sábado, 1 de setembro de 2012

A ''dura viela'' da morte, segundo Martini


"A morte nos obriga a confiar totalmente em Deus. O que nos espera depois da morte é um mistério, que requer da nossa parte uma confiança total."

A reflexão é do cardeal italiano Carlo Maria Martini (15 de fevereiro de 1927 - 31 de agosto de 2012), arcebispo emérito de Milão, falecido nessa sexta-feira.

O texto foi publicado no blog Sperare per Tutti, 31-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Mais de uma vez eu lamentei com o Senhor pelo fato de que, morrendo, não tirou de nós a necessidade de morrer. Seria tão bonito poder dizer: Jesus também enfrentou a morte em nosso lugar, e, mortos, poderemos ir para o Paraíso por um caminho florido.

Ao invés, Deus quis que passássemos por esta "dura viela" que é a morte e que entrássemos na escuridão que sempre dá um pouco de medo. Eu me pacifiquei novamente com o pensamento de ter que morrer quando compreendi que, sem a morte, nunca chegaríamos a fazer um ato de plena confiança em Deus. De fato, em cada escolha comprometedora, nós sempre temos "saídas de segurança". Ao invés, a morte nos obriga a confiar totalmente em Deus.

O que nos espera depois da morte é um mistério, que requer da nossa parte uma confiança total. Desejamos estar com Jesus, e expressamos esse desejo de olhos fechados, às cegas, colocando-nos totalmente nas suas mãos.

Desejamos também nós gozar daquela paz interior que vence toda ansiedade e se confia a Deus com todo o coração.

A queixa de Deus



A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 7, 1-8.14-15.21-23 que corresponde ao XXII Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Um grupo de fariseus da Galileia se aproxima de Jesus numa atitude crítica. Eles não estão sozinhos. Estão acompanhados de alguns escribas que vieram

de Jerusalém, preocupados sem dúvida em defender a ortodoxia dos simples camponeses das aldeias. A atuação de Jesus é perigosa. É preciso corrigi-la.

Eles observaram que em alguns aspectos os discípulos de Jesus não seguem a tradição dos mais velhos. A pesar de falar do comportamento dos discípulos, sua pergunta dirige-se a Jesus, pois sabem que ele é quem lhes ensinou a viver aquela liberdade surpreendente. Por quê?

Jesus responde com palavras do profeta Isaias que iluminam muito bem sua mensagem e sua atuação. Estas palavras com as quais Jesus se identifica totalmente é preciso que as escutemos com atenção, pois mexem em algo fundamental da nossa religião. Segundo o profeta, esta é a queixa de Deus.

“Este povo me honra com os lábios, mas o coração deles está longe de mim”. Este é sempre o risco de toda religião: dar culto a Deus com os lábios, repetindo fórmulas, recitando salmos, pronunciando palavras bonitas, enquanto nosso coração está longe dele. Porém, o culto que agrada a Deus nasce do coração, da adesão interior, desse centro íntimo da pessoa de onde brotam nossas decisões e projetos.

“O culto que me oferecem está vazio”. Quando nosso coração está longe de Deus, nosso culto fica sem conteúdo. Falta vida, a escuta sincera da Palavra de Deus, o amor ao próximo. A religião se transforma em algo exterior que se pratica por costume, mas onde faltam os frutos de uma vida fiel a Deus.

“A doutrina que ensinam são preceitos humanos”. Em toda religião há tradições que são “humanas”. Normas, costumes, devoções que nasceram para viver a religiosidade de uma cultura determinada. Podem fazer muito bem. Mas fazem machucar muito quando elas nos distraem e afastam da Palavra de Deus. Nunca hão de ter a primazia.

Ao terminar a citação do profeta Isaias, Jesus resume seu pensamento com palavras fortes: “Vocês abandonam o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. Quando nos aferramos cegamente às tradições humanas, corremos o risco de esquecer o mandato do amor e desviar-nos do seguimento de Jesus, Palavra encarnada de Deus.

