sábado, 22 de outubro de 2011

Igual a você ;-)


Um dos vídeos da campanha "Igual a você", realizada pela [X]Brasil Comunicação em Causas Públicas em parceria com a ONU em setembro de 2009. Outros vídeos incluem lésbicas, negros, transexuais, refugiados e pessoas que vivem com Aids.

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Conheça nosso canal no You Tube e veja os vídeos que selecionamos para você ver. :-)

Vida fraterna, antídoto a uma Igreja deprimida


O prior de Bose reflete sobre a vida da sua comunidade: "Ela se tornou uma realidade maior do que eu pensava". Sobre a vida religiosa: "Hoje, é mais difícil a perseverança do que a vocação". E sobre a Igreja: "Vivi a falsidade na minha pele". Mas continua sereno: "O Senhor me enviou muitas pessoas de valor. Posso voltar à minha solidão".

A reportagem é de Vittoria Prisciandaro, publicada na revista italiana Jesus, setembro de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.


O prior chega a pé por entre os caminhos entre as árvores. Ou de carro, se tem algo para trazer consigo. Reza com os irmãos, encontra-se com alguns hóspedes que subiram até aqui para lhe encontrar, cumprimenta os congressistas da vez, retira o correio e, depois, assim que pode, escapa e retorna ao seu jardim e à sua cela entre as árvores, um pouco mais escondida do que os outros edifícios da Comunidade, "refúgio e possibilidade de quietude" para um homem que, com seus 68 anos, atravessou as mais entusiasmantes e, ao mesmo tempo, as mais tempestuosas estações da história recente da Igreja: Concílio, pós-Concílio, refluxo.

Enzo Bianchi, o monge que muitos não-crentes consideram com respeito, que padres e leigos estimam, que alguns monsenhores ainda olham com desconfiança, que os editores cortejam e os amigos apreciam pela sua simpatia e pelo refino da arte culinária ("a cozinha é uma forma de dar algo de si mesmo aos outros"), tornou-se nas últimas décadas uma das raras vozes católicas "significativas" no panorama italiano. Os talk-shows fazem de tudo para recebê-lo em seus estúdios, os pedidos de entrevistas e conferências se estragam.

Mas Enzo tenta saborear a sua presença: "Há alguns anos, decidi fazer um máximo de duas aparições na televisão por ano. Mas gostaria de estar ainda mais escondido. Na rua, já me pararam dizendo: 'Eu já lhe vi, o senhor é o padre Bose'. Enfim, tenho medo de que, na televisão, o meu rosto conte mais do que o aquilo que eu digo. Eu prefiro o rádio e a mídia impressa".

"Além de alguns compromissos aos quais eu sou fiel – continua –, como Jesus, alguma intervenção no La Stampa, e, na França, no Panorama, eu tento não estar muito presente. Tenho medo do 'personagem'. Se eu quisesse ter 'sucesso', bastaria que eu aceitasse ser ordenado sacerdote e poderia ter feito carreira eclesiástica. Quando eu decidi ser um simples monge, eu escolhi não fazer carreira...".

Ele saiu sozinho, há pouco mais de 40 anos. Hoje, ele se encontra com uma comunidade de 80 monges, à que deu vida a outras fundações e é considerada, sem dúvida, como um ponto de referência na Igreja italiana e no exterior. Como ele vive essa situação? "A reação inicial, quando eu penso nisso, é de estupor, quase de surpresa. Mas também devo dizer que me sinto afortunado, porque se realizou o que eu já entrevia claramente na minha mente há mais do que 40 anos: uma comunidade monástica que tivesse no coração a Palavra de Deus em tudo, na liturgia, na nossa vida com a 'lectio divina', na proposta para os hóspedes. Assim como ela é hoje, efetivamente".

E continua: "A surpresa vem, entretanto, do fato de que Bose se tornou uma realidade muito maior do que eu pensava. Eu rezava frequentemente, sobretudo entre 1966 e 1968, para que o Senhor me concedesse algum irmão: 'Seis-sete são mais do que o suficiente', eu pensava. Eu usava uma fórmula emprestada do Pe. Colombàs, um monge que tinha escrito um pequeno panfleto intitulado Por um mosteiro simples e atual. Na minha ingenuidade, eu pensava em um mosteiro simples, que fosse fiel à tradição nos conteúdos e que respondesse à novidade do Concílio Vaticano II. Era a nossa vida como nós a fazíamos então, mas eu não supunha a sua dimensão, hoje muito maior do que aquela que eu pensava e queria. De um lado, há, assim, uma confirmação da intuição inicial; de outro lado, a surpresa, mas também o medo. Às vezes, no meu íntimo, quase não reconheço a Comunidade e me pergunto se, no futuro, conseguiremos permanecer fiéis a algumas coisas que escolhemos e que até agora se confirmaram: a vida simples entre nós, a acolhido simples aos hóspedes, uma vida de trabalho que ainda o fazemos... Conhece bastante a história do monaquismo para alimentar esses medos".

Eis a entrevista.

Bose é uma experiência monástica nova, mas profundamente ligada à história da Igreja. Em quais fontes ela se inspirou?

Aos sinais dos tempos e à tradição: com essa vontade, seguimos em frente e, às vezes, também pagamos um preço alto. Poucos se lembram, mas, entre 1965 e os anos 1980, houve uma forte contestação do celibato: "Vocês que podem, por que fazem uma escolha desse tipo?", alguns presbíteros nos diziam. E havia aqueles que queriam jogar fora a oração dos Salmos e que criticavam a nossa fidelidade à Liturgia das Horas. Resistimos, também porque eu tive algumas graças na vida. A primeira delas é a minha formação "tridentina doc", amadurecida na Igreja de antes do Concílio. Ensinaram-me latim aos 7 anos, fiz um percurso clássico: coroinha, paróquia, Ação Católica, das Fiamme Bianche [Chamas Brancas, grupo voluntário de crianças e jovens recrutas] até a FUCI [Federação Universitária Católica Italiana].

O meu pároco era um refinado liturgista: por exemplo, me fazia ler o Evangelho em italiano, quando a missa era em latim, e as pessoas não entendiam nada. Uma outra graça que eu tive durante os anos da universidade foi a proximidade do cardeal Pellegrino, que eu pude conhecer ainda antes de se tornar bispo, como estimado professor universitário de Patrística, o que também me permitiu aprofundar a minha afinidade com os Padres da Igreja e com o monaquismo antigo.

Aos 14 anos, comecei a ler as Regras de São Basílio, um livro que marcou a minha juventude, juntamente com a Imitação de Cristo. Eu não conhecia mosteiros reais quando vim para Bose.

O primeiro ao qual eu fui quando ainda estava sozinho, em 1967, foi o mosteiro trapista de Tamié, onde fiquei por três meses. Depois, vivi uma forte proximidade com Pierre-qui-Vire, um grande mosteiro beneditino francês. Senti a necessidade de que a vida da nossa Comunidade fosse enxertada na grande tradição monástica. Não posso esquecer, por exemplo, que o abade do mosteiro de Bellefontaine um dia me deu o hábito trapista, que vestimos ainda hoje no coro. Em suma, eu tive essa gerança, recebi o "manto de Elias" dos monges. É significativo que Bose seja um dos poucos mosteiros do Ocidente onde os monges ortodoxos do Athos vão com prazer. Os reformados se sentem em casa aqui.

Os beneditinos e os trapistas nos veem, a nós de Bose, quase como uma comunidade sua. Mesmo com os monges mais tradicionalistas temos bons contatos. Temos uma grande dívida para com os beneditinos e os trapistas franceses: foram próximos a nós e nos entenderam até quando havia alguma desconfiança contra nós por parte de outros. Tudo isso nos permitiu ser enxertados na tradição monástica com uma grande liberdade: uma vez que você tem os conteúdos, você entende que pode mudar as formas de acordo com os tempos e as exigências das pessoas. Não pode haver apenas uma escuta do passado. Um monge francês, que é um grande teólogo e amigo nosso, Ghislain Lafont, nos disse: "Vocês são o primeiro monaquismo da sociedade secular". Ele repetiu várias vezes: "É como se vocês tivessem aprendido a lição de Bonhoeffer". Eu acho que isso é verdade.

Mas o senhor, em seu último livro intitulado Una lotta per la vita (Ed. San Paolo), escreve que Bose e tudo o resto, talvez, não teriam existido se o senhor tivesse conhecido antes aquela falsidade que, nos últimos anos, lhe feriu muito. Uma afirmação forte...

Sim, isso também foi uma graça: conhecer a falsidade muito tarde. Se eu a tivesse provado antes, não sei se eu teria tido a possibilidade de ter tanta confiança nos outros. Desde pequeno, eu aprendi, graças à minha professora da escola primária, como é importante que alguém tenha confiança em nós. Ao contrário, nos últimos anos, tive a experiência da falsidade, principalmente na Igreja. Para que fique claro: desde o início, eu também tive inimizades e vivi incompreensões, sabe-se que não fomos muito aceitos. Mas, mais recentemente, aconteceu que alguém me sorria e depois espalhava calúnias sobre mim. Isso me fez um mal terrível. Foi um personagem da Igreja que me fez conhecer uma falsidade que eu não esperava.

Depois, também houve falsidade aqui entre nós, não para mim em particular, mas para toda a Comunidade. Eu não pensava que eu poderia viver, passados os 60 anos, uma tal desestabilização interior a ponto de ficar, em alguns momentos, profundamente confuso. Eu nunca tinha provado essa experiência: a maldade sim, é possível entendê-la. Mas a falsidade não está no meu horizonte. Foi a prova mais dura que eu sofri na minha vida na Igreja e na vida monástica.

