Mostrando postagens com marcador comportamento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador comportamento. Mostrar todas as postagens

domingo, 2 de novembro de 2014

Deus é gay?


Nunca antes na história da Igreja um papa ousou, como Francisco, colocar a questão da sexualidade no centro do debate eclesial: homossexualidade, casais recasados, uso de preservativo etc. O Sínodo da Família, realizado no Vaticano, só dará sua palavra final sobre esses temas em outubro de 2015, quando voltará a se reunir.

Quem, como eu, transita há décadas na esfera eclesiástica sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos. Por que não gozarem, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de se assumir como tal? Devem permanecer “no armário”, vitimizados pela Igreja e, supostamente, por Deus, por culpa que não têm?

É preciso reler o Evangelho pela ótica gay, como pela feminista, já que a presença de Jesus entre nós foi lida pelas óticas aramaica (Marcos); judaica (Mateus); pagã (Lucas); gnóstica (João); platônica (Agostinho) e aristotélica (Tomás de Aquino).

A unidade na diversidade é característica da Igreja. Basta lembrar que são quatro os evangelhos, não um só: quatro enfoques distintos sobre Jesus. Até a década de 1960, predominava no Ocidente uma única ótica teológica: a europeia, tida como “a teologia”. O surgimento da Teologia da Libertação, com a leitura da Palavra de Deus pela ótica dos pobres, causa ainda incômodo aos que consideram a ótica eurocentrada como universalmente ortodoxa.

Diante dos escândalos de pedofilia, dos 100 mil padres que abandonaram o sacerdócio por amor a mulheres, e da violência física e simbólica aos gays, Francisco ousa se erguer contra o cinismo dos que se arvoram em “atirar a primeira pedra.”

Como Jesus, a Igreja não pode discriminar ninguém em razão de tendência sexual, cor da pele ou condição social. O que está em jogo é a dignidade da pessoa humana, o direito de casais gays serem protegidos pela lei civil e educarem seus filhos na fé cristã, o combate e a criminalização da homofobia, um grave pecado. A Igreja não pode continuar cúmplice e, por isso, acaba de superar oficialmente a postura de considerar a homossexualidade um “desvio” e “intrinsecamente desordenada”.

A dificuldade de a Igreja Católica aceitar a plena cidadania LGTB se deve à sua tradição bimilenar judaico-cristã, que é heteronormativa. Por isso, os conservadores reagem como se o papa traísse a Igreja, a exemplo do que fizeram no passado, quando se recusaram a aceitar a separação entre Igreja e Estado; a autonomia das ciências; a liberdade de consciência; as relações sexuais, sem fins procriativos, dentro do matrimônio; a liturgia em língua vernácula.

Deus é gay? “Deus é amor”, diz a Primeira Carta do apóstolo João, e acrescenta “o amor é de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.” E, se somos capazes de nos amar uns aos outros, “Deus permanece em nós.”

Por ser a presença de Deus entre nós, Jesus transitou, sem discriminação, entre o mundo dos “pecadores” e dos “virtuosos”. Não apedrejou a adúltera; não fugiu da prostituta que lhe enxugou os pés com os cabelos; não negou a Madalena, que tinha “sete demônios”, a graça de ser a primeira testemunha de sua ressurreição. Jesus também não se recusou a dialogar com os “virtuosos” — aceitou jantar na casa do fariseu; acolheu Nicodemos na calada da noite; dialogou sobre o amor samaritano com o doutor da lei; propôs ao rico que, “desde jovem” abraçava todos os mandamentos, a fazer opção pelos pobres.

Sobretudo, ensinou que não é escalando a montanha das virtudes morais que alcançamos o amor de Deus. É nos entregando a esse amor, gratuito e misericordioso, que logramos fidelidade à Palavra.

Fé, confiança e fidelidade são palavras irmãs. Têm a mesma raiz. E a vida ensina que João é fiel a Maria, e vice-versa, não porque temem o pecado do adultério, e sim porque vivem em relação amorosa tão intensa que nem cogitam a menor infidelidade.

- Frei Betto

Fonte

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Nota de esclarecimento e repúdio à homofobia na disputa eleitoral


Nós, cristãos católicos LGBT, reunidos na Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, expressamos nossa perplexidade e indignação diante da manifestação homofóbica de um dos candidatos à Presidência da República no debate transmitido pela Rede Record, na TV aberta e com transmissão nacional, no último domingo (28) à noite; do total silêncio dos demais candidatos em relação às suas palavras; e do riso audível da plateia presente no estúdio da emissora durante sua fala.

Como LGBTs, gostaríamos de esclarecer que a homofobia não se reduz à rejeição irracional ou ódio em relação aos homossexuais; compreende igualmente toda manifestação arbitrária que qualifica o outro como contrário, inferior ou anormal e, devido à sua (suposta) diferença em relação a determinado padrão preponderante, alija essa pessoa de sua humanidade, dignidade e personalidade. Portanto, desqualificar alguém a partir da desqualificação de uma categoria em que o indivíduo (supostamente) se insere é homofobia.

Do mesmo modo, reduzir todo o rico espectro afetivo e sexual de um grupo de seres humanos, como fez o referido candidato no debate de domingo; equiparar, sem nenhuma fundamentação em dados concretos, homossexualidade a pedofilia; classificar a homossexualidade como doença, numa visão patologizante ultrapassada e destituída de qualquer base científica; estimular o "enfrentamento" dessa população pela "maioria", contrariando o princípio democrático de proteção e asseguramento de direitos de todos, inclusive (e sobretudo) das minorias; sugerir que os homossexuais sejam "tratados" em "algum lugar distante", remetendo a práticas famigeradas de internação e isolamento que ainda é preciso combater - tudo isso é homofobia. Tudo isso constitui a tão danosa violência psicológica a que todos nós, LGBTs, estamos submetidos ao longo de nossas vidas. Tudo isso dá corpo à violência simbólica e social que se abate sobre nós diariamente e ganha expressão material nos números assustadores das agressões, tortura e assassinatos com requintes de crueldade que, em nosso país, atingem não só a população LGBT, mas também aqueles indivíduos percebidos como LGBTs - violência que, só neste ano de 2014, já matou pelo menos 216 pessoas pelo simples fato de serem LGBT.

Como cidadãos, gostaríamos de salientar que o direito à liberdade de expressão é sempre antecedido pelo direito de cada pessoa a ser respeitada em sua dignidade. Ninguém tem o direito de propalar racismo, misoginia nem homofobia em público, na medida em que isso fere a dignidade de outras pessoas e reproduz e incentiva, direta ou indiretamente, a violência física e psicológica.

Como cristãos, lamentamos que o cristianismo, em qualquer vertente, se veja sob a ameaça de se esvaziar da sua riqueza simbólica e espiritual, perdendo qualquer traço de humanismo e sendo reduzido a mera ideologia moral e instrumento de normatização social, tornando tantos crentes incapazes de qualquer solidariedade, empatia e identificação com a humanidade de seus próximos.

Como católicos, expressamos nosso sonho com uma Igreja efetivamente católica, isto é, universal; uma Igreja de portas abertas para todos, como diz o Papa Francisco, pronta a acolher a todos em suas diferenças, aberta ao diálogo e atenta à sua vocação de defensora da vida e da dignidade de toda e cada pessoa humana.

Em Jesus Cristo, Autor da Vida, somos todos chamados à caminhada-construção de um mundo de amor, justiça e paz. Convidamos todas as pessoas de boa vontade, em particular os cristãos, a refletirem sobre o preconceito e a violência para com as pessoas LGBT e a se empenharem na sua superação, guiados pelo auxílio do Senhor, que nos ensina a amar uns aos outros, e iluminados por Maria, mãe intercessora de todos nós.

Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT
Diversidade Católica do Rio de Janeiro (DCRJ); Grupo de Ação Pastoral da Diversidade - São Paulo;
Diversidade Católica de Belo Horizonte; Diversidade Cristã de Brasília; Diversidade Católica do Paraná (DCPR); Diversidade Católica Ribeirão Preto/SP e região (DCRP); Diversidade Católica de Passos (MG); Pastoral da Diversidade - PERNAMBUCO; núcleos em formação em Itajaí (SC), Anápolis (GO) e Fortaleza (CE)

2 de outubro de 2014

domingo, 20 de julho de 2014

Some gays are christians. Get over it! ;-)



E, num desses papos deliciosos que nascem nos comentários na internet, nosso querido Murilo comentou a postagem do Markos sobre como LGBTs não-religiosos às vezes tratam a religiosidade de outros gays, que reproduzimos aqui. E, claro, não podemos deixar de publicar as palavras do Murilo aqui também:

Nos últimos tempos, tenho tido recorrentes sofrimentos e embates relacionados a esse tipo de coisa. Outro dia vieram me dizer, com essas exatas palavras, que eu era tipo "judeu nazista". Às vezes são pessoas que conhecem todas as minhas posições e toda a minha visão aberta (e toda a minha atuação política) envolvendo sexualidades, identidade de gênero, direitos sexuais, direitos reprodutivos, feminismo e tudo mais... Pessoas que, apesar de tudo isso, no imediato momento em que digo que sou católico, deixam de considerar todas estas questões pra me tomar ou como um hipócrita, ou como um traidor, um inimigo. Como eu digo volta e meia: é todo mundo queer, mas quando envolve o sagrado, a política identitária ferve. Ou você é isso, ou é aquilo. Ou você tá com a gente, ou você tá com eles.

