ela se dê. No dia, porém, em que as igrejas locais tomarem maior consciência de outra eclesiologia, então a Igreja de Roma também lentamente afinar-se-á com ela. O processo se institui de ambas as partes simultaneamente em mútua relação e influência.

Quanto mais a Igreja do Brasil marcar a originalidade, a liberdade, a autonomia, tanto mais Roma a reconhecerá. Se ela, porém, está a esperar para cada palavra que disser um sorriso aprobatório de Roma, a liberdade se encurtará e a autonomia se dissolverá. Quem age sob o olhar de um outro, termina condicionando-se de tal modo que perde a própria identidade. (...)


Como vê a atual internacionalização da Cúria Romana? Como propõe o manifesto, a sociedade deveria ajudar a escolher os representantes?
A internacionalização traz vantagens. Mas não decide por si mesma. Acontece que a cor internacional desaparece facilmente por homogeneização ideológica por força da instituição. Se cada nação levasse para dentro da Cúria Romana a própria originalidade e a conservasse em contínuo diálogo com a predominante cultura europeia e romana, então a internacionalização causaria outro efeito.

Bispos latino-americanos, africanos ou asiáticos que arribam a Roma se romanizam a ponto de não se distinguir muito dos outros. Outra coisa significaria se as igrejas locais se fizessem presentes em Roma por meio de seus representantes, escolhendo-os e eles fazendo-se porta-voz delas. Mais: se elas mesmas decidissem na escolha dos ministros que as servem ou vetassem aqueles que não as satisfizessem. Assim evitaríamos casos desastrosos que tivemos de bispos, párocos ou pessoas em outras funções que durante décadas exerceram funções com detrimento da vida eclesial em vez de construí-la e os fieis tiveram de suportá-los calados e sem poder de mudança. Certos aspectos da sociedade democrática não contradizem, teologalmente falando, a maneira de designar membros da hierarquia. A escolha pode ser democrática, embora a conferição se faça pela graça do sacramento. (...)


Está em curso a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil?
Teríamos que conhecer de antemão o programa do Papa. Os papas, em geral, não fazem discursos programáticos, mas dogmáticos. E supõe-se arguta análise para perceber sob as afirmações doutrinais que tipo de prática de governo subjaz. Aventuraria dizer que Bento XVI atribui relevância especial à qualidade da pertença à Igreja e não se impressiona tanto com a diminuição estatística. O manifesto dos teólogos alude ao fato de que em 2010 “tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição”. Enquanto percebo, tal constatação não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica.

No projeto de Igreja em curso, a fidelidade, a exatidão doutrinal e a coerência prática disciplinar merecem relevo preponderante mesmo que à custa de êxodo de católicos.

O manifesto pondera a questão do isolamento da Igreja em relação à sociedade. Tal fato, porém, não se entende na percepção pontifícia de modo negativo, enquanto fechamento, mas como exigência de coerência com a própria mensagem a despeito da incompreensão por parte da mentalidade moderna.

Outra coisa, como parece supor o manifesto, tal aspecto implicaria incongruência com o projeto salvífico de Jesus. A questão teológica se desloca. Até onde tal programa eclesiástico afasta-se do reino anunciado por Jesus? Acusação grave que precisa ser bem pensada e discutida de ambos os lados. A tônica do projeto do Papa e a do manifesto são divergentes. No primeiro caso, volta-se para a Igreja e quer mantê-la na sua atual estrutura e, a partir daí, cumprir melhor sua função. No outro, propõe-se o projeto de Jesus e se pergunta como adequar as estruturas da Igreja a ele. Pontos divergentes que geram leituras diferenciadas. Só o diálogo mostra o limite e a positividade de cada perspectiva. O manifesto acentua: primeiro a liberdade individual e de consciência e a partir dela a fidelidade. A atual disciplina eclesiástica: primeiro a fidelidade à doutrina e à prática e aí dentro a liberdade.

O mesmo vale de outros pontos acentuados pelo manifesto: participação dos fiéis, comunidade de partilha, reconciliação dos pecadores e celebração ativa, enquanto o projeto eclesiástico em curso entende tais demandas a partir dos quadros jurídicos traçados para a participação, para a vida de comunidade, para a reconciliação e celebração e não à sua revelia ou à exigência da sua mudança. Nessa tensão consiste, segundo minha leitura, a divergência maior entre o manifesto e o que está em curso atualmente no seio da Igreja Católica.

Dois pais

Após a divulgação de um livro infantil holandês que aborda a questão da homossexualidade - no caso, a história, contada do ponto de vista de um menino, de um pai que se separa da mãe e casa-se com outro homem - e, mais recentemente, de uma campanha espalhar retratos de famílias gays pela Califórnia para estimular gays a ter filhos e desestigmatizar o assunto, lembrei de um vídeo velhinho, mas ainda tão atual.

Trata-se de um garoto que se apresenta num programa infantil da TV holandesa (sempre os holandeses) cantando uma música sobre seus dois pais. Eu, particularmente, sempre me emociono... Me faz sonhar com um mundo de menos exclusões e segregações.


E você? O que achou? Deixe sua opinião nos comentários! :-)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Amar a quem nos faz mal


O teólogo basco Jose Antonio Pagola, em artigo reproduzido no Amai-vos, tece algumas considerações sobre o convite de Jesus a que amemos aqueles que nos fazem mal.

A chamada para amar é sedutora. Seguramente, muitos escutavam com agrado o convite de Jesus a viver numa atitude aberta de amizade e generosidade para com todos. O que menos se podiam esperar era ouvi-Lo falar de amor aos inimigos.

Só um louco lhes podia dizer com aquela convicção algo tão absurdo e impensável: «Amai os vossos inimigos, rezai pelos que vos perseguem, perdoai setenta vezes sete... » Sabe Jesus o que está dizendo? É isso o que quer Deus?

Os que O ouviam, escutavam-No escandalizados. Esquecia Jesus que o seu povo vive submetido a Roma? Esqueceu os estragos cometidos pelas suas legiões? Não conhece a exploração dos camponeses da Galileia, indefesos ante os abusos dos poderosos latifundiários? Como pode falar de perdão aos inimigos, se tudo os está convidando ao ódio e à vingança?