O que requer a fidelidade do "para sempre" em uma comunidade monástica?

É realmente difícil. E eu me admiro, por enquanto, do percentual de perseverança que ainda há em nossa Comunidade, onde atualmente, de quatro pessoas que iniciam o caminho monástico, perde-se um pouco mais de um, com um percentual de 35-36%. Hoje somos 79 e, no noviciado, passamos para 112-115 pessoas.

A fidelidade tornou-se mais difícil do que as vocações. No passado, o problema era a falta de vocações; agora é a perseverança: ou seja, são muitos mais aqueles que vão embora do que aqueles que entram normalmente em toda a vida religiosa. É uma mudança antropológica e cultural: nessa situação de precariedade, a vida se prolongou, e, ao longo dos anos, com as mudanças, a fidelidade é difícil, no casamento assim como na vida monástica.

Além disso, a nossa Comunidade é aberta, não há clausura, ela faz parte da sociedade, sem isenções. Vejo o esforço também sobre mim. A nossa Comunidade começou com 3-4 pessoas, depois, por um longo tempo, éramos poucos mais que do que uma dezena. De lá para cá, a nossa vida mudou, não nos conteúdos, mas na forma: de uma unidade sociológica primária, 12 pessoas, para 80; de mil hóspedes por ano para mais de 17 mil; de ser praticamente quase desconhecida à notoriedade.

Quanto à minha própria experiência pessoal, tempos atrás eu tinha muitas hostilidades, eu era incompreendido. Agora há alguns que não falam bem de mim, mas muitos outros me dão sinais de reconhecimento. Nessa mudança, a perseverança se torna difícil, a tal ponto que, às vezes, eu seria quase tentado não a retroceder, mas a buscar uma vida mais apropriada para o que eu sentia por dentro. Mas, aqui também, trata-se de prestar obediência à realidade: crescemos, nos tornamos uma família, se começa com dois, depois, em certo ponto, há filhos e a família não é mais aquela de antes. Na vida, você muda de trabalho, de situações de vida... É preciso fazer um verdadeiro exercício e uma disciplina para a perserverança. E, nos momentos de crise – isso eu digo a mim mesmo e também para muitos casais que me encontram em momentos difíceis – é preciso permanecer firmes, não se mover e manter os pés firmes, esperar que o nevoeiro passe. Porque, se nos movemos nesse momento de escuridão interior, ocorrem desastres, são dados passos dos quais não se pode voltar para trás.

Hoje, a lealdade tem um preço alto. A ideologia reinante do efêmero, da mudança, da soma de experiências influencia a todos, não só a sociedade: nós, Igreja, nós também, monges, estamos dentro da sociedade. Não podemos ser aqueles que olham para a cidade como Abraão olhava para Sodoma, do alto. Nós habitamos Sodoma e Gomorra, estamos dentro delas, compartilhamos as fadigas de todos os homens e as mulheres do nosso tempo.

Como é a Igreja vista de Bose?

A Igreja toda vive em um estado de depressão, em que as convicções fortes aparecem só quando são contra os outros, em uma guerra de facções contínua. Por outro lado, parece que ninguém está convencido de nada. O mais grave é que o coração de todo esse conflito é a Eucaristia: os servos da comunhão fazem dela um lugar de divisão. Quanto à Igreja italiana, em particular, vejo dois males. O primeiro é a afonia do laicato: os cristãos na política é como se não existissem mais; frequentemente, houve uma forma de ultrapassamento, pela qual a voz que lhes cabia foi assumida por alguns bispos.

Tudo isso provocou nos últimos 20 anos uma situação um pouco desoladora, não há mais subjetividade laical. Talvez hoje se entreveja um renascimento. Espero que haja um novo começo depois de um tempo de depressão. Outra coisa é que eu gostaria que se entendesse que há urgências muito fortes. É significativo que se tenha escolhido falar sobre a educação nas Orientações Pastorais da década. A meu ver, porém, é inútil pensar em transmitir uma fé às futuras gerações sem lhes fornecer uma gramática humana: elas precisam saber o que a fé lhes diz no cotidiano, na vida, nos afetos, nas histórias de amor, no trabalho, no encontro com os outros.

Dessas duas urgências depende o futuro. Devemos parar de pensar que temos um catolicismo popular que sustenta. A Igreja na Bélgica tinha essa situação 20 anos atrás e é agora é o país mais descristianizado da Europa. Devemos ser menos seguros, menos autogarantidos, menos autorreferenciais.

A comunidade de Bose sempre jogou na aposta evangélica da unidade dos cristãos. Há alguns anos, porém, o ecumenismo está em crise. Mas essa continua sendo a aposta do futuro. Como o senhor vê essa questão neste momento?

Desde o início, eu entendi uma coisa: eu não queria, como alguns sugeriram, que o ecumenismo fosse uma espécie de quarto voto da Comunidade. Nós não celebramos a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, porque sempre dissemos que ou ela é vivida todos os dias, ou não vale a pena. Jesus pediu a unidade: portanto, ou o cristão vive o ecumenismo, ou contradiz Jesus Cristo.

Hoje não há coragem. Todas as igrejas não acreditam muito no ecumenismo. E, na Igreja Católica, há quem trabalhe contra o ecumenismo, atacando o Concílio, propondo o retorno a uma identidade católica fechada, dura, autorreferencial. Quer-se o "retorno dos irmãos separados", como se dizia antes do Concílio. Na Igreja, não se quer a unidade. Quando se continua dizendo que ela vai acontecer "quando o Espírito quiser", então isso significa que não se quer assumir a responsabilidade aqui e agora, e não se quer dar passos de comunhão.

Mudando de assunto: às vezes, parece que o risco de identificação entre Enzo Bianchi e Bose é forte. Hoje, quanto a Comunidade é "sua" e quanto, ao contrário, ela é fruto daquilo que "trouxeram" os outros irmãos e irmãs que vieram depois do senhor?

A Comunidade, na realidade, é muito autônoma de mim. Eu comecei toda a história, mas hoje faço realmente muito pouco. Nos últimos anos, tenho estado sempre fora. Quero que a Comunidade ande por conta própria. Temos um capítulo pela manhã, quando se decidem as coisas, e eu, há cinco ou seis anos, não vou, justamente para que se acostumem a decidir por eles, a medir o seu cotidiano.

O Senhor me mandou tantas pessoas de valor, de grande qualidade intelectual, humano, organizativa. Enquanto a Comunidade estava nas minhas mãos, até 1992-1993, eu nunca organizei um congresso. Eles foram possíveis desde que há um irmão, especialmente, que sabe fazer isso muito bem. E, em nível intelectual, há pessoas mais refinadas do que eu. Muitas coisas vão em frente como se eu não existisse. Eu não determino mais muitas coisas. Nos capítulos, as decisões são tomadas com a votação da maioria, e há pessoas que podem me substituir no priorado. Assim que eu apresentar a renúncia, o vice-prior reunirá o capítulo. Em 40 dias, haverá a eleição do novo prior que guiará a Comunidade por dois anos. Depois disso, se exigirá uma outra votação: se for positiva, o prior continua por 12 anos, caso contrário será escolhido um outro. Enfim, quando eu me for, a Comunidade continuará muito bem. Eu não tenho temores com relação a isso.

Das suas palavras parece transparecer quase uma vontade de ermo...

Não, eu não tenho vocação eremítica. Mas a vontade de voltar para uma certa solidão, isso sim. Além disso, eu já vivo sozinho agora, no meio da floresta.

Missa da Pastoral da Diversidade, em São Paulo, amanhã

Mais informações no site da Pastoral da Diversidade, aqui

Vocação universal também aos leigos


Se a Igreja espera oferecer modelos relevantes de santidade para os leigos e leigas, é hora de tornar o processo de canonização muito mais acessível e muito menos caro para aqueles que conhecem um marido, uma esposa, uma mãe, um pai, um amigo, amiga, vizinho ou vizinha santos.

Publicamos aqui o editorial da revista dos jesuítas dos EUA,
America, 19-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Desde que o Concílio Vaticano II falou da "vocação universal à santidade", houve um movimento para reconhecer mais leigos e leigas como santos, como modelos de santidade para os leigos e leigas católicos. Diversos leigos e leigas contemporâneos já foram elevados às "glórias do altar", entre eles Santa Gianna Molla (1922-1962), uma mãe italiana que carregou uma criança até o parto, ao invés de consentir com um aborto, e morreu no processo.

Outros a caminho do altar são o Beato Pier Giorgio Frassati (1901-1925), carismático ativista social italiano que disse: "A caridade não basta; precisamos de uma reforma social". Nesse mesmo filão, a causa para a canonização de Dorothy Day, a norte-americana cofundadora do Movimento Operário Católico [Catholic Worker], acaba de avançar. E, em 2008, Louis e Zélie Martin, os devotos pais de Santa Teresa de Lisieux, foram beatificados, um raro exemplo de um marido e de uma esposa reconhecidos juntos.

Mas quando se trata de reconhecer santos, a Igreja ainda tende a favorecer papas, bispos, padres e membros de ordens religiosas. Em junho, o Papa Bento XVI divulgou a lista mais recente de 27 candidatos à santidade, que incluiu mártires da Guerra Civil Espanhola, entre eles um bispo e 13 Filhas da Caridade; um padre austríaco morto em Buchenwald; a fundadora mexicana de uma ordem religiosa feminina; um padre diocesano italiano do século XVIII e um padre dominicano francês que fundaram a Comunidade Betânia. Enquanto há uma profusão de santos Padres e Madres nessa lista, onde estão as santas mães e os santos pais?

