sábado, 17 de dezembro de 2011

Uma espiritualidade ecumênica vivida hoje

Thread illustration: Amanda McCavour

O papel de leigos e leigas, pastores e pastoras, celibato, Igreja, Ceia, eucaristia: esses e diversos outros pontos em aberto no debate ecumênico são abordados pelos teólogos alemães Hans Küng e Jürgen Moltmann no diálogo que segue.

O encontro ocorreu durante a "Jornada Ecumênica" (Ökumenischer Kirchentag), em Munique, na Alemanha, em 2010. O texto foi publicado na revista Concilium, nº. 3, de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o diálogo, aqui reproduzido via IHU.


Hans Küng – O nosso tema tem por título "Uma espiritualidade ecumênica vivida já hoje". Acredito que posso dizer que nós já a vivemos. Quando Karl Barth, o grande teólogo reformado, me perguntou um dia: "O que há, propriamente, entre você e eu?", eu lhe respondi: "Em meio a nós dois, com efeito, propriamente nada, mas atrás de você e atrás de mim, há muito". Por isso, não podemos nos contentar com pequenas reformas. Devemos exigir uma nova reforma: não para uma divisão, mas pela unidade da Igreja.

Jürgen Moltmann – Para mim, o ecumenismo não é a composição das situações de fato das Igrejas atuais. Ecumenismo quer dizer: comunhão a partir da renovação das Igrejas, em nome de Jesus Cristo. Não é a unidade que traz a renovação, mas sim a renovação que traz a unidade. A esse respeito, quero dar um exemplo. Em 1962, aconteceu algo inesperado e de repente: o Concílio Vaticano II. Nada teve tanta influência sobre nós, protestantes, quanto o Concílio Vaticano II: naquele momento, admiramos e também invejamos os cristãos católicos por esse grande passo. Eu nunca vivi uma comunhão maior com os cristãos católicos do que durante o Concílio Vaticano II e, mais tarde, na revista Concilium, da qual, durante 20 anos, eu participei como coeditor. A Igreja conciliar: essa é a esperança de que eu alimento.

Hans Küng – Nesse sentido, a mudança de paradigma começou já naquele momento, mas se realizou apenas pela metade. Agora, temos a língua do povo, temos a liturgia do povo, temos também o cálice aos leigos, mas, por exemplo, ainda não temos o casamento para os padres. Do paradigma do Iluminismo temos a liberdade religiosa, temos a reviravolta com relação ao judaísmo, a reviravolta com relação às religiões mundiais e o mundo secular. Mas, no Concílio, não foi possível discutir muitas coisas, entre as quais a questão da contracepção – em 1968, chegou a encíclica Humanae Vitae –, a questão do celibato, a questão da intercomunhão eucarística. São todas questões que ficaram em aberto desde então, e não querem esperar mais 20 ou 30 anos!

1. Quem são os leigos?

Jürgen Moltmann – Por leigos [laicos], nós entendemos muitas vezes alguém não religioso, um não especialista, mas isso é completamente falso. O termo "leigo" [ou laico] vem de laos, ou seja, "povo", o povo de Deus. Um leigo é um membro do povo de Deus. E, desse ponto de vista, todo pastor, homem ou mulher, todos os bispos e o próprio papa de Roma é um leigo, um membro do povo de Deus. Eu fiquei muito entusiasmado pelo fato de o Concílio Vaticano II ter retomado a ideia de Igreja como povo de Deus, porque essa ideia reúne clero e leigos em uma grande comunhão.

Hans Küng – Dos bispos, veio o pedido de que, no início da Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium, fosse posto um parágrafo sobre o povo de Deus, De populo Dei. Isso estava naturalmente em contraposição com a imagem de Igreja que, desde a Idade Média, tinha caracterizado a Igreja romano-católica: uma pirâmide com o papa, os bispos, os padres acima, e os leigos embaixo. Era algo revolucionário, e, mesmo assim, no Concílio, o aprovamos com uma grande maioria. Apenas o grupo curial foi contrário: os mesmos que, em grande parte, ainda estão agarrados ao poder e impedem que se tirem as consequências disso.

Jürgen Moltmann – Nós temos a expressão "o cristão maior de idade". A expressão inclui a coragem de um juízo próprio, de uma palavra própria, de uma fé própria. Chegaremos a uma época em que a fé pessoal terá mais importância, e a participação na fé da Igreja será mais fraca. Por isso, precisamos de cristãos que se tornaram adultos, maiores de idade. Os leigos devem se tornar cristãos maiores de idade na colaboração com o governo da Igreja: no concílio, nos sínodos e nas comunidades do redespertar. Se uma paróquia ou uma circunscrição eclesial se torna uma comunidade, então formam-se esses cristãos maiores de idade que também incluem, na sua comunhão, os párocos e os bispos. Na comunidade, cada membro é responsável pelo que nela acontece. É necessário pensar a Igreja a partir de baixo. E a Igreja de cima, a hierarquia, deve ser inserida na grande comunidade cristã.

2. Quem são os pastores e as pastoras?

Jürgen Moltmann – Se o próprio povo de Deus já é um povo sacerdotal, como se afirma no Novo Testamento, não resulta disso, talvez, o sacerdócio universal de todos os fiéis? Eu li isso também no Vaticano II. Mas, na tradição católica e no movimento católico de reforma, como o sacerdócio universal de todos os fiéis se relaciona com o sacerdócio especial de alguns ministros?

Hans Küng – O sacerdócio universal certamente é uma afirmação da Escritura. A passagem mais conhecida é a de 1Pedro 2, 9: "Vós sois uma nação eleita, o sacerdócio régio", e isso naturalmente também foi recebido pelo Concílio Vaticano II. Isto implica, depois, que os ministros oficiais não sejam os patrões da Igreja, mas sim seus servidores. O Novo Testamento, para indicar os ministros, não recorre a uma concepção civil qualquer, mas sim fundamentalmente a um conceito que não era usado, de fato, para esse fim, ou seja, o do serviço à mesa: um serviço simples, humilde, que, para indicá-lo, se usava a palavra diakonia. Compreenderam-se os ministérios eclesiais como diaconia, como serviço à comunidade. Isso também é dito com muita clareza pelo Concílio Vaticano II na Constituição sobre a Igreja. A questão, porém, é justamente qual rosto tem a prática efetiva. O papa chama a si mesmo de "servo dos servos de Deus", e essa é uma bela expressão de Gregório Magno, mas, de fato, ele se comporta como o senhor dos senhores e assim trata até mesmo os bispos.

No meu livro "A Igreja Católica" (1967; Ed. Objetiva, 2002), eu parti do fato de que, no fundo, todo cristão está habilitado a batizar. Isso não foi contestado por ninguém. Mas então se põe uma outra questão: o mesmo cristão não poderia, em certas circunstâncias, assegurar também o perdão dos pecados? Certamente, eles pode fazer isso, na esperança de que Deus perdoe os pecados. A eucaristia – isso é evidente – não foi dada a um indivíduo: ela foi dada a todos. "Fazei isto em memória de mim" é a afirmação que se refere à celebração da eucaristia. E, a partir dela, todo cristão está habilitado a celebrar a Eucaristia. Naturalmente, não no sentido de que, agora, alguém, sozinho, pode celebrar a missa para si, como me acusaram de defender. Não é esse o sentido. Mas, em princípio, um grupo de cristãos pode se reunir para celebrar a eucaristia. Embora outros o contestem, eu defendo que essa é uma celebração da eucaristia válida.

Jürgen Moltmann – Essa também é a práxis nas famílias evangélicas, e essa era a práxis nos campos de prisioneiros, em situações de emergência, e fico muito contente que, com relação a isso, sejamos da mesma opinião. Todos os fiéis batizados têm o direito de anunciar, de testemunhar a sua fé, de batizar e de partilhar a Ceia do Senhor. Na celebração evangélica da Ceia, nós nos dispomos de modo a formar um grande círculo e dirigimos reciprocamente as palavras da instituição: "Por ti dado, por ti derramado". Portanto, nós fazemos isso como uma grande comunidade, não como uma performance de um indivíduo ao altar para os muitos que são apenas destinatários, receptores.

Hans Küng – Pensemos na China: se ali um grupo de cristãos se reúne e celebra a eucaristia, se dirá que essa é uma celebração válida da eucaristia. Naturalmente, isso tem um altíssimo significado para o ecumenismo, já que não se pode negar a outros cristãos a validade da eucaristia só porque não entram novamente na sucessão apostólica.

Em uma situação normal, obviamente é o pároco quem preside a eucaristia, aquele que está à frente da comunidade. Essa é, em todo o caso, a tradição católica, e eu gostaria de conservá-la. Mas isso não deveria significar que nem todos, em última instância, podem presidir. E, se as coisas continuarem como estão, ou seja, que cada vez mais comunidades permanecem sem pároco, se poderá questionar o que essas comunidades devem fazer. O que é mais importante: a eucaristia ou o celibato?

Jürgen Moltmann – Muitos pastores e pastoras estão sobrecarregadas de compromissos, porque devem fazer de tudo ao mesmo tempo: pregar, ensinar, garantir o cuidado pastoral, visitar os doentes, prestar a diaconia, organizar círculos comunitários etc. O que fazemos em uma situação desse tipo? Devemos empregar mais "leigos" que ajudem o pastor, e, portanto, subdividir o conjunto dos carismas, dos dons pessoas e das exigências que confluem no ofício paroquial? Ou, inversamente, não seria melhor pensar a partir da comunidade e dos círculos domésticos, e depois redistribuir as diversas tarefas, por exemplo, a assistência pastoral nas casas de saúde, as visitas aos doentes e assim por diante? Mas são dons que, em uma comunidade, encontram-se em estado dormente. E então, justamente quando uma comunidade não tem um pastor, esses dons dormentes dos "leigos" muitas vezes se despertam.

Hans Küng – Uma afirmação totalmente fundamental em Paulo se refere justamente aos carismas: todo cristão tem os seus dons de graça, diz ele. Podem ser muito simples, como o dom de aconselhar, de ajudar, de curar. Também podem ser dons de direção. Na comunidade, existem os apóstolos, mas também profetas, mestres, teólogos etc. Em Paulo, portanto, não há simplesmente uma hierarquia, com base na qual alguém decide, e os outros são passivos. Eu penso que, em muitas comunidades, nós temos uma multidão de "leigos" que já exercem o seu carisma. Em ambas as confissões. E os párocos notaram que isso só funciona em grupo. Quem é, portanto, a Igreja? Como a Igreja é percebida publicamente?

3. Quem é a Igreja?

Jürgen Moltmann – Publicamente, a Igreja é percebida como Igreja institucional, como Igreja de bispos, como Igreja do papa. Deixando de lado, porém, aqueles grandes eventos que ganham o palco da televisão, a Igreja é, domingo após domingo, os três, quatro milhões de cristãos presentes nas igrejas, aqueles que durante a semana trabalham nas instituições diaconais, mas esse não é um bem igualmente "utilizável".

Hans Küng – E como a Igreja é percebida privadamente?

Jürgen Moltmann – No âmbito privado, temos uma imagem de Igreja com a qual só dificilmente podemos nos identificar. Nos escritórios paroquiais, somos catalogados como frequentadores das funções litúrgicas. Como se nós só existíssemos para frequentar o culto divino! E, na Ceia, somos contados como convidados, como se não fizéssemos parte da família. Mas é uma coisa impossível. Por isso, a minha tese é esta: a comunidade é a crítica da Igreja oficial e o seu futuro! Uma comunidade é mais do que uma circunscrição eclesiástica. No âmbito evangélico, há a tentativa de tornar a Igreja mais atraente na sua oferta religiosa, com a ajuda de consultores empresariais. Mas isso não nos degradaria a clientes da Igreja e dos seus aparatos? As comunidades nas quais vivemos, porém, não são associações locais da igreja territorial! A igreja territorial, ao contrário, é a união das igrejas vivas nesse determinado lugar!