Aí vem a hora em que essas pessoas vomitam em cima da gente todo o histórico de barbáries que a Igreja cometeu, e reiteram fervorosamente o quanto a Igreja é violenta, homofóbica, transfóbica, misógina, ignorando que eu, que estou dentro dela, sei mais do que ninguém a respeito dessas violências. Porque eu as sofro cotidianamente. Os enfrentamentos são constantes, pra mim. Não preciso que ninguém me fale disso de novo. A questão toda é que a vivência religiosa mecânica e pouco profunda vivida pela maior parte das pessoas (um pouco associada à cultura de proliferação evangélica que temos no Brasil) faz com que muita gente pense que, se eu discordo dos princípios de uma religião, tenho que sair dela e criar a minha. Ou virar agnóstico, "porque tudo bem você ter uma fé, mas você não precisa ter religião". As pessoas tomam as religiões (especialmente as maiores, mais institucionais) como organismos perfeitamente homogêneos, difundem e reiteram o pensamento de que se eu estou numa religião, concordo com tudo o que ela pensa, endosso todas os seus discursos e práticas e não estou aberto para criticá-la. E pior: pensam que eu estou nela JUSTAMENTE por endossar esses discursos e práticas. Dica: Felicianos, Sheherazades e Malafaias pensam e dizem a mesma coisa. Eu, pelo menos, escolho bem de quem discordar.

As pessoas ignoram a rede de vivências que a gente encarna cotidianamente, na nossa paróquia, na nossa comunidade, onde se constituem laços e onde se constrói uma vivência coletiva da fé que é o que realmente importa para a maioria de nós. Nesse contexto, se constroem outras vivências, outros pensamentos, outros afetos, de modo que o discurso ou a doutrina da instituição às vezes são as coisas que importam menos. Falando do meu caso, em particular: eu provavelmente seria um coxinha conservador e teria muitas crises com relação à minha sexualidade se não tivesse vivenciado o que vivenciei na minha pastoral. Vivi em contextos absurdamente reacionários toda a vida (na família, na escola, etc.), sendo que o único oásis de liberdade que eu tive nesse contexto todo foi a Igreja, onde eu conseguia pensar politicamente e coletivamente questões muito novas, inclusive relacionadas à sexualidade. A primeira vez em que eu ouvi falar sobre legislação sobre casamento gay ou sobre adoção por casais do mesmo sexo, foi numa palestra com a assessora jurídica de uma ONG LGBT, durante um curso de Teologia organizado por um movimento católico de esquerda da minha diocese. A primeira vez que eu parei para pensar na minha sexualidade com calma, foi depois de uma conversa com um padre, que veio me dizer que achava que eu era muito livre, mas que precisava encarar os meus medos. E acreditem, essa minha vivência não é tão incomum quanto parece. Ela só é invisibilizada, como qualquer dissidência.

Sair da Igreja, nesses casos, é um caminho que é ambíguo, porque é fácil politicamente, mas é difícil subjetivamente. Difícil porque é uma castração enorme pedir que deixemos essa vivência que organiza a nossa experiência de fé e de tantas outras dimensões da vida. Fácil porque é, de fato, bem mais simples deixar as instituições que não contemplam a nossa experiência, em vez de travar a luta por dentro, né? A questão é que esse não é um caminho eficaz. Se a gente começa a simplesmente abandonar as instituições homofóbicas, ou a condenar todas as vozes dissidentes que existem nelas (e isso vale não só para as igrejas, mas para a academia, para a política, para as mídias), a gente ajuda a fomentar o silenciamento que a própria Igreja está a costumada a provocar, e acaba fazendo exatamente o contrário do que se pretende: a gente contribui para que as igrejas continuem sendo vozes de ódio e fundamentalismo, e vozes cada vez mais fortes. Movimentos como o Diversidade Católica e as igrejas inclusivas, com todas as questões controversas que os envolvem (como em qualquer movimento político), ainda têm o mérito de lutar para que o cristianismo seja uma voz de ódio a menos no mundo, e eu ainda fico sem saber como militantes de toda ordem, do alto de suas consciências críticas, ainda conseguem deslegitimar esses movimentos e negar a importância de suas lutas, taxando-os de inimigos, porque estão "do lado" do opressor. Entendo perfeitamente a reação das pessoas contra a Igreja, até porque, quase sempre, eu compartilho dessa reação, e vivencio o mesmo enfrentamento. O que eu não entendo é que as pessoas neguem o direito à liberdade religiosa, encarnando, por vezes, os mesmos discursos fundamentalistas que dizem combater.

Com relação às religiões de matriz africana, sem dúvida que elas são um espaço beeeeeeem mais aberto que as religiões cristãs para muitas questões (acho que a gente tem muito pra aprender), inclusive para a questão da sexualidade. Mas é uma religião que também tem alguns problemas sérios nesse ponto, que por vezes passam despercebidos na atuação do movimento LGBT, especialmente porque o movimento das religiões afro-brasileiras é um grande parceiro nosso na pauta da laicidade, e a gente nem sempre está disposto a fazer críticas a quem está do nosso lado.

Quero deixar claro que não tô querendo inverter o discurso nem justificar a postura das igrejas cristãs, com o argumento fajuto de que "todo mundo faz". Só que me preocupa essa imagem difundida, de uma abertura muito grande das religiões de matriz africana, que às vezes invisibiliza algumas violências e contribui para que certas opressões sigam silenciosamente. São muito recorrentes, por exemplo, casos de lesbofobia contra as filhas de terreiro, de objetificação de seus corpos negros, por vezes havendo deslegitimação de suas sexualidades numa violência de que nunca se fala. Mesmo a própria aceitação da homossexualidade, por vezes está perpassada pela compreensão de que muitos homens podem ter "alma feminina" por terem orixás femininas como guia - o que envolve, na base, uma confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. Quer dizer... a religião não escapa de algumas questões, e ainda que sejam visivelmente mais abertas, também demandam novas reflexões e políticas sobre gênero e sexualidade. E assim funciona com diversas outras religiões e doutrinas, e a gente poderia gastar mais trinta comentários aqui enumerando isso.

Quando eu pontuo essas questões, reitero, não estou querendo inverter o discurso. O centro do que eu quero levantar não é exatamente a realidade dessa ou daquela religião, mas o fato de ficarmos nessa constante e infrutífera avaliação da legitimidade da pertença das pessoas, especialmente quando são pessoas ligadas à militância. Por vezes, isso ainda é feito sem sequer parar para escutar como cada um negocia e organiza a própria pertença ou a relação com valores institucionais hegemônicos. A gente se desvia do que é importante, e acaba incorrendo nessa hierarquização: "se for sem religião, é melhor; em tal religião pode; em tal religião até pode; mas nessa outra já é vandalismo". E fica parecendo que a nossa militância é feita ATRAVÉS da doutrina religiosa, e não APESAR dela, quando o que ocorre, na maioria das vezes, é justamente o inverso, porque entre a doutrina e o cotidiano há um abismo - não só para LGBTs, mas para religiosos de modo geral. O uso da camisinha por 99% dos católicos está aí pra não me deixar mentir. As pessoas vivem me tomando como um cúmplice do opressor, citando Beauvoir, sendo que às vezes eu me vejo mais como um agente infiltrado, hahaha. Não sei se me fiz entender ou se viajei no pensamento, mas acho que, de maneira geral, a gente precisa de um pouco mais de sororidade, pra começar a se reconhecer como parceiros de luta, sem se importar com o modo como cada um organiza sua fé ou sua religiosidade.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A terceira margem do rio

 

Nosso amigo Markos Oliveira postou ontem em seu perfil no Facebook a reflexão abaixo, que nos pareceu fundamental e reproduzimos aqui. De fato, é doloroso constatar como a violência tende a ensinar violência. Vemos pessoas que pertencem a uma ou mais minorias e são atingidas por exclusões e dilaceramentos de toda ordem muitas vezes permanecerem presas no ciclo da violência e, sem se darem conta, acabarem por reproduzi-la. Porque, diante de tensões e contradições, a lógica da violência e da exclusão e a impossibilidade da conciliação é tudo o que a gente aprendeu, e o lugar de vítimas imoladas onde fomos colocados é tudo o que a gente conhece.