Na religião cristã o primeiro é sempre Jesus e seu chamado para viver o amor. Somente depois estão nossas tradições humanas por mais que nós as achemos muito importantes. Não podemos esquecer nunca o essencial.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O "Novo Pentecostes" da Igreja


"A Igreja Católica se descobriu, segundo a análise do grande teólogo alemão Karl Rahner, como Igreja no mundo, verdadeira “Igreja mundial”, afirma Dr. Margit Eckholt, professora da Universidade Osnabrück e painelista no Congresso Continental de Teologia, a ser realizado nos dias 7 a 11 de outubro, em São Leopoldo, RS.

Eis o artigo, aqui reproduzido via IHU.


O Concílio Vaticano II tem sido chamado um "Novo Pentecostes" para a Igreja Católica, e necessitamos hoje do aggiornamento [atualização] e da memória viva desse "Novo Pentecostes".

O aggiornamento do Concílio se realiza acima de tudo mediante a Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Ao compenetrar-se com a situação da humanidade atual, a Igreja se converte numa instância presente no “hoje”.

Em consequência de sua redescoberta da essencial estrutura encarnatória da fé, descobre a presença divina na luta dos humanos, homens e mulheres, no sentido de desenvolver sua humanidade. Isso se condensa em ler os “sinais do tempo” e nos desafia: a paz que está em perigo, o desequilíbrio norte-sul, os problemas da pobreza cada vez mais agudos, o diálogo, necessário mas também desafiador com os demais: as igrejas cristãs e as outras religiões, e também a questão feminina.

A Igreja define sua nova identidade como Igreja no mundo, opondo-se com a força do Evangelho a tudo aquilo que signifique desamor, morte e lesa-humanidade.

A recepção desse aggiornamento se concretizou, na América Latina, sobretudo na Igreja e na teologia: as conferências gerais do Celam a partir de Medellín, o nascimento da Teologia da Libertação, uma igreja que levou a sério a “opção pelos pobres”, também inscrita na constituição Lumen Gentium do Concílio.

A Igreja católica se descobriu, segundo a análise do grande teólogo alemão Karl Rahner, como Igreja no mundo, verdadeira “Igreja mundial”. Ainda hoje a Igreja está no processo desse descobrimento e, por isso, faz falta a memória viva dos caminhos percorridos na América Latina: o tema do Congresso que ocorrerá na Unisinos não somente toca as Igrejas latino-americanas, mas também a Igreja alemã.

Faz falta desenvolver em comum o que significa hoje em dia ser igreja “encarnada” no mundo, signo de reconciliação e respeito ao outro, o que significa ser cristão, ser cristã num mundo fragmentado, pluricultural, onde estão em diálogo, mas onde também se confrontam as diferentes religiões.

Auditora do Concílio, irmã Mary Luke Tobin escreveu: “the council was a door opened wide – too wide to be closed. Renewal has no end. If it is to continue to be life-giving, it must go on and on” [“o concílio foi uma porta amplamente aberta, demasiado aberta para ser fechada. A renovação não tem fim. Se é para continuar a fim de ser doadora de vida, ela deve ir sempre em frente”]. Este também é meu desejo para nosso tempo: uma análise aprofundada dos textos e novos impulsos do Concílio Vaticano II, o que vai ajudar a deixar abertas as portas da Igreja, em seu serviço ao Evangelho, à humanidade e a toda a criação.

A Igreja ganhará reconhecimento numa sociedade global, muito fragmentada e polarizada, abre fronteiras, constrói pontes e está comprometida na luta pela dignidade dos homens e mulheres, pela paz e cuidado de toda a criação.

Novo Pentecostes significa não perder a esperança que o Espírito e a Sabedoria de Deus vão acompanhar a Igreja também hoje, e conduzi-la para o “novo” que nos falta para ser verdadeiramente testemunhos do Reino de Deus em nossa atualidade.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Com todo o coração, acima de todas as coisas: a caridade segundo João Paulo I