Jesus não lhes fala arbitrariamente. O Seu convite nasce da Sua experiência de Deus. O Pai de todos não é violento mas compassivo. Não procura a vingança nem conhece o ódio. O Seu amor é incondicional para com todos: «Ele faz sair o Seu sol sobre bons e maus, manda a chuva a justos e injustos». Não discrimina ninguém. Não ama só àqueles que lhe são fiéis. O Seu amor está aberto a todos.

Este Deus que não exclui a ninguém do seu amor atrai-nos a viver como Ele. Esta é em síntese a chamada de Jesus. "Parecei-vos a Deus. Não sejais inimigos de ninguém, nem sequer de quem são vossos inimigos. Amai-os para que sejais dignos do vosso Pai do céu".

Jesus não está a pensar em que os queiramos com o afecto e o carinho que sentimos pelos nossos seres mais queridos. Amar o inimigo é, simplesmente, não nos vingarmos, não fazer-lhe mal. Pensar, mais no que pode ser bom para ele. Trata-lo como queríamos que nos tratassem a nós.

É possível amar o inimigo? Jesus não impõe uma lei universal. Convida os seus seguidores a parecer-nos com Deus para ir fazendo desaparecer o ódio e a inimizade entre os seus filhos. Só quem vive tratando de identificar-se com Jesus chega a amar a quem lhe quer mal.

Atraídos por Ele, aprendemos a não alimentar o ódio contra ninguém, a superar o ressentimento, a fazer o bem a todos. Jesus convida-nos a «rezar pelos que nos perseguem», seguramente, para ir transformando pouco a pouco o nosso coração. Amar a quem nos faz mal não é fácil, mas é o que melhor nos identifica com aquele que morreu rezando por quem O estava a crucificar: "Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem".

"Essa Igreja que não cessa de converter-se ao Evangelho de Jesus"


Em 24 de junho de 2010, em Córdoba, Argentina, ocorreu a Marcha por la Igualdad, uma manifestação em plena efervescência pela aprovação do casamento gay na Argentina. Entre os que subiram no palanque para discursar, esteve o Cura Nicolás Alesio, cujas palavras emocionadas vêm ao encontro dos debates tão atuais por aqui hoje, em tempos de temática religiosa na parada gay de São Paulo, que tanta polêmica vem suscitando e que acontecerá quase exatamente um ano depois do discurso do Cura Nicolás.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (4): sexualidade e homoafetividade na sociedade e na Igreja hoje


Reproduzo abaixo a quarta parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus (na primeira parte); a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na segunda; e a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação, na terceira; discuto, agora, a atual relação da sociedade e da Igreja com os temas da sexualidade e da homoafetividade.

Dentre todas as questões presentes em nosso contexto cultural contemporâneo que fazem com que nós cristãos perscrutemos a Revelação à procura de um sentido, está a sexualidade.

Não que em si mesma, ela represente um assunto novo. O próprio Jesus nos evangelhos cita, quando fala sobre a questão do divórcio, o texto do livro do Gênesis (Gn 1), que trata da união do homem e da mulher “em uma só carne”. Há nas cartas paulinas inúmeras orientações para casados, viúvos e celibatários.

Mesmo assim, continuo afirmando que a sexualidade é um dos assuntos mais pungentes para a Igreja hoje. Isto porque a sexualidade ganhou, nos últimos tempos, a partir de uma série de acontecimentos um novo status, sendo o evento-síntese o que se acostumou denominar de “Revolução sexual” nas décadas de sessenta e setenta.

Não é meu interesse, e nem poderia fazê-lo se quiser respeitar o objetivo deste texto, elencar tudo o que mudou na compreensão e na vivência da sexualidade nas últimas décadas. Uma particularmente será enfocada, enquanto é uma nova compreensão sobre uma esfera da sexualidade que até então permanecia marginal, e por isso mesmo, condenada pela sociedade como um todo: a homossexualidade.

Também não é possível aqui neste texto trazer à discussão a polêmica sobre a nomenclatura a respeito das pessoas que desejam/amam pessoas do mesmo sexo. Questões atualíssimas como a transitoriedade dos papéis sexuais, a construção social dos gêneros masculino/feminino, e o reforço da visão dualista-excludente heterossexual/homossexual proporcionada também por alguns discursos produzidos por gays, tudo isto e ainda outras questões são muito importantes, mas não há como desenvolvê-las em todas as matizes necessárias neste espaço.

Portanto quando uso o termo gay me atenho a um mínimo de afirmações sem querer resumi-lo a nada de definitivo que rotule qualquer pessoa. Apenas faço uso do termo porque é necessário utilizar algum. Uso-o aqui para indicar tanto homens quanto mulheres homoafetivos.

Escolho este termo porque, na minha concepção, a sua apropriação pelas pessoas homossexuais serve como ícone das mudanças ocorridas nas últimas décadas em relação à homossexualidade. Isto porque, significando originariamente “alegre”, “feliz” ele mostra uma mudança de atitude, já que, sendo encarada oficialmente como uma patologia, a homossexualidade fazia dos infelizes que a “possuíam” desgraçados. Uso-o também porque é o termo pelo qual as pessoas homossexuais se auto-intitularam. Isto significa que alcançaram um espaço. A partir principalmente da década de sessenta, quando os gays começaram a sair à rua para reivindicar direitos, não só a religião ou a medicina tinham algo a dizer sobre as pessoas homossexuais, mas estas mesmas passaram, de diversas formas, a militar por um espaço social reconhecido. Da luta pelos direitos individuais, passou-se à luta por direitos políticos e a grande visibilidade das organizações e movimentos gays em suas reivindicações possibilitou um outro tratamento a respeito da homossexualidade em muitos contextos. Por exemplo, a retirada da homossexualidade da lista de doenças psíquicas da Organização Mundial da Saúde em 1991. É claro que tais mudanças não ocorreram em todos os lugares e há muito ainda a se fazer em todo o mundo. Basta lembrar os alarmantes índices de assassinatos de homossexuais no Brasil, um dos maiores do mundo.

As mudanças são recentes e ocorreram gradativamente. A legislação demora a reconhecer muitos dos direitos básicos dos cidadãos gays. As conquistas, em geral, se iniciam por meio de decisões judiciais que criam jurisprudência para novos casos semelhantes.