Ainda bem que existem pessoas como o Markos, que de alguma maneira encontraram o caminho para transcender essas oposições. Acharam o caminho do meio, chegaram à terceira margem do rio - e, de lá, acendem fogueiras e acenam com lanternas, tentando mostrar o caminho para os que estão em busca.

Segue o comentário dele:


Infelizmente não é raro eu ver quem diz defender o respeito e a diversidade com um discurso de meio que querer obrigar que LGBTs abandonem sua religiosidade, principalmente se for o cristianismo. Se não obrigar, tratar tais pessoas de forma inferior ou pejorativa o que, pra mim, é uma atitude tão controladora da vida alheia quanto a atitude de fundamentalistas religiosos.

Dizem que tais LGBTs são idiotas, burros, gostam de sofrer por quererem ficar numa religião que os condena e os discrimina, mas é preciso compreender que o direito à liberdade de crença - e de não crença - e para todos e todas, inclusive para LGBTs.

Hoje sou ateu, mas tive criação evangélica. Minha família é admiradora de Malafaias e Felicianos e não foi fácil eu impor a minha vontade para a minha vida.

Eu preferi seguir outros caminhos, mas admiro e muito os LGBTs que permanecem com sua religiosidade e tentam mudar, de dentro, tais fundamentos e instituições, para que um dia sejam respeitosas com a diversidade.

Acredito que o trabalho de grupos como a Diversidade Católica e igrejas evangélicas inclusivas são fundamentais porque as instituições religiosas fazem parte e influenciam nossa sociedade e para que um dia possamos ter uma sociedade que não discrimine LGBTs, é fundamental que se faça um trabalho de educação e inclusão dentro destas instituições, pois os que as frequentam tais instituições não deixam lá dentro seus preconceitos aprendidos dentro delas, eles trazem para a sociedade.
Seguimos juntos, Markinhos... ;-)

domingo, 13 de abril de 2014

“A evangelização, em nosso tempo, só será possível por contágio de alegria”

 
A Mensagem do Santo Padre aos jovens em preparação à 29ª Jornada Mundial da Juventude (13 de abril de 2014, em nível diocesano) está centrada no tema “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). Trata-se da primeira mensagem que o Papa Francisco dirige aos jovens, incorporando-se assim na tradição iniciada pelo beato João Paulo II e continuada por Bento XVI, por ocasião de cada Jornada Mundial da Juventude. Depois da extraordinária JMJ vivida no Rio de Janeiro, no mês de julho de 2013, o Papa retoma seu diálogo com os jovens do mundo e apresenta-lhes os temas das três próximas edições do evento, dando início ao itinerário de preparação espiritual que, ao longo de três anos, levará à celebração internacional, em Cracóvia, em julho de 2016.

Os temas das três próximas JMJ, tomadas das Bem-aventuranças do Evangelho, mostram como o Santo Padre considera esta passagem do Evangelho de Mateus um ponto de referência fundamental para a vida dos cristãos, chamados a fazer dele um programa de vida.

Segue a mensagem, na íntegra.


Mensagem do Santo Padre Francisco para a XXIX Jornada Mundial da Juventude
(Domingo de Ramos, 13 de Abril de 2014)

«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3)

Queridos jovens,

Permanece gravado na minha memória o encontro extraordinário que vivemos no Rio de Janeiro, na XXVIII Jornada Mundial da Juventude: uma grande festa da fé e da fraternidade. A boa gente brasileira acolheu-nos de braços escancarados, como a estátua de Cristo Redentor que domina, do alto do Corcovado, o magnífico cenário da praia de Copacabana. Nas margens do mar, Jesus fez ouvir de novo a sua chamada para que cada um de nós se torne seu discípulo missionário, O descubra como o tesouro mais precioso da própria vida e partilhe esta riqueza com os outros, próximos e distantes, até às extremas periferias geográficas e existenciais do nosso tempo.

A próxima etapa da peregrinação intercontinental dos jovens será em Cracóvia, em 2016. Para cadenciar o nosso caminho, gostaria nos próximos três anos de refletir, juntamente convosco, sobre as Bem-aventuranças que lemos no Evangelho de São Mateus (5, 1-12). Começaremos este ano meditando sobre a primeira: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3); para 2015, proponho: «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8); e finalmente, em 2016, o tema será: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7).

1. A força revolucionária das Bem-aventuranças
É-nos sempre muito útil ler e meditar as Bem-aventuranças! Jesus proclamou-as no seu primeiro grande sermão, feito na margem do lago da Galileia. Havia uma multidão imensa e Ele, para ensinar os seus discípulos, subiu a um monte; por isso é chamado o «sermão da montanha». Na Bíblia, o monte é visto como lugar onde Deus Se revela; pregando sobre o monte, Jesus apresenta-Se como mestre divino, como novo Moisés. E que prega Ele? Jesus prega o caminho da vida; aquele caminho que Ele mesmo percorre, ou melhor, que é Ele mesmo, e propõe-no como caminho da verdadeira felicidade. Em toda a sua vida, desde o nascimento na gruta de Belém até à morte na cruz e à ressurreição, Jesus encarnou as Bem-aventuranças. Todas as promessas do Reino de Deus se cumpriram n’Ele.

Ao proclamar as Bem-aventuranças, Jesus convida-nos a segui-Lo, a percorrer com Ele o caminho do amor, o único que conduz à vida eterna. Não é uma estrada fácil, mas o Senhor assegura-nos a sua graça e nunca nos deixa sozinhos. Na nossa vida, há pobreza, aflições, humilhações, luta pela justiça, esforço da conversão quotidiana, combates para viver a vocação à santidade, perseguições e muitos outros desafios. Mas, se abrirmos a porta a Jesus, se deixarmos que Ele esteja dentro da nossa história, se partilharmos com Ele as alegrias e os sofrimentos, experimentaremos uma paz e uma alegria que só Deus, amor infinito, pode dar.

As Bem-aventuranças de Jesus são portadoras duma novidade revolucionária, dum modelo de felicidade oposto àquele que habitualmente é transmitido pelos mass media, pelo pensamento dominante. Para a mentalidade do mundo, é um escândalo que Deus tenha vindo para Se fazer um de nós, que tenha morrido numa cruz. Na lógica deste mundo, aqueles que Jesus proclama felizes são considerados «perdedores», fracos. Ao invés, exalta-se o sucesso a todo o custo, o bem-estar, a arrogância do poder, a afirmação própria em detrimento dos outros.

Queridos jovens, Jesus interpela-nos para que respondamos à sua proposta de vida, para que decidamos qual estrada queremos seguir a fim de chegar à verdadeira alegria. Trata-se dum grande desafio de fé. Jesus não teve medo de perguntar aos seus discípulos se verdadeiramente queriam segui-Lo ou preferiam ir por outros caminhos (cf. Jo 6, 67). E Simão, denominado Pedro, teve a coragem de responder: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68). Se souberdes, vós também, dizer «sim» a Jesus, a vossa vida jovem encher-se-á de significado, e assim será fecunda.

2. A coragem da felicidade
O termo grego usado no Evangelho é makarioi, «bem-aventurados». E «bem-aventurados» quer dizer felizes. Mas dizei-me: vós aspirais deveras à felicidade? Num tempo em que se é atraído por tantas aparências de felicidade, corre-se o risco de contentar-se com pouco, com uma ideia «pequena» da vida. Vós, pelo contrário, aspirai a coisas grandes! Ampliai os vossos corações! Como dizia o Beato Pierjorge Frassati, «viver sem uma fé, sem um património a defender, sem sustentar numa luta contínua a verdade, não é viver, mas ir vivendo. Não devemos jamais ir vivendo, mas viver» (Carta a I. Bonini, 27 de Fevereiro de 1925). Em 20 de Maio de 1990, no dia da sua beatificação, João Paulo II chamou-lhe «homem das Bem-aventuranças» (Homilia na Santa Missa: AAS 82 [1990], 1518).

Se verdadeiramente fizerdes emergir as aspirações mais profundas do vosso coração, dar-vos-eis conta de que, em vós, há um desejo inextinguível de felicidade, e isto permitir-vos-á desmascarar e rejeitar as numerosas ofertas «a baixo preço» que encontrais ao vosso redor. Quando procuramos o sucesso, o prazer, a riqueza de modo egoísta e idolatrando-os, podemos experimentar também momentos de inebriamento, uma falsa sensação de satisfação; mas, no fim de contas, tornamo-nos escravos, nunca estamos satisfeitos, sentimo-nos impelidos a buscar sempre mais. É muito triste ver uma juventude «saciada», mas fraca.
Escrevendo aos jovens, São João dizia: «Vós sois fortes, a palavra de Deus permanece em vós e vós vencestes o Maligno» (1 Jo 2, 14). Os jovens que escolhem Cristo são fortes, nutrem-se da sua Palavra e não se «empanturram» com outras coisas. Tende a coragem de ir contra a corrente. Tende a coragem da verdadeira felicidade! Dizei não à cultura do provisório, da superficialidade e do descartável, que não vos considera capazes de assumir responsabilidades e enfrentar os grandes desafios da vida.

