sábado, 5 de março de 2011

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Governo do Brasil lança Disque Denúncia Homofobia http://migre.me/3XidN http://twitpic.com/44b5vi

Pastor Presbiteriano dos EUA contesta leituras simplistas da homossexualidade no texto bíblico: http://ow.ly/447k0 RT@PlanicieRosa

Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria http://migre.me/3Ximm RT@edi_mac

Reações ao manifesto dos teólogos alemães http://migre.me/3XDZP via @_ihu

Menos missas e mais entretenimento. A estratégica da TV católica para enfrentar evangélicas http://migre.me/3XE47 via @_ihu

Sentido e sensibilidades: a polêmica em torno da nova tradução inglesa do Missal Romano http://migre.me/3XE8V via @_ihu

Deputado Jean Wyllys anuncia projeto de emenda à Constituição para casamento gay http://www.athosgls.com.br/v.php?c=30873 RT@expressaogay

"Terapia do perdão": a yoga católica http://migre.me/3Y4lp via@_ihu

Reviravolta na Igreja: um passo para o diálogo? http://migre.me/3Y4mN via @_ihu

Aquele "mea culpa" de Wojtyla que ainda é útil para o diálogo http://migre.me/3Y4qq via @_ihu

Os filhos de gays dos Estados Unidos pedem plenos direitos para seus pais http://migre.me/3Y4rE via @_ihu

O silêncio da alma e a relatividade do cotidiano http://migre.me/3Y4CS

Atores globais pedem licença paternidade para gays http://bit.ly/gLhbjG RT@nucleounisex

Saiba como declarar imposto de renda incluindo o parceiro(a) http://t.co/HCOlRM1 RT@TodaFormadeAmor

Deputados tentam barrar companheiro gay como dependente no IR http://migre.me/3Y6uv Avançar tava difícil. Agora, querem retroceder?! RT@gaybrasil

Quer conhecer todo o material da campanha deste carnaval? Acesse o site e fique por dentro: http://www.camisinhaeuvou.com.br #comcamisinha RT@minsaude

Nomes dos Senadores e Senadoras que assinaram em prol do desarquivamento do PLC 122. http://3.ly/UZaf #HomofobiaNao (via @MarkosOliveira) RT@homofobiaNAO

@jeanwyllys_real defende o casamento gay e critica funtamentalismo cristão no Congresso. http://bit.ly/eOE9gY RT@homofobiaNAO

A Lea T. do Paraná: mais uma transexual no mundo das passarelas http://migre.me/3Yty1 via tantas notícias

Despreparados para a vida http://migre.me/3YtyQ via tantas notícias

Oscar 2011: Os momentos mais gays da cerimônia mais famosa do cinema http://migre.me/3Ytzi via tantas notícias

A ministra das trombadas: sobre Maria do Rosário, a ministra boa de briga http://migre.me/3YtA8 via tantas notícias

Casais gays aguardam julgamento do STJ que pode reconhecer seus direitos http://migre.me/3YtB8 via tantas notícias

"Jesus, aproximação histórica", de Pagola. Uma resenha: http://migre.me/3YtC3 via @_ihu

Dior demite John Galliano após comentários antissemitas http://migre.me/3YT0O via tantas noticias

Toninho Cerezo diz que sempre dará seu 'amor incondicional' à filha Léa T. http://migre.me/3YT2F via tantas notícias

Barrada no baile: dá pra curtir a noite vestido de mulher? http://migre.me/3YT3O via tantas notícias

Muniz Sodré sobre a polêmica Monteiro Lobato e racismo hoje no Observatório da Imprensa http://migre.me/3YT4e via tantas notícias

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"Fé, Religião e Homossexualidade": depoimento de uma mãe católica de um filho gay http://migre.me/3Z9PJ

Bem legal! RT @amandahatchi: Achei isso atrás de uma placa de trânsito, e tive que tirar uma foto!  http://t.co/yjz6DX RT@homofobiaNAO

Homem c/ Alzheimer pede p/ casar antes de perder a memória: exemplo da importância da igualdade de direitos http://migre.me/3ZbbK via@dolado

Diversidade sexual e Igreja, um diálogo possível. Entrevista especial com Luís Corrêa Lima, professor da PUC-Rio. http://bit.ly/fy0uih RT@_ihu

Rio sem preconceito


Nesta sexta-feira, os brasileiros aproveitam mais um longo feriado de Carnaval e, além das tradicionais campanhas de prevenção à DSTs, a cidade maravilhosa conta com uma especial para lutar contra todo tipo de preconceito.