Hans Küng – Nós, católicos, temos o problema oposto. Na Alemanha, em breve, apenas um terço das comunidades ainda terá um pároco. Tudo isso é mascarado, agregando diversas comunidades e chamando o resultado dessa operação de "circunscrição ou unidade pastoral". Temos agentes de pastoral que, no domingo, correm freneticamente de uma igreja à outra. Na Idade Média, eles seriam chamados de "padres de missa": limitam-se a celebrar a missa e depois são forçados novamente a sair de novo imediatamente. Assim, naturalmente, as comunidades se desintegram. No entanto, como se passa da Igreja da assistência religiosa à Igreja da participação ativa? Como a Igreja “para” o povo se torna uma Igreja “do” povo?

Jürgen Moltmann – Na história da Igreja evangélica, temos um exemplo: as comunidades espontâneas da Igreja confessante [ou confessional] na época do nacional-socialismo. Elas não eram articuladas de modo hierárquico, mas sim organizadas mediante os chamados "conselhos de irmãos". Eram comunidades que, na situação de opressão por parte do Estado e do partido, financiavam por sua própria conta os seus pastores. Entrava-se em uma comunidade desse tipo por explícita escolha e se recebia uma carta que atestava que você era seu membro.

Em Tübingen, temos hoje a comunidade de São Tiago. De circunscrição eclesiástica, tornou-se uma comunidade e precisamente por meio de 20 círculos domésticos. Esses círculos domésticos preparam as liturgias. As atividades da comunidade não se concentram na pessoa do pastor, que não deve estar em toda parte. Cada um é um especialista da sua própria vida, das suas capacidades, da sua fé. Quando o pastor que começou tudo isso se aposentou, a comunidade geriu sozinha as suas liturgias por nove meses. E a Igreja estava tão cheia como antes. Para mim, esse é um exemplo de como se passou de uma Igreja da assistência para uma Igreja da participação ativa.

Hans Küng – Portanto, se o ambiente-catolicismo não funciona mais, e se nem aquilo que antes constituía a cultura protestante não existe mais nessas modalidades, então o fato de participar ou não depende completamente da decisão do indivíduo.

Jürgen Moltmann – Sim, estou convencido disso, a não ser que os indivíduos sejam, naturalmente, pessoas que vivem para si mesmas. Eles vivem em relações, em famílias, em grupos de amigos etc. Mas pertencer a uma comunidade e participar dela ativamente é uma decisão pessoal.

4. A situação do ecumenismo e a questão da hospitalidade eucarística

Jürgen Moltmann – Acredito que o motivo mais profundo para o ecumenismo é a oração dirigida por Jesus ao Pai: "Que todos sejam um" (João 17, 21). E acredito que essa oração é ouvida, de forma que nós, no fundo, já somos um. Por isso, para mim, o ecumenismo significa: no fim, cresce junto aquilo que pertence a todos. Mas qual forma de crescer juntos existe hoje?

Hans Küng – Fundamentalmente, é verdade: no Espírito, já são um. Somos unidos no batismo, que as Igrejas reconhecem reciprocamente, e, se todos nós somos batizados no nome de Jesus Cristo, em Jesus Cristo somos um. Isso deveria ser levado muito mais a sério do que costumamos fazer.

Eu rejeito o ecumenismo de retorno. O fato de que o meu antigo colega, o atual Papa Bento XVI, tenha oferecido aos párocos e aos bispos anglicanos conservadores, em troca do seu retorno a Roma, a possibilidade de não observar o celibato, eu vejo isso como o contrário do que o Concílio queria. Nós queríamos que nos renovássemos por “ambas” as partes e nos orientássemos segundo o evangelho e não fôssemos novamente à caça na reserva dos outros, para nos adonar dos indivíduos. O que você pensa da fórmula da "diversidade reconciliada"? Não vai acabar em um ecumenismo que permanece estático? Constatamos que somos diferentes. Eu não valorizo o fato de que não seja evidenciado o perfil cristão comum, mas sim o perfil luterano com relação ao perfil romano. Já tínhamos superado isso.

Jürgen Moltmann – Eu também acho. No diálogo inter-religioso, por exemplo, eu sinto uma profunda comunhão com os teólogos católicos, porque, diante de outros, podemos falar a uma só voz. Lembro-me de um colóquio com marxistas, em 1968, na Tchecoslováquia. Josef Hromádka, Johann Baptist Metz e eu representávamos o cristianismo de um modo totalmente natural a uma só voz. Algo semelhante acontece no diálogo com os judeus. O judaísmo não tem uma relação especial com a Igreja evangélica e uma relação diferente com Roma. Com relação ao judaísmo, nós, cristãos, falamos a uma só voz e, nisso, estamos próximos uns dos outros.

Uma pergunta dirigida aos teólogos é justamente esta: ainda existem diferenças, sobretudo doutrinais, que tornam impossível a comunhão eucarística? E há 40 anos, entre teólogos, evangélicos e católicos, existe um comum acordo em dizer que não há nenhuma. Anos atrás, havia a proposta Rahner-Fries. Antes da primeira Jornada Ecumênica de 2003, em Berlim, os institutos ecumênicos verificaram o tema e disseram a mesma coisa. Alguns teólogos, que hoje são cardeais, afirmaram que o escândalo da divisão entre cristãos na eucaristia é muito mais grave do que o escândalo de grupos individuais que vão à frente e celebram juntos a eucaristia.

Hans Küng – A Comissão para a Fé e a Constituição da Igreja do Conselho Ecumênico de Igrejas, em 1982, juntamente com representantes oficiais da Igreja Católica, já haviam emitido a Declaração de Lima sobre batismo, eucaristia e ministério. Nela, também foi estabelecida a comum "liturgia de Lima". Segundo essa declaração, todos os pontos controversos – sacrifício expiatório, presença real, ministérios – pode ser apropriadamente considerados como resolvidos. Todos os cristãos podem afirmar com o Documento de Lima: "É Cristo quem convida ao banquete e o preside .[...] Na maior parte das Igrejas, essa presidência é representada por um ministro ordenado. […] O ministro (minister) da eucaristia é o embaixador que representa a iniciativa de Deus e expressa o vínculo da comunidade local com as outras comunidades locais na Igreja universal". Além disso, em 1971, houve o encontro ecumênico de Pentecostes em Augsburg, no qual simplesmente foi praticada a intercomunhão. Em 1971! Portanto, se queremos ir adiante, devemos realizar necessariamente de novo uma autoajuda.

Jürgen Moltmann – Nos anos 1970, experimentamos em Tübingen um grupo ecumênico de trabalho, no qual a Bíblia era lida e pregada em comum. De vez em quando, surgia a questão: não podemos também celebrar em comum a eucaristia? Um padre jesuíta e eu estávamos encarregados de preparar uma liturgia. Pensava-se que, para fazer isso, precisaríamos de algumas semanas, mas depois de três horas estávamos prontos! De fato, nós não estamos tão longes um do outro. Depois, celebramos a eucaristia juntos – e todos ficamos muito satisfeitos.

Naquele momento, não tornamos isso público. Nesse meio tempo, no entanto, a pressão se tornou tão forte que era preciso dar passos posteriores. Podia-se iniciar com os casais de esposos de confissões diferentes. O que Deus uniu, o homem não deve separar. E nem a Igreja Católica. E especialmente não na eucaristia, à mesa do Senhor. Isso é impossível e insuportável. De fato, a partir dessa experiência, ou saem casais ateus, que não frequentam mais nenhuma Igreja, ou eles vão juntos a uma só Igreja.

Um segundo passo a ser dado seria talvez que os cônjuges divorciados e separados não sejam excluídos também da eucaristia, porque, provavelmente, são eles que mais precisam dela. E o terceiro passo seria a hospitalidade eucarística, o fato de nos convidarmos reciprocamente. A esse respeito, eu gostaria de dar um testemunho pessoal: todas as vezes em que eu me encontro presente em um culto litúrgico e ouço a voz de Cristo: "Por ti dado, por ti derramado", eu participo dele. E até agora nunca fui rejeitado. No grupo dos editores da revista Concilium, sempre havia uma celebração eucarística, e os meus amigos católicos sempre vinham ao meu encontro e me convidavam com eles para essa celebração da eucaristia, e eu ouvia a voz de Cristo.

Hans Küng – A questão não é tratada de modo coerente nem mesmo em Roma: se forem as pessoas certas, é feita uma exceção. O Papa Bento XVI ofereceu a eucaristia ao fundador da Comunidade de Taizé, o teólogo reformado Roger Schutz. Quando ele era professor em Tübingen, Joseph Ratzinger participou de uma celebração da eucaristia, onde muitos católicos e protestantes estavam uns ao lado dos outros. Na verdade, ele ainda era então da opinião de que os irmãos ortodoxos devem ser vinculados só aos Concílios aos quais eles mesmos participaram, isto é, aos primeiros sete. Isso seria, naturalmente, uma grande simplificação. Mas eis que isso não foi feito, em certas circunstâncias, contra as melhores forma de ver anteriores. Por isso, eu também sou da opinião de que devemos assumir pessoalmente o comando da situação agora e simplesmente seguir em frente.

Jürgen Moltmann – A esse respeito, quero expressar ainda um pensamento audaz: antes vem a experiência, depois a teoria! Primeiro a práxis, depois a teologia! Na Ceia e, respectivamente, na eucaristia, nós celebramos não as nossas teorias, mas sim a presença do Cristo vivo! E, por isso, eis a minha proposta: primeiro vem o comer e o beber, e só depois ficamos na mesa para discutir – na presença viva do Cristo – as nossas diferenças, para resolver as nossas controvérsias etc. Portanto, primeiro a comunhão na Ceia do Senhor e depois a discussão sobre a teoria e a teologia.

O “Magnificat” da Estrela Virgem: respeito às tradições religiosas mais antigas que foram ensinadas a Jesus

Imagem daqui

Este texto é para mostrar como a oração conhecida como “Magnificat” (Evangelho de São Lucas, 1:46-55), dita pela Virgem de Nazaré após a visitação do Arcanjo São Gabriel, profetiza, em tudo, os ensinamentos de Jesus, seu filho, por Ele sintetizados no “Pai-Nosso” (oração que, por seu turno, será analisada num artigo posterior).

Antes de analisar o “Magnificat”, entretanto, é bom lembrarmos que Maria de Nazaré é o elo entre as três religiões monoteístas do Ocidente: 1) Maria é a única mulher profeta no Corão (é reverenciada no Islamismo, com ritos e cerimônias específicas a ela, considerada a mãe de outro profeta para o Corão, que é Jesus de Nazaré segundo a concepção do sábio profeta Maomé); 2) Maria é judia, foi educada como judia (em escolas extremamente restritas e rigorosas na lei de Salomão, como se vê em Evangelhos apócrifos) e nunca deixou as tradições judaicas (é, pois, reverenciada no Judaísmo); 3) Maria foi a primeira cristã, aquela que trouxe no ventre o anúncio da interpretação das Escrituras pela óptica do amor de Cristo (é, portanto, a Arca da Aliança do Cristianismo).

Sempre digo, quando me é concedida a voz para isso, que em Maria se pode perceber a esperança de um mundo em que as diferenças de pontos de vista, de ideologias e até de religiões não se contrariam nem entram em choque, mas, antes, se complementam como numa verdadeira Santíssima Trindade. Deus criou a diferença, ATÉ, de ideias, e, pois, ATÉ essa diferença deve ser respeitada como fruto da Vontade do Pai.

Ditas essas palavras de preâmbulo, vamos à análise das profecias crísticas contidas no Magnificat.
Farei a análise do original grego (idioma em que sou bacharel e especialista), cuja tradução posterior para o latim (a da Vulgata, de São Jerônimo) e mesmo a dos padres barnabitas para o francês da Bélgica são excelentes.
Μεγαλύνει (Magnificat) 
Μεγαλύνει ἡ ψυχή μου τὸν Κύριον καὶ ἠγαλλίασε τὸ πνεῦμά μου ἐπὶ τῷ Θεῷ τῷ σωτῆρί μου, ὅτι ἐπέβλεψεν ἐπὶ τὴν ταπείνωσιν τῆς δούλης αὐτοῦ.