3. Felizes os pobres em espírito…
A primeira Bem-aventurança, tema da próxima Jornada Mundial da Juventude, declara felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Num tempo em que muitas pessoas penam por causa da crise económica, pode parecer inoportuno acostar pobreza e felicidade. Em que sentido podemos conceber a pobreza como uma bênção?

Em primeiro lugar, procuremos compreender o que significa «pobres em espírito». Quando o Filho de Deus Se fez homem, escolheu um caminho de pobreza, de despojamento. Como diz São Paulo, na Carta aos Filipenses: «Tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens» (2, 5-7). Jesus é Deus que Se despoja da sua glória. Vemos aqui a escolha da pobreza feita por Deus: sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9). É o mistério que contemplamos no presépio, vendo o Filho de Deus numa manjedoura; e mais tarde na cruz, onde o despojamento chega ao seu ápice.

O adjectivo grego ptochós (pobre) não tem um significado apenas material, mas quer dizer «mendigo». Há que o ligar com o conceito hebraico de anawim (os «pobres de Iahweh»), que evoca humildade, consciência dos próprios limites, da própria condição existencial de pobreza. Osanawim confiam no Senhor, sabem que dependem d’Ele.

Como justamente soube ver Santa Teresa do Menino Jesus, Cristo na sua Encarnação apresenta-Se como um mendigo, um necessitado em busca de amor. O Catecismo da Igreja Católica fala do homem como dum «mendigo de Deus» (n. 2559) e diz-nos que a oração é o encontro da sede de Deus com a nossa (n. 2560).
São Francisco de Assis compreendeu muito bem o segredo da Bem-aventurança dos pobres em espírito. De facto, quando Jesus lhe falou na pessoa do leproso e no Crucifixo, ele reconheceu a grandeza de Deus e a própria condição de humildade. Na sua oração, o Poverello passava horas e horas a perguntar ao Senhor: «Quem és Tu? Quem sou eu?» Despojou-se duma vida abastada e leviana, para desposar a «Senhora Pobreza», a fim de imitar Jesus e seguir o Evangelho à letra. Francisco viveu a imitação de Cristo pobre e o amor pelos pobres de modo indivisível, como as duas faces duma mesma moeda.

Posto isto, poder-me-íeis perguntar: Mas, em concreto, como é possível fazer com que esta pobreza em espírito se transforme em estilo de vida, incida concretamente na nossa existência? Respondo-vos em três pontos.

Antes de mais nada, procurai ser livres em relação às coisas. O Senhor chama-nos a um estilo de vida evangélico caracterizado pela sobriedade, chama-nos a não ceder à cultura do consumo. Trata-se de buscar a essencialidade, aprender a despojarmo-nos de tantas coisas supérfluas e inúteis que nos sufocam. Desprendamo-nos da ambição de possuir, do dinheiro idolatrado e depois esbanjado. No primeiro lugar, coloquemos Jesus. Ele pode libertar-nos das idolatrias que nos tornam escravos. Confiai em Deus, queridos jovens! Ele conhece-nos, ama-nos e nunca se esquece de nós. Como provê aos lírios do campo (cf. Mt 6, 28), também não deixará que nos falte nada! Mesmo para superar a crise económica, é preciso estar prontos a mudar o estilo de vida, a evitar tantos desperdícios. Como é necessária a coragem da felicidade, também é precisa a coragem da sobriedade.

Em segundo lugar, para viver esta Bem-aventurança todos necessitamos de conversão em relação aos pobres. Devemos cuidar deles, ser sensíveis às suas carências espirituais e materiais. A vós, jovens, confio de modo particular a tarefa de colocar a solidariedade no centro da cultura humana. Perante antigas e novas formas de pobreza – o desemprego, a emigração, muitas dependências dos mais variados tipos –, temos o dever de permanecer vigilantes e conscientes, vencendo a tentação da indiferença. Pensemos também naqueles que não se sentem amados, não olham com esperança o futuro, renunciam a comprometer-se na vida porque se sentem desanimados, desiludidos, temerosos. Devemos aprender a estar com os pobres. Não nos limitemos a pronunciar belas palavras sobre os pobres! Mas encontremo-los, fixemo-los olhos nos olhos, ouçamo-los. Para nós, os pobres são uma oportunidade concreta de encontrar o próprio Cristo, de tocar a sua carne sofredora.

Mas – e chegamos ao terceiro ponto – os pobres não são pessoas a quem podemos apenas dar qualquer coisa. Eles têm tanto para nos oferecer, para nos ensinar. Muito temos nós a aprender da sabedoria dos pobres! Pensai que um Santo do século XVIII, Bento José Labre – dormia pelas ruas de Roma e vivia das esmolas da gente –, tornara-se conselheiro espiritual de muitas pessoas, incluindo nobres e prelados. De certo modo, os pobres são uma espécie de mestres para nós. Ensinam-nos que uma pessoa não vale por aquilo que possui, pelo montante que tem na conta bancária. Um pobre, uma pessoa sem bens materiais, conserva sempre a sua dignidade. Os pobres podem ensinar-nos muito também sobre a humildade e a confiança em Deus. Na parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14), Jesus propõe este último como modelo, porque é humilde e se reconhece pecador. E a própria viúva, que lança duas moedinhas no tesouro do templo, é exemplo da generosidade de quem, mesmo tendo pouco ou nada, dá tudo (Lc 21, 1-4).

4. … porque deles é o Reino do Céu
Tema central no Evangelho de Jesus é o Reino de Deus. Jesus é o Reino de Deus em pessoa, é o Emanuel, Deus connosco. E é no coração do homem que se estabelece e cresce o Reino, o domínio de Deus. O Reino é, simultaneamente, dom e promessa. Já nos foi dado em Jesus, mas deve ainda realizar-se em plenitude. Por isso rezamos ao Pai cada dia: «Venha a nós o vosso Reino».

Há uma ligação profunda entre pobreza e evangelização, entre o tema da última Jornada Mundial da Juventude – «Ide e fazei discípulos entre todas as nações» (Mt 28, 19) – e o tema deste ano: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5, 3). O Senhor quer uma Igreja pobre, que evangelize os pobres. Jesus, quando enviou os Doze em missão, disse-lhes: «Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento» (Mt 10, 9-10). A pobreza evangélica é condição fundamental para que o Reino de Deus se estenda. As alegrias mais belas e espontâneas que vi ao longo da minha vida eram de pessoas pobres que tinham pouco a que se agarrar. A evangelização, no nosso tempo, só será possível por contágio de alegria.

Como vimos, a Bem-aventurança dos pobres em espírito orienta a nossa relação com Deus, com os bens materiais e com os pobres. À vista do exemplo e das palavras de Jesus, damo-nos conta da grande necessidade que temos de conversão, de fazer com que a lógica do ser maisprevaleça sobre a lógica do ter mais. Os Santos são quem mais nos pode ajudar a compreender o significado profundo das Bem-aventuranças. Neste sentido, a canonização de João Paulo II, no segundo domingo de Páscoa, é um acontecimento que enche o nosso coração de alegria. Ele será o grande patrono das Jornadas Mundiais da Juventude, de que foi o iniciador e impulsionador. E, na comunhão dos Santos, continuará a ser, para todos vós, um pai e um amigo.

No próximo mês de Abril, tem lugar também o trigésimo aniversário da entrega aos jovens da Cruz do Jubileu da Redenção. Foi precisamente a partir daquele acto simbólico de João Paulo II que principiou a grande peregrinação juvenil que, desde então, continua a atravessar os cinco continentes. Muitos recordam as palavras com que, no domingo de Páscoa do ano 1984, o Papa acompanhou o seu gesto: «Caríssimos jovens, no termo do Ano Santo, confio-vos o próprio sinal deste Ano Jubilar: a Cruz de Cristo! Levai-a ao mundo como sinal do amor do Senhor Jesus pela humanidade, e anunciai a todos que só em Cristo morto e ressuscitado há salvação e redenção».

Queridos jovens, o Magnificat, o cântico de Maria, pobre em espírito, é também o canto de quem vive as Bem-aventuranças. A alegria do Evangelho brota dum coração pobre, que sabe exultar e maravilhar-se com as obras de Deus, como o coração da Virgem, que todas as gerações chamam «bem-aventurada» (cf. Lc 1, 48). Que Ela, a mãe dos pobres e a estrela da nova evangelização, nos ajude a viver o Evangelho, a encarnar as Bem-aventuranças na nossa vida, a ter a coragem da felicidade.

Vaticano, 21 de Janeiro – Memória de Santa Inês, virgem e mártir - de 2014.


Fonte

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

“O que seria um ‘Sínodo da Família’ sem incluir aqueles que vivem em família?”