Se na sociedade civil o reconhecimento desta maneira de viver a sexualidade (termo entendido aqui de maneira mais ampla possível) se dá lentamente, o que poderíamos esperar da Igreja?

Em nome da sapientíssima prudência, reconhecemos que é preciso não aderir de maneira apressada a tudo o que surge no mundo. É bem verdade que acreditamos na condução divina da história, na inspiração do Espírito presente de muitas formas e maneiras nos homens e nas mulheres. Sabemos também que, neste campo que é o mundo, o joio e o trigo crescem juntos. Mas será que esta atitude cautelosa justifica uma posição retardatária da Igreja na sociedade? Basta lembramos de quantos discursos condenatórios às inovações surgidas no mundo foram realizados por autoridades eclesiásticas. Quando estas “inovações” se dão no campo da moral sexual então, nem se fala. Para muitos católicos/cristãos todas as questões surgidas com a maior liberdade sexual das últimas décadas, resumem-se simplesmente em uma palavra: “sem-vergonhice”.

Um ponto importante – e que para o católico/cristão que não tenha uma formação mais profunda parece ser definitivo – é a condenação das práticas homossexuais presentes na Sagrada Escritura. Sem me deter na questão – que por si não é difícil, desde que se entenda o que de fato se quer afirmar em tais passagens – é preciso dizer que o próprio contexto cultural da Sagrada Escritura é radicalmente diferente do nosso. E que a “homossexualidade” contemporânea traz elementos bastantes diferentes daquela bíblica, já que nos encontramos em um momento tão diferente da história.

Num primeiro momento, isto pode parecer uma tentativa de “enfraquecer” a Palavra de Deus, no sentido de uma distorção a favor de uma ideologia gay. Mas, se assim fosse, este diagnóstico deveria também ser estendido à outras condenações bíblicas que hoje são interpretadas como importantes para aquele contexto histórico-cultural específico tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como a proibição de comer carne de porco ou o uso obrigatório do véu pelas mulheres nas assembléias, respectivamente.

A cultura bíblica entendia a humanidade como naturalmente heterossexual, de tal modo que a prática homossexual era um desvio, uma perversão, e não uma orientação involuntária nas pessoas. Dir-se-á que a posição da Igreja concorda então com a cosmovisão bíblica e, de fato, assim é. No entanto, os hagiógrafos não tinham acesso aos dados que hoje temos em relação à sexualidade humana. Eles nunca reconheceram a homossexualidade como algo não-escolhido, como já faz a Igreja (CIC 2358), ainda que, apesar disto, não tire todas as conclusões desta premissa, condenando ainda a prática homossexual como pecaminosa.

É absolutamente compreensível a posição bíblica sobre a homossexualidade diante do contexto cultural em que a humanidade vivia, o que não se justifica na posição atual da Igreja sobre o tema. A não ser que na compreensão da doutrina não colaborem em nada as outras áreas do conhecimento humano, ou que a Bíblia não precise ser interpretada no seu contexto originário para se compreender de maneira total a Revelação, ou, em resumo, a não ser que sejamos fundamentalistas.

Nosso testemunho




Recebemos, em nosso post de 11/02/2011, "Teologia e História: a propósito da divergência", os comentários dos nossos leitores Daniel e Matheus, que deram margem a uma rica e salutar troca de ideias. Diante a importância dos temas abordados, achamos por bem reproduzir aqui nossa resposta, pedindo desde já desculpas pela extensão do texto. :-)

* * *

Prezados Daniel, Matheus e demais leitores,

Diante do comentário tão minucioso do Daniel e da observação do Matheus, que tocaram, ambos, em pontos muito importantes e bastante delicados, achamos por bem tomar um tempo para refletir com calma antes de elaborar uma resposta. Daí a demora para darmos um retorno – mas, de todo modo, pedimos desculpas pelo tempo transcorrido.

Daniel, discordamos de você em alguns pontos da sua leitura dos documentos do Magistério, sobretudo os do Concílio Vaticano II; discordamos, sobretudo, da colocação de que nossa parte pecadora não pertence à Igreja. Pelo contrário, o Catecismo afirma que “a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre necessitada de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação. Todos os membros da Igreja, inclusive seus ministros, devem reconhecer-se pecadores. (…) A Igreja reúne, portanto, pecadores alcançados pela Salvação de Cristo, mas ainda em via de santificação” (CIC 827). (Note-se que o termo “Igreja” não se refere somente ao Magistério, mas a todo o corpo de fiéis.)

Portanto, Deus nos acolhe amorosa e incondicionalmente não por nosso merecimento, mas como pecadores que necessariamente sempre somos, e nisso justamente consiste sua Justiça e Misericórdia, e a Gratuidade da nossa Salvação. Nisso somos todos chamados à santidade, vivida através do Amor:

“A Igreja... é, aos olhos da fé, indefectivelmente santa. Pois Cristo, Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito Santo é proclamado o 'único Santo', amou a Igreja como sua Esposa. Por ela se entregou com o fim de santificá-la. Uniu-a a si como seu corpo e cumulou-a com o dom do Espírito Santo, para a glória de Deus.” A Igreja é, portanto, “o Povo santo de Deus”, e seus membros são chamados “santos”. [Note-se que o termo “Igreja” não se refere somente ao Magistério, mas a todo o corpo de fiéis.]

(…) “Já na terra a Igreja está ornada de verdadeira santidade, embora imperfeita.” Em seus membros, a santidade perfeita ainda é coisa a adquirir: “Munidos de tantos e tão salutares meios, todos os cristãos, de qualquer condição ou estado, são chamados pelo Senhor, cada um por seu caminho, à perfeição da santidade pela qual é perfeito o próprio Pai”.