ἰδοὺ γὰρ ἀπὸ τοῦ νῦν μακαριοῦσί με πᾶσαι αἱ γενεαί.
ὅτι ἐποίησέ μοι μεγαλεῖα ὁ δυνατός καὶ ἅγιον τὸ ὄνομα αὐτοῦ, καὶ τὸ ἔλεος αὐτοῦ εἰς γενεὰς γενεῶν τοῖς φοβουμένοις αὐτόν. 
Ἐποίησε κράτος ἐν βραχίονι αὐτοῦ, διεσκόρπισεν ὑπερηφάνους διανοίᾳ καρδίας αὐτῶν•
καθεῖλε δυνάστας ἀπὸ θρόνων καὶ ὕψωσε ταπεινούς, πεινῶντας ἐνέπλησεν ἀγαθῶν καὶ πλουτοῦντας ἐξαπέστειλε κενούς. 
ἀντελάβετο Ἰσραὴλ παιδὸς αὐτοῦ, μνησθῆναι ἐλέους, καθὼς ἐλάλησε πρὸς τοὺς πατέρας ἡμῶν, τῷ Ἀβραὰμ καὶ τῷ σπέρματι αὐτοῦ εἰς τὸν αἰῶνα.

Qualquer pessoa que esteja familiarizada com a tradição do cristianismo sabe – embora nem sempre reconheça – que Maria, a mãe de Jesus, foi a primeira cristã da história, como foi dito. Até mesmo o primeiro milagre público de Jesus (isso para ficarmos apenas nos Evangelhos canônicos, sem precisarmos, por ora, recorrer aos apócrifos) foi obedecendo a uma solicitação da Virgem de Nazaré. Nas bodas de Caná, quando Jesus transforma água em vinho, demonstrando o poder da conversão e da transubstanciação da Alquimia, que um São Tomás de Aquino e um São Gregório Magno (este, professor daquele) reconheceram em suas obras, Ele o faz a pedido de sua Mãe, que, imediatamente, demonstrando em público que era Ela mesma uma cristã (a primeira entre os primeiros), declara: “Fazei TUDO o que Ele vos disser”. Estava lançada publicamente a tradição do Cristianismo, ou da Cristandade, como se prefira.

Maria diz: “Fazei TUDO o que Ele vos disser”. Ela sabe que Jesus é um Mestre e que, como tal, conhece TUDO o que nos é necessário para o aperfeiçoamento segundo a Lei.

Maria é, desde a gênese, a Voz do Ecumenismo. Se a comunhão da Eucaristia significa comer o corpo de Jesus, bebendo o vinho que lhe é o sangue, Maria obviamente foi a primeira a comungar, uma vez que nem precisou comer a carne e o sangue de Cristo, já que os trouxe em seu ventre, gerando-os de sua própria carne e de seu próprio sangue. Maria deu à Luz o “Verbo que se fez carne e habitou entre nós” (Evangelho de São João). Maria é a Arca da Aliança do Cristianismo, a primeira de toda essa tradição teológica, a Pedra da Sabedoria Cristã. Sem Maria, Cristo não seria possível. Ela foi a escolhida do Criador para gerar do Espírito Santo o corpo do Messias. Ela disse ao Arcanjo Gabriel “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Evangelho segundo São Lucas, 1: 38), permitindo, com seu livre-arbítrio, que a Vontade do Criador se manifestasse na terra e “habitasse entre nós”. Sem o “Fiat” (“Faça-se”, Evangelho de São Lucas) de Maria, o “Fiat Lux” (“Faça-se a Luz”, Gênesis) do Criador não seria possível. Se Maria não aceitasse totalmente o risco de ser até repudiada e apedrejada em público como adúltera, o Caminho não poderia ser revelado.

O que poucos lembram é que Maria foi co-responsável, como uma Mestra, para ensinar com retidão a seu filho. Maria fora educada segundo tradição antiquíssima dos Sacerdotes de Melquisedeque e Salomão (um dos títulos de Jesus fora “Sacerdote de Melquisedeque”, assim como “Filho de Davi” etc.), e ela própria transmitiu esses ensinamentos ao jovem Filho Jesus, que ela tão discretamente educou segundo os princípios de piedade e religiosidade judaica, a fim de que o mesmo Jesus, no momento oportuno, viesse a transcender como um Mestre do Verdadeiro Caminho, na Boa Nova de seu Evangelho (do grego ἐὐανγελὸς).

Maria iniciou Jesus nos mistérios da Tradição mais antiga, inclusive quando visitou o Egito (“Do Egito chamei meu filho” Profeta Oseias, 11: 1, confirmado no Evangelho de São Mateus, 2:15: “e lá ficou até a morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei o meu Filho”) para livrar-se da fúria do imperador, quando recebeu a visita dos três reis Magos do Oriente, que também ajudaram na iniciação do Menino Jesus, e, posteriormente, quando permitiu que seu Filho viajasse para a Grande Escola, dos 12 aos 30 anos de idade, onde sua educação, que teve de se manter um mistério para os cristãos, por razões que os desígnios de Deus o sabem, foi, enfim, completada. Dali em diante, ele começou sua chamada “vida pública”. Até então, sua vida foi de aprendizado e educação nas mãos de sua mãe, de seu pai adotivo, a árvore da sombra, São José, do Espírito Santo e de outros mestres.

O que também poucos lembram é que Maria se manteve firme em seu propósito de cristã até o último instante de sua vida terrena. Ela assumiu o risco durante a crucificação de Seu Filho, momento em que até seus apóstolos mais chegados, premidos pelo medo do flagelo, negaram a Cristo tantas quantas fossem as vezes necessárias. O próprio São Pedro, por exemplo, questionado se era seguidor de Jesus, por três vezes, por três vezes o negou. Mas Maria lembrava-se de que seu propósito não era um caminho egocêntrico, mas sim O Caminho Cristão, e não se desviou dele, assumindo todos os riscos que isso pudesse lhe acarretar. Stabat Mater: “Estava a mãe em pé diante da cruz”. Quem teme a Deus não precisa temer a mais nada.

Maria é a primeira Santa do Cristianismo. E é a única Santíssima. Enquanto São Dimas, o bom ladrão, foi canonizado pelo próprio Cristo, na cruz, ao seu lado, Maria já fora canonizada pelo emissário de Deus, o Arcanjo Gabriel, com a autoridade do Espírito Santo, quando o Arcanjo, profetizando o “Sim” de Maria, lhe anuncia pela voz do Criador: “Ave Maria, cheia de graça. Não temas, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. O Espírito Santo descerá sobre ti e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra” (Evangelho de São Lucas, 1).

Santa Isabel, também profeta, mãe do precursor de Jesus, São João Batista, confirma as palavras do Arcanjo da Anunciação e exalta a visita da Virgem Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”.

Então, Maria, a Santíssima, Primeira entre os Primeiros, diz o seu “Magnificat”, que é o prenúncio do caminho anunciado na oração ecumênica do “Pai-Nosso”.

O “Magnificat” é inspirado no cântico de Ana, do Antigo Testamento, e veio a fim de glorificar a própria ascendência marista e a de seu Filho, já que a mãe de Maria se chamava, também, Ana. O “Magnificat”, se comparado às exortações e aos ensinamentos do “Pai-Nosso”, mostra como Maria já tinha a Revelação da Divindade em sua Consciência.

Vamos a uma interpretação trazida do grego acima exposto no texto original que chegou a nós graças aos Doutores em Sagradas Escrituras, cujo pré-requisito, até hoje, num seminário de formação sacerdotal católico, é ser conhecedor fluente do idioma grego ático-jônico ou clássico.
“Minha alma (no original, “ψυχή”, também significa “borboleta” em grego, aquela criatura que precisa sofrer o “casulo” para deixar de rastejar e voar) glorifica ao Senhor, 
meu espírito (πνεῦμά, “Pneuma”, como eu falei em outro artigo, “pneuma”, em grego, quer dizer “ar”, cf. “pneumático”, e também “espírito”; a polissemia é frequente no grego para enriquecer as exegeses) alegra-se profundamente (ἠγαλλίασε) 
em Deus, meu Salvador (σωτῆρί – Soteri será o título de Jesus),

porque olhou para a humildade (ταπείνωσιν) de sua serva.”

Nos quatro primeiros versos, a Virgem já fala dos três níveis de conversão necessários à consecução do Caminho de Cristo: fala em “alma” (v. 1), em “espírito” (v. 2) e em corpo (“serva”, v. 4). Em resumo, ela aponta para os três caminhos básicos que Jesus explicita de modo sintético e claro no “Pai-Nosso”: o caminho do espírito, o caminho do corpo e o caminho da alma. À frente, Maria falará da conversão milagrosa do amor e da compaixão de Deus, que NÃO olha nossos pecados, mas abre-se a qualquer um que lhe implorar o perdão, sendo todo o passado ESQUECIDO, e lembrado apenas o pedido de perdão; a conversão da fé: quando diz “lembrado de sua misericórdia” (verso 19), como veremos.

E, assim como o “Pai-Nosso” começa com a evocação do Supremo Criador (“Pai Nosso, que estais no céu”), o “Magnificat” se inicia com a mesma evocação, com a alma olhando para o “Senhor” (“Minha alma glorifica ao Senhor” – “Magnificat”, v. 1), para o Pai. Assim também como o “Pai-Nosso” diz que o nome de Deus não importa (reiterando a resposta do Próprio Deus a Moisés, quando lhe pergunta: “Quem és tu?”, e Deus diz: “Eu sou aquele que sou”), que, sendo Ele o Criador, Ele é “santificado” (“Santificado seja o vosso NOME” – “Pai-Nosso”), Maria tampouco nomeia ao Senhor, chamando-o apenas de “Deus” e de “meu Salvador” (v. 3), seguindo as instruções de Deus a Moisés e o futuro ensinamento de Jesus.

Aqui se percebe de quem, antes de tudo, Jesus aprendeu sua lição de ecumenismo: de sua mãe, a Virgem Maria. Sobre o Nome de Deus, Maria vai mais além, como uma verdadeira Mestra que terá de dar os primeiros passos àquele cuja missão é redentora. Segue no Magnificat”:
"Por isto, desde agora, 
Proclamar-me-ão bem-aventurada (μακαριοῦσί) todas as gerações (πᾶσαι αἱ γενεαί), 
Porque realizou maravilhas em mim aquele que é poderoso 
E cujo nome é Santo. (καὶ ἅγιον τὸ ὄνομα αὐτοῦ) ”
Nos versos 7 e 8, Maria, mais uma vez, remete à “definição” de Deus, comprovando que, na verdade, o Senhor é inefável, não suscetível de ser nomeado, como ele mesmo se apresentou: “Eu sou aquele que sou”, como dissemos. Diz Maria, falando sobre “quem” é Deus: “[Ele é] aquele que é poderoso / e cujo NOME É SANTO” (vs. 7 e 8). Indo-se ao Pai-Nosso, vemos a sabedoria dessa lição no verso 2 : “SANTIFICADO SEJA o Vosso NOME” ("cujo NOME É SANTO", Magnificat, v. 8). Impossível não ver a doce mão de Maria sobre a língua de seu filho Jesus em seu “Pai-Nosso”.