"Em nossa opinião, seria muito positivo se o estudo, que está em processo inicial, pudesse ampliar-se mediante a expressão do Espírito Santo, através das vozes dos fiéis que participarão ao longo de todo o processo previsto”, escreve em carta a Rede mundial de católicos e organizações católicas, publicada por Religión Digital, 05-02-2014. A tradução é do Cepat.

Eis a carta.

Querido Papa Francisco:

Esperamos que tenham sido úteis nossas propostas incluídas nas cartas de 19 de setembro e de 27 de novembro de 2013, assinadas tanto por organizações católicas como por pessoas, de maneira individual, de todo o mundo. Antes de se reunir pela terceira vez com o Conselho Assessor, te enviamos agora esta carta sobre o Sínodo Extraordinário dos Bispos, previsto para outubro de 2014. [Leia a carta que os grupos de LGBTs católicos brasileiros enviamos aos bispos aqui, e assine a petição online que a apoia aqui]

Alegramo-nos com tua decisão de convocar este Sínodo e com o compromisso para os desafios pastorais urgentes em relação à família no contexto do Evangelho. Em uma homilia recente fizeste a seguinte pergunta: “Como manter nossa fé no âmbito da família?”. Confrontamo-nos com essa questão precisamente por nos parecer como um aspecto crucial para nossa própria vida, assim como para a de tantas pessoas em nossas próprias comunidades eclesiais. Vemos hoje a nossa Igreja em uma encruzilhada de caminhos, em que você oferece uma esperança, numa renovação misericordiosa.

Alegramo-nos especialmente também com sua convocação, sem precedentes, para obter “contribuições das fontes locais”, mediante a distribuição dos questionários pelo Arcebispo Baldisseri, reconhecendo assim a importância do sensus fidelium para a autoridade magisterial da Igreja universal. Esta iniciativa é um início para o enfrentamento da necessidade, identificada na exortação Evangelii Gaudium, da promoção do crescimento da responsabilidade dos leigos, recorrentemente excluídos “das tomadas de decisões”, por um “clericalismo excessivo”. Em nossa opinião, seria muito positivo se o estudo, que está em processo inicial, pudesse ampliar-se mediante a expressão do Espírito Santo, através das vozes dos fiéis que participarão ao longo de todo o processo previsto.

Sem dúvidas, és consciente de que há muitas reações distintas por parte dos bispos e suas conferências episcopais, em relação ao requerimento de repostas das Igrejas locais mediante as 39 perguntas do questionário sobre a temática do Sínodo. Enquanto algumas conferências têm facilitado à participação dos fiéis neste estudo, que representa tantos desafios, a maioria têm feito mínimas tentativas para compreender as comunidades das paróquias neste diálogo tão importante.

Mantemos nossa convicção profunda de que, além da informação que possa ser obtida mediante os questionários, um Sínodo eficaz sobre a Família requer a participação de mulheres e homens católicos comprometidos, de diferentes regiões da igreja universal, em todas as etapas do Sínodo. Por exemplo, para que seja possível investigar, intercambiar opiniões, debater e fazer recomendações, sugerimos que peça a cada diocese do mundo que organize um sínodo diocesano em 2014, para discutir o tema, e que incite a cada bispo diocesano a animar a todos os católicos de sua diocese para que deem suas contribuições.

Nestes sínodos os debates devem ser abertos e respeitosos. As conclusões e recomendações de cada sínodo diocesano seriam então enviadas, ou diretamente para a comissão preparatória do Sínodo dos Bispos, ou, preferivelmente, a um Sínodo Nacional ou Plenário, especialmente convocado, com uma participação leiga de, ao menos, metade de todos os membros sinodais, com uma alta proporção de mulheres para compensar a sua carência no governo da Igreja.

Antecipamos que este processo levaria, de uma maneira natural, a uma representação significativa dos leigos no Sínodo da Família. Afinal de contas, o que seria um “Sínodo da Família” sem incluir aqueles que vivem em uma família?

Papa Francisco, respeitosamente oferecemos nosso assessoramento e experiência, obtidos ao viver nossas vidas cristãs em famílias de todos os tipos.

Esperamos ansiosos a confirmação de que tenhas recebido esta carta e, em seu devido tempo, sua resposta a nossas propostas, que envolve católicos e católicas comprometidos com o Sínodo Extraordinário e em seus preparativos formais. Mais uma vez, asseguramos-lhe que você está em nossas orações e temos um profundo desejo de fazer visível a missão de Cristo, de amor e justiça nas famílias de todo mundo.

Contigo em Cristo.

Rede mundial de católicos e organizações católicas.

Carta com cópia para:

Cardeal Giuseppe Bertello, Presidente da administração do estado da Cidade do Vaticano
Cardeal Francisco Javier Errázuriz Ossa, Arcebispo Emérito de Santiago do Chile
Cardeal Reinhard Marx, Arcebispo de Monique e Frisinga , Alemanha.
Cardeal Laurent Monsengwo Pasinya, Arcebispo de Kinshasa, Congo
Cardeal Sean Patrick O Malley, Arcebispo de Boston, EUA.
Cardeal George Pell, Arcebispo de Sydney, Austrália
Cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, Arcebispo de Tegucigalpa, Honduras

Fonte

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Sair para as periferias

alt


A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 5, 13-16 que corresponde ao Quinto Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto

Jesus revela duas imagens audazes e surpreendentes do que pensa e espera dos Seus seguidores. Não hão de viver pensando sempre em seus próprios interesses, seu prestígio ou seu poder. Embora sejam um pequeno grupo no meio do vasto Império de Roma, hão de ser o “sal” que necessita a terra e a “luz” que faz falta ao mundo.

“Vós sois o sal da terra.” As pessoas simples da Galileia captam espontaneamente a linguagem de Jesus. Todo o mundo sabe que o sal serve, sobretudo, para dar sabor à comida e para preservar os alimentos da corrupção. Do mesmo modo, os discípulos de Jesus hão de contribuir para que as pessoas saboreiem a vida sem cair na corrupção.

“Vós sois a luz do mundo.” Sem a luz do sol, o mundo fica às escuras e não podemos orientar-nos nem desfrutar da vida no meio das trevas. Os discípulos de Jesus podem trazer a luz que necessitamos para nos orientar, aprofundar o sentido último da existência e caminhar com esperança.

As duas metáforas coincidem em algo muito importante. Se permanece isolado num recipiente, o sal não serve para nada. Só quando entra em contato com os alimentos e se dissolve com a comida, pode dar sabor ao que comemos. O mesmo sucede com a luz. Se permanece encerrada e oculta, não pode iluminar ninguém. Só quando está no meio das trevas pode iluminar e orientar. Uma Igreja isolada do mundo não pode ser nem sal nem luz.

O Papa Francisco tem visto que a Igreja vive hoje fechada em si mesma, paralisada pelos medos, e demasiado afastada dos problemas e sofrimentos como para dar sabor à vida moderna e para oferecer-lhe a luz genuína do Evangelho. A sua reação foi imediata: “Temos de sair para as periferias”.

O Papa insiste uma e outra vez: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e manchada por sair à rua, que uma Igreja doente por se fechar e pela comodidade de se agarrar às suas próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro e que acaba enclausurada num emaranhado de obsessões e procedimentos”.

A chamada de Francisco está dirigida a todos os cristãos: “Não podemos ficar tranquilos na espera passiva em nossos templos”. “Os Evangelhos convidam-nos sempre a correr o risco do encontro com o rosto do outro.” O Papa quer introduzir na Igreja o que ele chama de “a cultura do encontro”. Está convencido de que “o que a igreja necessita hoje é capacidade de curar feridas e trazer calor aos corações”.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ilumina e serás iluminado, cura e serás curado


«Vós sois o sal da terra ... Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens.» (Mateus 5, 13-16)

Jesus tinha acabado de proclamar o núcleo da sua mensagem, as bem-aventuranças, e acrescenta, dirigindo-se aos seus discípulos e a nós: se as viverdes, sereis sal e luz da terra.

Uma afirmação que surpreende: que Deus é a luz do mundo já o tínhamos ouvido, o Evangelho de João repetiu-o, e nós acreditamos; mas ouvir - e crer - que também o ser humano é luz, que o somos também eu e tu, com todos os nossos limites e sombras, é surpreendente.

E não se trata de uma exortação de Jesus, "esforçai-vos por vos tornardes luz", mas "sabei que já o sois". A lâmpada, se estiver acesa, não tem de se esforçar por dar luz, porque é da sua natureza; assim também vós. A luz é o dom natural do discípulo.

É incrível a consideração, a confiança que Jesus comunica, a esperança que repõe em nós. E encoraja-nos a tomar consciência disso: não fiques na superfície de ti mesmo, na porosidade do barro, mas procura em profundidade, no reduto secreto do coração, desce ao centro de ti próprio e lá encontrarás uma lâmpada acesa, uma mão cheia de sal.