Cinquenta anos depois do Concílio, em meio aos contínuos convites da Igreja para que leigos e leigas tenham uma vida santa, por que ainda há relativamente poucos modelos para o laicato? Certamente há muitos que se encaixam na definição de santidade: homens e mulheres que, conscientes do amor de Deus por eles, retribuem esse amor mediante o serviço ao próximo, especificamente na sua humildade, caridade e autossacrifício.

Embora a logística possa ser difícil, a Igreja deveria encontrar uma forma de reconhecer os modelos de santidade em homens e mulheres que viveram vidas "ordinárias". Isso inclui: alguém que não seja um santo dos primeiros tempos da Igreja (como São José); alguém que não tenha sido da realeza (como Santa Isabel da Hungria); uma pessoa casada que não tenha fundado uma ordem religiosa anos mais tarde (como Santa Brígida da Suécia); um casal que não planejava inicialmente viver como "irmão e irmã" enquanto casados (como Louis e Zélie Martin); alguém que não tenha fundado uma comunidade religiosa ou movimento social (como Dorothy Day ); e alguém que não tenha morrido em circunstâncias terríveis (como Santa Gianna Molla).

Embora os católicos reconheçam que o santo canonizado precisa ter levado uma vida de "santidade heroica", muitos leigos católicos anseiam por alguém que possam imitar em suas vidas diárias. O que levanta uma questão: quem é mais santa – a Madre Teresa ou a mãe que vai à Igreja e que, durante décadas, cuida de uma criança autista? O Papa João Paulo II ou o homem piedoso que atua como diretor de uma instituição de educação religiosa e mantém dois empregos para sustentar a sua família?

A resposta: todos eles são santos e santas em seus próprios caminhos. A "santidade heroica" vem de muitas formas – e isso inclui tanto aquelas pessoas cuja fé as inspira a fundar uma ordem religiosa e aquelas cuja fé lhes capacita para cuidar de uma criança doente por anos a fio.

Três fatores frustram o desejo de mais santos e santas leigos. O primeiro é a crença persistente de que a ordenação ou os votos religiosos representam um nível mais elevado de santidade do que, digamos, criar um filho. Mas mesmo os santos não concordaram com essa ideia. "A santidade não é o luxo de poucos", disse a Madre Teresa. "É um dever simples para você e para mim".

O segundo fator é a natureza pública das vidas dos sacerdotes e dos membros de ordens religiosas que são canonizados. É mais fácil ver o impacto pessoal de um fundador ou de uma fundadora do que saber sobre o cuidado de um pai ou de uma mãe de uma criança autista. Esse tipo de santidade leiga escondida provavelmente irá atrair muito menos o devoto, simplesmente por ser menos conhecido. Assim, no caso do leigo e leiga comuns, a exigência da Igreja de que uma devoção local surja em torno da pessoa ficará frustrada.

O terceiro fator é o árduo, demorado e caro processo de canonização, pela qual só as ordens religiosas e as dioceses têm os recursos financeiros e o know-how técnico para navegar. Poucos filhos de pais santos podem gerenciar o complexo processo exigido pela Congregação para as Causas dos Santos. Quando a mãe da criança autista morrer, quem vai apresentar a sua causa? Poucos podem saber da sua santidade, mas seu exemplo pode falar para mais católicos do que até mesmo o de um papa.

Se a Igreja espera oferecer modelos relevantes de santidade para os leigos e leigas, é hora de tornar o processo de canonização muito mais acessível e muito menos caro para aqueles que conhecem um marido, uma esposa, uma mãe, um pai, um amigo, amiga, vizinho ou vizinha santos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Qual será o futuro religioso do Brasil?


Na discussão sobre a redução do percentual de católicos no país, reavivada pelo "Novo Mapa das Religiões no Brasil", da FGV, frequentemente se imagina um passado em que a ampla maioria dita católica teria o perfil que se espera do católico urbano atual. Mas o "catolicismo popular" brasileiro é muito diferente disso.

Ele sempre foi mais um "cristianismo popular", permeado por sincretismos e particularismos, em que a influência do magistério romano foi muito relativa.

Por isso, a redução do percentual de católicos no país deve ser lida como a explicitação de uma diversidade religiosa camuflada e o aflorar de visões de mundo populares antes ocultas e recalcadas.
Entre os anos de 1991 e 2009, enquanto a porcentagem de católicos caiu 15%, a dos "sem religião" aumentou apenas 2%; a de evangélicos aumentou 10%.

Isso sugere que estamos num caminho diferente da Europa, onde a religião vem perdendo espaço na sociedade, e mais próximo ao norte-americano, onde há grande diversidade de religiões e estas permanecem influentes na vida social.

A presença do fator religioso nas eleições de 2010 ilustra essa tendência e mostra como ela poderá influenciar a relação entre religiões e sociedade no futuro do Brasil.

Quanto ao catolicismo brasileiro, seu novo perfil é marcado pelo êxodo dos católicos "por convenção" e pelo surgimento de um novo polo dinâmico, representado principalmente pelos movimentos e pelas novas comunidades.

Na arquidiocese de São Paulo, por exemplo, são reconhecidos mais de 40 grupos, que variam de poucas dezenas de participantes em uma paróquia a movimentos com centenas de pessoas, que já se ramificam na Europa e nos EUA.

O laicato tem papel preponderante nessas organizações, que contam com leigos consagrados à obra, muitos dos quais celibatários.

Contando, desde João Paulo 2º, com o apoio explícito do Vaticano, conseguem uma síntese entre pluralidade e unidade. Com isso, resolveram vários problemas do catolicismo do final do século 20, como a necessidade de pluralismo interno, a autonomia dos leigos, a falta de padres e o celibato.

No Brasil, seu grande desafio é formativo, pois se propõem à exigente tarefa de conciliar renovação litúrgica, mística cristã, evangelização, trabalho cultural e ação social.

Os dados indicam que continuaremos a ser, no futuro, um país cristão, com um povo marcado pela religiosidade. Isso diz muito, mas deixa muito ainda por dizer.

Fundamentalismo versus racionalidade, individualismo versus solidariedade, bem comum versus clientelismo, essas são algumas das questões que estão intimamente ligadas à forma como compreendermos e praticarmos nossas opções religiosas no futuro.

- Francisco Borba Ribeiro Neto
Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, editor-assistente no Brasil da revista "Communio" e um dos organizadores dos livros "Um Diálogo Latino-Americano: Bioética & Documento de Aparecida" (Difusão, 2009) e "Economia e Vida na Encíclica Caritas in Veritate" (Companhia Ilimitada, 2010).
Reproduzido via Conteúdo Livre

Vivemos melhor sem Deus?


“Cada vez que hoje me perguntam se eu acredito se é melhor ou não acreditar em Deus, costumo responder que isso não tem importância, já que, se Deus existir, o importante é que ele acredite em nós, como Dom Romero me havia dito”.

A opinião é do jornalista, filósofo e teólogo espanhol Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol El País. Anteriormente, havia sido correspondente no Vaticano e fez a cobertura jornalística de algumas sessões do Concílio Vaticano II, tendo também acompanhado muitas das viagens dos papas Paulo VI e João Paulo II.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Um amigo me pergunta por que, em tempos de crise, inclusive as econômicas como na atualidade, o ser humano se refugia mais na fé em Deus. Difícil responder a essa pergunta, já que, para mim, se Deus serve para alguma coisa deve ser para os tempos de alegria e de felicidade, não para os tempos do medo.

Os pais do cientista e escritor Leonard Mlodinov se salvaram das garras do Holocausto. Ele mesmo salvou a sua vida no fatídico 11 de setembro, nos porões de uma das Torres Gêmeas em Nova York, quando se afundou. Em uma entrevista recente, perguntaram-lhe no Brasil o que ele sentia ao saber que Deus havia salvado milagrosamente a sua vida e a de seus pais. Ele respondeu: "Não foi Deus, mas sim o acaso". E acrescentou: "Que Deus seria esse que salva meus pais do nazismo e deixa morrer seis milhões de outros judeus?". "Que Deus seria esse que me salva do atentado terrorista de Nova York e deixa morrer outras 3 mil pessoas?".

Difícil encontrar Deus nos escombros da morte.

Leitores que não conheço costumam me perguntar, uns com respeito, outros, menos, se eu penso que, sem Deus, se acaba vivendo melhor. Escrevi há 40 anos um livro intitulado "El Dios em quien no creo" [pdf para download do livro completo em espanhol aqui]. Esse tinha sido o título de um artigo publicado no extinto jornal Pueblo de Madri. Havia passado pelos censores franquistas. Talvez porque pensaram que, se falava de Deus, não poderia ser nada subversivo. E era, para a Espanha católica e fechada de então.

O então arcebispo de Madri, Casimiro Morcillo, me chamou ao seu escritório. Ele me disse que o artigo estava ajudando os espanhóis a se tornarem ateus, porque afirmava, entre outras coisas, que, se Deus existe, não podia haver o inferno e que não podia curar uns e deixar outros morrerem. Mostrei-lhe a carta que eu acabava de receber de um casal jovem, em que me diziam que haviam recortado o artigo e conservado para quando seus dois filhos pequenos fossem maiores. "Nós não somos crentes, mas se um dia nossos filhos quiserem acreditar, gostaríamos que acreditassem nesse Deus irreconciliável com o inferno", diziam.