Também está presente o ecumenismo de Deus quando Maria diz: “me proclamarão bem-aventurada TODAS AS GERAÇÕES”. Isto é, a salvação é aberta indistintamente a todos que se propuserem, por livre e espontânea vontade, seguir o Caminho. Não há discriminações, preconceitos, discórdias, raças, orientações etc. que impeçam a salvação: quem seguir o caminho chegará ao galardão prometido. “Pedi, a abrir-se-vos-á”. Ainda em relação à não segregação, Maria completa, reiterando o ecumenismo intrínseco à misericórdia de Deus, nos versos 9 e 10 do Magnificat:
“Sua misericórdia (καὶ τὸ ἔλεος αὐτοῦ) se estende, de geração em geração (γενεὰς γενεῶν), 
Sobre os que o temem”.
Ela, assim como Jesus, não distingue pessoas por características quaisquer, a não ser a de temer a Deus e seguir o seu Caminho.
Além de expressar o amor incondicional de Deus, Maria também reforça que somente Ele é digno de temor, de respeito e de adoração, no verso “sobre os que o temem”. Vemos aqui a lição da Entrega Suprema, presente no “Pai-Nosso” no “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade”. Mais uma vez é evocada a alta clemência e misericórdia de Deus, sem cuja ajuda nada se pode fazer, quando Maria nos revela mais uma vez quem é a fonte única do poder:
“Manifestou o poder de seu braço: 
Desconcertou completamente os corações dos soberbos (διεσκόρπισεν ὑπερηφάνους)”.
Dura, porém doce, é esta lição da Mãe, que o Filho tão bem guardou em seu coração. Ela nos ensina que a primeira “tentação” é a ilusão de que temos o poder, a ilusão que acomete o espírito, a alma e o corpo – a ilusão da soberba. O poder real é do braço de Deus, e este poder, que é o único verdadeiro, desconcerta os que estão iludidos com a soberba. – Desconcertou os corações dos soberbos”. Di-no-lo Santa Maria, a Nuvem Alva Perene da Montanha de Sião.

Jesus precisou, e muito, desta lição quando o demônio o tentou no deserto sugerindo-lhe que Ele, Jesus, se arremessasse das pedras para provar seu poder, fazendo com que os anjos de Deus viessem resgatá-lo (o demônio, que conhece muito bem as Sagradas Escrituras, porque ele fora o anjo mais próximo de Deus outrora, e foi arremessado aos infernos exatamente porque acreditou que poderia julgar e ter os mesmos poderes exclusivos de Deus – era soberbo –, evoca o Salmo 90). Jesus, sabendo que aquele seu ato demonstraria soberba de sua parte, responde com outra passagem do Antigo Testamento: “Não tentarás ao Senhor teu Deus”, provando, também, sua submissão e sujeição à Lei maior, que é a força de Deus, e não à força de um ego frágil e desconcertante, cheio de dúvidas e receios, angústias e apego aos bens materiais, inclusive a materialidade da palavra do Antigo Testamento, que sem o Espírito (como mostra São Paulo), mata, mas, com o Espírito, vivifica.

Quem teme a Deus não precisa temer a mais nada. Esta é a lição da Santíssima Mãe de Jesus ao dizer que “Sua misericórdia se estende, de geração em geração, SOBRE OS QUE O TEMEM”. E essa lição é repetida por Jesus, que demonstra tê-la aprendido, diante do demônio, nas tentações do deserto. Continuando a falar sobre a ilusão da soberba, Maria continua: “Derrubou do trono os poderosos / E exaltou os humildes”.

Ou seja, só na entrega, na submissão e na gratidão o caminho pode ser iniciado.
“Saciou de bens os indigentes 
E despediu de mãos vazias os ricos”.
Isso está presente nas palavras futuras de Jesus, em São Mateus: “Ao que tem, mais lhe será dado, e ao que não tem, até o que pensa que tem lhe será tirado”. Esse “ter” a que Jesus faz menção não é o “ter” em posses, mas sim o “ter” em Consciência. E, para chegar a ela, é preciso, antes de tudo, saber-se que NÃO SE SABE: ter consciência da própria inconsciência e inaptidão em alcançá-la sozinho, para, com isso, haver a total entrega ao poder de Deus – humildade. Consciência de que só na humildade se chega à sabedoria de Deus: “Não alcanço de tão alto” (Salmo 118).
“Acolheu a Israel, seu servo, (Ἰσραὴλ παιδὸς – “Israel paidós”, literalmente: “Israel, sua criança”), 
Lembrado da sua misericórdia, 
Conforme prometera a nossos pais, 
Em favor de Abraão e sua posteridade (σπέρματι – “spermati”, literalmente, “semente”, “fonte original”), para sempre”.
O que vemos aqui é o reforço da Natureza ecumênica de Deus, já que Israel simboliza, neste verso, todas as pessoas que quiserem ser salvas na Luz da Consciência Crística, e que estiverem prontas à entrega e submissão totais (já que Israel é “seu SERVO”) que essa salvação exige. O “lembrado da sua misericórdia” remete imediatamente ao “não nos deixeis cair em tentação”, que é o caminho da conversão pela fé e humildade, único possível para se chegar à Sabedoria verdadeira, a que vem do Espírito, não da literalidade.

“Conforme prometera a nossos pais” é reiterado por Jesus quando diz “Eu não vim abolir a lei, mas sim confirmá-la”. Isso não significaria que ele veio manter a literalidade, pois o próprio Jesus diz que “não se faça mais de hoje em diante olho por olho, dente por dente, mas, antes, ao contrário, se alguém te ferir uma face, oferece a outra; se alguém te roubar uma túnica, dá-lhe a outra” – o “não revogar” de Jesus significa DAR A VERDADEIRA INTERPRETAÇÃO – na luz, no amor, no Espírito Santo, cuja sabedoria só é revelada, como estamos vendo, aos humildes, e nunca, jamais, aos soberbos.

Ou seja, a promessa de Salvação incondicional, através do caminho da entrega em direção à recordação (conhecimento da tradição) e Consciência, existia já aos “nossos pais” (v. 19). Daí Jesus começar a sua oração ecumênica chamando Deus de “Pai nosso”, e lembrando “assim na terra como no céu”, ou seja, aos “nossos pais” da terra (“Magnificat”, verso 19), encarnados e metonimizados por Maria em “Abraão e sua posteridade” (“Magnificat”, verso 20) e ao “Pai Nosso” (Pai-Nosso, verso 1), “que estais nos céus” (“Pai-Nosso”, verso 1). O “para sempre” que fecha o Magnificat evoca que o poder de Deus é infinito e que sua misericórdia é eterna e não faz distinções “humanas”.

Sem o ventre e os ensinamentos de Maria – que é a carne e o sangue de Jesus –, não se abriria a porta que leva ao Reino da Consciência e da Responsabilidade. Na grande tradição cristã, Maria também é, portanto, Redentora da espécie humana e das espécies que habitam a Terra, cada uma segundo seu entendimento.

- Marcelo Moraes Caetano

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O perdão e o cárcere da memória

Escultura: Nicholas Galanin

Misericórdia aos algozes que mataram brutalmente 6 milhões de judeus? Compaixão aos torturadores que tiraram a vida ou removeram a dignidade do corpo e da alma de muitos que ousaram lutar contra as ditaduras? Perdão aos estupradores de crianças e aos pederastas que abusam dos meninos? Renúncia, sem sofrimento, à condenação dos culpados? Feito deuses terrenos, promovemos a remissão dos pecados e seguimos adiante, resolutos, como se o mar nao mais houvesse? Há malefício ou crime hediondo que não seja redimido pelo perdão de homens e mulheres? Com o perdão ou o seu avesso, conviveremos com a culpa ou a penitência, se não a religiosa, mas no mínimo a da consciência? Encarar o gesto como bondade ou como patologia? Enfim, existem os imperdoáveis?

À inquietude de tais perguntas, eis o convite à conversa feito ao Padre Júlio Lancellotti, sacerdote católico, formado em pedagogia e teologia, membro da Pastoral da Menor da Arquidiocese de São Paulo, Vigário Episcopal do povo de rua, pároco da pequena Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, Zona Leste de São Paulo. Ele próprio um potencial porta-voz daqueles que podem se declarar como impossibilitados de conceder o perdão a seus algozes - em 2007, Lancellotti percorreu seu calvário, vítima de uma insidiosa campanha de difamação e extorsão, ao ser envolvido injustamente numa acusação de pedofilia. Engano puro. Na entrevista a seguir, ele explica, defende e justifica o perdão. Uma forma de justiça espiritual, para livrar-nos do mal, amém, em que a bondade substitui a vingança e a memória supera o esquecimento.

A reportagem e a entrevista é de Luiz Cesar Faro e Rodrigo de Almeida e publicadas na revista Insight Inteligência, ano XIV, nº 53.

Eis a entrevista, reproduzida via IHU, com grifos nossos.


O perdão dos grandes delitos, das barbáries, a capacidade de perdoar a tudo e a todos não seria uma anormalidade psicológica?

Oscar Wilde dizia que é fácil falar do perdão até que você tenha de perdoar. Pensemos: o Holocausto tem perdão? Os genocídios cometidos na América contra nações indígenas têm perdão? O que significa perdoar esses crimes? O papa João Paulo lI, em 2000, ano santo do milênio, fez vários pedidos de perdão. Eu lhes digo: perdoar não é esquecer. Perdoar é lembrar. Muitas pessoas me dizem: "Padre, eu não esqueço o que fizeram de mim". Eu respondo: "Claro, você não esquece porque não sofre de amnésia". Como não esquecemos momentos como o Holocausto. Perdoar não é esquecer, repito, perdoar é lembrar para que isso não aconteça mais. Perdoar o Holocausto não significa dizer, portanto, que não faz mal, que tudo está bem. Não, significa dizer que nós lembramos e que não queremos sua repetição.

Mas o perdão não comporta algum tipo de absolvição?

A absolvição não significa a possibilidade de se cometer novamente aquele erro. Por exemplo, o que significa perdoar um aborto? Significa que a pessoa não vai mais cometê-lo. Como perdoar o Holocausto significa dizer que não permitiremos a reprodução desse mal. A absolvição é isentar as pessoas da responsabilidade. O perdão é absolvição se leva à irresponsabilidade. Mas perdoar não é tornar a ofensa irresponsável. "Não faz mal que você cortou meu braço, eu lhe perdoo". Ou: "Não faz mal que yocê tenha destruído minha vida". Longe disso. O perdão significa tirar da mão de quem ofende o instrumento da ofensa. O que é perdoar um ditador como foi Augusto Pinochet no Chile? Ou Anastásio Somoza na Nicarágua? Ou Jorge Videla na Argentina? Ou aqueles que torturaram na ditadura militar brasileira? Perdoar aí é justamente não esquecer, é resistir, é responsabilizar, é não produzir um mal igual. Não é absolver.

Parece tênue a fronteira entre o perdão e a absolvição, entre o esquecer e o perdoar. Mas os sobreviventes dos campos de concentração não somente não esqueceram o holocausto como não perdoaram seus algozes. Há circunstâncias em que o perdao é impossível?

Não podemos confundir o não esquecer com o não perdoar. O perdoar significa não aceitar aquela violência. "Tudo bem, vocês mataram 6 milhões de judeus, milhares de cristãos como o Maximilano Kolbe (aponta um quadro na parede), reconhecido na Igreja como santo, a Santa Edith Stein, reconhecida como uma judia que se tornou cristã e foi exterminada numa câmara de. gás, o Tito Brasman, o Carlos Leisner, enfim, os milhões de judeus e milhares de cristãos mortos no Holocausto". O perdão é para que não se produza um novo Holocausto. Ele não é doce nem é dócil, por mais reconfortante que possa ser para quem perdoa e, notadamente, é perdoado. Mas as lembranças das barbáries, opróbrios, crimes e ignomínias são importantes para afastar de nós essas enfermidades.

E a absolvição?