Vós que viveis segundo o Evangelho, sede luz no mundo. E sede-o não com a doutrina ou as palavras, mas com as obras: resplandeça a vossa luz nas vossas boas obras. Tu podes realizar obras de luz! E são as mansas, as puras, as justas e as pobres as obras alternativas às escolhas do mundo, a diferença evangélica oferecida à flor da vida.

Quando segues o amor como única regra, então és luz e sal para quem te encontra. Quando duas pessoas se amam, tornam-se luz na escuridão, lâmpada para os passos de muitos. Em qualquer lugar onde se quer o bem, é espalhado o sal que dá o bom sabor à vida.

Na primeira leitura, Isaías sugere a estrada onde a luz deve estar: «Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante. Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar».

Ilumina os outros e serás iluminado, cura os outros e serás curado. Não te curves sobre a tua história e sobre as tuas derrotas, mas ocupa-te da terra, da cidade do outro; senão nunca te tornarás um homem ou mulher radiosa. Quem olha só para si nunca se ilumina.

Então serás lâmpada sobre o candelabro, mas segundo a forma própria da luz, que não faz ruído e não violenta as coisas. Acaricia-as e faz emergir o belo que existe nelas. Assim também «nós do Evangelho» somos pessoas que a cada dia acariciamos a vida e revelamos a sua beleza oculta.

P. Ermes Ronchi
In Lachiesa.it
Trad.: SNPC/rjm
07.02.14

Fonte

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Treze características da pedagogia emancipatória de Jesus de Nazaré



Parte de um artigo de Frei Gilvander Luís Moreira, padre da Ordem dos carmelitas, professor de Teologia Bíblica, assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI, do Serviço de Animação Bíblica - SAB e da Via Campesina em Minas Gerais. Para ler o texto na íntegra, clique aqui.

Jesus não nos salva automaticamente, mas testemunha um jeito de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador e salvador. Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz bem prestarmos atenção no processo pedagógico efetivado por Jesus. Trata-se de uma Pedagogia emancipatória com muitas características, entre as quais, destacamos treze.

5.1) A partir da periferia. O Evangelho de Lucas interpreta a vida, ações e ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, em Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de sumo sacerdote, nem do poder.

5.2) Prioriza a formação. Nessa grande viagem, subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas injustas e corruptas. Assim, o jovem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o maior embate.

5.3) Não foge do combate. O Evangelho de Lucas diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro, caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).

5.4) Sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.

5.5) Anda na contramão. Seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano existente em nós.

5.6) Sabe a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos discípulos que fossem despojados e desarmados para o campo de missão. Assim deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se um/a irmã/ão entre as/os irmã/ãos para que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para a resistência. Por isso “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38).

Durante a evolução da missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicao Xucuru, Padre Gabriel, padre Henrique etc.

5.7) Resiste, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.

5.8) Não trai sua origem. Jesus, o jovem de Nazaré, se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1). Segundo Lucas, Jesus inicia sua missão pública em Nazaré, sua terra de origem, em uma sinagoga, onde aprendeu muita coisa libertadora. Jesus se orgulhava de ser jovem camponês. Valorizava a cultura camponesa. Percebia que a cidade, muitas vezes, mata os profetas, mata os jovens, como o jovem de Naim(Lc 7,11-17).

5.9) Pedagogia da partilha de pães, que liberta e emancipa. A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo. É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original do jovem galileu. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão.

A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de pães e não multiplicação de pães - está no processo seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo em várias características:

5.10.1) Cidade, lugar de violência? O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.” Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.

5.10.2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.

5.10.3) Nunca perder a capacidade de se comover e de se indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro, só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.

5.10.4) Postura crítica. Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt 14,15).Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.

5.10.5) Postura criativa. O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.

5.10.6) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinquenta, ...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão resolvidos, de forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir para lutas coletivas.

5.10.7) Gratidão. “Jesus agradeceu a Deus...” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar cantando com Manelão - cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo! / O povo agora é Senhor da história, / Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!

5.10.8) Não ser paternalista. Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da maioria.

5.10.9) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar reaproveitar, recusar, recuperar e repensar.

5.11) Participar da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42). Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e Maria (Lc 10,38-42). Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como uma oposição entre vida ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida contemplativa em detrimento da vida ativa, mas essa interpretação não tem consistência exegético-bíblica. Não há nenhuma referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.

Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...” (Lc 10,41-42).

Segundo, precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e do evangelho de Lucas (anos 80/90 do 1º século). As mulheres eram - não todas, é óbvio - propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá, a Lei. Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!” O machismo e o patriarcalismo campeavam.

Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a atitude dos discípulos dos rabis, os mestres.

Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Somente os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se tornarem discípulos. Maria ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga. Assim Maria se torna discípula.

Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para Jerusalém.

5.12) Ser simples como as pombas e esperto como as serpentes. Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.

Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma discreta, clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão.

Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam.

Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”

Dia 10 de abril de 1996, milhares de trabalhadores rurais do MST, em marcha, estavam chegando a 22 capitais do Brasil. Na chegada a Belo Horizonte, após marcharem de Governador Valadares à capital mineira, 500 Sem Terra foram bloqueados pela tropa de choque da polícia militar de Minas Gerais. Vinte Sem Terra foram presos; outros vinte, hospitalizados. O governador de Minas havia dado ordens para proibir a entrada do MST em Belo Horizonte, porque três dias após, dia 13 de abril de 1996, a Fiat faria o lançamento de um novo modelo de automóvel, o Fiat Pálio, na Av. Afonso Pena, em Belo Horizonte. 700 jornalistas internacionais estariam presentes. Os gritos do MST por reforma agrária poderiam aparecer na imprensa internacional, o que seria mosca na sopa. Mesmo reprimidos, conseguimos entrar em Belo Horizonte no dia seguinte contando com o apoio do povo de BH. Um Sem Terra disse: “Quando os oprimidos hebreus tentaram fugir da opressão do imperialismo egípcio tiveram que enfrentar o Mar Vermelho. Na chegada de Belo Horizonte, um Mar de policiais queria fazer um Mar Vermelho com nosso sangue. Feriram-nos, mas conseguimos entrar na capital. Assim foi com Jesus de Nazaré também.”

5.13) Intransigência diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão.

Enfim, jovens como Jesus de Nazaré, exercitemos pedagogias que libertam e emancipam.

Fonte

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Boas-vindas ao Papa Chico


Querido papa Francisco, o povo brasileiro o espera de braços e coração abertos. Graças à sua eleição, o papado adquire agora um rosto mais alegre.

O senhor incutiu em todos nós renovadas esperanças na Igreja Católica ao tomar atitudes mais próximas ao Evangelho de Jesus que às rubricas monárquicas predominantes no Vaticano: uma vez eleito, retornou pessoalmente ao hotel de três estrelas em que se hospedara em Roma, para pagar a conta; no Vaticano, decidiu morar na Casa Santa Marta, alojamento de hóspedes, e não na residência pontifícia, quase um palácio principesco; almoça no refeitório dos funcionários e não admite lugar marcado, variando de mesa e companhias a cada dia; mandou prender o padre diretor do banco do Vaticano, envolvido em falcatrua de 20 milhões de euros.

Em Lampedusa, onde aportam os imigrantes africanos que sobrevivem à travessia marítima (na qual já morreram 20 mil pessoas) e buscam melhores condições de vida na Europa, o senhor criticou a “globalização da indiferença” e aqueles que, no anonimato, movem os índices econômicos e financeiros, condenando multidões ao desemprego e à miséria.

Um Brasil diferente o espera. Como se Deus, para abrilhantar ainda mais a Jornada Mundial da Juventude, tivesse mobilizado os nossos jovens que, nas últimas semanas, inundam nossas ruas, expressando sonhos e reivindicações. Sobretudo, a esperança em um Brasil e um mundo melhores.

É fato que nossas autoridades eclesiásticas e civis não tiveram o cuidado de deixá-lo mais tempo com os jovens. Segundo a programação oficial, o senhor terá mais encontros com aqueles que ora nos governam ou dirigem a Igreja no Brasil do que com aqueles que são alvos e protagonistas dessa jornada.

Enquanto nosso povo vive um momento de democracia direta nas ruas, os organizadores de sua visita cuidam de aprisioná-lo em palácios e salões. Assim como seus discursos sofrem, agora, modificações em Roma para estarem mais afinados com o clamor da juventude brasileira, tomara que o senhor altere aqui o programa que lhe prepararam e dedique mais tempo ao diálogo com os jovens.

Não faz sentido, por exemplo, o senhor benzer, na prefeitura do Rio, as bandeiras dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. São eventos esportivos acima de toda diversidade religiosa, cultural, étnica, nacional e política.

Por que o chefe da Igreja Católica fazer esse gesto simbólico de abençoar bandeiras de dois eventos que nada têm de religioso, embora contenham valores evangélicos por zerar divergências entre nações e promover a paz? Talvez seja o único momento em que atletas da Coreia do Norte e dos EUA se confraternizarão.