Numa palavra: amar significa viajar, correr com o coração para o objeto amado. Diz a Imitação de Cristo: quem ama "currit, volat, laetatur": corre, voa e alegra-se (Imitação de Cristo, 1. III, c. V, n. 4). Amar a Deus é portanto um viajar com o coração para Deus. Viagem belíssima, embora comporte por vezes sacrifícios. Mas estes não nos devem fazer parar. Jesus está na cruz: queres beijá-l'O? Não o podes fazer sem te debruçares sobre a cruz e deixar que te fira algum espinho da coroa, que está na cabeça do Senhor (Cfr. Sales, Oeuvres, Annecy, t. XXI. p. 153). Não podes fazer a figura do bom São Pedro, que foi valente em gritar "Viva Jesus" no monte Tabor, onde havia alegria, mas não deixou sequer que o vissem ao lado de Jesus no monte Calvário, onde havia risco e dor (Ibidem:. t. XV, p. 140). O amor a Deus é também viagem misteriosa: isto é, eu não parto se Deus não toma primeiro a iniciativa. (...)

Com todo o coração. Faço notar, aqui, o adjetivo "todo". O totalitarismo, em política, é feio. Na religião, pelo contrário, um totalitarismo nosso, quanto a Deus, está muitíssimo bem. Foi escrito: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos, que hoje te imponho, serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus filhos e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te ou ao levantar-te. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço, e usá-los-ás como um frontal entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre os pilares da tua casa e sobre as tuas portas(Deut. 6, 5-9).

Aquele "todo", repetido e levado à prática com tanta insistência, é com toda a verdade a bandeira do maximalismo cristão. E é justo: Deus é demasiado grande, demasiado merece de nós, para que baste deitar-lhe, como a um pobre Lázaro, unicamente algumas migalhas do nosso tempo e do nosso coração. bem infinito e será a nossa felicidade eterna: dinheiro, prazeres e felicidades deste mundo, em comparação com Ele, são apenas fragmentos de bem e momentos fugidios de felicidade. Não seria acertado dar muito de nós a estas coisas e dar pouco a Jesus.

Acima de todas as coisas. Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. Não seria justo dizer: "Ou Deus ou o homem". Deve-se amar "não só a Deus mas também o homem"; este último, porém, nunca mais do que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus é certamente dominador, mas não exclusivo. (...)

E por vosso amor amo o meu próximo. Estamos aqui diante de dois amores que são "irmãos gémeos" e inseparáveis. Algumas pessoas é fácil amá-las. Outras, é difícil: não nos são simpáticas, ofenderam-nos e fizeram-nos mal. Só se amo Deus a sério, chego a amá-las a elas, como filhas de Deus e porque Deus mo pede. Jesus fixou também como há de o próximo ser amado: quer dizer, não só com o sentimento, mas com obras. Este é o modo, disse: Perguntar-vos-ei: Tinha fome, e vós destes-me de comer quando assim estava faminto? Visitastes-me quando estava doente? (Cfr. Mt. 25, 34 ss.). O catecismo traduz estas e outras palavras da Bíblia no duplo catálogo das sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais. O catálogo não é completo e convinha atualizá-lo. Entre os famintos, por exemplo, hoje não se trata só deste ou aquele indivíduo; são povos inteiros. Todos nos lembramos das notáveis palavras do Papa Paulo VI: "Os povos da fome dirigem-se hoje de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão" (Populorum Progressio, 3). Neste ponto, à caridade junta-se a justiça, porque — diz ainda Paulo VI — "a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário" (Ibid., 23). Por conseguinte, "torna-se escândalo intolerável... qualquer recurso exagerado aos armamentos" (Ibid., 53).

À luz destas vigorosas expressões vê-se quanto indivíduos e povos estão ainda longe de amar os outros "como a si mesmos", que é mandamento de Jesus.

Outro mandamento: perdôo as ofensas recebidas. A este perdão quase parece que o Senhor dá precedência sobre o culto: Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta (Mt. 5, 23-24).

As últimas palavras da oração são estas: ó Senhor, ame-vos eu cada vez mais. Também aqui há obediência a um mandamento de Deus, que estabeleceu no nosso coração a sede do progresso. Das palafitas, das cavernas e das primeiras cabanas passámos às casas, aos palácios e aos arranha-céus; das viagens a pé, e sobre o dorso de mula ou de camelo, aos carros, aos comboios e aos aviões. E deseja-se progredir ainda com meios cada vez mais rápidos, atingindo metas mais e mais altas: Mas amar a Deus — já o vimos - é também uma viagem: Deus quer que ela seja cada vez mais decidida e perfeita.