Não há absolvição num caso como esse. Como é possível absolver alguém que exterminou e cometeu um genocídio? Na visão cristã, o perdão último só compete Deus. E eu não sou dono dos juízos de Deus. Se alguém vem a mim e confessa que deu um desfalque de milhões na empresa e pede a absolvição, eu direi para ele: "Você acredita e deseja a absolvição? Quer o perdão de Deus? Então tem de devolver o dinheiro." A absolvição requer restaurar o dano, restaurar a justiça, restaurar o erro cometido. Se alguém vai a um padre e diz que matou alguém e agora outra pessoa está presa em seu lugar, e pede a absolvição, eu lhe digo: "A absolvição será dada se antes você for à Justiça se apresentar como culpado”. E responderá na Justiça pelo crime que cometeu, caso contrário não terá absolvição. Não posso dar uma absolvição para uma pessoa que matou, outra está condenada no lugar dela e ela fugir da Justiça. O Papa João Paulo II visitou Mehmet Ali Agca na prisão, mas não foi à Justiça pedir que ele fosse solto. A questão religiosa não interfere na Justiça. Algum tempo atrás começaram a surgir nos processos referências à conversão religiosa de réus e, por conta dessa conversão, propondo a redução ou anulação da pena. No início alguns juízes embarcaram nisso, mas logo perceberam que isso poderia ser uma manipulação religiosa. Nos segredos da confissão, eu não posso ir ao delegado e informar: “Eu sei quem é o assassino de Fulano”. Não se seu souber pela confissão.

Ainda que a justiça o intime?

O Código Penal mostra que ministro religioso no seu exercício não é obrigado a dar as informações que sabe. Eu vivi uma situação dessas, num processo contra policiais que haviam matado menores. No julgamento fui arrolado como testemunha e me questionaram: eram meninos de rua? Usavam drogas? Eram delinquentes? Eu solicitei o artigo do Código que me faculta o direito de permanecer em silêncio. Um padre, um pastor, um rabino, um xeque, nenhum ministro religioso é obrigado a falar na Justiça. Mas também direi para a pessoa que se confessou e pediu seu perdão que ela tem de restaurar o dano que fez. Há uma história muito famosa creditada a São Filipe Neri. Ia até ele uma pessoa que difamava outras. O padre perdoava. Ela difamava, ele absolvia, ela difamava, ele absolvia. Até que, numa ocasião, ele lhe disse: "Sua penitência será subir na torre da Igreja em Florença e depenar uma galinha". Ela foi à torre e depenou a galinha. Quando voltou, perguntou: "Cumpri a penitência?" Ele lhe respondeu: "Agora você vai lá e recolhe as penas da galinha". Era possível recolhê-las? Claro que não. Pois o padre lhe disse: "É impossível você recolher todo o dano que faz falando contra os outros, tirando a honra das outras pessoas. Então tem de pensar que o que você faz é como depenar as penas da galinha na torre da igreja. Não há como recolher as penas".

Isso é surpreendente, porque a minha visão de leigo pressupunha que a igreja, em nome de Deus, perdoaria quase que obrigatoriamente. Que não seria um perdão condicionado.

O perdão não é uma obrigação, e sim um ato de amor. E é um ato de reconciliação. Estar reconciliado significa estar novamente unido. E para você estar reconciliado é preciso reparar o mal que fez. A Igreja não se esquece de São Maximiliano Kolbe: o fato de ele ser considerado um santo e um mártir significa dizer que não vamos esquecer o que fizeram com ele. As igrejas mostram Jesus crucificado para dizer: a crucificação de Jesus foi um assassinato, e nós reverenciamos e adoramos um Deus que morreu assassinado, em nome daquilo que defendeu - a vida dos pobres, dos fracos, dos que sofrem. O perdão cura. O perdão tem de curar. O perdão pode ser uma responsabilidade histórica ou pode ser uma responsabilidade pessoal. Você não pode tirar a responsabilidade dessa pessoa pelo mal que fez. Quantos não criticam os direitos humanos? Dizem: "Mataram o meu filho, cadê o pessoal dos direitos humanos? Eles não vêm me consolar?" Essas pessoas não entendem que os direitos humanos estão trabalhando para que ninguém seja assassinato e para que o assassino não perca sua responsabilidade, mas não seja castigado da mesma forma que abominamos. Você não pode destruir ninguém, e esse ninguém o inclui também. Eu não posso destruí-lo também. E não posso tirar dele a responsabilidade pelo que fez.

Existe uma confusão sobre a passagem bíblica do "olho por olho, dente por dente".

A Lei de Talião foi um grande progresso jurídico na época. Quando ela surgiu, não era um olho por um olho. Eram os dois olhos por um olho. Era a vida por um olho. Na época, muitos reclamaram, chamaram-na de absurdo, porque achavam que era necessário acabar com a pessoa, destruí-la inteira. A lei exigiu que a cada olho perdido, um olho perdido de volta, e não uma vida inteira. Hoje nós a consideramos muito cruel, mas na época foi um progresso nos direitos humanos, um freio na vingança desmedida. E Jesus vem à frente para trazer um conceito novo, que supera tudo isso: a misericórdia, a compaixão, que traz o perdão como possibilidade de vida nova. A vida nova é não ter que matar ninguém, nem ofender, nem destruir. Por isso Jesus disse: "Quem chamar seu irmão de patife está condenado. Aquele que chamar seu irmão de tolo será condenado". Jesus propôs uma radicalidade: nenhum grande mal começa sem antes ter sido pequeno. Uma pessoa chega a matar ou destruir outra porque não consegue controlar o ódio que sente. É preciso, portanto, trabalhar esse sentimento. Um dia falei para as presas na cadeia: "Vocês perderam a liberdade, não podem sair daqui, mas podem não jogar água quente em cima da companheira. Essa liberdade vocês não perderam. Perderam a liberdade de ir e vir, mas não a de não usar as pessoas mais fracas na prisão, a liberdade de não usar a sexualidade para estuprar outra presa, a liberdade de não enfiar o estilete na barriga da outra. Essa liberdade vocês ainda têm."

Em que medida o perdão é mais um conforto a si próprio do que um ato de misericórdia, bondade, compaixão em relação ao outro? No fundo, não é um ato egoísta, narcísico?

Quando vemos alguém sofrendo com uma dor, damos um remédio e essa dor passa, não sentimos um alívio por ela? Não nos sentimos aliviados também? Quando seu filho está com febre e você dá um remédio que passa essa febre, você não se sente aliviado também?

Sim, mas nesse caso, existe um afeto pelo outro. Às vezes o que existe é só a aversão.

É verdade, ninguém é obrigado a ter afeto, nem a gostar de todos. Somos obrigados a respeitar a todos, mas não de gostar. Amar é um ato de liberdade. É mais do que um sentimento. É uma decisão. O Papa Pio XII dizia que o amor mais perfeito é o amor político, porque é o amor que faz o bem para todos. Uma norma política é um amor que atinge a muita gente, independentemente de você gostou ou não de cada uma. Por isso que, aqui em São Paulo, lutamos por políticas públicas para a população de rua. Trata-se de um ato de amor porque atinge indistintamente aqueles de que gosta e aqueles de quem não gostamos. Quando se reconhece o direito dos quilombolas, isso é independente de se gostar deles ou não. Mas é um ato de amor para todos.

Mesmo que as motivações sejam artificiais ou por interesse. O resultado continua sendo um ato de amor?

Vou dar um outro exemplo: as medidas tomadas em benefício dos portadores de necessidades especiais, dos idosos ou dos adolescentes autores de infração. Os idosos têm o Estatuto do Idoso. Os adolescentes têm o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como é difícil para a sociedade lidar com o adolescente infrator. Há uma lei no país que dá imputabilidade até os 18 anos. A vontade política e legal do país se manifestou dessa forma, independentemente se você gosta ou não desses adolescentes. Na Justiça, o réu tem direito a uma defesa. Podemos estar com uma bruta raiva, participando do julgamento, mas ele terá direito à defesa, ao contraditório.

O direito do perdão tem um paralelo, portanto. Com o direito da defesa. Ambos têm de ser responsabilizados e eventualmente condenados.

O perdão é um passo a mais. Mas existe na Justiça algo semelhante. No Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, há a figura da remissão. A remissão é praticamente um termo religioso, que é a remissão da falta. Na missa, o padre fala na consagração na remissão dos pecados. A remissão é o perdão, um perdão que pode ir até o heroísmo. O estatuto prevê a remissão. Um jovem que entrou no supermercado e pegou um iogurte, mas tem estrutura familiar, está na escola, ou até trabalhando, pode receber do promotor a remissão. Mas, como no termo religioso, é um perdão regrado. O Direito Canônico da Igreja prevê o pecado do aborto, porque pecado é tudo aquilo que atenta contra a vida. Eu não ofendo a Deus se o xingo, mas ofendo o meu irmão se atento contra a vida. Recentemente o psicanalista Jorge Forbes disse que a compaixão, a misericórdia, é uma irresponsabilidade. Ora, a compaixão é sofrer com o outro sem ser o outro. A misericórdia é agir com o coração diante da miséria do outro. Gosto muito dele, mas acho que precisaria trabalhar melhor o conceito. O perdão, como eu lhes disse, não irresponsabiliza. É justamente o contrário. O perdão responsabiliza, significa dizer: "Você fez o mal, e esse mal foi tão grave que o perdão que lhe cura é não fazer mais esse mal, é lhe reabilitar para fazer o bem, é curar essa ferida que o levou a fazer o mal". Em 1978 eu trabalhei numa casa da Febem, com bebês abandonados. Lá fomos ver a gênese da infração. A criança que chorava e era atendida não chorava mais. A criança que ficava presa no berço todo o tempo segurava na grade e batia o peito ali. E se feriam. Pareciam punir-se. Muitas vezes a infração começa assim. Portanto, temos de ver que temos nossa responsabilidade de tornar as pessoas insensíveis e amargas. O perdão nos ensina também a como construir fraternidade, a como construir solidariedade, a como construir direitos. Nosso direito não é espartano. Tem progressão de medida e uma série de mecanismos e recursos que assimilam valores cristãos. Pena que não está sendo bem feito. O preso não é tratado, mas trancafiado, portanto continua sendo um perigo para nós porque, mesmo na cadeia, se mantém como parte de organizações criminosas.

Há algum ato ou dano que seja imperdoável?

No sentido de não sermos capazes de esquecer, atos como o Holocausto, por exemplo. Ou se alguém comete um aborto, pede perdão mas diz que, se engravidar novamente, vai abortar, essa pessoa não pode receber o perdão. É raro, porém, que alguém que pede perdão por um aborto esqueça o ato. Ela não esquece. Aquilo marca tanto sua vida que ela não esquece. Mesmo entre aqueles que não nos procuram pedindo perdão, desconheço alguma gente que fique feliz. Pois é um ato que lesa muito no corpo. Mesmo as pessoas que propõem a descriminalização do aborto, elas não estão fazendo uma campanha a favor do aborto. O que elas propõem é não criminalizar.

O perdão da igreja para os fiéis é o mesmo perdão para seus pastores?

Sim. Mesmo os padres que cometem crimes perdem seus status. Há suspensão de ordens. Na questão da pedofilia, é entregue à Justiça. Recentemente saíram normas bem rígidas em relação a isso. O padre é entregue à Justiça e tem de responder judicialmente pelo crime que cometeu.

A igreja não perdoa o suicídio, embora seja um ato de livre arbítrio. Ela sequer recebe o suicida em sua casa.

No caso do suicídio é preciso verificar em cada situação. Por princípio, claro, a Igreja não apoia o suicídio Mas lembro o nome do Frei Tito de Alencar, considerado um homem heroico pela própria Igreja. Foi suicida. Mas ele se suicidou pelo dano mental causado pela tortura. Os despojos do Frei Tito foram recebidos na Catedral da Sé pelo cardeal Evaristo Arns, como um mártir da luta pela liberdade e contra a ditadura militar. Mas os danos que o delegado Sérgio Fleury lhe causou nos porões da ditadura o incapacitaram para ter uma consciência. O Frei Tito é um caso emblemático. Ele via o rosto do Fleury até nas flores. Aonde ele ia via o rosto do seu torturador. Por isso, pergunto: alguém que cometeu suicídio passou por uma tortura psicológica que o incapacitou de ter liberdade? Ele ficou incapacitado de arbítrio? Em sã consciência, ele teria feito essa escolha? A lei, já dizia São Paulo, tornou-se um lixo porque encontrei a liberdade do amor. Hoje existe um memorial para o Frei Tito. Recebeu todo o afeto, porque poucos foram torturados como ele. Foi torturado barbaramente e se suicidou depois. Agora há uma polêmica em torno do coronel Ustra. Ninguém quer torturá-lo, nem torturar outros torturadores do regime militar. O perdão é responsabilizá-los pelo que fizeram. E isso a História do Brasil tem de dar conta. Onde estão sepultados os desaparecidos? As famílias das vítimas têm o direito de saber o que ocorreu? Uma forma de perdão é lembrar e reparar. Há como reparar? Hoje já não sei como funciona a Lei de Imprensa, mas como se faz urna reparação de um dano causado pela imprensa? Há  pessoas que foram destruídas pela imprensa. Há jornalistas cuja especialidade é destruir os outros.