A caridade é a alma da santidade à qual todos são chamados. Ela “dirige todos os meios de santificação, dá-lhes forma e os conduz ao fim”:

“Compreendi que a Igreja tinha um corpo, composto de diferentes membros, não lhe faltava o membro mais nobre e mais necessário (o coração). Compreendi que a Igreja tinha um Coração, e que este Coração ARDIA de AMOR. Compreendi que só o amor fazia os membros da Igreja agirem, que, se o Amor viesse a se apagar, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os Mártires se recusariam a derramar seu sangue... Compreendi que O AMOR ENCERRAVA TODAS AS VOCAÇÕES, QUE O AMOR ERA TUDO, QUE ELE ABRAÇAVA TODOS OS TEMPOS E TODOS OS LUGARES... EM UMA PALAVRA, QUE ELE É ETERNO!”
(CIC 823-826)

Contudo, não acreditamos que o debate em torno do significado do primado da consciência, da historicidade da Revelação, de como a Igreja se transformou ao longo dos séculos ou da necessidade de entender o significado da homossexualidade conforme as especificidades de seu contexto histórico e sócio-cultural seja o mais importante aqui. O ponto central, ao que nos parece, é aquele de que você parte em sua explanação: a possibilidade ou não de “uma visão conciliatória entre a prática do ato homossexual e a doutrina da Igreja”.

É ponto pacífico para nós que a atual posição da Igreja é que a homossexualidade constitui uma “paixão desordenada” e, como tal, os atos homossexuais devem ser evitados. Ou seja, a orientação do Magistério, hoje, é de que o homossexual deve procurar viver uma vida de castidade – castidade, aqui, entendida como celibato. Quanto a isso, não há discussão.

Há que se compreender, porém, como o próprio Daniel muito bem apontou, que apenas no caso dos dogmas - o grau máximo a que uma doutrina ou posição moral pode ser elevada, tornando-se definitiva na compreensão da Igreja – a vinculação entre doutrina e acolhimento é total. E cabe aqui enfatizar que o atual entendimento do Magistério a respeito da homossexualidade, assim como sua atual orientação com relação a como os homossexuais devem lidar com sua sexualidade, devem ser ambos entendidos em termos de orientações e recomendações, uma vez que não são dogmas.

Poderíamos ir além e lembrar que a existência de um grau máximo e definitivo de adesão à doutrina indica que nem tudo, na doutrina católica, tem a mesma obrigatoriedade e permanência. Por exemplo, o caso da salvação. Já foi expresso como doutrina que os de fora da Igreja Católica não poderiam se salvar. Foi doutrina, mas não se mostrou definitiva. O Concílio Vaticano II gerou documentos que abrem a perspectiva da salvação para os que crêem em Cristo, mas não na comunhão da Igreja católica; para os que crêem em Deus, mas não no Cristo; e até para os que não crêem em Deus, mas vivem de acordo com os valores retos da sua consciência.

Poderíamos, de fato, sublinhar e insistir na compreensão de que a Igreja se transforma. Isso é expresso na própria Constituição Apostólica Fidei Depositum, mencionada pelo Daniel, a qual não se cansa de salientar a necessidade e importância da “renovação de pensamentos, de atividades, de costumes e de força moral”, e que o catecismo deve oferecer “uma doutrina sã e adaptada à vida atual dos cristãos”. Do mesmo modo, expõe que a doutrina e os costumes morais devem ser discernidos pelo Magistério a partir do

“ensinamento da Sagrada Escritura, da Tradição viva da Igreja e do Magistério autêntico, bem como a herança espiritual dos Padres, dos Santos e das Santas da Igreja, para permitir conhecer melhor o mistério cristão e reavivar a fé do povo de Deus. Deve ter em conta as explicitações da doutrina que, no decurso dos tempos, o Espírito Santo sugeriu à Igreja. É também necessário que ajude a iluminar, com a luz da fé, as novas situações e os problemas que ainda não tinham surgido no passado.

O Catecismo incluirá, portanto, coisas novas e velhas (cf. Mt 13, 52) porque a fé é sempre a mesma e simultaneamente é fonte de luzes sempre novas. (…) Sirva ele para a renovação, à qual o Espírito Santo chama incessantemente a Igreja de Deus, Corpo de Cristo, peregrina rumo à luz sem sombras do Reino!”


Poderíamos seguir essa linha de argumentação, mas, como dissemos, não é o que consideramos mais primordial aqui. Para nós, como gays e católicos que somos e membros inalienáveis da Igreja, é fundamental não perder de vista a mensagem do Evangelho: “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10, 10). Cristo veio para todos. Cristo veio subverter a lógica legalista dos fariseus, segundo a qual a salvação seria derivada do reto e literal cumprimento da Lei, e só aos que a seguissem à risca estaria reservada. “A lei não é já o decisivo para saber o que espera Deus de nós. O primeiro é 'procurar o reino de Deus e a Sua justiça'”, adverte o teólogo basco Jose Antonio Pagola em artigo que recentemente reproduzimos aqui. “Jesus esforça-se por introduzir nos Seus seguidores outro perfil e outro espírito: 'se a vossa justiça não é melhor que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino de Deus'.” E Pagola conclui:

Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem corretamente, mas não construíram um mundo mais humano.

Temos de escutar bem as palavras de Jesus: «Não vim abolir a Lei e os profetas, mas dar plenitude». Não veio atirar por terra o patrimônio legal e religioso do antigo testamento. Veio para «dar plenitude», a alargar o horizonte do comportamento humano, a libertar a vida dos perigos do legalismo.

O nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como os vivia Jesus: procurando esse mundo mais justo e fraterno que quer o Pai.
[A esse respeito, v. CIC 1963]

Esse sempre foi e continua sendo, passados dois milênios, o cerne da doutrina oficial da Igreja: o Amor que a todos vem redimir e salvar.

É por isso que o Diversidade Católica tem por missão “promover e difundir a Boa Nova de Jesus Cristo e a participação no Reino de Deus com a partilha da experiência do amor de Deus junto a todos os fiéis tradicionalmente excluídos do corpo eclesial em virtude de sua identidade e/ou orientação sexual”. Trabalhamos pela conciliação das identidades gay e católica porque nos reconhecemos tão santos e pecadores como qualquer outra pessoa, independente de sua orientação sexual. Longe de atacar a Igreja à qual pertencemos, trabalhamos sempre para salientar que a mensagem dessa Igreja tão incompreendida é difundir a Boa Nova do Amor de Cristo, que a todos acolhe e inclui. Com efeito, como nota o teólogo espanhol José María Castillo, no artigo que publicamos aqui sobre a “escandalosa tolerância de Jesus”,

Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade, Jesus foi tolerante com os publicamos e pecadores, com as mulheres e com os samaritanos, com os estrangeiros, com os endemoniados, com as multidões dos gentios (óchlos), uma palavra dura que designava a “plebe que não conhecia a Lei e era maldita”, no juízo dos sumos sacerdotes e dos fariseus observantes (Jo 7, 49; cf. 7, 45).