Como nos sentiríamos se elas fossem abençoadas por um rabino ou uma autoridade religiosa muçulmana?

Nos pronunciamentos que fará no Brasil, o senhor deixará claro a que veio. Ao ser eleito e proclamado, declarou à multidão reunida na Praça de São Pedro, em Roma, que os cardeais foram buscar um pontífice “no fim do mundo.”

Tomara que o seu pontificado represente também o início de um novo tempo para a Igreja Católica, livre do moralismo, do clericalismo, da desconfiança frente à pós-modernidade. Uma Igreja que ponha fim ao celibato obrigatório, à proibição de uso de preservativos, à exclusão da mulher do acesso ao sacerdócio.

Igreja que reincorpore os padres casados ao ministério sacerdotal, dialogue sem arrogância com as diferentes tradições religiosas, abra-se aos avanços da ciência, assuma o seu papel profético de, em nome de Jesus, denunciar as causas da miséria, das desigualdades sociais, dos fluxos migratórios, da devastação da natureza.

Os jovens esperam da Igreja uma comunidade alegre, despojada, sem luxos e ostentações, capaz de refletir a face do Jovem de Nazaré, e na qual o amor encontre sempre a sua morada.

Bem-vindo ao Brasil, papa Chico! Se os argentinos merecidamente se orgulham de ter um patrício como sucessor de Pedro, saiba que aqui todos nos contentamos em saber que Deus é brasileiro!

- Frei Betto, via

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Qual o Valor da Vida de Nossos Filhos e Filhas?

Junte-se às "Mães pela Igualdade" no Brasil, aqui

"A sociedade tratou dois meninos assassinados de modo desigual, mas a morte violenta os igualou."


Em 2006, no auge da comoção pública ocorrida em razão da morte do menino João Hélio, publiquei artigo de opinião no Congresso em Foco [aqui: "Há várias formas de matar uma criança"] em que questionava não apenas a exploração da dor pela mídia convencional, como também os discursos inflamados pela diminuição da maioridade penal, que mais uma vez surgiam ante um fato exaustivamente exposto nas TVs, jornais e rádios brasileiras.

Na mesma semana, um adolescente de 17 anos fora torturado, violado e morto, com requintes de crueldade na vizinha cidade de Anápolis, a segunda mais importante no estado de Goiás. Não foi publicada sequer uma linha nos jornais do Distrito Federal ou do país, e, mesmo em Goiás, apenas um pequeno jornal semanário (Jornal Opção) deu a notícia com pouco mais de 200 caracteres, quase num pé de página.

Qual a diferença entre João Hélio, o menino de seis anos, morto em razão de um assalto mal sucedido e o garoto sem nome, de 17 anos, torturado, violado e assassinado em Goiás? Por que os defensores da diminuição da maioridade penal, os paladinos da pena de morte, do movimento lei e ordem, nada falaram sobre o caso? O que motivou os editores de telejornais, jornais e rádios do país a sequer se preocuparem em dar a notícia? Por que não houve clamor popular, comoção pública, debates em torno da crescente violência que assola o país?
Tantas perguntas, uma única resposta. O que diferencia o garoto sem nome de João Hélio é que aquele causara rebuliço na família seis meses antes, por que revelara que era homossexual. E por que era homossexual, foi torturado, violado e friamente assassinado.
Retrato de uma sociedade adoecida em que a vida, a integridade física e emocional são valores relativos. Uma cultura que pune cruelmente todo aquele que não reza pela cartilha da maioria, que não realiza as expectativas identitárias, em especial e principalmente, que ousa desobedecer o código da heteronormatividade e das identidades de gênero binárias.
O que têm em comum João Hélio e o garoto sem nome? Eles têm mãe. Mas poderiam ter tantas outras coisas em comum, qualidades que jamais saberemos por que ambos foram vítimas da violência.
Ainda assim, para João Hélio, cuja identidade sexual e de gênero ainda não estava plenamente expressa, a sociedade bradou por justiça, os meios de comunicação inflaram o debate em torno da segurança pública, os políticos de plantão levantaram suas bandeiras de tolerância zero. Enquanto repousa anônimo o garoto torturado, violado e assassinado em Anápolis, e ninguém, exceto a própria mãe, clamou por justiça. A sociedade os tratou de modo desigual, mas a morte violenta os igualou.
É preciso que nossos filhos e filhas tenham direitos iguais. É necessário que a vida, a integridade física e emocional sejam valores absolutos em nossa sociedade. Respeitar e garantir os direitos civis de brasileiros e brasileiras sem qualquer distinção, inclusive a de orientação sexual, é garantir o estado democrático de direito.
- Maria Cláudia Cabral é advogada, blogueira e faz parte do movimento Mães pela Igualdade.
Publicado originalmente no site Congresso em Foco. Reproduzido via blog das Mães pela Igualdade.

domingo, 10 de junho de 2012

O mundo não é preto e branco, e sim colorido. Vamos falar de sexo?

Foto: Takeshi Suga

Do blog do Leonardo Sakamoto:

Na época da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo sempre aumenta a minha percepção do quanto nós somos desinformados sobre a nossa própria sexualidade. E terreno sem informação é fértil para o brotar o preconceito e a discriminação, principalmente entre aqueles que acham que a vida é um preto e branco maniqueísta, homem e mulher, macho e fêmea e o resto é doença. Ignoram que há outras cores no meio do caminho que, por sua vez, podem ser tão específicas que apresentem tonalidades únicas e individuais. Sim, na prática, cada um tem sua própria cor. Assustador e maravilhoso isso, não?

Por isso, pedi para Claudio Picazio, psicólogo especialista em sexualidade, um texto que fosse didático para ajudar aos leitores deste blog a entenderem a questão. Ele não encerra o tema, claro. Muito pelo contrário, é um bom ponto de partida.


Para entendermos a sexualidade e por uma questão didática, vamos analisá-la sob quatro aspectos diferentes e interligados: Sexo Biológico, Identidade Sexual, Papeis Sexuais e Orientação Sexual do Desejo. Repito essa divisão é didática, pois todos os aspectos se entremeiam, formando dentro de nós aquilo que chamamos identidade de gênero.

Sexo Biológico: Biologicamente falando quantos sexos existem? Dois, masculino ou feminino. Quando nascemos pelas características que nosso corpo possui, somos registrados como macho ou fêmea. Essa afirmação parece simplista e óbvia, mas não é bem assim, quando falamos de sexo masculino ou feminino estamos nos referindo às características dos órgãos sexuais e a predominância que este tem no nosso corpo.

Muitas pessoas nos anos 70, por uma questão de distinção ou até modismo, começou a chamar a homossexualidade de terceiro sexo. Isto não é verdade, só confundiu. Biologicamente falando, homens hetero, bi e homossexuais não têm a menor diferença, assim como as mulheres hetero, bi e homossexuais. Portanto, quando uma pessoa fala popularmente que um gay não é homem, esta incorreto, o gay é tão homem quanto qualquer outro, a única variação é por quem o seu desejo sexual se orienta. Há exceções, é claro. Por exemplo, uma pessoa hermafrodita nasce com uma dupla formação de características dos seus órgãos sexuais masculinos e femininos.

Identidade Sexual: Vamos definir como sendo o aspecto de onde guardamos a nossa certeza do que somos. Quando nascemos, somos registrados como menino ou menina. A partir daí somos tratados como tal e incoporamos a sensação de pertencemos a um gênero. Acreditamos que somos menina ou menino: a forma de como somos tratados é tão importante como o nosso sexo biológico para a formação da nossa identidade sexual. Mas a nossa identidade sexual não depende tanto do nosso corpo para se manter. Ele é importante para seu desenvolvimento, mas a sensação de quem somos é muito maior, e muito mais profunda do que o nosso corpo pode dizer.

Papeis Sexuais: Vamos entender como papeis sexuais, todos os comportamentos definidos como maneirismos, atitudes e expressões daquilo que chamamos de masculino e feminino. Papeis sexuais são variados de cultura para cultura de sociedade para sociedade e estão em constante transformação. Aquilo que era considerado há 20 anos como exclusivamente ao papel feminino, hoje também pode ser considerado do masculino. As mudanças sociais e econômicas, o movimento feminista permitiu uma flexibilidade e mudança das posturas rígidas de ser masculino ou feminino. Um exemplo: o uso de brincos por homens.

Ainda temos muito enraizado em nós os papeis sexuais e a análise que fazemos destes para julgar o outro. Uma mulher que não se identifique muito com os papeis femininos típicos, tenderá a ser “diagnosticada” pelos outros como lésbica. Mas papeis sexuais não determinam desejo erótico e sim ações e atitudes que incorporamos. Um garoto que não goste de futebol e de nenhum esporte violento, será interpretado como “mulherzinha, gay”. Pensando nesse exemplo, estamos dizendo que um homem heterossexual de verdade tem que ser violento assim como uma mulher heterossexual de verdade tem que ser passiva e meiga. Já estamos estabelecendo uma divisão entre os gêneros complicada, porque incentivamos um comportamento na criança que mais tarde brigaremos muito para retirar. Na verdade encontramos homens heterossexuais e gays violentos, assim como encontramos homens heterossexuais e homossexuais que não são violentos e nem se adaptam a essa postura.