O senhor menciona uma instituição que não perdoa. E não repara.

Não perdoa e não repara em nome da liberdade de imprensa. Mas liberdade de imprensa significa exatamente o quê? Cada um fazer o que quer? Significa a ditadura do editor. Se o editor resolve que vai acabar com uma pessoa, ele acaba. Outro dia me ligou uma jornalista de uma rádio para me fazer perguntas sobre o povo da rua. E me dizia: "Nós precisamos falar dos albergues." Eu respondia: "Os albergues não são a única solução, precisamos de outras. Não podemos condenar todo o povo da rua a viver em albergue”. Como eu insistia muito nesse ponto, ela me disse: “Padre, temos de falar em albergue porque o meu editor mandou falar. O senhor está trazendo outros assuntos, mas o editor não quer outros assuntos, quer que o senhor fale dos albergues”. Ou seja, ele queria por na minha boca algo contra os albergues, provavelmente por um interesse político de atingir o prefeito. Nem toda a população de rua é “albergável”. É preciso ter república, aluguel social, possibilidade de moradia fixa, outros caminhos que não só os albergues. Quem de nós três gostaria de entrar num albergue e dormir ao lado de mais cem? Mas criticar a imprensa significa atentar contra a liberdade de expressão. Não tenho a liberdade de falar aquilo que destrói o outro. Mas a imprensa julga, condena e executa. Tudo num dia só. Os jornais não devem ter manual de redação, mas manual de retaliação. A imprensa também não pode tutelar a consciência do povo. Quando vivi tudo o que vivi em 2007 eu perguntei a um jornalista: “Se eu disser que tenho um arsenal de armas em casa, vocês vão publicar?”. Ele disse que sim. “E se não for verdade?”, questionei. “Depois a gente vê”, ele me respondeu. Uma emissora de televisão chegou a colocar fita crepe na campainha da minha casa para que ela não parasse de tocar. Eles queriam me filmar num gesto tresloucado, saindo de casa e xingando. Duas televisões pediram a uma testemunha que refizesse seu testemunho contra mim. Eles me condenaram e me executaram. Perguntaram à minha mãe, então com 85 anos: “Quem sustenta a casa?” Quem cuida da senhora?” Ela respondeu: “Eu cuido do meu filho, e meu filho cuida de mim”. Era uma invasão de privacidade absoluta. Eu havia dado a uma jornalista uma medalhinha do Tito Brasman, frade carmelita holandês que se opôs à ocupação nazista e virou patrono dos jornalistas católicos. Na época, ela me visitou, chorando, e disse: “Padre, pedi demissão do jornal porque não quis cumprir o que me mandaram fazer”. E outro jornalista de uma TV que deitou e rolou em cima de mim, disse-me: “Padre, eu gostaria de pedir desculpas, pois não queria fazer o que estou fazendo. Mas sou obrigado”. Respondi para ele: “Fique em paz”.

Esses o senhor perdoa. E aqueles que o levaram a uma irreparável situação?

Não alimento nenhum desejo de vingança, mas acho que a justiça precisa ser feita. Na segunda vez, na hora do julgamento, o juiz perguntou se eu queria falar alguma coisa. Eu disse ao advogado do casal que tentava a extorsão contra mim: "Eu o respeito como pessoa e como advogado e peço a Deus que sua consciência não tenha morrido. Porque se tem consciência, o senhor é a minha melhor testemunha, pois sabe o mal que teceu juntamente com eles. Eu só espero que o senhor não tenha de aprender pela dor."

Há dois sentimentos e gestos aparentemente antagônicos, a raiva e o perdão. É possível ter os dois simultaneamente? "Eu te perdoo apesar da raiva que teus atos me inspiram".

Há coisas que machucam, e a ferida não cura. Mas eu não quero causar essa mesma ferida nele. Para mim uma coisa muito grave é usar do poder para destruir os outros. Nesse sentido, a Justiça condena o assédio moral, como o assédio sexual. O assédio moral é usar da sua autoridade para destruir o outro. Eu, como padre, tomo o cuidado com o que falo na frente do povo. Não posso dizer para uma velhinha que ela é ignorante, que o que ela está falando é uma bobagem. Sei que isso vai destruí-Ia. Mas é fato que há pessoas que lhe suscitam raiva, ódio. O que precisa é trabalhar com esse sentimento, pois não se pode negá-lo. Há momentos em que o pai tem raiva do filho, e vice-versa. Dizer que o marido nunca sentirá raiva da mulher é uma mentira, bem como dizer que a mãe jamais ficará com raiva dos filhos. Mas a mãe não vai deixar os filhos sem comer. Ela pode até fazer a comida com raiva, mas fará. Por isso a espiritualidade nos permite aprender a lidar com esses sentimentos. Quando me dizem: "Vocês ficam defendendo bandidos, mas esses moleques têm mais é de apanhar", eu respondo: "Agindo assim estaremos reproduzindo o mesmo mal que condenamos."

Genocídio, pedofilia, estupro, assassinato. O senhor perdoa a todos?

O dano cometido pode ser irreparável e será condenável. O perdão não pode gerar a inconsequência, o amor é exigente. O Direito Canônico diz que, no fim, a salvação das pessoas é maior do que toda lei. As leis são importantes, mas a salvação das pessoas é muito mais. Portanto, nesse sentido, dizer que tal grupo não tem perdão depende das circunstâncias. É preciso distinguir a sanidade da insanidade. O responsável pela chacina na escola do Rio cometeu um ato de insanidade extrema. Perdoá-lo não significa isentá-lo de responsabilidade. Se eu perdoo a todos? Aceitando a ideia da responsabilização e do reparo. Isso tem de ficar muito claro, caso contrário ficará apenas o "perdoa tudo". O perdão pode ser incondicional ou condicionado. Nesses crimes, o perdão é condicionado.

Não existe, portanto, o ato de perdão absoluto?

Esse, só Deus pode dar. E não somos donos da misericórdia e da justiça divina. Como somos relativos, o nosso perdão é relativo.

Entendendo a fé (3)

Foto: i can read

Continuação do post de 27/10/11...

Ao confundirmos crença e fé, e, assim, perdermos a sua distinção, caímos na armadilha da lei, em meio às coisas que podemos definir, regulamentos que podemos impor, fórmulas específicas de credos, que justificam nossa rejeição aos outros. Mais do que qualquer outra religião, o Cristianismo caiu nas tentações do poder que a uniformidade das crenças cria.

A ortodoxia de culto da crença, o aprendizado exatamente correto das palavras, rituais, externalidades e fórmulas trai o Deus vivente por outro falso que nós mesmos construímos. A diferença precisa ser compreendida à luz da fé, até mesmo nas tradições religiosas. Todas as religiões possuem suas diferenças internas, que levam o nome de diálogo intrarreligioso. Os judeus dizem que caso você tenha três rabinos discutindo um aspecto da lei, você terminará com quatro opiniões diferentes. Sunitas e xiitas, mahayanas e theravadas, católicos e protestantes, todos sustentam convicções diferentes, dentro da mesma tradição de fé.

A crença pode ser heroica. Você pode se recusar a negar suas convicções, e poderá ficar feliz em ser queimado na pira, ou despojado de posição e status, por elas. Muitos crentes se motivaram pelas histórias desses mártires heroicos, que preferiram entregar suas vidas a negar suas convicções. Não deveríamos depreciar o heroísmo da convicção em face da opressão e da perseguição. Necessitamos força e integridade para resistir à força violenta que nos obrigaria a negar nossos princípios e convicções. Todavia, o reino espiritual não gira em torno do heroísmo. A mentalidade heroica do guerreiro, ou do mártir, se rende a um outro tipo de autoconsciência, uma vez que experienciemos a Deus como amor, em lugar de doador de fama ou glória eterna. Aquiles é admirável, mas não é um santo. Thomas More é um herói da liberdade religiosa e da integridade pessoal, mais do que um professor dos mistérios. A fé é mais do que a crença mais heroica. Ela não é apenas uma convicção sustentada apaixonadamente, por mais leal e de autossacrifício que seja essa convicção. A fé é mais do que um conceito, e mais do que um signo do leal pertencer a um grupo específico.

Trata-se do relacionamento com aquilo que acreditamos; com aquilo que acreditamos porque o experienciamos, e com aquilo que experienciamos porque somos simplesmente projetados para isso, e por isso. A fé nos mergulha na ontologia e, interminavelmente, revela toda a extensão dos mistérios do ser.

- D. Laurence Freeman, OSB
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil, com grifos nossos

In Laurence Freeman, FIRST SIGHT: The Experience of Faith (London: Continuum, 2011) pg.14-15).
Tradução de Roldano Giuntoli

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

"O amor é a maior força que existe, capaz de vencer qualquer dificuldade, mesmo quando a maior delas é seu próprio medo"

Foto: i can read

Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Sempre acreditei na força dos testemunhos. Era a atividade que mais me comovia nos retiros que eu participava, fossem os retumbantes encontros de jovens, com suas músicas de louvores e exagerada disponibilidade, fossem os introspectos retiros de preparação para a crisma (desses últimos, aliás, eu fui socio contribuinte, não perdia um). Eram esses os momentos nos quais eu mais refletia sobre o meu pecado #1: o de gostar de coisas impuras.

Quem já foi numa igreja barroca sabe que normalmente o altar é escalonado e cada andar tem a imagem de um santo (que normalmente usa uma peruca com cabelo humano – isto é bizarro!). É como uma classificação bem dividida que começa por nós, fiéis, no chão. Depois o padre, no presbitério. Daí vem um anjo, um santo, uma Maria, Jesus e Deus. Isso tem um quê de hierarquia, uma distribuição de poderes bem denifida, assim como no "estava a velha em seu lugar", só que com personagens religiosas. Para mim a Igreja sempre foi exatamente assim: um grande coro de hierarquias encabeçado pelo Papa João de Deus, tão amado pela minha família, cujo retrato afetuoso encimava nossa mesa de jantar. Aliás, acima do papa estava Jesus, não andando ou vestindo suas roupas de época, mas pregado na cruz e olhando de ladinho aqui pra baixo, como quem quisesse dizer alguma coisa. E na minha cabeça, nessa escada estavam presentes também o meu anjo da guarda – o zeloso guardador – e meus antepassados que foram grandes personalidades lá na roça, onde se confiava em Deus e nada mais.

Eu não queria usar uma expressão chavão, pois gosto de ser exclusivo. Mas nada que eu invente daria conta de explicar melhor o fato de que "eu sempre soube". É uma m&%#@, mas é a verdade. As travas da Lapa sempre souberam, mas e daí?, são pecadores! Eu não... não sou igual a eles, devo rezar por eles e pedir forças a Deus para que consiga me livrar deste mal. Nunca acreditei em um inferno quente e péssimo, mas como ninguém prova nada, fica o dito pelo não dito e toda semana eu ia me confessar.

"Meu filho, Deus te ama. Peça forças a ele porque você é um jovem muito bom e vai conseguir se livrar disto."

"De novo né? Quer o que com isso? Hein? Vai conseguir ser pai de família assim?"

"Meu filho, não precisa vir aqui para confessar isso, eu já te falei."

"Ué, fazer o que, né, pecado mortal. Reza para Nossa Senhora te livrar do pecado".