E é curioso, mas essa gente é a que aparece constantemente acompanhando a Jesus, escutando-o, buscando-o... Os relatos dos Evangelhos são eloquentes neste ponto concreto e repetem muitas vezes que o “gentio”, a “multidão”... buscava a Jesus, que o ouvia, que estava perto dele. E aquela mistura de Jesus com os “gentios” chegou a ser tão angustiosa, que até a família de Jesus chegou a pensar que ele havia perdido a cabeça (Mc 3, 21). Jesus compartilhava mesa e toalha com os pecadores, o que dava pé a murmurações por causa de semelhante conduta (Lc 15, 1s).


Por isso, Matheus, respeitosamente discordamos de você quanto à homossexualidade ser um “pecado grave, violação do sexto mandamento”. Entendemos que você se referiu a pecar contra a castidade. Mesmo que fizéssemos uma interpretação muito literal e legalista da doutrina – um tipo de leitura da qual, diga-se de passagem, esperamos já ter deixado claro que divergimos – e considerando a atual recomendação do Magistério quanto à observação da continência pelos gays, levando uma vida sexual ativa não estaríamos pecando mais contra a castidade do que pessoas divorciadas, pessoas recasadas, pessoas que têm relações sexuais fora do casamento, pessoas que fazem uso de camisinha ou outros preservativos ou pessoas que utilizam qualquer método anticoncepcional que não a chamada "tabelinha" ou a abstinência, dentro ou fora do casamento. Não estaríamos pecando mais contra a castidade, em última instância, do que qualquer pessoa que faz sexo sem ter a procriação em vista.

Ainda que considerássemos o ato homossexual como desordenado em si mesmo, como sugere o Catecismo, ou mesmo pecaminoso – o que NÃO corresponde à posição do Magistério, visto que “desordenado” e “pecaminoso” são conceitos distintos – há que se levar em consideração, Matheus, o fato de que, consultando o verbete “pecado” no índice do Catecismo, o primeiro subitem citado é “Amor mais forte que o pecado”, que remete ao trecho sobre o perdão:

Não há limite nem medida a esse perdão essencialmente divino. Tratando-se de ofensas (...), de fato somos sempre devedores: “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo” (Rm 13, 8). A Comunhão da Santíssima Trindade é a fonte e o critério de toda relação. Esta comunhão é vivida na oração, sobretudo na Eucaristia:

Deus não aceita o sacrifício dos que fomentam a desunião; Ele ordena que se afastem do altar para primeiro se reconciliarem com seus irmãos: Deus quer ser pacificado com orações de paz. Para Deus, a mais bela obrigação é nossa paz, nossa concórdia, a unidade no Pai, no Filho e no Espírito Santo de todo o povo fiel.
(CIC 2844-2845)

De todo modo, porém, não é esse em absoluto o nosso entendimento. Primeiramente, levando-se em consideração o fato de que a atual posição do Magistério com relação à homossexualidade não constitui um dogma, como já expusemos, e, portanto, não requer adesão irrestrita para caracterizar-nos como membros da Igreja, necessitamos, para respeitar nossas consciências, dar o nosso sempre respeitoso testemunho de que não vivemos nossa forma de amar como “intrinsecamente desordenada” ou fechada ao dom da vida (CIC 2357). Pelo contrário, observamos justamente que também entre nós “'os atos com os quais os cônjuges se unem íntima e castamente são honestos e dignos. Quando realizados de maneira verdadeiramente humana, significam e favorecem a mútua doação pela qual os esposos se enriquecem com o coração alegre e agradecido.' A sexualidade é fonte de alegria e de prazer” (CIC 2362).

Para respeitar nossas consciências, necessitamos dar nosso testemunho de que vivemos, sim, uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira (CIC 2357). Vivemos, com nossos esposos e esposas, os mesmos desafios e recebemos as mesmas graças de qualquer casal, e nosso testemunho é dado com nossas próprias vidas.

Divergimos nesses pontos não porque pretendamos ir contra a Igreja ou seu Magistério. Nada poderia estar mais longe da verdade. Damos nosso testemunho por amor à Verdade e à Igreja de Cristo, para que através desse testemunho a Igreja possa continuar sua jornada de construção do Reino e, peregrinos com ela, caminhemos juntos.

Segundo, mesmo ainda recomendando o celibato, o Magistério reconhece que “um número não negligenciável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. (…) Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida” (CIC 2358); ou seja, somos tão chamados à santidade quanto os demais membros da Igreja de Cristo, e não há nenhuma justificativa para que sejamos excluídos da Igreja, da participação na vida de nossas respectivas comunidades e, muito menos, dos sacramentos.

Entretanto, e é este o cerne da nossa atuação, verificamos que a prática muitas vezes se afasta do reto cumprimento das orientações do Magistério no sentido do acolhimento e do respeito aos gays. Infelizmente, Matheus, muitos de nós viveram em suas comunidades situações de exclusão por serem gays. Muitos de nós, mas não todos, receiam revelar-se gays aos seus amigos e familiares por medo da rejeição, e vivem a violência de terem de viver escondidos. Muitos de nós, mas não todos, ao se revelarem gays, foram de fato rechaçados por amigos e familiares, pelo seu pároco e pela comunidade. Alguns de nós viveram situações de humilhação; em alguns casos, publicamente. Alguns de nós, ao se revelarem gays, foram destituídos de suas funções na comunidade, embora até então fossem considerados modelos de conduta e vida cristã. Alguns de nós foram excluídos dos sacramentos, ou se excluem dos sacramentos, por se sentirem julgados e condenados por seus amigos, familiares, párocos e comunidades - ou, pior, pelo próprio Deus; por ouvirem e acreditarem que são irremediáveis pecadores e, por isso, menos merecedores do Amor do Pai. Essa crença é causa de imenso sofrimento para multidões de nós, com efeitos devastadores, que muitas vezes chegam ao absurdo do suicídio. A título de ilustração, remetemos aos casos narrados no documentário “Assim me diz a Bíblia” e no filme “Preces para Bobby”, duas de milhares de histórias tragicamente reais.