A CEDS (Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual) da Prefeitura do Rio de Janeiro lançou a campanha Rio: Carnaval Sem Preconceito com a participação de anônimos e personalidades de todas as idades, raças, credos e orientação sexual e engajados na luta contra todo e qualquer preconceito, o verdadeiro mal do século.

A campanha conta com a distribuição de folhetos com informações turísticas, segurança e como denunciar qualquer tipo de preconceito.

Confira o vídeo:



Matéria publicada originalmente no Do Lado

sexta-feira, 4 de março de 2011

Do nosso amor

Arte via O Olho da Rua

Respeta su alma, no sus trajes.
- Alejandro Jodorowski

Bom carnaval! :-)

Modernizar o catolicismo com amor ao próximo e solidariedade

Escultura: Daniel Firman

Para o padre Antônio Trasferetti, “a questão da união civil, como vida familiar, aceita no interior da Igreja Católica, bem como adoção de crianças, reprodução assistida, e outros temas, constituem um desafio para a teologia moral nos próximos anos”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que “os homossexuais são filhos de Deus, pagam seus impostos, trabalham, vão ao shopping, estudam como qualquer outra pessoa e merecem respeito e cidadania. Devemos combater o preconceito social que mata com palavras, olhares e balas de revólveres”.

Doutor em Teologia Moral, pela Pontifícia Universidade Lateranense, e em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, atualmente o padre Transferetti é diretor do Curso de Filosofia da PUC-Campinas e presidente da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM). É autor de vários livros, entre os quais citamos "Teologia na pós-modernidade" (São Paulo: Paulinas, 2003), "CNBB, Aids e governo" (Campinas: Átomo, 2005), "Filosofia, ética e mídia"(2. ed. Campinas: Alínea, 2007) e "Teologia, ética e mídia" (Rio de Janeiro: Sotese, 2007).


Como a união civil entre pessoas do mesmo sexo é vista do ponto de vista da teologia moral?
Penso que a união civil entre pessoas do mesmo sexo é uma questão social e jurídica. Depende do congresso nacional aprovar leis regulamentando a vida social. Existem projetos de leis nesse sentido em discussão. Vai depender do debate no congresso e as possíveis determinações jurídicas. A teologia moral respeita a diversidade cultural e as diversas formas de relacionamento amoroso e social em nossa sociedade. Entretanto, ela encaminha seu pensamento para a constituição da família nuclear, compreendendo a necessidade da procriação dentro do contexto da lei moral natural.


Na sua opinião, por que a Igreja tem dificuldades em mudar sua posição em relação ao homossexualismo? Acredita que ela contribua no sentido de ser fraterna com os excluídos? Como conciliar a doutrina católica com a cidadania dos homossexuais?
A Igreja Católica, por meio do seu magistério, tem contribuído no sentido de promover a inclusão social. Muitos homossexuais estão inseridos em nossos trabalhos sociais e pastorais. Existe uma compreensão bastante ampla no sentido de promover a cidadania homossexual. O magistério eclesiástico pede solidariedade com as pessoas homossexuais, combate à discriminação e à violência. Os documentos “Declaração Persona Humana” (1975), “Carta aos bispos da Igreja Católica” (1986), “Considerações sobre propostas de leis não discriminatórias” (1992) e “Considerações sobre as uniões entre pessoas homossexuais” (2003) abordam a temática de um modo geral, colocando o posicionamento teológico e social do magistério. Entretanto, a Igreja tem dificuldades, no sentido de que ela não aprova as relações homoeróticas como forma de vida familiar, porque não constitui família (nuclear) e nem procria. A questão da “união civil”, como vida familiar aceita no interior da Igreja Católica, bem como adoção de crianças e a reprodução assistida, entre outros temas, constituem evidentemente um desafio para a teologia moral nos próximos anos.