É, nenhum dos mil padres com quem eu me confessava toda semana sabia de fato o que me dizer. Nenhum deles me convencia; aliás, essa enorme variedade de opiniões me deixava mais perdido. Mas Jesus de ladinho era quem mais me amedrontava, não pela relação de temor que eu tentava nutrir, a despeito da minha forte crença de que Deus me amava, mas porque eu nunca estive realmente a sós com ele. Jesus nunca veio falar sozinho comigo, sempre trouxe toda a galera da hierarquia, o papa, os padres e seu pessoal. E sempre quando eu tentava falar com ele, tinha que passar por esses interlocutores bizarros.

A minha vantagem era que eu nunca tinha me apaixonado por um menino. Toda a relação que eu tinha com homens era apenas sexual e isso me fazia acreditar que eu não era gay, mas apenas um cara que sentia tesão por outros caras. E até mesmo esses questionamentos acerca da relação entre a religião e minha sexualidade só aconteciam quando eu tinha alguma experiência sexual homoerótica; no meu dia-a-dia, eu me julgava super hétero e condenava abertamente o "homossexualismo". Dei inúmeras palestras nos grupos de jovens e nas aulas de crisma sobre esse assunto e não tinha medo de me posicionar contra. Não posso dizer que eu era hipócrita, pois no fundo eu realmente acreditava na opinião oficial da Santa Mãe Igreja – e, mesmo que eu sentisse o contrário, o errado era o meu sentir. Eu realmente sofria muito.

Tudo começou a mudar quando Jesus de ladinho saiu da sua cruz. Se desprendeu do madeiro no meu terceiro dia e veio falar pessoalmente comigo. Achei isso formidável, mas eu demorei muito a acreditar que era ele mesmo ali falando comigo, sem as opiniões dos mil padres, sem os antepassados, sem o João de Deus. Eu tinha me acostumado a só ouvir a voz de Jesus através dos outros e era como se ele tentasse falar comigo e imediatamente fosse cortado pelas vozes daquele séquito. Era muito difícil ouvir Jesus falar!

Conheci um menino, diferente de todos os outros, e por ele me apaixonei. Nossa relação durou cinco anos, e com ele aprendi que o amor é a maior força que existe e é capaz de vencer qualquer barreira, mesmo quando o maior obstáculo é você mesmo. O nosso amor venceu meu próprio preconceito, venceu minha própria opinião, me venceu.

Eu conheci um grupo de pessoas, diferente de todos os outros, e por ele me apaixonei. Hoje posso testemunhar porque vi com meus próprios olhos, senti com meu próprio coração, chorei minhas próprias lágrimas. Com esse grupo, que se chama Diversidade Católica, eu aprendi que o amor é a maior força que existe e é capaz de vencer qualquer dificuldade, mesmo quando a maior delas é seu próprio medo. O amor venceu meu rancor, venceu minha dúvida, venceu minha ideia de que encontrar Jesus é subir as escadinhas de um altar barroco.

Hoje eu não vou mais nos retiros de crisma, porque talvez eles tenham medo das pessoas serem o que realmente são. Descobri que os sentimentos não são impuros, nós aqui fora é que os tornamos assim. Ainda gosto de igrejas barrocas, mas as observo como uma marca histórica de um tempo em que se acreditava que Jesus precisava ser protegido do ser humano cruel e sujo e por isso foi elevado e cercado de um monte de santos, anjos e afins. Notícia: foi ele mesmo que escolheu ser um de nós, foi para isso que ele veio ao mundo! Não faz sentido apartá-lo da nossa realidade, deixem ele aqui no chão com a gente, é isso mesmo que ele quer!

(Se você não tem senso de humor, pule o próximo parágrafo e vá direto para "E eu conheci")

Em outras palavras, Jesus chegou para acabar com "estava a velha em seu lugar"! As travas da Lapa e os padres que me confessavam vão se encotrar no céu, juntamente com os santos barrocos que vão tirar suas perucas humanas e descobrir que podem ser felizes com seus próprios cabelos! O João de Deus – que já até morreu, tadinho – vai sair da mesa de jantar da minha família e desmontar aquele sorriso que já dura uns vinte anos, e Jesus de ladinho, ah! Esse sim, vai desentortar seu pescocinho, colocar suas roupitchas de época e virá abraçando todo mundo!

E eu conheci o Jesus, que hoje não fica mais de ladinho, e que é muito diferente da imagem que fazem dele por aí. Eu tenho absoluta certeza de que posso me afirmar filho de Deus pelo amor que ele tem por mim hoje, como eu sou. Foi o amor dele por mim que me deu forças para eu me amar e me aceitar como eu sou, pois se ele me ama como eu sou, eu não posso me amar de maneira diferente. Sim, eu sou gay e me amo como sou, pois Deus me ama como sou!

Beijos,

Pedro!

Tempo sem Advento?


Falar do “tempo” não é tão simples e óbvio; de fato, às vezes, até é um problema. Não é raro encontrar-nos em situações nas quais vivemos o tempo como um túnel, repetitivo, onde só há presente... Um pesadelo!

O tempo torna-se cada vez mais veloz, fugaz, estressante... “Kronos” continua a devorar com maior voragem o que cria. Diante disso, não há futuro auspicioso, nem esperança que sustente... Um tempo assim só é habitado por mim mesmo e não há lugar para o outro. É um “tempo sem advento”. Deus não consegue entrar em nossos “tempos apertados”!

Esta forma desabitada e estéril não é a única maneira de viver nosso tempo. Uma coisa é “viver no tempo” e outra, muito diferente, é “viver o tempo”, dando sentido e orientação à temporalidade. Viver o tempo intensamente, vivificá-lo, cuidá-lo e artisticamente orientá-lo para aquilo que desejamos! Este “tempo presente” é oportuno, precioso e não volta mais.

A tirania da agenda e a cobrança de resultados não é o único sentido do tempo e muito menos o mais importante. Há uma dimensão que sustenta, um nível do tempo mais profundo que sempre esteve aí esperando nossas buscas. É neste nível básico onde respiram nossos desejos, onde nossa esperança bebe, onde nossos sonhos criam raízes... É nele que podemos moldar a arte de viver.

É preciso parar e descer a esse nível do tempo para ir descobrir a presença que completa nosso ser, plenifica a existência e responde às nossas perguntas...

Dado evidente nestes tempos pós-modernos: o futuro que vamos construindo “carece de marcas de certeza” (Lefort), se atrofiou e vivemos “tempos sem futuro”. Ninguém pode prever o futuro com segurança! Não sabemos o que virá, pois tudo e a cada dia torna-se mais complexo e difuso. Por isso, vivemos um “presente esticado”! Mas, ao reduzir nossos sonhos e aspirações ao consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida.

Precisamos voltar a ter um futuro onde ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Ir ao encontro do futuro significa reconhecer que Deus está trabalhando conosco e em nós. Ele vem ao nosso encontro a partir do futuro e fermenta nosso presente.

Caminhamos para o futuro atraídos por Aquele que plenifica nossa vida, já desde agora, com ingredientes vitais. Deus vem do futuro, como plenitude e totalidade; e dele temos saudade!

O futuro está dominado pela irrupção do Reino e está cheio do senhorio de Cristo. “Deus espera na fila” e descobrir sua vinda é atribuir-lhe seu lugar em nosso tempo; é viver o Advento, tempo da espera e da esperança, das buscas e dos silêncios... Tempo de “olhar” ao redor e descobrir que Deus continua vindo, sempre, por caminhos surpreendentes. Toda a nossa vida é Advento. Deus transforma o “kronos” em “Kairós”, tempo de salvação! De agora em diante, nada em nossas vidas é insignificante, nem rotineiro. Nada é banal e incomum para quem mergulhou no eterno.

O Advento é tempo de dispôr-se a algo grande. O que estamos esperando é imenso e fora do nosso tempo rotineiro. Intuímos que nossos olhos foram criados para uma visão mais profunda, mais humana, mais plena; desejamos ser um pouco mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós. No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz bradar ao Eterno: “Vem, Senhor, nos salvar! Vem sem demora nos dar a paz!” E temos uma certeza: Ele vem!

Uma pergunta: Deus entra verdadeiramente em sua agenda, no seu tempo?

- Pe. A. Pallaoro SJ
Reproduzido via blog "Terra Boa", do Pe. J. Ramón F. de la Cigoña SJ, com grifos nossos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Novo olhar sobre o universo


A visão que temos do mundo interfere em nossa visão de Deus, assim como o modo como entendemos Deus influi em nossa visão da vida e do mundo. Ao longo de 1.000 anos predominou, no Ocidente, a cosmovisão de Ptolomeu, que considerava a Terra centro do Universo. Isso favoreceu a hegemonia espiritual, cultural e econômica da Igreja, encarada pela fé como imagem da Jerusalém celestial.

Com o advento da Idade Moderna, graças à nova cosmovisão de Copérnico, logo completada por Galileu e Newton, constatou-se que a Terra é apenas um pequeno planeta. Qual mulata de escola de samba, dança em torno da própria cintura (24 horas, dia e noite) e do mestre-sala, o Sol (365 dias, um ano). O paradigma da fé deu lugar à razão, a religião à ciência, Deus ao ser humano. Passou-se da visão geocêntrica à heliocêntrica, da teocêntrica à antropocêntrica.

Agora, a modernidade cede lugar à pós-modernidade. Mais uma vez, a nossa visão do Universo sofre radicais mudanças. Newton cede lugar a Einstein, e o advento da astrofísica e da física quântica nos obrigam a encarar o Universo de modo diferente e, portanto, também a ideia de Deus.

Se na Idade Média Deus habitava “lá em cima” e, na Idade Moderna, “aqui embaixo”, dentro do coração humano, agora conhecemos melhor o que o apóstolo Paulo quis dizer ao afirmar: "Ele não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como alguns dentre os poetas de vocês disseram: 'Somos da raça do próprio Deus'" (Atos dos Apóstolos 17, 27-28).

A física quântica, que penetra a intimidade do átomo e descreve a dança das partículas subatômicas, nos ensina que toda a matéria, em todo o Universo, não passa de energia condensada. No interior do átomo, a nossa lógica cartesiana não funciona, pois ali predomina o princípio da indeterminação, ou seja, não se pode prever com exatidão o movimento das partículas subatômicas. Essa imprevisibilidade só predomina em duas instâncias do Universo: no interior do átomo e na liberdade humana.

Em que a física quântica modifica nossa visão do Universo? Ela nos livra dos conceitos de Newton, de que o Universo é um grande relógio montado pelo divino Relojoeiro e cujo funcionamento pode ser bem conhecido estudando cada uma de suas peças. A física quântica ensina que não há o sujeito observador (o ser humano) frente ao objeto observado (o Universo). Tudo está intimamente interligado. O bater de asas de uma borboleta no Japão desencadeia uma tempestade na América do Sul... Nosso modo de examinar as partículas que se movem no interior do átomo interfere no percurso delas...

Tudo que existe coexiste, subsiste, pré-existe, e há uma inseparável interação entre o ser humano e a natureza. O que fazemos à Terra provoca uma reação da parte dela. Não estamos acima dela, somos parte e resultado dela; ela é Pacha Mama ou, como diziam os antigos gregos, Gaia, um ser vivo. Deveríamos manter com ela uma relação inteligente de sustentabilidade.

Esse novo paradigma científico nos permite contemplar o Universo com novos olhos. Nem tudo é Deus, mas Deus se revela em tudo. Nossa visão religiosa é agora panenteísta. Não confundir com panteísta. O panteísmo diz que todas as coisas são Deus. O panenteísmo, que Deus está em todas as coisas. “Nele vivemos, nos movemos e existimos”, como disse Paulo. E Jesus nos ensina que Deus é amor, essa energia que atrai todas as coisas, desde as moléculas que estruturam uma pedra às pessoas que comungam um projeto de vida.

Como dizia Teilhard de Chardin, no amor tudo converge, de átomos, moléculas e células que formam os tecidos e órgãos do nosso corpo às galáxias que se aglomeram múltiplas nesta nossa Casa Comum que chamamos, não de Pluriverso, mas de Universo.