Então, sim, Matheus, respondendo sua pergunta, conhecemos muitos casos de homofobia e violência física, psicológica e social justificada por crenças religiosas, sobretudo cristãs. A mais evidente delas, aliás, se traduz no fato de que, no Brasil de hoje, um enorme número de cidadãos tem negada a garantia de seus direitos civis com base em argumentos de cunho religioso. A mistura de religião e política leva a distorções perversas, como a alegação de que o asseguramento dos direitos civis dos gays constituiria uma ameaça à liberdade religiosa. Nada mais falso: somente reforçando a separação entre Igreja e Estado teremos, todos, nossos direitos assegurados, inclusive e sobretudo o direito às liberdades de crença e culto.

Porém, a ameaça mais grave oferecida pela homofobia justificada por argumentos religiosos é justamente a corrupção e distorção dos valores mais caros à doutrina cristã e católica, representados, em última instância, pelos mandamentos maiores: “Amai-vos uns aos outros, e ao próximo como a ti mesmo”.

Esperamos dar testemunho de que, pecador ou não, ninguém deve ser excluído. Esperamos dar testemunho da gratuidade da Salvação e da incondicionalidade do Amor do Pai, independente das faltas e limitações inerentes a todo o humano. É por isso, Daniel, e por isso, Matheus, que trabalhamos.

A paz de Cristo esteja sempre com vocês.

Equipe Diversidade Católica

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A escandalosa tolerância de Jesus

Ilustração: Patrick Hruby

“Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em seu blog Teología sin Censura, 06-02-2011. A tradução é do Cepat. Reproduzido via IHU.

Eis o artigo.

Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade. Jesus foi tolerante com os publicamos e pecadores, com as mulheres e com os samaritanos, com os estrangeiros, com os endemoniados, com as multidões dos gentios (óchlos), uma palavra dura que designava a “plebe que não conhecia a Lei e era maldita”, no juízo dos sumos sacerdotes e dos fariseus observantes (Jo 7, 49; cf. 7, 45).

E é curioso, mas essa gente é a que aparece constantemente acompanhando a Jesus, escutando-o, buscando-o... Os relatos dos Evangelhos são eloquentes neste ponto concreto e repetem muitas vezes que o “gentio”, a “multidão”... buscava a Jesus, que a ouvia, a que estava perto dele. E aquela mistura de Jesus com os “gentios” chegou a ser tão angustiosa, que até a família de Jesus chegou a pensar que ele havia perdido a cabeça (Mc 3, 21). Jesus compartilhava mesa e toalha com os pecadores, o que dava pé a murmurações por causa de semelhante conduta (Lc 15, 1s).

Jesus sempre defendeu as mulheres, por mais que fossem mulheres pouco exemplares. Até chegar a dizer que os publicanos e as prostitutas entravam antes que os sumos sacerdotes no Reino de Deus (Mt 21, 31). Jesus defendeu uma famosa prostituta em casa de um conhecido fariseu (Lc 7, 36-50). Como defendeu o banho de perfume que Maria vez na ceia de homenagem que fizeram a Jesus (Jo 12, 1-8). Sabemos que, quando ia de povoado em povoado pela Galileia, o acompanhavam não apenas os discípulos e apóstolos, mas também muitas mulheres, entre elas a Madalena, da qual havia expulsado sete demônios (Lc 8, 1-3). Jesus sempre se colocou do lado dos cismáticos e desprezados samaritanos, até colocar como exemplo de humanidade um deles, frente à dureza de coração do sacerdote (Lc 10, 30-35).

Com isso, há elementos suficientes para se ter uma ideia do “escandaloso” que devia ter sido a tolerância de Jesus. Ser tolerante com os que vivem e pensam como cada um vive e pensa, isso não é senão senso comum. O problema está em saber com o que temos que ser tolerantes. E que coisas não se deve tolerar. Evidentemente, tocamos um tema extremamente difícil de precisar e delimitar com exatidão. Por isso, entendo que haja pessoas que entram no blog e expressam seus desacordos com o que eu escrevo. Entendo-os perfeitamente. E me parece que é bom que todo aquele que entrar neste blog se sinta com liberdade para dizer o que pensa, contanto que isso seja feito com argumentos e razões, nunca agredindo ou humilhando a quem não se ajusta com os meus pontos de vista. Mas com isso não tocamos no fundo do problema.

Eu creio que tudo depende daquilo que para cada um é “intocável”. Dado que estamos em um blog de teologia, a questão que, no meu modo de ver, teria que ser enfrentada é a seguinte: do ponto de vista do Evangelho, “o intocável” é “o religioso” ou é “o humano”? Penso que é fundamental, para um crente em Jesus Cristo, ter bem colocada e bem resolvida esta pergunta. Sabemos de sobra que, por salvaguardar os direitos da religião, às vezes, não se respeitam os direitos humanos. Por defender um dogma, se queimou o herege. Como por assegurar um critério moral, se meteu na prisão o homossexual ou se apedreja uma adúltera. É sintomático que os enfrentamentos, que, segundo os Evangelhos, Jesus teve e manteve, foram com pessoas muito religiosas, ao mesmo tempo que se deu bem com os grupos humanos que a religião depreciava ou perseguia. É evidente que, para Jesus, sua relação com o Pai do Céu era a questão central. Mas o que acontece é que Jesus entendia o Pai do Céu de forma que esse Pai não fazia diferenças. E por isso é o Pai que faz brilhar o sol sobre bons e maus; e manda a chuva sobre justos e pecadores (Mt 5, 45). Porque é humano necessitar do sol e necessitar da chuva. Coisas que, pelo visto e a juízo de Jesus, são mais que intocáveis que a “bondade” de uns ou a “maldade” de outros.