- João Paulo I

(Fonte: aqui)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A responsabilidade das católicas latino-americanas

"Nós, mulheres católicas do continente americano, somos conscientes que o fenômeno da pobreza (feminilização da pobreza), o novo 'holocausto ecológico', a violência, a violação aos direitos fundamentais de cada pessoa e tantas outras realidades que afetam discretamente as mulheres, as crianças, as populações indígenas e o meio ambiente, nos mantêm numa situação de escravidão.

Essa realidade nos demanda uma resposta a partir de uma espiritualidade profunda e radical no seguimento de Jesus, capaz de transformar essas realidades. (...)

Há uma urgente necessidade de repensar a espiritualidade a partir do paradigma ecológico e resgatar a tradição dos místicos que desenvolveram uma espiritualidade fundamentada numa teologia da criação. Tal teologia da criação inspira-se na consciência da inabitação trinitária de Deus em todas as realidades do ser humano (homem-mulher) com seu ser de criatura, e não como amo e senhor, pois este conduz a uma lógica de domínio e exploração que impede relações harmônicas de respeito, justiça e reconhecimento da dignidade dos demais seres.

A espiritualidade profética que tem caracterizado a Igreja latino-americana encontra novos modos e paradigmas de expressão em seu caminhar e estes novos caminhos são: uma espiritualidade ética de ecojustiça, a interculturalidade como caminho de diálogo e enriquecimento mútuo das diversas tradições e expressões religiosas, e a inclusão a partir da perspectiva da mulher, entre outros.

Este mundo global, empobrecido e violento, está urgindo por uma espiritualidade ecumênica que una suas forças para responder ao desafio profético cristão que demanda uma mudança de época. A expressão ecumênica da espiritualidade conduzir-nos-á a mantermos a firme esperança de que “outro mundo é possível”. A esperança ativa e comprometida da espiritualidade libertadora evitará cairmos no sem sentido ou no pessimismo apocalíptico próprio da afluência de diversos movimentos espiritualistas."

- Marilú Rojas, doutora em Teologia Sistemática pela Universidade Católica de Lovaina, professora de teologia na Universidade Ibero-Americana em Puebla, México e faz integrande da Associação de Teólogas Itinerantes

(Fonte aqui)

Pastor luterano defende a homoafetividade

Fonte: Facebook

Do Rev. Silvio Meincke, no blog Teologia Inclusiva:

No Dia da Igreja em Colônia, na Alemanha, trabalhei como voluntário e fui hospedado em casa particular. Meus hospedeiros eram gentis e atenciosos. Sua casa revela traços da personalidade dos moradores: gostam da beleza simples e prática, sem sofisticações, com critério na escolha e nada de consumismo exagerado. Percebi grande consciência ecológica na organização da casa, no uso de água e energia, na seleção do lixo ou nos cuidados do pequeno jardim. O modo como meus hospedeiros convivem e se comunicam revela atenção carinhosa, respeito e cuidado mútuos, como acontece entre casais que são felizes e se enriquecem mutuamente.

Meus hospedeiros são dois jovens homoafetivos. Prefiro essa palavra. Homoafetividade. O termo homossexualidade soa-me muito restrito à prática sexual física propriamente dita. Homoafetividade sugere uma relação muito mais ampla: homo-convivência, homo-partilha, homo-cuidado, homo-ternura, homo-realização como ser humano.

Os próprios envolvidos devem decidir sobre o termo que querem usar. Eu vou dizer homoafetividade. Também são eles que devem decidir se querem entender a sua homoafetividade como opção ou como condição.

Eu vou dizer que é uma condição humana, porque os jovens e do ensino confirmatório, da juventude evangélica e das escolas secundárias onde lecionei, quando me procuraram como pastor, sempre vieram desesperados ao descobrirem sua homoafetividade, e nenhum deles ou delas optou por isso. Descobriram-na e sofreram. Não contribuíram em nada para que fossem homoafetivos.