Não serviu de nada. A partir daquele dia, além da censura franquista, a Igreja de Madri impôs outro censor para a minha coluna do Pueblo, que se intitulava "Las cosas claras". Sobre aquele livro, nascido desse artigo e traduzido hoje para 10 idiomas, duas senhoras bem arrumadas, quando voltavam de trem de Assis, onde ele havia sido publicado, olhando com receio para a capa, me perguntaram: "Esse livro é a favor ou contra?". "Isso depende, senhoras", lhes respondi.

Cada vez que hoje me perguntam se eu acredito se é melhor ou não acreditar em Deus, eu costumo responder que isso não tem importância, já que, se Deus existe, o importante é que ele acredite em nós, como Dom Romero me havia dito, talvez em sua última entrevista antes de ser assassinado a tiros enquanto celebrava a Eucaristia.

Somos mais felizes sem Deus? Depende, senhores. Difícil se sentir livre e realizado com o Deus que os ditadores amam e adoram – com os quais, certamente, a Igreja sempre se entendeu melhor do que com os democratas –; difícil com o Deus absolutista incompatível com a democracia ou com o Deus que desconfia da sexualidade.

É difícil que as pessoas, jovens ou adultas, não tragam consigo a sombra de um Deus castrador, aquele sobre o qual, em um colégio de religiosas, a madre superiora tinha escrito nos banheiros das alunas: "Deus está te olhando".

O famoso poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, quando estava por morrer, quis falar com um sacerdote da Teologia da Libertação. Confessou-lhe que era ateu, mas que, naquela hora final, atacava-lhe o medo "daquele inferno de que me falaram quando criança na Igreja". O teólogo disse que, além de o inferno não existir, um poeta nunca teria lugar nele. Esse teólogo era Leonardo Boff, condenado ao silêncio pelo então cardeal Ratzinger e hoje Papa Bento XVI.

O Deus do medo é o Deus que não merece existir. O medo é argamassa humana, é a arma de todos os poderes da Terra, não tem nada de divino. É tirano. Só a felicidade é libertadora. O medo é usado e abusado pelas Igrejas institucionais. Jesus nunca impôs medos aos que o seguiam. Ele os tirava. Ele também os teve. Teve medo de morrer, suou sangue perante a iminência de sua morte, pediu explicações a Deus sobre por que deixava que o matassem se era inocente. E dele tiveram medo os hipócritas e os poderosos, nunca os desprezados ou indignados.

Aquele profeta tinha só um “pecado”: não acreditava no sofrimento, nem na dor, nem na morte como armas de redenção. Não suportava ver alguém sofrer. Não gostavam dos mortos e os ressuscitava. Nunca pediu aos seus apóstolos que fizessem jejuns e penitências, nem que fossem heróis ou virgens. Estavam todos casados, como ele.

E ele não foi um profeta fácil: exigiu, com naturalidade, algo que nos parece loucura: devolver o bem pelo mal. Ele sabia que a felicidade – que era a sua única teologia – se engendra na paz e não na guerra, no perdão e não na vingança.

Vivemos melhor sem Deus? "Depende, senhores". Sem aquele que oferecem as igrejas, que não te permite morrer em paz, nem fazer amor sem que te espie como um policial, vivemos melhor. Vivemos melhor sem o Deus que procura se adonar do mais sagrado do ser humano: sua liberdade e sua consciência. Pelo menos, sem ele, vivemos com menos medos, o que não é pouco.

E com o Deus em que Dom Romero acreditava quando o crivaram de balas no altar, por defender os pobres contra o poder, vivemos melhor?, alguns se perguntarão. Vivemos melhor com o Deus que sempre aposta nos que perdem, o Deus daquele Jesus que não só perdoou na cruz aos que blasfemavam contra ele, mas que até os desculpou: "Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem", expressão máxima do amor supremo que não humilha nem quando perdoa?

Acredito que como melhor se vive é sendo fiel à voz da consciência, mais severa do que as leis, porque não é possível burlá-la, e que constitui a única fonte de liberdade. O cardeal Newman, convertido do protestantismo ao catolicismo, foi um defensor do primado da consciência sobre a lei. Na Carta ao Duque de Norfolk conta que, se se visse obrigado a fazer um brinde, o faria "primeiro à consciência e depois ao papa". Newman tem uma frase que, ainda hoje, depois de dois séculos, continua deixando os cabelos da Igreja e dos teólogos tradicionais em pé: "Prefiro me equivocar seguindo a minha consciência do que acertar contra ela". A Igreja defende, ao contrário, que a consciência deve ser formada antes. Por ela e com medo, é claro.

Vivemos melhor sem Deus? Depende. Talvez tenhamos, às vezes, a tentação de acreditar em alguém mais do que humano, capaz de exorcizar a crueldade que semeia o planeta com mortos inocentes, que pisoteia os que não têm poder, que exalta os explorados, que discrimina os diferentes, que violenta as crianças, que quer impor o seu Deus, que humilha a liberdade. Mas esse não será, antes, o Deus dos nossos sonhos?

Poderíamos viver melhor só com o Deus – se existir – capaz de tirar de nós, mortais, o medo supremo da morte, sem a qual, curiosamente, as religiões deixariam de existir, como afirmava Saramago. Viveríamos melhor com o Deus que não nos proibisse sonhar. Existe?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

I just wanna be with you


É em momentos como esse que a arte expressa o mais profundo anseio humano por um sentido, por atender ao chamado sutil que queima dentro de cada um de nós. :-)

* * *

Em tempo: a quem interessar possa, encontrei hoje um artigo de título curioso sobre Harrison, aqui: "Como George Harrison mudou a forma como nós acreditamos". Achei que o título promete mais do que o texto oferece, mas ainda assim vale a leitura. ;-)

"Aquele que busca a salvação não deve julgar"


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há duas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Minha identidade homossexual é uma mera condição que não está interligada ao meu caráter. Contraditório seria se eu fosse um assassino psicopata, um criminoso, um corrupto "E" católico... Enfim, se eu fizesse algo de podre, que atrasa o desenvolvimento da sociedade...

Minha sexualidade não interfere e não prejudica a minha vida e nem a vida dos outros, portanto, não vejo motivos para que Deus possa me julgar por algo tão simples e tão pessoal. Deus nos julga por nossos atos prejudiciais, por aquilo que atrapalha e/ou interfere ao conjunto de pessoas que vivem em nosso âmbito. Ser gay não interfere na vida de outra pessoa. Meus valores definem o meu caráter e serei julgado por ele.

As pessoas precisam perder a mania feia de linkar a identidade sexual de um indivíduo às capacidades religiosas, intelectuais e físicas dele, afinal, Deus nos criou afim de que fôssemos felizes. Aquele que ignora sua identidade de boa vontade para seguir a Deus, amém. Deus conhece seu coração e sabe se essa boa vontade o torna realmente completo e feliz. Mas Deus também conhece o coração daquele que não abandona sua identidade e vive completo e feliz, buscando estar ao lado do Pai em sua condição. Qual criador abandona sua criatura, seja qual for as características dela? O que Deus nos propõe é que busquemos a felicidade junto a Ele, Nele e por Ele. Para isso precisamos estar em paz dentro de nossos corações. Não haveria a "Paz de Cristo" se conflitamos em nosso interior.

Ser gay não é um defeito, é uma condição que só diz respeito ao individuo. Não é um problema social, não está ligado ao tempo ou a educação, ou ao âmbito ou a cultura, não é uma questão de saúde pública, tampouco uma opção. Por que cargas d'água estaria ligado a religião?

Aquele que busca a salvação não deve julgar, porque isso cabe somente ao Salvador.

Paz e bem.

- Diogo Araujo, 26 anos, Agente de Registro da Receita Federal, Cristão Católico Apostólico Romano.

Aos namorados

Foto daqui

Nosso amigo Teleny mais uma vez nos brinda com um de seus comentários perspicazes, e achamos que valia a pena reproduzir aqui.

No dia 11 de setembro deste ano o Papa Bento XVI realizou a sua viagem apostólica à cidade italiana de Ancona. No final da tarde o Papa teve o encontro com os namorados. O assunto principal, evidentemente, era a preparação ao matrimônio (heterossexual, entende-se). Ao ler o seu discurso, pensei: ele não tem como não falar sobre este tema, até porque dirige-se a todos e o namoro heterossexual é uma experiência vivida pela maioria daqueles jovens, reunidos lá, na Praça do Plebiscito. Aliás, seria super-curioso promover por lá um plebiscito sobre a união homoafetiva, mas não foi desta vez. Falando sério, o que chamou a minha atenção no texto (aqui), foi uma consoladora ausência daquelas famosas afirmações indiretas (antigamente mais frequentes) que detonam qualquer ideia sobre o amor entre as pessoas do mesmo sexo. Mesmo falando para a maioria heterossexual, o Papa deixou umas dicas preciosas que servem muito bem – na minha opinião – aos que vivem o amor homossexual. Vejamos algumas frases (os grifos são meus):

"Nunca percais a esperança. Tende coragem, também nas dificuldades, permanecendo firmes na fé. Tende a certeza de que, em todas as circunstâncias, sois amados e protegidos pelo amor de Deus, que é a nossa força. Deus é bom. Por isso é importante que o encontro com Ele, sobretudo na oração pessoal e comunitária, seja constante, fiel, precisamente como o caminho do vosso amor: amar a Deus e sentir que Ele me ama. Nada nos pode separar do amor de Deus! Depois, tende a certeza de que também a Igreja está próxima de vós, vos ampara, não cessa de olhar para vós com grande confiança.