Em que o senhor se baseia pela defesa da modernização do catolicismo? Como se daria essa modernização, considerando a trajetória de conservadorismo da Igreja Católica?
Penso que nossas paróquias e os milhares de movimentos sociais e pastorais devam acolher as pessoas homossexuais como acolhem qualquer pessoa. Não devemos permitir que se faça qualquer tipo de discriminação. Todas as pessoas são bem-vindas, independente da sua cor ou da sua orientação sexual. O evangelho do amor é para todos. Numa sociedade pluralista, a diversidade de vidas deve ser respeitada no seio da Igreja. Os homossexuais são filhos de Deus, pagam seus impostos, trabalham, vão ao shopping, estudam como qualquer outra pessoa e merecem respeito e cidadania. Devemos combater o preconceito social que mata com palavras, olhares e balas de revólveres. A modernização do catolicismo se baseia numa ordem social e pastoral nova que devemos construir, tendo inclusive os homossexuais como protagonistas, mantendo, evidentemente, os princípios éticos do amor ao próximo e da solidariedade social como pilares da vida social.

Para o senhor, como a mídia tem tratado a questão da união homossexual?
Penso que a mídia, de modo geral, tem contribuído com a cidadania homossexual. Há uns 15 ou 10 anos, era impossível qualquer diálogo sobre esse assunto. Hoje, já podemos conversar, vemos cenas de novelas envolvendo pessoas homossexuais, programas de auditório relatando histórias de pessoas homossexuais, cantores, atores, e as pessoas em geral compreendem melhor. A imprensa escrita tem denunciado cenas de violência ou de preconceito envolvendo pessoas homossexuais. Vejo avanço também nas questões sociais. Em muitas cidades brasileiras, existem grupos organizados de homossexuais e outros, prefeituras realizando trabalhos de cidadania envolvendo homossexuais. Ainda existe preconceito e violência, mas penso que, de um modo geral, ocorreram avanços significativos nos últimos anos.

E a sociedade ainda vê com preconceito a união civil entre homossexuais?
A sociedade ainda vê a questão da homossexualidade com preconceito. Um preconceito gerado em grande parte pela ignorância em relação ao tema. Nem todos os homossexuais conseguem ser o que são em seus ambientes de trabalho ou de estudo, por exemplo. Precisam camuflar sua verdadeira identidade sexual. Mesmo nos ambientes familiares, as pessoas homossexuais muitas vezes são desprezados por seus pais, parentes e amigos. Partidos políticos e outras organizações sociais também têm demonstrado preconceito. A cultura machista ainda reina em muitos ambientes. É preciso um trabalho árduo, em termos de mudança cultural, social e teológica para que o pequeno avanço que foi conquistado adquira maturidade. Penso que os próprios homossexuais precisam trabalhar mais no sentido de criar seus espaços e ampliar sua dignidade. A própria teologia precisa ter como protagonistas teólogos que realmente façam teologia a partir da sua condição de homossexual (masculino e feminino).

O que o senhor lembra como experiências marcantes na Pastoral Homossexual, que fundou em Campinas?
Foram muitas as experiências e as recordações. Muitas estão escritas no meu livro "Pastoral com homossexuais" (Petrópolis: Vozes, 1998). De modo especial, recordo as muitas cartas que recebi de pessoas homossexuais que eram discriminadas em suas famílias. Pessoas que possuíam muita fé em Deus foram batizadas, crismadas, mas expulsas do seio de suas famílias por causa da sua orientação sexual. É muito triste quando um pai ou uma mãe não sabe compreender seu filho (a) adolescente que está descobrindo a sua condição sexual. Essas pessoas precisam de carinho, amor, afeto e não de ofensas e/ou agressões.

Como os gays, lésbicas e transexuais católicos se sentem em sua Igreja?
Realizei uma experiência maravilhosa na Paróquia de São Geraldo Magela (periferia de Campinas), entre os anos 1994 a 1999. Além de acolhê-los, preparei moralmente a comunidade para o conhecimento dessa realidade. Acolhi não somente homossexuais e travestis, mas também seus pais, irmãos e amigos. Precisamos olhar com carinho não somente o homossexual, mas também a sua família. A partir de 2000, assumi outra paróquia e o meu trabalho com pessoas homossexuais tem sido menor. De todo modo, são e serão sempre bem acolhidos.

Considerando a união entre duas pessoas do mesmo sexo, como fica o conceito e o modelo de família pregado pela doutrina da Igreja?
O conceito e o modelo de família ensinados pela Igreja Católica continuarão sendo os mesmos, ou seja, a “família nuclear”. No futuro próximo, certamente teremos que conviver em harmonia com outras formas de vida “familiar”. A família pós-industrial (pós-moderna, pós-nuclear) do momento atual caracteriza-se por não ter uma única organização. Há muitas maneiras de entender e viver a realidade familiar. Fala-se em “lares sem filhos”, “lares uni-pessoais”, “lugares agregados” e tantas outras. Essas e outras formas apresentam-se como alternativas à instituição matrimonial. São sinais da tendência “desinstitucionalizadora” do mundo atual. É preciso abertura de mente e de coração para dialogarmos com maturidade com todas estas realidades desafiantes que se apresentam em nosso meio.