Não resta dúvida que cada grupo humano precisa criar regras de convivência, leis de conduta, normas de orientação, para que a vida em comunidade seja possível. Precisa encontrar consensos, escritos ou não, que possibilitam a vida organizada e feliz dentro do seu território, dentro do seu espaço de habitação - para dizê-lo com uma palavra grega, dentro do seu "étos". O conjunto dos regulamentos, costumes convencionados, consensos escritos ou não formam os valores "éticos" de uma sociedade.

Na medida em que os grupos humanos decidem como querem organizar sua convivência, também decidem como não querem viver. Existe até mesmo certa necessidade de distanciar-se dos que são diferentes, para firmar a própria identidade. Por exemplo, o povo de Israel declarou o porco impuro entre outros motivos para se diferenciar de outros povos que o adoravam como animal sagrado.

Infelizmente, essa necessidade de diferenciar-se acontece não raras vezes à custa de minorias numéricas para as quais se cria uma imagem de inimizade. Tal imagem se agiganta e pode adquirir formas de brutal discriminação, perseguição e eliminação.

Pessoas homoafetivas têm experimentado a discriminação no decorrer da história, às vezes, tornando-se bodes expiatórios para insucessos, fracassos e frustrações de todo um povo. Ainda que as pessoas homoafetivas não prejudiquem em nada a feliz convivência no "étos", a sina da discriminação insiste em persegui-los. Meus hospedeiros, por exemplo, em nada prejudicam a possibilidade de vida boa e feliz dos moradores de Colônia.

Seguidores de Jesus Cristo podem conhecer, nos seus ensinamentos e no seu procedimento, grandes exemplos de acolhimento, inclusão e fraternidade com as minorias discriminadas pela sociedade. Amplos setores das igrejas cristãs assimilaram essa mensagem de Jesus e procuram agir dentro do seu propósito de inclusão.

Tanto mais lamentável se mostra a discriminação praticada por certos grupos dentro das comunidades cristãs - geralmente grupos terrivelmente "fortes na fé" e que, por isso, julgam-se pessoas melhores do que as que não aderiram ao seu grupo. Não estariam esses grupos incorrendo no equívoco de criar bodes expiatórios para os seus próprios medos e preconceitos? Não estariam desconhecendo os propósitos de Jesus, em nome do qual alegam agir? Não estariam caindo no equívoco de George Bush que pretende prescrever a Deus quem são os seus inimigos, para destruí-los, em nome de Deus?

No entanto, os nossos inimigos não são os inimigos de Deus; os que nós consideramos merecedores de discriminação, Deus não os discrimina. Nem mesmo precisamos recorrer a alguma piedosa generosidade - aliás, sempre humilhante - e dizer que aceitamos em nosso meio as pessoas homoafetivas em nome do amor cristão. Melhor é tê-las em nosso meio espontaneamente, sem justificativas piedosas, simplesmente como semelhantes, que não trazem mais do que apenas outra condição afetiva. Melhor do que incluí-los generosamente depois de excluí-los primeiro, é nem chegar a excluí-los.

(Silvio Meincke é pastor emérito da Igreja Evangélica da Confissão Luterana Brasileira e reside na Alemanha.)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Católicos americanos cantam por todos nós


Com legendas em português. :'-)

* * *


Como costumamos dizer em nossas reuniões: sejamos nós a Igreja que queremos ver no mundo. O que nos lembra, aliás, João Paulo I, em pronunciamento de setembro de 1978:

"Procuremos melhorar a Igreja, tornando-nos melhores. Cada um de nós, toda a Igreja, poderia rezar a oração que eu costumo rezar: Senhor, aceita-me como sou, com os meus defeitos, com as minhas faltas, mas faz que me torne como tu desejas. (...)"

(Via

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Comer a carne e beber o sangue


Quando Jesus diz que suas palavras não são carne, mas espírito e vida, quer sem dúvida dar-nos a compreender que não se trata de comer materialmente a sua carne, o seu corpo. Hoje, sabemos que isto se realiza através de sinais.