"Como namorados estais a viver uma fase única, que abre para a maravilha do encontro e faz descobrir a beleza de existir e de ser preciosos para alguém, de poder dizer um ao outro: tu és importante para mim. Vivei com intensidade, gradualidade e verdade este caminho. Não renuncieis a perseguir um ideal alto de amor, reflexo e testemunho do amor de Deus!

"Gostaria de vos dizer antes de tudo que eviteis fechar-vos em relações intimistas, falsamente animadoras; fazei antes com que a vossa relação se torne fermento de uma presença ativa e responsável na comunidade. Depois, não vos esqueçais de que para ser autêntico, também o amor exige um caminho de amadurecimento: a partir da atração inicial e do «sentir-se bem» com o outro, educai-vos a «amar» o outro, a «querer o bem» do outro. O amor vive de gratuidade, de sacrifício de si, de perdão e de respeito do outro.

"Queridos amigos, cada amor humano é sinal do Amor eterno que nos criou, e cuja graça santifica a escolha de um homem e de uma mulher de se entregarem reciprocamente a vida no matrimônio. Vivei este tempo do namoro na expectativa confiante desse dom, que deve ser aceite percorrendo um caminho de conhecimento, de respeito, de atenções que nunca deveis perder: só sob esta condição a linguagem do amor permanecerá significativa também com o passar dos anos.

"Gostaria de voltar mais uma vez a falar de um aspecto essencial: a experiência do amor tem no seu interior a propensão para Deus. O verdadeiro amor promete o infinito! Por conseguinte, fazei deste vosso tempo de preparação para o matrimônio um percurso de fé: redescobri para a vossa vida de casal a centralidade de Jesus Cristo e do caminhar na Igreja.

"Também eu gostaria de vos dizer que estou próximo de vós e de todos os que, como vós, vivem este maravilhoso caminho de amor. Abençoo-vos de coração!"

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A desconstrução do preconceito vem com a construção da informação

Instalação: David Černý

Reproduzimos abaixo uma interessante entrevista publicada em 10/10/11 no site O Estado RJ. A matéria é de autoria de Júlia Gomes.

No dia 23 de agosto, a Frente Parlamentar Mista da Diversidade Sexual, formada por deputados e senadores, entregou ao presidente do Senado, José Sarney, o projeto de lei para criar o Estatuto da Diversidade Sexual que deverá ser encaminhado ao Congresso Nacional por meio de uma proposta de iniciativa popular. Além do Estatuto, também foi apresentada uma proposta de emenda à Constituição (PEC), que prevê mudanças no texto constitucional com a intenção de inserir a proibição da discriminação por orientação sexual, estabelecendo que união estável e casamento independem da orientação sexual.

Além disso, pretende modificar a licença-maternidade para licença-natalidade. A licença deixaria de ser de quatro meses para a mulher e cinco dias para o homem, passando para 180 dias para o casal. Para falar um pouco do Estatuto e de outras questões envolvendo os homossexuais, conversamos com o advogado Flávio Fahur, especialista em direito de família, homoafetivo e sucessões.

A Lei Afonso Arinos, de 1951, representou o início do combate ao racismo no Brasil. Sessenta anos depois vemos que o racismo ainda existe. Você acha que com o Estatuto da Diversidade Sexual os homossexuais serão mais respeitados?

A Lei Afonso Arinos foi a primeira legislação brasileira a iniciar o combate ao racismo. O Estatuto da Diversidade Sexual será também um marco histórico na luta pelos direitos da população LGBT. O referido Estatuto é um verdadeiro microssistema com definição clara de normas afirmativas, objetivando, assim, assegurar maior visibilidade, segurança jurídica e pessoal e dignidade plena a quem é alvo de preconceito. Importante frisar que o Estatuto da Diversidade Sexual visa promover a inclusão de todos, combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero e criminalizar a homofobia, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos, traz também princípios fundamentais e normas de natureza civil, penal, previdenciária, trabalhista, entre outras, norteando as políticas públicas de inclusão. As leis garantem a imposição do respeito, mas este deve nascer dentro de cada um de nós. Ressalto que a OAB/RJ criou a Comissão de Direito Homoafetivo – CDHO, que está trabalhando incansavelmente na divulgação do Estatuto da Diversidade Sexual, a qual tive a honra de ser convidado a participar.

Em SP já existem algumas delegacias especializadas em crimes no combate a crimes de homofobia, entretanto vemos quase semanalmente algum tipo de agressão contra homossexuais. Qual é o real objetivo dessas delegacias? Como elas ajudam as vítimas? Há previsão para a abertura de uma no Rio de Janeiro?

F.F: O objetivo é oferecer à população LGBT um atendimento especializado, com policiais bem treinados e capacitados para trabalhar com as diversas formas de violência que surgem pela covardia dos crimes de homofobia. A ajuda vem primeiramente de um atendimento inclusivo às vítimas da violência sofrida, seja física ou verbal, com o registro, investigação, abertura de inquérito policial e adoção de medidas e procedimentos policiais que forem necessários à resolução dos casos apresentados pelas vítimas. A ALERJ promulgou, desde 25/03/2011, a Lei nº5931/2011 que dispõe sobre a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI, que tem a finalidade de combater todos os crimes praticados contra pessoas, entidades ou patrimônios públicos ou privados, motivados pelo preconceito ou a intolerância, no Estado do Rio de Janeiro.

Muitas pessoas associam a homossexualidade a algo promíscuo, desviante e, até mesmo, sujo. Como desconstruir a imagem desfavorável do homossexual disseminada na sociedade?

F.F: O preconceito e a ignorância são duas das “doenças” mais perversas que a humanidade sofre. A promiscuidade independe da orientação sexual, e sim da mentalidade do ser humano que a faz. Quanto à questão de ser errado ou sujo, não há como fugir de uma discussão perniciosa travada há séculos entre a religião e a sexualidade. O filósofo Michel Foucault alertou para um fato perigosíssimo, qual seja, a partir do século XIII, cria-se “a confissão dos pecados realizada pelos fieis”, dando à Igreja o controle não apenas dos atos e omissões, mas sobretudo a dominação dos pensamentos humanos. Outros mecanismos parecidos ou até mais perigosamente “eficazes” são realizados por outros segmentos religiosos, como forma de dominação mental. Os dogmas religiosos não podem ter o condão de discriminar um ser humano, aliás, tenho firme convicção que Jesus Cristo foi o mais tolerante e acolhedor de todos os tempos, as religiões deveriam realmente seguir seus ensinamentos reais e não os distorcer por pura conveniência, seja ela qual for.

Em se tratando de políticas públicas, o Judiciário e o Executivo já deram grandes passos no tema homoafetividade, todavia, existe omissão do Legislativo em seguir este caminho, devemos ficar atentos para os parlamentares que usam a Religião para negar Direitos, isto é um grave e grande equívoco. Com isto, a única forma de desconstruir esta cruel e perversa versão equivocada, é a informação do direito constitucional à livre orientação sexual, que é um direito da personalidade, intransmissível e irrenunciável.

Você diz que a chave de tudo é a educação. Ela deve começar ainda na infância?

F.F: A chave para se abrir qualquer porta para ter acesso à felicidade plena é a educação e o respeito à diversidade do ser humano. Sempre ouvimos que os pais querem o melhor para seus filhos. Estes pais que estão plantando e construindo o preconceito e o ódio à diversidade do ser humano na mente de seus filhos, certamente estarão fazendo um nítido desserviço, esquivando pelas ações e omissões de apresentar aos seus filhos, valores fortes e reais, condizente com a sociedade atual, viva e não com o mundo defasado e fantasiado. Por tudo isto, a releitura de valores sociais são importantíssimos desde infância.

Você é a favor do Projeto do Ministério da Educação de distribuir, aos estudantes da rede pública de ensino, uma cartilha abordando o tema da diversidade sexual?

F.F: Com certeza. A discussão sobre a temática das questões sobre diversidade sexual elaborada através de contextos escolares-educacionais, seria um grande avanço para garantir a informação segura e responsável aos estudantes da rede pública, dando visibilidade para as novas relações, para os laços sociais e para as novas configurações familiares existentes na contemporaneidade.

O Estatuto não beneficia apenas os homossexuais. Uma das medidas mais interessantes é a implementação da licença natalidade. Fale um pouco sobre ela.

F.F: O Estatuto da Diversidade Sexual prevê direitos não somente à população LGBT, mas também aos heterossexuais, pois independe de orientação sexual, muito atual com o conceito de entidade familiar responsável contemporânea. Especificamente em relação à inovação do conceito de licença-natalidade, a sugestão prevista no Estatuto é que os 15 primeiros dias após o nascimento, adoção ou concessão da guarda para fins de adoção, sejam usufruídos pelo casal. O período de 180 dias subseqüente será gozado por qualquer deles, de forma não cumulada, reiterando, seja o casal homoafetivo ou heteroafetivo.

A união entre pessoas do mesmo sexo representa um fato social cada vez mais constante em todo o mundo. Como fica essa questão pelo Estatuto?

F.F: Como mencionado, o Estatuto da Diversidade Sexual é um verdadeiro microssistema, assim como o Código de Defesa e Proteção ao Consumidor, o Estatuto da Criança e Adolescente, Estatuto do Idoso. Como tal, o Estatuto da Diversidade Sexual propõe alteração em mais de 132 dispositivos legais, contidos em 19 legislações infraconstitucionais a serem alteradas. Certamente há previsão de mudança legal significativa em vários ramos do Direito. Por exemplo, o casamento e adoção por pessoas do mesmo sexo (Direito de Família), herança (Direito das Sucessões), crimes motivados por discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero – Homofobia (Direito Penal), dentre outros.