Que tudo isto entranha seus perigos? Sem dúvida alguma. Mas, pelo menos, me parece que é muito mais perigoso dividir-nos e enfrentar-nos por motivos religiosos, de forma que tais motivos justifiquem as mil intolerâncias que tornam a vida tão desagradável e até pode ser que cheguem a torná-la simplesmente insuportável. Isso prejudica a todos. E, além disso, faz mal – e muito – à religião. Por que, então a religião se tornou tão odiosa para não poucas pessoas, muitas das quais sabemos que são pessoas honradas? As religiões terão que pensar este assunto. E terão que fazê-lo urgentemente e com toda honestidade, se é que não querem ser atropeladas pela história ou abandonadas nas valetas dos muitos caminhos deste mundo.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (3): o dogma cristão evolui ao longo da História


Reproduzo abaixo a terceira parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus (na quarta-feira passada), e a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na sexta, reflito neste trecho sobre a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação.

Esta pertença intrínseca do divino ao humano e vice-versa, que faz que chamemos a nossa história de “História da Salvação”, não é algo que está presente só no passado, registrado na Sagrada Escritura, mas é ainda hoje uma realidade. Isso nos obriga, enquanto Igreja, a nos debruçarmos sobre todas as realidades humanas e não só nos perguntar: “Como estas realidades podem ser iluminadas por Deus, pelo evangelho?” mas, também: “O que essas experiências nos falam, nos mostram sobre Deus”?

E aqui nos deparamos com mais um vício mental muito comum no nosso cristianismo. De que maneira algo inédito, pode, de fato, nos dizer também algo novo sobre Deus, sobre a vida? Isto pode acontecer?

Uma primeira, e impensada, resposta seria negativa. Não há nada de novo a respeito de Deus. Tudo que precisamos saber sobre ele se encontra na Revelação e esta está encerrada desde a morte do último apóstolo.

O que caberia às gerações subseqüentes à apostólica seria interpretar as novas questões que surgem e buscar uma resposta na Revelação. E este é de fato o processo que mais ocorre. A Igreja se volta para os princípios fundamentais, as verdades básicas contidas na Revelação tanto escrita quanto oral e procura à luz destas, compreender o que surge de novo.

No entanto, considerando a própria história da Igreja, por exemplo, no que diz respeito aos dogmas, não se pode concluir que esta interpretação do contemporâneo a partir dos dados objetivos já conhecidos da Revelação seja a única forma de crescimento no conteúdo da doutrina.

O teólogo alemão contemporâneo Karl Rahner (1904-1984) explica como pode haver uma verdadeira evolução no dogma cristão, sem ser fruto de uma mera aplicação dos dogmas antigos*.

A explicação que ele nos dá parte de uma comparação entre palavra humana e palavra divina. Quando um homem diz algo, a partir do momento em que é dito, quando a mensagem é ouvida por outros, ele já não tem nenhum poder sobre ela. O que foi dito toma rumos, ganha interpretações que não dependem mais da vontade e não estão de nenhuma forma sobre o domínio deste que disse tal palavra.

Com Deus é diferente. Ele é absolutamente consciente dos rumos que sua palavra toma ao longo da história. A palavra de Deus nunca se fecha, nem é “dita totalmente”. Mas, na medida em que novos contextos a provocam, ela se desdobra em sentidos que, se nem mesmo o hagiógrafo (autor sagrado) poderia sabê-los todos, estes não eram desconhecidos por Deus.

É justamente por isso que a Revelação é sempre contemporânea. Não é uma palavra dirigida a uma época, e sim aos homens, que nunca existem em geral, mas sempre inseridos em contextos específicos de cultura que moldam a maneira como pensam e as experiências que possuem da vida. É sempre aos homens de “hoje” a que Deus se dirige, retirando do baú da Revelação coisas novas e velhas (Mt 13,52 ).

Também as questões que hoje nos afligem e questionam, aquelas mais importantes dos nossos tempos, as mudanças na maneira de sentir e viver provocam a palavra de Deus, tanto para se deixar iluminar por elas, por aquilo que já sabemos dessa palavra divina, quanto para trazer à tona esta palavra divina que até agora estava já comunicada na Revelação, mas não ainda escutada por nós, já que ainda não havíamos formulado a pergunta que a desencadearia. Ao dado da Revelação já presente, mas ainda não conhecido, e que aflora num determinado contexto cultural, Rahner chama de dado "comunicado virtualmente". Está lá, ainda que precise a compreensão de uma determinada época para chegar até o nosso conhecimento.

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* Karl Rahner. O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas. 1970.

Volatilidade: interioridade e alteridade no mundo de hoje

Ilustração: Leah Giberson

Reproduzimos abaixo um artigo de Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, publicado originalmente no site do Amai-vos. Os grifos são nossos.

A palavra volátil quer dizer “que voa, que tem asas”. Assim olhada à primeira vista, encanta a imaginação e a sensibilidade. Quem já não desejou voar e ganhar espaços infinitos, dependente apenas de suas asas? No entanto, em seu sentido figurado, a evocação não é tão positiva. Volátil é alguém cuja opinião ou ponto de vista muda com facilidade; inconstante, volúvel; que não é firme ou permanente; inconstante, mutável.

A palavra parece-nos adequada para definir as relações humanas hoje em dia. São, em sua maioria, relações sem firmeza, sem compromissos em longo prazo, sem permanência e portanto, carentes ou vazias de sentido. Mudam com extrema facilidade Voláteis, portanto.

Relações voláteis geram identidades igualmente voláteis. Incertas. Mutantes. Formam-se a partir delas personalidades auto-referenciadas, de uma autonomia não livre, mas compulsiva. São além disso identidades temporárias, que podem ser apagadas e substituídas por outros rótulos. A memória, atrofiada pelo ritmo da vida líquida pós-moderna, ensina que esquecer é o melhor, a fim de poder reescrever na lousa apagada uma nova identidade. Hoje me auto compreendo assim, amanhã já será diferente. São igualmente identidades plurais, abertas, sem escolhas ou decisões que empenhem a vida.