A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Notre Dame du Web, comentando as leituras do 21° Domingo do Tempo Comum (26 de agosto de 2012). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Josué 24,1-2.15-18
2ª leitura: Ef 5,21-32
Evangelho: Jo 6,60-69

Intolerável, mas necessário. Estamos concluindo hoje a leitura do cap. 6 do evangelho de João ou, mais precisamente, a leitura dos discursos sobre o pão da vida e o dom da carne e do sangue. O pão, aqui, nos é mostrado como prova, da mesma forma que o maná tão presente neste capítulo (Ex 16,2-4). Os ouvintes irão se dividir entre crentes e não crentes. É que a ideia de comer a carne de um homem e beber o seu sangue é intolerável (v. 60). Mas não seria atenuando o texto que se faria um bom negócio. Para dizer a verdade, aquela frase do Sl 14,4 “quando comem seu pão é o meu povo que estão devorando” verifica-se todos os dias. Pessoas abastadas vivem da miséria, da fome e da morte de uma multidão de homens, mulheres e crianças que os nossos sistemas econômicos reduziram ao sofrimento e à míngua, no 3º mundo e em todos os “terceiros estados” ocidentais. E esta antropofagia assassina, velada e dissimulada, é generalizada. Pois esta carne e este sangue que, apesar deles, arrancamos dos homens é que o Cristo voluntariamente nos vem dar. Inútil dizer que isto não resolve o problema de nossas vítimas; isto simplesmente nos vem convocar a entrar na lógica deste dom total. Deus não impõe o amor com base na força; seria algo totalmente contraditório. Ele vem esboçar ante os nossos olhos a imagem desta via estreita, a única capaz de conduzir-nos à vida. Assim sendo, devemos primeiramente tomar a carne e o sangue que ele nos dá e, depois, fazer nosso o amor que comanda este dom.

Comer a carne e beber o sangue. Do mesmo modo que se haviam revoltado quando lhes revelara a sua origem, ao dizer-lhes de onde viera (Jo 6,41-42), também agora os interlocutores de Jesus revoltam-se quando Ele lhes revela para onde vai - quer dizer, para o Pai - mediante a Paixão. Jesus, em substância, lhes diz o seguinte: se ficaram chocados por lhes ter anunciado o dom da carne e do sangue, o que irão dizer então, quando tudo isto efetivamente vier a acontecer, quando virem o Filho do homem subir para onde estava antes? Explicando um pouco mais: o dom da carne e do sangue é para sempre, para todos os instantes, desde o começo. A cruz é disto uma revelação, é a hora em que os tempos se cumpriram. O que não impede que Jesus dirija a seus indignados ouvintes, palavras surpreendentes. De fato, muitas vezes lhes havia dito que, para viver, era preciso comer a sua carne. Pois agora lhes diz que “a carne não adianta nada”. Ora, com toda evidência, a palavra “carne” não tem aqui o mesmo sentido. Ainda há pouco, aplicava-se a Cristo enquanto homem solidário com a natureza, carregado da argila original (Gn 2,7); agora, a palavra se enche do sentido negativo que vemos em muitos textos: a inaptidão em se alcançar o espírito. Quando Jesus diz que suas palavras não são carne, mas espírito e vida, quer sem dúvida dar-nos a compreender que não se trata de comer materialmente a sua carne, o seu corpo. Hoje, sabemos que isto se realiza através de sinais. Portanto, esta carne que foi entregue não deve ser compreendida de modo carnal.