Para terminar. Uma frase ou pensamento.

F.F: A desconstrução do preconceito vem com a construção da informação.

Sobre Deus

Foto: Isac Goulart

Três homens olham para o horizonte. O sol se anuncia colorindo de abóbora e sangue umas poucas nuvens escuras. Um deles diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Na janela, um vulto acena para mim." O segundo homem diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Mas não há nenhum vulto acenando para mim. A casa está vazia, é desabitada." O terceiro homem diz: "Não vejo vulto, não vejo casa. Vejo as nuvens abóbora e sangue... E como são belas! Sua beleza me enche de alegria!"

Essa é uma parábola metafísica. O primeiro homem vê, no meio das nuvens, um vulto, quem sabe o senhor do universo. Se eu gritar, ele me ouvirá. Para isso há as orações: gritos que pronunciam o Nome Sagrado, à espera de uma resposta. O segundo vê a casa, mas a casa está casa vazia, não tem morador. É inútil gritar, porque não haverá resposta. É o ateu... E como dói viver num universo que não ouve os gritos dos homens... O terceiro, que não vê nem casa e nem vulto, vê apenas a beleza -que nome lhe dar? Acho que o nome seria "poeta".

A beleza é o Deus dos poetas. Quem disse isso foi a poeta Helena Kolody: "Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo."

Borges relata que, segundo o panteísta irlandês Scotus Erigena, a Sagrada Escritura contém uma infinidade de sentidos. Por isso, ele a comparou à plumagem irisada de um pavão. Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um dos homens de Israel. Daí por que, de acordo com ele, existem tantas Bíblias quantos leitores da Bíblia. Cada leitor vê na Bíblia a imagem do seu próprio rosto.

O teólogo Ludwig Feuerbach disse a mesma coisa de forma poética: "Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita." Os deuses das flores são flores. Os deuses das lagartas são lagartas. Os deuses dos cordeiros são cordeiros. Os deuses dos lobos são lobos. Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do universo. Dize-me como é o teu Deus e eu te direi quem és...

Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas, se um artista os juntar segundo uma visão de beleza, eles se transformam numa obra de arte. As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se encontram poemas, histórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos portentosos, textos eróticos, matanças, parábolas... Ao ler as Escrituras, comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico. Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos.

Como no caso do labirinto literário de Borges cujos cacos eram peças de um quebra-cabeças que, juntos, formavam o seu rosto, também o mosaico que formamos com os cacos dos textos sagrados tem a forma do nosso rosto. Há tantos deuses quanto rostos há. Assim, quando alguém pronuncia o nome "Deus" há de se perguntar: "Qual?"

- Rubem Alves
Reproduzido via Conteúdo Livre

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O próprio rosto de Cristo


O Vaticano divulgou ontem a Carta Apostólica "Porta fidei" ("A porta da fé"), com a qual o Papa Bento XVI proclama o Ano da Fé. Trata-se de período de 11 de outubro de 2012 (50º aniversário de abertura do Concílio Vaticano II) a 24 de novembro de 2013, Solenidade de Cristo Rei do Universo. A carta pode ser lida aqui.

Por intermédio de nosso sempre antenado amigo Teleny, reproduzimos o trecho abaixo, com nossos votos de que as palavras do papa reverberem por todos os cantos e corações da Terra. Os grifos são nossos.
O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé”» (Tg 2, 14-18).

A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra de realizar o seu caminho. De fato, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça» (2 Pd 3, 13; cf. Ap 21, 1). ["Porta fidei", n. 14]

Carta aos LGBTs: "Eu estou com vocês"

Foto: i can read

Por um feliz acaso, encontramos outro dia este texto no blog de um certo Jeremy Johnson e achamos que valia traduzir e compartilhar com vocês.

Não sei como é ser negro e carregar o peso de anos de opressão e racismo sobre os ombros. Ter de conviver com e superar tamanha opressão. Sentir-se diferente e de menor valor simplesmente por causa da cor da minha pele. Eu sou branco.

Não sei como é ser mulher e carregar o peso da desigualdade e do sexismo sobre os ombros. Andar sozinho pela rua sendo fuzilado por todos aqueles olhares carregados de luxúria. Sentir-se diferente e de menor valor simplesmente por causa do meu gênero. Eu sou homem.

E não sei como é ser gay e carregar o peso do ódio, medo e isolamento sobre os ombros. Ter intensos sentimentos amorosos por alguém do meu próprio gênero. Ter de optar entre reprimir aquilo que sou ou “sair do armário”, sabendo muito bem os conflitos que minha decisão vai causar. Sentir-se diferente e de menos valor simplesmente por causa de minha orientação. Eu sou hétero.

Nunca acordei, numa manhã da minha adolescência, sentindo-me culpado, sujo e assustado porque algo despertou dentro de mim e tenho sentimentos pelos garotos, não pelas garotas. Nunca vi o jeito como as pessoas olham ao passar de mãos dadas com outro cara. Nunca precisei me perguntar por que Deus me fez assim, permitiu que eu me sentisse assim, só para dizer que sou amaldiçoado, abominável e pecador. Nunca pensei em me matar, movido por toda a carga de medo, vergonha e culpa que carrego por causa de um segredo obscuro que levo comigo. Nunca tomei na cara nem apanhei até cair simplesmente por ser gay. Nunca senti a opressão de um país inteiro nem de um corpo inteiro de fieis sobre mim. Nunca soube o que é ter de me sentar com meus pais, olhá-los nos olhos e dizer-lhes que sou gay, só para ver toda a atitude deles em relação a mim mudar instantaneamente. Nunca soube a sensação de ver a pessoa que amo ser rejeitada por quem é muito importante para mim. Nunca senti como é estar no lugar do meu irmão.

Não sou instruído o bastante para saber ou declarar coisas como “O que você sente pelo Marcos é um pecado” ou “Você não foi criado assim” ou “Você escolheu assim, isso não é o que você é” ou “Você tem de negar esses sentimentos e não realizá-los” ou “Deus ama você, mas odeia seus atos e sentimentos gays” ou “Você não serve para Deus por ser gay”.

E, como não sei nem nunca soube, e não sou tão instruído assim, não posso tomar meu assento no júri para julgar e condenar vocês.

Mas posso amar.

Posso dizer que amo vocês tal como são, sem desculpas. Posso dizer que vocês já sofreram o bastante e não foram amados o bastante. Posso dizer que Deus ama vocês, de maneira incondicional, e espera ansioso para que vocês acreditem, e assim se tornem livres para viver e amar. Posso dizer que, sim, serei seu amigo e não os temerei.

E posso pedir perdão.

Perdão por tomar parte de sua opressão e abuso. Perdão pelo meu silêncio, permitindo que se consolidasse a atmosfera que os cercou de medo, ódio e isolamento. Perdão por não me postar entre vocês e seus opressores bradando “Basta!”. Perdão por não permitir que sua história venha a ser também a minha história, a sua dor seja a minha dor, a sua opressão seja a minha opressão. Perdão por não ser a voz do amor de Deus em sua vida. Perdão por não levar o abraço de Deus a vocês quando vocês mais precisavam, limitando-me, em vez disso, a olhar de longe enquanto vocês apanhavam. Perdão por permitir que a Bíblia seja usada como uma metralhadora apontada para vocês, em vez de como uma carta de amor escrita por Deus para cada um de vocês.

Acima de tudo, perdão por representar tão mal a Jesus. O Jesus que se sentava à mesa, curava e abraçava aquelas mesmas pessoas que as ordens estabelecidas em termos culturais e religiosos repeliam, condenavam e amaldiçoavam.

Se Jesus estivesse hoje aqui, seria com vocês que Ele se sentaria à mesa, curaria, abraçaria, amaria e ficaria.

Mas esperem, Jesus está aqui hoje. Perdão por não ter sido Jesus para vocês.

Por favor, me perdoem e tenham paciência comigo, enquanto aprendo a amar como Jesus amou. Daqui por diante, estarei com vocês, de mãos dadas, irmão com irmão, irmão com irmã, como um ser humano com outro ser humano. Partilhamos o mesmo sangue. Nosso Pai é o mesmo. Deus ama a mim tanto quanto ama a vocês. E Seu amor incansável cobre vocês como a mim.

Estou com vocês, seja como for.

Seu irmão, com muito amor,

Jeremy Johnson

(PS: Considerem esta a minha “saída do armário”.)

Sacrifícios a César

Grafite: Bleeps.gr

A pergunta que fazem a Jesus alguns sectores fariseus, confabulados com partidários de Antipas, é uma armadilha preparada com astucia para ir criar um clima propício para eliminá-Lo: «É lícito pagar impostos a César ou não?».

Se diz que é lícito, Jesus ficará desprestigiado ante o povo e perderá o seu apoio: assim será mais fácil atuar contra Ele. Se diz que não é lícito, poderá ser acusado de agitador subversivo ante os romanos que, nas festas da Pascoa já próximas, sobem a Jerusalém para abafar qualquer intenção de rebelião contra César.