Publicado originalmente na Revista IHU Online em 7 de abril de 2008 ("Uniões homoafetivas. A luta pela cidadania civil e religiosa")
Texto: Graziela Wolfart
Os grifos são nossos.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Parábolas: as surpresas da linguagem de Jesus



Jesus falava em parábolas. Basta folhear as páginas dos Evangelhos para ter a prova disso. E devemos presumir que ele não fazia isso raramente, a se julgar pelo número de parábolas que os evangelistas nos transmitiram. Algumas passagens até levam a pensar que Jesus não falava às pessoas de outros modos, a não ser em parábolas. Tem-se a impressão de que Jesus considerava esse modo de se expressar como o mais adequado à capacidade de compreensão dos ouvintes e, assim, o mais adaptado para transmitir eficazmente a sua mensagem.

Mas por que privilegiar esse tipo de linguagem? Por qual razão preferi-lo à linguagem direta e explícita? E quais são as suas características específicas? Quais os objetivos que permite alcançar? Quem são, enfim, os destinatários desse falar por semelhanças?

Interrogações como essas abrem caminho para uma reflexão amplamente exaustiva. Nós nos limitaremos a sugerir algumas considerações de caráter geral, à luz dos textos evangélicos. Uma coisa, em todo o caso, é oportuno especificar desde agora: a questão que abordamos não é simplesmente uma questão exegética. O que está em jogo é bem mais alto. Por trás da pergunta "Por que Jesus falava em parábolas?" está, de fato, uma questão atualíssima e gravíssima: a da "linguagem religiosa", do como falar adequadamente de Deus hoje.

O mundo ocidental sente fortemente essa fadiga. Frequentemente, a linguagem usada para falar de Deus é difícil e fraca, às vezes embaraçosa, às vezes genérica; divide-se facilmente em verticalistas e horizontalistas, tradicionalistas e progressistas; formulam-se julgamentos que, à luz do Evangelho, são pelo menos inadequados. Por isso, a necessidade de aprofundar, de se colocar na escola de Jesus, de se deixar guiar por ele na busca de uma linguagem capaz de "dizer Deus".

Como, portanto, Jesus falava de Deus? E por que frequentemente falava dele em parábolas? O fim último do ministério de Jesus foi o anúncio do evangelho do Reino, a manifestação eficaz da benéfica soberania de Deus, anunciada pelas Escrituras, preparada pela história de eleição de Israel e destinada a todos os povos. "Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1,15): com essas palavras, o Messias de Deus se apresenta publicamente a Israel e ao mundo. Esperamos nesse ponto uma descrição clara, acurada, aberta, luminosa do reino de Deus e de Deus mesmo. Como não hipotetizar uma pregação de Jesus explícita, ordenada, estruturada e justamente por isso convincente? A leitura dos textos evangélicos não desmente essas expectativas, mas nem as satisfaz plenamente. O modo com que Jesus proclama o evangelho aos homens nos reserva algumas surpresas. Sobretudo, a figura de Jesus aparece caracterizada principalmente pelo agir.

Em primeiro plano, estão as ações de Jesus, o seu agir eficaz, poderoso, carismático: pensemos principalmente nas curas, nos exorcismos, nas intervenções extraordinárias em favor de pessoas em dificuldades. O falar de Jesus acompanha o seu agir e o interpreta: o senhorio de Deus é demonstrado por meio das obras e ilustrado através das palavras. Quanto à verdadeira pregação, ela não é sempre direta e clara; ao contrário, não raramente aparece como velada. O passo mais desconcertante com relação a isso certamente é o de Mc 4,11-12, em que Jesus justifica o seu falar em parábolas justamente com a necessidade de esconder a revelação do Reino, de impedir a aproximação imediata e direta. Mais de uma vez Jesus falou de modo alusivo e enigmático, "não abertamente", por meio do véu das semelhanças: ele dizia e não dizia, revelava e escondia, manifestava e ocultava.