Ainda os dois discursos. Jesus, na visão de João, a partir de temas completamente diferentes, ensina coisas semelhantes. Apenas um exemplo: em 15,1-8, Ele explica longamente que, para viver, devemos permanecer n’Ele e Ele em nós. Ele é a vinha, nós os ramos; a seiva que vem Dele (pensemos no sangue) deve nos alimentar. Esta interioridade recíproca (Eu em vós, vós em mim) tem qualquer coisa a ver com o ato de comer a carne e beber o sangue. Ela só pode ser compreendida por quem aceitou o primeiro discurso, que nos diz que Cristo vem de Deus, é a presença de Deus. Mas isto, não basta. É preciso admitir ainda o dom da carne e do sangue. Olhemos mais de perto a resposta de Pedro quando Jesus pergunta aos 12 se também eles querem abandoná-lo. “A quem iremos? Só Tu tens palavra de vida eterna!” . Pedro compreende que não existe salvação possível se permanecemos fechados em nós mesmos; é preciso ir a outro, ir para o Outro. Ele, então, permanece com Jesus. Ótimo! Mas ele só havia entendido o primeiro discurso, não o segundo. Assim como em Cesaréia de Filipe (Mt 16,13-23), ele reconhece a origem do Cristo, mas permanece fechado para o futuro pascal. Ao menos, não faz a isso alusão alguma. Em verdade, a recusa ou esquecimento do segundo discurso revela não ter compreendido nem admitido totalmente o primeiro. Será preciso esperar Jo 21 para que Pedro se dirija sem reservas para Cristo. Nesta espera, se Jesus havia escolhido Pedro, Pedro, na verdade, não havia ainda escolhido Jesus. É aí que estamos todos nós.

domingo, 26 de agosto de 2012

Um Deus que se parece conosco


A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 21° Domingo do Tempo Comum (26 de agosto de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Josué 24,1-2.15-18
2ª leitura: Ef 5,21-32
Evangelho: Jo 6,60-69

Hoje temos a conclusão do discurso sobre o Pão da Vida, no evangelho de São João. Especialmente, no final deste discurso, não assistimos somente à oposição dos judeus, isto é, dos que não reconhecem o Cristo, mas também à oposição dos discípulos mesmos, que não aceitam o que se fala sobre comer a carne e beber o sangue: “Depois que ouviram essas coisas, muitos discípulos de Jesus disseram: ‘Esse modo de falar é duro demais. Quem pode continuar ouvindo isso?’'"(Jo 6,60). Quer dizer que para os primeiros cristãos, na comunidade de João pelo menos, não havia unanimidade sobre o conteúdo da fé em Cristo Ressuscitado. Dentre os católicos dessa época havia adeptos ao docetismo, doutrina que ensinava que Cristo parecia ser homem, pois ele era Filho de Deus. Então, as questões que hoje precisamos nos fazer são as seguintes: O que rejeitam os discípulos exatamente? Onde estamos nós hoje, em nossa fé no Cristo da Páscoa?

1. A recusa dos discípulos. O evangelista João há pouco fez a Jesus dizer: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54). O que quer dizer que é pela sua humanidade assumida até o fim que Jesus se torna Cristo, Senhor, Filho de Deus, e que é vivendo ao modo de sua vida, adotando seus comportamentos e seus valores, em resumo, assumindo a nossa própria humanidade, que nós podemos esperar ressuscitar como ele e tornarmos nós também filhos e filhas de Deus, os cristos ressuscitados.

No fundo, o Cristo do Evangelho nos fala de um Deus que se parece conosco. É difícil de aceitar, simplesmente porque é difícil admitir e crer que nosso Deus só se manifesta através da nossa humanidade, com toda sua fragilidade e finitude. Um Deus tão frágil como nós não nos interessa. Foi isso o que fez dizer Papa Bento XVI em seu livro sobre Jesus: “Não teria sido mais fácil nos elevarmos acima das contingências deste mundo para perceber em uma pacífica contemplação o mistério inefável?”.

Mas não está aí a fé cristã. Deus se fez encontrar e reconhecer através de um homem, Jesus de Nazaré, em uma época e em um momento preciso da história. O Papa continua: “Deus se aproximou tanto de nós que parece deixar de ser Deus por nós”. E ainda é o que faz a riqueza da nossa fé, a grandeza, a beleza e a dignidade dos discípulos de Cristo, no que eles são e no que eles estão chamados a tornar-se. Infelizmente, em todos os tempos, as mulheres e os homens tiveram dificuldade de se assumirem na sua humanidade, daí a recusa de crer na humanidade de Cristo: “A partir desse momento, muitos discípulos voltaram atrás, e não andavam mais com Jesus” (Jo 6,66).