Antes de mais nada, Jesus pede-lhes que Lhe mostrem «a moeda do imposto» e que Lhe digam de quem é a imagem e a inscrição. Os adversários reconhecem que a imagem é de César como diz a inscrição: Tibério César, Filho augusto do Divino Augusto. Pontífice Máximo. Com o Seu gesto, Jesus situou a pregunta num contexto inesperado.
Tira então uma primeira conclusão. Se a imagem da moeda pertence a César, «dai a César o que é de César». Devolvei o que é seu: essa moeda idólatra, cunhada com símbolos de poder religioso. Se a estais utilizando nos vossos negócios, estais já reconhecendo a sua soberania. Cumpri com as vossas obrigações.

Mas Jesus que não vive ao serviço do imperador de Roma, "procura o reino de Deus e a Sua justiça" junta uma grave advertência sobre algo que ninguém Lhe perguntou: «A Deus dai o que é de Deus». A moeda leva a "imagem" de Tibério, mas o ser humano é a "imagem" de Deus: pertence só a Ele. Nunca sacrifiqueis as pessoas a nenhum poder. Defendé-las.

A crise económica que estamos a viver nos países ocidentais não tem fácil solução. Mais do que uma crise financeira é uma crise de humanidade. Obcecadas apenas por um bem-estar material sempre maior, acabamos vivendo um estilo de vida insustentável inclusive economicamente.

Não vai ser suficiente propor soluções técnicas. É necessária uma conversão do nosso estilo de vida, uma transformação das consciências: passar da lógica da competição à da cooperação: colocar limites à voracidade dos mercados; aprender uma nova ética da renúncia.

A crise vai ser longa. Esperam-nos anos difíceis. Os seguidores de Jesus, temos de encontrar no Evangelho a inspiração e o alento para vivé-la de forma solidária. De Jesus escutamos o convite para estar próximos das vítimas mais vulneráveis: os que estão a ser sacrificados injustamente às estratégias dos mercados mais poderosos.

- José Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Em defesa das famílias homoparentais


Zach Wahls, um estudante de engenharia de 19 anos, falou sobre a força de sua família durante uma discussão pública sobre a Resolução Conjunta Nº 6 na Assembléia Legislativa de Iowa. Wahls tem duas mães, e falou contra a Resolução, que pretendia eliminar as uniões civis homoafetivas do Estado americano de Iowa. Um belo testemunho.

Além de ser uma boa resposta ao nosso Partido Social Cristão. (Não entendeu? Clique aqui.) ;-)

* * *

Veja este e outros vídeos legais no nosso canal no You Tube, aqui. :-)

Mapa revela nações que mais protegem os direitos dos homossexuais

Escultura: Jennifer Collier

Surpreendentemente, países como Argentina, Espanha e África do Sul superam os EUA. Em termos de geopolítica e de casamentos gays, nas ex-ditaduras o "sim" é mais fácil.

A reportagem é de Angelo Aquaro, publicada no jornal La Repubblica, 10-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.


Há uma linha que une os mártires da Praça de Maio e os resistente gays de meio mundo? O que liga a África do Sul de Nelson Mandela ao Massachusetts daquele Mitt Romney que visa à Casa Branca? E Barack Obama realmente tem algo a aprender com o ex-primeiro-ministro português José Sócrates? Tudo o que você pensava saber até agora sobre os casamentos gays é falso. Ou pelo menos discutível.

Não é verdade que o fatídico "sim" aos homossexuais seja uma meta das nações reconhecidas como socialmente mais avançadas. Ao contrário. A geopolítica dos casamentos gays começa em Lisboa. O primeiro colunista abertamente gay do New York Times – Frank Bruni – foi até lá para descobrir por que esse pequeno país à beira do precipício (também econômico) da Europa conseguiu acertar um alvo até agora difícil para um gigante como os EUA, onde Barack Obama brinca com os seus partidários gays ("Encontrei a líder de vocês: Lady Gaga!"), mas ainda não se pronunciou a favor do casamento, fazendo, assim, com que o país escolha desordenadamente: de Massachusetts, em que se casa por decisão da Suprema Corte (e para a raiva do ex-governador mórmon Romney) até Nova York, que neste mês celebrou os primeiros 100 dias do "sim" aos gays.

Mas por que Portugal? Lisboa é a última capital a ter aprovado uma lei no ano passado. E, além do mais, é um país católico, que se poderia imaginar a anos luz daquela Holanda que escolheu a tolerância por princípio de Estado, das vitrines já turísticas aos cafés de maconha. E que, pela primeira vez no mundo, instituiu, há dez anos, o casamento gay. Desde então, só nove foram os Estados em que o casamento gay foi admitido. Mas aqui vêm as outras surpresas.

Os países que, como a Holanda, gozam de uma tradição de tolerância são um quarteto: Noruega, Suécia, Islândia e Canadá. Mas e os outros? África do Sul, Espanha, Portugal e Argentina. A explicação é esboçada pelo estudioso Evan Wolfson, do Freedom for Marry. "Trata-se de países onde a democracia e o respeito pela lei foram negados durante anos. E onde a sociedade civil lutou fortemente para reconquistá-los". Da Argentina da ditadura de Videla à Espanha do pós-Franco. Da África do Sul do apartheid ao Portugal livre da Revolução dos Cravos.

Mas não só. O ex-primeiro-ministro português Sócrates reconhece: "A escolha da Espanha foi muito importante para nós". A primavera (já murcha) de Zapatero teria servido como estímulo para o vizinho de península, mas também para a América Latina, que continua olhando com amor e rivalidade para a pátria-mãe. E não é por acaso que o próximo país na lista do reconhecimento ainda é de marca espanhola: o Uruguai.

A hipótese que cruza países saídos da ditadura e direitos gays é cativante. Mas há quem destaque os seus limites. Uma jurista gay e contracorrente, por exemplo, é Katherine M. Franke. A professora leciona na Universidade de Columbia e em seu livro The politics of same sex marriage politics já havia destacado alguns riscos, além de conquistas civis. Inclinando-se sobre a instituição burguesa do casamento, os homossexuais não só venderiam a sua alma ao diabo do conformismo, mas também sancionaram a enésima desigualdade social. Ou seja, o reconhecimento dos direitos somente sob prévio contrato - eu respeito você como gay – mas se você se casar.

E pensar que as uniões que hoje dividem afundam suas raízes nos séculos. Alan Tullchin, professor da Universidade da Pensilvânia, encontrou na França de 600 anos atrás aqueles contratos de "fraternização" (com a promessa de compartilhar "un pain, un vin et une bourse"), que serviam para repassar a propriedade em caso de morte do companheiro. Sem falar dos piratas da Ilha da Tartaruga, que se casavam entre si para permitir que os marinheiros – matelot – dividissem os tesouros.

A propósito: exatamente de matelot é que vem aquele mate, que, em inglês, designa o parceiro sexual, masculino ou feminino - ou ambos.

* * *

Em tempo: recebemos via twitter na semana passada, de nosso amigo @realfpalhano, o link para um artigo sobre a homossexualidade na Idade Média, na Espanha. E o artigo começa: "Chamavam-se Pedro Díaz e Muño Vandilaz os dois homens que, em 16 de abril de 1061, protagonizaram o primeiro matrimônio homossexual de que se tem registro na Galícia, e um dos primeiros da Europa." Vale a leitura, aqui.

O sacrifício cristão e o Vaticano II

Escultura: Michael Murphy

Com o Vaticano II, passamos imperceptivelmente da angústia do Dies irae para o “Hino à alegria”, de uma prática religiosa disciplinar na expectativa preocupada da cólera divina, a uma prática da fé em Cristo que leva a cumprimento a cristicidade (santidade) do humano e, por isso, o liberta do pecado.

A opinião é de Alain Weidert, publicada no jornal La Croix, 08-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


A ruptura com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X será reabsorvida? Formalmente, talvez, mas absolutamente não com relação aos temas de fundo! Persiste um antagonismo teológico crucial, jamais abertamente explicitado. Esse "não dito" refere-se à própria natureza da salvação, da redenção, ou seja, do tipo das relações Deus-homem.

O epicentro de todos os dissensos invocados (liturgia, sacerdócio comum, colegialidade, ecumenismo...) nada mais é do que o sacrifício de Cristo. A salvação em Jesus Cristo passa, sim ou não, por um sacrifício de reparação, de expiação, de satisfação ou, para usar uma palavra apreciada, por um sacrifício propiciatório?

Os lefebvrianos, em particular, são contrários ao conteúdo de um livro publicado em 1968 e republicado várias vezes até 2010 [1]. O seu autor, o futuro Papa Bento XVI, desenvolve nele um modo de entender o sacrifício de Cristo e, portanto, de Deus, nos antípodas da posição sacrificial e da luta ideológica integralista [2].

Joseph Ratzinger lembra acima de tudo a concepção cristã atual da redenção, que se baseia naquela que se chama de teoria da satisfação, elaborada por Anselmo de Canterbury. Para Anselmo, o pecado do homem era dirigido contra Deus, e, como Deus é infinito, a ofensa que lhe foi feita tem um peso infinito. E, como a humanidade é incapaz de fornecer uma reparação infinita, é o próprio Deus que acaba com a injustiça no sacrifício do Filho, que fornece a satisfação necessária.

Sem rejeitar todas as intuições de Anselmo, Joseph Ratzinger só pode constatar que nos é sempre mais difícil admitir uma teoria tão cruel que situa a cruz dentro de um mecanismo de direito lesado e restabelecido. Alguns textos devocionais parecem até sugerir, escreve ele, que o Deus da fé cristã exija um sacrifício humano, o do seu próprio Filho.

"Essa imagem é tão difundida quanto equivocada", afirma. A cruz não é a obra de reconciliação que a humanidade ofereceria a um Deus carrancudo, mas sim a expressão do amor insensato de Deus, que, no Homem, se oferece totalmente.