Orientação Sexual do Desejo: Muita gente utiliza “opção sexual”, o que não é nada correto quando falamos da sexualidade. Quando falo em “opção” estamos falando em escolha e para ser considerada uma escolha teríamos que ter duas ou mais coisas de igual significado ou valor para quem escolhe. Se desejo erótico fosse opção teríamos que sentir desejos tanto por homens quanto por mulheres da mesma forma. Isso não acontece por ninguém. Nenhum de nós parou um certo dia, para pensar quem desejaria. Acredito que muitos gostariam que assim o fosse, por que isso o permitiria flexibilizar, variar, e não sofrer julgamentos e preconceitos tão doídos de serem combatidos. Dizemos Orientação Sexual do Desejo pois nosso desejo se orienta para um determinado objeto amoroso. Não optamos e sim percebemos o nosso desejo erótico, descobrimos algo que já parece instalado em nós.

O desejo erótico não é influenciável como se imagina ser. Se o fosse não existiram gays e lésbicas. A nossa sociedade é heteronormativa. Tudo que existe nela é feito pensando na heterossexualidade. Pais e mães educam seus filhos para a heterossexualidade. O preconceito social, a homofobia e as religiões ainda são muitos fortes na sua postura contra a homossexualidade. E mesmo com tudo isso os homossexuais não se influenciam pela heterossexualidade.

“Desejo sexual” é parte fundamental da orientação afetivo sexual, ao passo que uma “atitude sexual” pode existir interdependentemente da orientação do desejo. Por exemplo, na época da Segunda Grande Guerra muitas mulheres tinham relações sexuais entre si, assim como muitos homens, no campo de batalha. Estas mulheres sentiam falta de seus companheiros, a orientação de seu desejo era claramente voltada para homens, mas relacionavam-se sexualmente com outras mulheres. As mulheres motivadas por um desejo de descarregar a sua energia sexual. Com a volta de seus companheiros, essa atitude automaticamente deixava de existir.

Em muitos casos, homossexuais que não querem viver a sua orientação, vão à procura de igrejas, e/ou profissionais que estimulam atitude sexual desses homossexuais. Esses gays tentam viver anulando o seu desejo erótico e tendo somente atitudes sexuais heterossexuais. A dor psíquica é muito grande.

Muitos meninos têm uma relação que se chama “troca-troca” que está longe de ser considerada homossexualidade. Um dos motivos é porque para a maioria o objeto desejado internamente é uma pessoa do outro sexo. O que há é um exercício de sexualidade, um descarrego de energia que está vibrando nos corpos com toda a sua força e é vivido com um(a) colega. Em suma, todo ser humano pode ter uma atitude sexual com qualquer dos sexos, mas seu desejo interno, a libido, é o determinante de uma conduta homo, hetero ou bissexual.

O que seria então a bissexualidade? A bissexualidade não é termos uma atitude sexual por uma pessoa e um desejo erótico por outra. A bissexualidade é um fenômeno que algumas pessoas têm de desejar afetiva e sexualmente tanto homens como mulheres. Não podemos falar que um bissexual optou por homens ou por mulheres. Não escolhemos, conscientemente, por quem nos apaixonamos, assim como não escolhemos por que vamos desejar eroticamente.
Concluindo: podemos dizer que o desejo erótico, ou ele é homo, por uma pessoa do mesmo sexo que o nosso, hetero por uma pessoa do sexo diferente do nosso, ou bissexual que é o desejo erótico pela pessoa do mesmo sexo ou do sexo oposto.

E a Travestilidade e a Transexualidade, como se comportam? Uma pessoa hetero ou homossexual tem a sua identidade sexual correspondente ao seu sexo biológico. Uma travesti tem a sua identidade dupla, ou seja, ela se sente homem e mulher ao mesmo tempo. O leitor deve se lembrar quando falamos de identidade sexual? A sensação de pertencimento à identidade sexual feminina e masculina da travesti é o que lhe garante mais do que o desejo, a necessidade de adequar o seu corpo aos dois sexos que sente pertencer.

A Travestilidade também não é opção, muitas pessoas crêem erroneamente que a travesti é um gay muito afeminado que resolveu virar mulher. Além de simplista esta afirmação esta recheada de equívocos. Uma travesti diferente do gay tem uma identidade dupla: masculina e feminina. Uma travesti pode ter papeis sexuais tanto masculino como feminino, pois como já dissemos anteriormente esse é um processo de identificação com valores e costumes da sociedade. Quanto ao desejo erótico, uma travesti pode ser homo, hetero, ou bissexual.

A maioria delas se intitula homossexuais, mas não é bem assim. Quase a unanimidade dessas travestis sente-se mulher. Na grande maioria do tempo, elas não desejam eroticamente o seu amigo gay, elas desejam um homem típico heterossexual. Portanto se uma pessoa se identifica, sente-se mulher e sente atração por um homem, o seu desejo é heterossexual. Portanto a maioria das travestis tem o desejo heterossexual. Uma relação homossexual de uma travesti seria com uma outra travesti.

A Transexualidade, caracteriza se pela identidade sexual ser oposta ao sexo biológico é como se a sua “alma” fosse do sexo oposto do que o seu corpo a condena. A necessidade de correção do corpo para a identidade sentida se faz urgente. Muitos Transexuais se mutilam para poder fazer a cirurgia de adaptação genital. A força da identidade sexual é a tônica na construção da nossa identidade de gênero. Uma transexual também pode ser homo, hetero ou bissexual.

Para quiser se aprofundar, sugiro o livro “Uma outra verdade – Perguntas e respostas para pais e educadores sobre homossexualidade na adolescência”, de Claudio Picazio pela Editora Summus. A leitura é fundamental. Talvez com informação possamos inverter uma lógica perversa. Quando alguns pais “descobrem” que o filho é gay ou a filha lésbica, recebem suporte emocional de parentes e amigos. Mas deixam sozinhos seus filhos, que têm que passar sozinhos pela fase de sua própria descoberta. Isso é justo?

O bonde da história


A Parada Gay de São Paulo é um marco na luta pelos direitos dos homossexuais no Brasil. O aumento estrondoso no número de participantes a cada ano mostra a evolução do evento. Em sua primeira edição, há 16 anos, cerca de 300 pessoas -em sua maioria homossexuais- reuniram-se para reivindicar a garantia de seus direitos. Eu estava lá.

O evento cresceu enormemente, manteve as reivindicações e transformou-se em motivo de encontro e celebração de diferentes tribos. As famílias foram para a rua declarar sua tolerância e a parada se tornou a maior manifestação gay do mundo. No ano passado, 4 milhões de pessoas lotaram a avenida Paulista e o evento gerou mais de R$ 200 milhões para os cofres da cidade.

Se aos poucos a cobrança de direitos foi ficando diluída, é indiscutível que a parada possibilitou o surgimento de vários outros eventos culturais voltados para o público LGBT e deu enorme visibilidade para as reivindicações da comunidade. Além de outras paradas que criam espaços na mídia e celebram o orgulho da diversidade sexual por todo o país.

Nestes últimos anos tivemos alguns avanços do lado do Executivo (declaração de Imposto de Renda conjunta e INSS) conquistados no governo Lula. Nada do Congresso. O projeto que criminaliza a homofobia encontra-se há anos no Senado ainda com dificuldades de aprovação.

Há um ano o STF concedeu aos casais homossexuais os mesmos direitos e deveres que a legislação brasileira já estabelece para os casais heterossexuais. Durante a votação, o então presidente do STF, o ministro Cezar Peluso, cobrou do Congresso que "assumisse a tarefa que até agora não se sentiu propenso a fazer" e transformasse a conversão em lei. Começamos.

Há poucas semanas a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou projeto, de minha autoria, que altera artigos do Código Civil para reconhecer como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A proposta dá um passo adiante na decisão do STF permitindo a conversão da união homoafetiva em casamento.

O projeto seguiu para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde será relatado pelo senador Roberto Requião. Aprovado, irá à Câmara dos Deputados.

É uma oportunidade concreta para os parlamentares tomarem o bonde da história, como fizeram recentemente na CCJ aprovando a lei das cotas nas universidades para os mais carentes e os negros. Esse caminho, do cumprimento da Constituição e de ações afirmativas voltadas à garantia dos direitos humanos, está traçado. Pode demorar mais, ou menos, mas é inexorável.

Agora é a vez do Congresso. O Brasil espera e a parada de amanhã [hoje] exigirá.

- Marta Suplicy
Publicado ontem na Folha de S. Paulo. Reproduzido via Conteúdo Livre
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...