- Frei Betto
Reproduzido via Amai-vos

''Deus [também] está na doença"

Fotos: JR

"A dimensão antropológica e teológica da doença: O Senhor cura todas as tuas doenças (Salmo 103, 3)". Esse é o tema do congresso da Associação de Médicos Católicos Italianos iniciado sábado, 26/11, no Centro de Convenções Assolombarda de Milão.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no jornal La Stampa, 26-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

(...)

"Eu sou convidado cada vez mais frequentemente para congressos médicos: está crescendo a consciência de que a doença e a dor são um tema global e simbólico, não apenas fisiológico. O acompanhamento humano, psicológico, afetivo e espiritual é tudo menos do que secundário. É preciso voltar a uma concepção humanista da medicina".

O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, está acostumado a se defrontar com os não crentes. Mas, diante da dramática pergunta sober o porque do sofrimento e da dor – tema do congresso organizado em Milão pelos Médicos Católicos –, ele não se refugia em fórmulas rituais.

Eis a entrevista.


Como o senhor responde à questão sobre o porquê da doença?

A escritora norte-americana Susan Sontag, em 1978, contou a sua experiência de sofrer de câncer em um livro intitulado "A doença como metáfora". Definição interessante: a doença nunca é apenas uma questão biológica. Quando estamos doentes, precisamos ser confortados, olhamos para a vida de um modo diferente, as prioridades mudam e, se a doença se agrava, muda a escala dos nossos valores. E mesmo quem não crê pode chegar a perguntar a Deus o porquê do que lhe acontece. No entanto, a primeira resposta é simples, lógica e racional.

Qual é a "racionalidade" inscrita na doença?

A dor é um componente da finitude das criaturas. Um dado que, na nossa sociedade orgulhosa e tecnológica, que alguém definiu de "pós-mortal", não se quer aceitar. Oculta-se a morte de todos os modos, ou talvez busca-se a possibilidade de viver até 120 ou 130 anos, continuando a afastar o encontro. Ao contrário, devemos ter a coragem de olhar para a doença e a morte de frente como componentes da existência.

Uma capacidade que parece se perder no Ocidente, mas que ainda está presente em outras culturas...

É verdade. Quando eu estava no Iraque para fazer estudos arqueológicos, um dia, um dos meus colaboradores locais me convidou para a sua casa, para que eu pudesse ver seu pai que estava morrendo. Eu fui e vi aquele velho deitado no meio do centro da única grande sala da casa, com as mulheres que cozinhavam de um lado e as crianças que brincavam do outro e, de vez em quando, se aproximavam do avô para tocar em sua mão.

A consciência da finitude não basta para explicar a dor inocente, a doença das crianças, o destino que persegue aqueles que já sofreram.

O problema é a distribuição do mal. Continua sendo dramática a página do "A peste", de Albert Camus, onde, perante a morte de uma criança, afirma-se: "Eu não posso acreditar em um Deus que permite isso". É o excesso do mal. Aqui, começa a fronteira em que as religiões se atestam com as suas respostas, que não esgotam o mistério. No Livro de Jó, no auge do desespero humano, Deus fala e varre todas as explicações e as tentativas de racionalizar. A solução só pode ser metarracional, global e transcendente, e se encontra no encontro com Deus.

E a resposta do cardeal Ravasi?

É a cristã, totalmente diferente das outras religiões. Porque, no cristianismo, é Deus mesmo, em Cristo, que não só se curva sobre nós para nos explicar o significado do sofrimento, não só em alguns casos cura graças à sua onipotência com os milagres, mas também entra na nossa humanidade e prova toda a dor do homem. A dor física, moral, o medo, o silêncio do Pai. E, no fim, até mesmo a morte, que é a carteira de identidade do homem, não de Deus. Ele se torna um cadáver, sem nunca deixar de ser Deus, sofre todo o sofrimento humano e nele depõe um gérmen de transfiguração, que é a ressurreição, fecundando a nossa natureza mortal.

Porém, isso não anula a dor nem a pergunta. Mesmo para aqueles que creem.

Jesus Cristo, o Filho de Deus, não veio para apagar a dor, tanto é que ele a viveu. Mas ele a assumiu sobre si e a transfigurou com o gérmen do infinito, que é um prelúdio da eternidade para nós. O cristianismo é uma religião fortemente carnal e próxima do drama de quem sofre – ao contrário de muitas outras religiões –, porque, para os cristãos, Deus se tornou um homem e morreu na cruz. Os cristãos, como atesta o nascimento dos hospitais, sempre tiveram essa atenção pelos enfermos, porque acreditam em um Deus que foi sofredor, que conheceu a morte e ressuscitou.

* * *

Caso se interesse pelo tema, leia também:
"No sofrimento, Deus luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre", aqui
"A Cruz: suplício ou esperança?", aqui
"Escândalo e loucura", aqui

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

"O amor vence": porque a única coisa capaz de destruir uma família é o ódio.


Em formato documentário, com aproximados 10 minutos de duração e com depoimentos da jornalista Léo Áquilla e da Dra. Edith Modesto, fundadora da ONG GPH (Grupo de Pais de Homossexuais), o filme mostra a história de vida do dançarino Victor Reder junto de sua família, que, por ser homossexual, encontrou-se em situação decisiva sobre quais atitudes deveria tomar a partir da decisão de assumir sua homossexualidade.

O video conta ainda os difíceis momentos passados e uma real história de vida.

Com a ajuda da ONG GPH, Victor encontrou respostas e iniciativas que atingiram sua família e o ajudaram a viver em harmonia perante sua escolha.

Porque, como comentou um amigo do Facebook, a única coisa capaz de destruir uma família é o ódio. :-)

Vídeo original e dados da produção aqui

Quando a Igreja muda de opinião


Reproduzimos a seguir reportagem de Gianni Valente publicada no Vatican Insider em 09-12-2011, sobre a missa em homenagem a Nossa Senhora de Guadalupe que se celebrou ontem em Roma. A tradução é de Benno Dischinger, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos. 


E que a Virgem de Guadalupe nos ilumine a todos no discernimento dos nossos rumos e caminhos através das sendas da história presente.

Segunda-feira à tarde, dia 12 de dezembro, solenidade da Virgem de Guadalupe, a Basílica de São Pedro se encherá com os sons e cores do catolicismo latino-americano. Bento XVI presidirá a missa com a intenção declarada de comemorar o segundo centenário dos processos de emancipação que tiveram lugar desde 1808 a 1824 e que culminaram com as proclamações de independência dos países da América Latina. Sob a cúpula de Miguel Ângelo soarão os cânticos litúrgicos da “missa crioula” do compositor argentino Ariel Ramírez. Ao dar início à celebração, as insígnias nacionais de todos os países latino-americanos, levadas por jovens embandeirados, atravessarão em procissão a nave da Basílica vaticana para render homenagem à Virgem de Guadalupe, colocada aos pés do altar.

Nos atuais comedidos ritmos da cidadela do Vaticano, a celebração programada para terça-feira é um evento singular anômalo por diversas razões. É a primeira vez que um papa celebra, de maneira solene, a festividade da Virgem de Guadalupe na Basílica construída sobre a tumba do apóstolo Pedro. E também parece não usual – sobretudo para a sensibilidade de Ratzinger – a celebração papal de uma liturgia eucarística declaradamente relacionada com a comemoração de acontecimentos da história mundana. Da liturgia participará um nutrido grupo de bispos – entre os quais pelo menos sete cardeais – chegados expressamente do outro lado do Atlântico, junto a ministros e embaixadores das nações latino-americanas. Um dos purpurados – provavelmente Nicolas de Jesús López Rodriguez, arcebispo de Santo Domingo e primado das Américas – dirigirá à Nossa Senhora de Guadalupe uma oração composta para a ocasião.

A celebração constitui uma evidente atualização da agenda de Ratzinger quanto às dinâmicas do continente no qual vivem 43% dos católicos do mundo. A Sé Apostólica, em sua instância mais alta, mostra-se em busca de ocasiões propícias para entrar novamente em conexão com o palpitante e multiforme catolicismo latino-americano. Durante a missa, Bento XVI também poderá anunciar oficialmente sua próxima viagem a Cuba e ao México, agendada para o final de março.

Implicitamente, a celebração de segunda-feira representa também uma tácita purificatio memoriae de um ponto controvertido na história das relações entre o papado romano e o catolicismo latino-americano. O atual sucessor de Pedro oferece sua contribuição a esses processos de libertação que há duzentos anos, durante sua progressiva materialização, foram excomungados de fato pelos papas de então, submetidos a pressões e chantagens por parte das “monarquias católicas” européias que já em 1773 haviam imposto a supressão da Companhia de Jesus. Pio VII, em obséquio aos desejos expressos pela monarquia espanhola e a Santa Aliança que a haviam libertado do domínio napoleônico, exigiu dos povos americanos, com a encíclica Etsi Longíssimo terrarum (1816), a obediência ao rei de Espanha Fernando VII de Bourbon.

E seu sucessor, Leão XIII, com o breve Etsi iam diu de 1824, havia corroborado a condenação papal às insurreições e expressado o desejo de que a supremacia espanhola retornasse aos territórios do outro lado do Atlântico, quando as guerras de emancipação já estavam chegando ao seu fim com um resultado favorável aos patriotas americanos. Sacerdotes e religiosas, que haviam desempenhado um papel-chave nas lutas latino-americanas de emancipação – começando pelos “pais da pátria” mexicana José Manuel Hidalgo e José María Morelos –, acusados de conivências maçônicas, porém conhecidos por todos como devotos apaixonados da Virgem de Guadalupe – haviam sido condenados por heresia e apostasia pelos tribunais eclesiásticos, antes de serem justiçados pelas tropas reais espanholas.

Conforme sublinhou o secretário da Pontifícia Comissão para a América Latina, Guzmán Carriquiry Lecour, em seu lúcido ensaio sobre as independências latino-americanas, naqueles difíceis momentos para o papado – que havia perdido o contato com as Igrejas locais – a escassa celeridade para captar os “sinais dos tempos” custou à catolicidade latino-americana uma ampla e dramática transição. Nas décadas que sucederam às proclamações de independência, a rede eclesial desses países – dioceses, paróquias, conventos, seminários – se mostrava numa condição de desmantelamento generalizado. Corria o risco de interromper-se completamente a continuidade no anúncio do Evangelho e na prática dos sacramentos. Então, a salvação de tudo foi o milagre da fé comunicada de mãe a filho, de avô a neto com a força de orações simples e de festas patronais custodiadas pela piedade popular. Até que, pouco a pouco, inclusive o papado – resistindo aos protestos e às chantagens espanholas e fazendo prevalecer o critério pastoral acima do pacto de poder com o Antigo Regime – começou a apoiar com decisão a reconstituição gradual do bispado nos novos países libertados da submissão às monarquias européias. “Os sucessores de São Pedro sempre têm sido nossos pais, porém a guerra nos havia deixado órfãos... Estes dignos pastores da Igreja e da República são nossos vínculos sagrados com o céu e a terra”: deste modo, o libertador Simon Bolívar acolheu, com o famoso “Brinde de Bogotá” as nomeações dos bispos de algumas das grandes cidades da América do Sul, efetuadas pelo Papa em 1827 (nomeações que desencadearam os furiosos protestos de Fernando VII).

Duzentos anos mais tarde, sem fanfarras nem clamores, sem entonações tardias do mea culpa nem auto-celebrações, Bento XVI lança nessa sucessão de acontecimentos do passado um olhar que pode ajudar a discernir inclusive os “sinais” do tempo presente. Tempos agitados, nos quais na América Latina, também para a Igreja, se abrem novos e surpreendentes cenários. Com a comemoração do segundo centenário das independências latino-americanas, o bispo de Roma corrobora implicitamente que o zelo mais elementar, no serviço ao sensus fidelium e às necessidades concertas das almas, é o único critério que pode transmitir à Sé apostólica a lucidez e a clarividência política necessárias para julgar as agitadas sucessões de acontecimentos da história.
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