O sacrifício cristão não consiste em dar a Deus uma coisa que ele não possuiria sem nós, mas sim em nos tornarmos totalmente receptivos e em deixar-nos tomar totalmente por Ele. "Deixar Deus agir em nós, eis o sacrifício cristão", escreve Ratzinger. Para ele, o culto cristão não consiste na oferta de coisas, nem em uma forma de destruição, como "repete-se incessantemente nas teorias do sacrifício da Missa do século XVI".

O que importa, na cruz, escreve o teólogo, não é um acúmulo de sofrimentos físicos, como se o valor de redenção da cruz consistisse na soma máxima possível de tormentos. Depois, ele se pergunta: "Como Deus poderia obter prazer dos tormentos da sua criatura, até do seu próprio Filho e considerá-los como o valor a ser fornecido conquistar a reconciliação?". Para ele, a Bíblia e a fé cristã autêntica estão longe de tais ideias. Se fosse de outra forma, continua, "na cruz, os torturadores teriam sido os verdadeiros sacerdotes, teriam sido eles que, provocando o sofrimento, teriam oferecido o sacrifício".

Não é talvez uma ideia indigna representar um Deus que exige a imolação do Filho para aplacar a sua cólera? A essa pergunta, o futuro papa responde: "De fato, Deus não poderia ser concebido desse modo. Uma tal noção de Deus não tem nada a ver com a ideia de Deus do Novo Testamento".

Com essa declaração, ele repensa mais corretamente a ideia do sacrifício cristão, assim como a empatia natural, indefectível e sem condições de Deus para com o homem. Mas com essa configuração, ele também levanta a condenação por parte dos integralistas do famoso espírito do Concílio, da sua cristologia de reequilíbrio entre o homem e Deus

Com o Vaticano II, passamos imperceptivelmente da angústia do Dies irae para o “Hino à alegria”, de uma prática religiosa disciplinar, na expectativa preocupada da cólera divina, a uma prática da fé em Cristo que leva a cumprimento a cristicidade (santidade) do humano e, por isso, o liberta do pecado.

Quando nos sacrificamos, não é mais para sermos salvos ou para salvar almas, mas porque se realiza a gratuidade da salvação, as "Núpcias em Cristo", do humano e do divino. O espírito crístico desse Concílio excepcional não deterá tão cedo a sua obra pastoral de conversão.


Para se aprofundar neste tema, sugerimos:
A Cruz: suplício ou esperança?
Escândalo e loucura

_______________
Notas do autor:
1) Joseph Ratzinger, La fede cristiana, ieri e oggi.
2) Ver por exemplo Lettre à nos frères prêtres, n° 45, março de 2010; Dom Tissier de Mallerais, L'étrange théologie di Benoit XVI, Ed. Le Sel de la Terre, 2010.

domingo, 16 de outubro de 2011

Irrelevâncias


"A única coisa que um judeu precisa saber é que Moisés ensinou que havia um só Deus para todas pessoas. O resto é irrelevante.

Um cristão precisa saber que o Cristo mensageiro disse para amar o próximo como a si mesmo e Deus sobre todas as coisas. O resto é irrelevante.

Os budistas precisam saber que Buda ensinou que devemos nos desprender de nosso orgulho, ego, cobiça e ambição material. O resto é irrelevante.

A única coisa que um muçulmano precisa saber é que a guerra santa que o profeta ensinou não é uma batalha contra outras crenças. E sim a conquista do nosso próprio mal, tentações e orgulho. O resto é irrelevante.

E a única coisa que um ateu precisa entender é que nós, não um deus distante, somos os responsáveis por nossas atitudes. O resto é irrelevante."


Via Saindo da Matrix

Partido Social Cristão (PSC) exclui demais formas de família

Foto: Alex Beker

“UM HOMEM + UMA MULHER = AMOR. ISTO É FAMÍLIA”. Será só isso?

Toni Reis*

Assisti indignado e entristecido a esta propaganda, desatualizada e preconceituosa do Partido Social Cristão (PSC), cuja definição de “família” é um homem, uma mulher e seus filhos, somente.

Entendo que esta é uma forma de família, a mais tradicional, que não deve ser desmerecida. No entanto, a propaganda exclui e é ofensiva às demais formas de família que sabida e comprovadamente existem. A propaganda está em compasso com uma ideologia excludente e discriminatória.

Segundo afirmação feita pela Organização Mundial da Saúde já em 1994, “o conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento, parceria sexual ou adoção. Família é o grupo cujas relações sejam baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino comum”.

A propaganda ignora os dados do último censo populacional que, entre outras estatísticas, aponta que 51% das pessoas de referência das famílias são mulheres, 17,1% das famílias são compostas por casais sem filhos e 17,4% por mulheres sem cônjuges mas com filhos. Inclusive até a família da presidenta Dilma foi excluída pela propaganda, visto que ela vive somente com a mãe e uma tia.

A propaganda, com seu raciocínio reducionista e binária, deixou de lado todas as outras composições familiares, que incluem as famílias recompostas, monoparentais, ampliadas, comunitárias... Ignorou a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 05 de maio de 2011, que reconheceu unanimemente que os casais homoafetivos também formam entidades familiares.

Todas as pessoas têm o direito de liberdade de convicções pessoais, mas um partido político veicular este tipo de propaganda é atentatório aos princípios democráticos da igualdade, da dignidade humana e da não discriminação, entre outros.

Família, pode-se realmente afirmar, significa laços de amor, afetos e responsabilidades, sem exclusão e sem discriminação. Será que o PSC não deveria respeitar a Constituição Federal?

*Toni Reis
Presidente da ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
Reproduzido via Jornal do Brasil

Morrer é transvivenciar

Escultura: Sean Henry

A morte de toda celebridade provoca impacto midiático. Por isso, os arquivos da mídia guardam obituários da rainha Elizabeth II e do papa Bento XVI, de Pelé e Neymar, de Demi Moore e Sebastien Vettel. A morte nem sempre manda aviso prévio. Se uma celebridade deixa a vida por acidente, como Ayrton Senna e Lady Di, ou por causa inesperada, como Michael Jackson e Amy Winehouse, as redações precisam ter pronto o perfil biográfico do falecido. Agora, Steve Jobs morreu aos 56 anos. O impacto é tanto maior quanto mais prematura e irreparável a perda: não há como clonar cérebros e talentos geniais. Há pessoas, sim, insubstituíveis. Como já não estão entre nós, ficamos sem parâmetro de comparação, sem saber o que fariam no lugar de quem lhes sucedeu.

Sim, sabemos todos que ninguém é imortal. Em determinado dia, mês e ano do calendário, cada um de nós deixará este mundo. O que choca é ver alguém morrer antes do tempo.

Sobretudo quando se respira uma cultura de preconceito à velhice. Chamar, hoje, alguém de velho é uma ofensa. No máximo, admite-se idoso. E haja eufemismos para qualificar quem passou dos 60: terceira idade, melhor idade etc. Vi escrito numa van: “Aqui viaja a turma da dignidade”. Como velho que sou, rejeito tais artimanhas da linguagem. A melhor idade é dos 20 aos 35 anos (embora a ditadura, ao encarcerar-me, tenha me roubado quatro). Se é para inventar eufemismo, melhor ser realista e considerar nós velhos a turma da eterna idade, já que estamos naturalmente mais próximos dela.

Nossa cultura pós-moderna lida muito mal com a morte. Busca ansiosamente o elixir da eterna juventude: academias de ginástica, anabolizantes, macrobiótica, cirurgias plásticas etc. Na minha infância, criança era quem tinha de zero a 11 anos. Adolescente, de 11 a 18. Jovem, de 18 a 30. Adulto, de 30 a 50. Velho, mais de 50. Hoje, tem-se a impressão de que criança é de zero a 18, quando se vive na dependência dos pais. Adolescente, de 18 a 30, sem segurança quanto a compromissos afetivos e profissionais. E jovem, dos 30 em diante, ainda que se tenha 80 ou 90.

O mundo desencantou-se, disse Max Weber. Religiões e ideologias estão em crise. Pouco se pergunta pelo sentido desta vida e, portanto, muito menos o que nos espera na outra. A relativização de valores e a desculpabilização ética exorcizam o medo de padecer eternamente no inferno. A morte, como fato social, é tratada como inconveniente: não há rituais fúnebres. Morre-se no hospital, faz-se breve velório, crema-se o corpo, espalham-se as cinzas ao pé de alguma árvore. E vira-se a página. Não há luto nem memória do falecido. E em famílias ricas não raramente a briga por herança começa antes de o defunto esfriar.

As escolas deveriam educar seus alunos quanto aos ritos de passagem inevitáveis ao longo da vida. Eles aprenderiam que a morte não merece credibilidade porque, em si, não existe. Existem a passagem para quem se foi e a perda para quem ficou. Há famílias que cometem o erro de evitar que as crianças compareçam ao velório de entes queridos. Elas ficam com uma incômoda interrogação na cabeça frente ao sumiço do parente querido.

Não gosto do verbo morrer. Prefiro transvivenciar. Por uma questão de fé e sentimento. Quando nascemos, todos riem e nós choramos. Quando transvivenciamos, ocorre o contrário. A vida é um milagre excepcionalmente belo para enclausurar-se nos poucos anos que nos são dados viver. Acredito que, ao sair do casulo, todos haveremos de virar borboletas – o que é ainda mais belo e promissor.

- Frei Betto
Reproduzido via Conteúdo Livre
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