2. Os discípulos de hoje. Onde estamos nós hoje? O que acontece com a nossa fé cristã? Com certeza, hoje, há muitos homens e muitas mulheres que não acreditam em Cristo, nem mesmo em um deus. Estas pessoas têm as suas razões e devem ser respeitadas. Mas os outros, aquelas e aqueles que acreditam, como se situam em relação a esse discurso de São João sobre o Pão da Vida? Às vezes, olhando a nossa Igreja, tenho a impressão de que os cristãos de hoje, como aqueles de ontem, têm dificuldade em aceitar viver a sua humanidade e crer que é através dela que Deus pode ainda falar e se comunicar.

É isso o que Jesus de Nazaré veio nos ensinar, mas preferimos contemplá-lo como Cristo Ressuscitado, Glorificado, Senhor da Glória, fechado nos tabernáculos das nossas igrejas ou exposto no altar em um ostensório dourado, mais do que vê-lo andar na estrada, comer com os pecadores, atender às prostitutas, perdoar e amar incondicionalmente. Temos tanta dificuldade para olhá-lo tal como ele foi na sua humanidade: um revolucionário, um reformador, um libertador, que criamos uma instituição religiosa que é mais parecida com a religião legalista do Antigo Testamento do que com a Igreja primitiva. Quando a doutrina se fixa no cimento e ela não responde mais à realidade humana contemporânea, e quando a regra e a disciplina estão antes que a pessoa humana a qual eles deveriam servir, e que os dirigentes da nossa Igreja se obstinam em não adaptar-se às novas realidades, podemos verdadeiramente dizer que nós nos recusamos, hoje, comer a carne e beber o sangue daquele de quem pretendemos ser seus discípulos e de que afirmamos querer seguir.

3. Reatualizar a mensagem. Na segunda leitura de hoje, nós temos um bonito exemplo de um texto bíblico que devemos reler à luz de nossa realidade contemporânea. Para fazer isso, precisamos situar o texto em nosso contexto histórico, reinterpretá-lo e reatualizá-lo, se nós queremos permanecer fiéis a seu autor e se queremos fazer nascer uma Palavra de Deus hoje. No tempo de São Paulo, a mulher era uma propriedade do seu marido, quase a sua escrava; ela não tinha nenhum direito. É por isso que na carta aos Efésios, quando Paulo faz o paralelo da relação homem/mulher com a relação Cristo/Igreja, ele utiliza a imagem de um casal da sua época. Por outro lado, podemos dizer verdadeiramente que ele estava adiante de seu tempo, pois exortava os homens a amarem sua esposa, o que não era costume na época. Além disso, ele se colocava ao seu serviço, como Cristo fez com a sua Igreja: “Maridos, amem suas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25).

Se hoje pedíssemos para as mulheres serem submissas aos maridos, tal proposta seria inaceitável, e nós não seríamos fiéis a São Paulo. É por isso, por questão de fidelidade a São Paulo, que devemos convidar a Igreja a reconhecer a igualdade homem/mulher, o que ele não faz, dois mil anos após ele. Se quisermos respeitar o espírito da carta aos Efésios, se quisermos fazer nascer uma Palavra nova de Deus que corresponda à nossa realidade contemporânea, precisaremos reler São Paulo reinterpretando-o e atualizando-o para o contexto atual. Infelizmente, neste domingo, alguns vão ler esse texto bíblico de forma literária somente, correndo o risco de chocar uma parte da assembleia. E outros vão deixá-lo passar em vez de descobrir a sua novidade e a interpelação que o seu autor sugere à Igreja atual.

Terminando, a questão posta aos Doze no evangelho de hoje: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6,67), à qual Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68) é para nós que ela é dita agora. E não basta responder com uma frase já pronta que seja parecida à de Pedro. Porque aceitar seguir o caminho com Cristo é comer a sua carne e beber o seu sangue, isto é, assumir a nossa própria humanidade até o fim, nos inspirando nela e nos deixando transformar por esse Jesus da história, para nos tornarmos com ele o que ele próprio se tornou na Páscoa: o Cristo, o Senhor, o Filho de Deus.
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