Os vínculos admitidos são aqueles que cabem nas redes, como Facebook, Orkut, etc. Ali não se depende de relações afetivas que pesam e tiram mobilidade. E quando a comunicação não mais interessar, pode-se cortá-la com a ligeireza de um click. E novamente mergulhar na mais profunda solidão e vazio de sentido a que este estado de coisas condena o sujeito pós-moderno. A única relação que não o ameaça é aquela que ele estabelece com o seu eu, convertido no mortal espelho de Narciso. Voltar-se para si mesmo é a única instancia dotada de certa permanência em um mundo complexo, incerto e inevitável.

A interioridade humana hoje vai se convertendo em um novo paradigma emergente. Trata-se, sem dúvida, de uma dimensão constitutiva do ser humano. O que se dá, no entanto, de fato, é um estreitamento da interioridade, que se vive em grande medida pelo fluxo sempre em movimento das sensações que absorvem, não favorecendo o encontro profundo com o próprio eu, e por conseguinte tampouco com o outro.

Por um lado, trata-se de um sintoma extremamente positivo, uma vez que denota o advento da já iniciada recuperação do espiritual como dimensão de importância iniludível na vida humana. Os seres humanos de hoje experimentam, de novo, aquilo que Santo Agostinho escreveu em seu memorável livro das Confissões: “Eu não amava ainda e amava amar: buscava o que poderia amar, amando amar”.

Por outro lado, esse voltar-se para dentro de si mesmo pode incluir e efetivamente inclui a tentação de esconder-se em si mesmo e terminar não conseguindo daí sair . E a conseqüência é o estreitamento da própria interioridade que tem como resultado o fechamento ao outro. E uma terrível e desesperadora solidão.

Os postos instáveis de trabalho nas grandes empresas, a convivência em espaços protegidos pelo medo àquilo que possa chegar desde fora, os espetáculos maciços de diversão, os transportes que levam de um lugar a outro incontáveis pessoas que viajam juntas sem encontrar-se, propiciam conexões funcionais e passageiras, que não deixam rastro na pessoa que se desloca sem pausa pelo mundo líquido.

O vazio que isto gera já é bastante para denunciar que o ser humano é constituído pelo primado da alteridade. Apenas nos olhos do outro vejo quem sou e descubro minha identidade que já não pode dispensar a diferença do outro para autocompreender-se. A intimidade do sujeito humano só existe habitada pela presença de um Mistério.

A volta à interioridade como paradigma não pretende ser, portanto, um ensimesmamento do eu. Mas sim a condição indispensável para o reconhecimento da Presença que habita o humano. E esse reconhecimento, por sua vez, exigirá da pessoa humana um êxodo, uma saída de si, em direção ao outro, humano e divino, em relação com o qual é imperioso entrar para re-encontrar-se e re-conciliar-se com sua identidade perdida. A volatilidade é inimiga desse fundamental encontro marcado desde toda a eternidade.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A propósito do Pai Nosso (2)



Damos hoje continuidade à proposta iniciada no domingo passado de publicar, em partes, a reflexão de Simone Weil sobre a oração do Pai Nosso. Para meditar, orar e, esperamos, aprofundar a fé. Um bom domingo a todos!

Seja feita a vossa vontade
Nós nunca estamos absoluta e infalivelmente certos da vontade de Deus, a não ser em relação ao passado. Todos os acontecimentos já sucedidos, quaisquer tenham sido, estão de acordo com a vontade do pai Todo-Poderoso. Isto está implícito na noção de onipotência. O futuro também, tal como venha a ser, uma vez consumado, o terá sido de acordo com a vontade de Deus. Não podemos acrescentar nem subtrair nada a esta conformidade. Então, após um apelo do desejo (venha a nós o vosso reino) em direção ao possível, uma vez mais pedimos aquilo que é (seja feita a vossa vontade). Mas não mais uma realidade eterna como é a santidade do Verbo. Aqui o objeto de nossa demanda é aquilo que se produz no tempo. Mas pedimos a conformidade infalível e eterna daquilo que se produz no tempo com a vontade divina. Depois de ter, pelo primeiro pedido, arrancado o desejo ao tempo para aplicá-lo ao eterno, e tê-lo assim transformado, nós retomamos este desejo, tornado ele próprio, de certa forma eterno, para aplicá-lo de novo ao tempo. Então nosso desejo rasga o tempo para encontrar atrás a eternidade. É aquilo que se passa quando sabemos fazer de todo acontecimento sucedido, qualquer tenha sido ele, um objeto do desejo. Eis aí algo totalmente diferente da resignação: a palavra aceitação mesma é muito fraca. É preciso desejar que tudo que aconteceu tenha sucedido, e nada além disto. Não porque o que tenha acontecido seja bom aos nossos olhos, mas porque Deus o permitiu, e porque a obediência do curso de acontecimentos a Deus é em si própria um bem absoluto.

Assim na terra como no céu
Esta associação de nosso desejo à vontade toda-poderosa de Deus deve estender-se às coisas espirituais. Nossas ascensões e quedas espirituais e aquelas dos seres que amamos mantém um relacionamento com o outro mundo, mas são também acontecimentos que se produzem aqui embaixo, no tempo. Neste sentido, cada detalhe neste imenso mar de acontecimentos está articulado com o todo de um modo conforme à vontade de Deus. Posto que nossas faltas anteriores já foram cometidas e nós devemos desejar que elas tenham sido cometidas. Devemos estender este desejo ao futuro, considerando o dia em que ele tenha se convertido em passado. Esta é uma correção necessária à demanda de que o reino de Deus venha a nós. Devemos abandonar todos os desejos por aquele da vida eterna, mas precisamos desejar a vida eterna, ela própria, com desprendimento. O apego à salvação é ainda mais perigoso que os outros. É preciso pensar na vida eterna como pensamos na água quando mortos de sede, e ao mesmo tempo desejar para si e para os seres queridos a privação eterna desta água, mais do que estar plenos dela contra a vontade de Deus, se tal coisa fosse concebível. As três demandas precedentes estão relacionadas às três Pessoas da Trindade, o Filho, o Espírito e o Pai, e também às três partes do tempo: o presente, o futuro e o passado. As três demandas seguintes se referem mais diretamente às três partes do tempo em outra ordem, presente, passado, futuro.

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Texto original:

WEIL, Simone. À propos du "Nôtre Père", In Attente de Dieu. Paris: Flamarion, 1996. Tradução de Elisa Cintra.

Tradução publicada originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil
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