Esse é precisamente o ponto que nos interessa: por que Jesus usava tal linguagem? Por que ele não era mais explícito, não dizia abertamente e cuidadosamente tudo o que sabia? Pode parecer estranho, mas, para anunciar autenticamente o Evangelho, é necessário, de alguma forma, velá-lo. A constatação de que Jesus não fazia seguir a explicação às parábolas (só os discípulos eram, em alguns casos, beneficiados com ela, mas sempre privadamente) nos impede de considerar as parábolas instrumentos didáticos, exemplos que conduzem o ouvinte a um ensinamento manifestado depois em termos mais conceituais. A parábola de Jesus não desemboca em uma explicação plana e explícita, talvez introduzida pela fórmula "Esse conto nos ensina que...". A parábola de Jesus mantém toda sua carga de enigma, deixa ao ouvinte a tarefa de compreendê-la, o interpela e o obriga a interrogar-se, o envolve em primeira pessoa e o empenha na busca do sentido.

A exortação que frequentemente ressoa, de fato, é a seguinte: "Quem tem ouvidos para entender, entenda", isto é, "quem é capaz de compreender, busque compreender". Jesus conta parábolas certamente não obedecendo a esquemas prefixados, mas, ao contrário, na onda da sua emoção interior, impelido pela necessidade de comunicar o mistério de Deus àqueles que estão diante dele. As parábolas surgem do coração de Cristo, da sua paixão por Deus e do seu amor pelo homem, da necessidade imperiosa de revelar adequadamente o rosto do Pai, o segredo da sua obra de salvação, o poder do seu Reino e as consequências para a vida dos homens.

Assim, tocamos o ponto essencial. A peculiaridade da linguagem parabólica aparece fortemente ligada à própria pessoa de Jesus. Especificando melhor, diríamos que tal peculiaridade deriva do conhecimento de Deus que Jesus possui e da sua atenção pelo homem. Ninguém mais do que ele está habilitado a revelar o rosto de Deus, o seu poder, a sua vontade. Mas como não levar em conta as disposições de ânimo de quem ouve, da situação pessoal dos ouvintes, da sua dificuldade de entender, da sua tendência a compreender mal?

Quando consideramos as circunstâncias em que Jesus conta as parábolas, nos damos conta de como ele é atento aos seus ouvintes. De um lado, portanto, as parábolas são um verdadeiro ensinamento: elas falam de Deus, da sua obra, das consequências para a vida dos homens, da resposta que Deus espera; de outro lado, as parábolas são um ato de cortesia, de respeito pela liberdade dos homens, de condescendência, quase de ternura. Jesus é um verdadeiro mestre também por isso. Ele conhece o coração dos homens e, por isso, não tem pressa, sabe adequar-se ao passo do ouvinte, aceita também que este custe a entender, espera que mude de opinião e reveja algumas posições.

Enquanto isso, ele se esforça para oferecer um ensinamento que, pelo menos, suscite interrogações, que deixe brechas em corações endurecidos e que dê uma orientação segura aos corações incertos e perdidos; um ensinamento, enfim, que permite dar um primeiro passo e disponha a um caminho sucessivo. Os ritmos do conhecimento que provêm da fé são lentos. Por isso, a revelação também deve ser escondida, velada. A liberdade do homem não é capaz de reger todo o peso da revelação de Deus. Assim, as parábolas brotam do coração de Jesus sob o impulso iminente da urgência do evangelho; elas são espontâneas, não artificiais, nascem da própria vida.

As parábolas são, nessa perspectiva, um dos frutos mais belos do mistério da encarnação, a fronteira a qual a linguagem é impelida pelo Filho de Deus, para que torne-se apta a comunicar o mistério do Reino no respeito da situação concreta do homem.


Carlo Maria Martini, cardeal italiano e arcebispo emérito de Milão
Publicado originalmente no jornal dos bispos italianos, Avvenire, em 27-02-2011, e reproduzido via IHU
Tradução: Moisés Sbardelotto

quarta-feira, 2 de março de 2011

Sobre fé, razão e saudade


Em junho de 2009, a teóloga Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, publicou no Amai-vos um comentário sobre o avanço da secularização e a nostalgia do sagrado e da transcendência, que reproduzimos a seguir, propondo uma reflexão sobre o sentido e o espaço ocupado pelo sagrado e pela espiritualidade, hoje, na vida de cada um de nós. :-)

Em meio a uma secularização que não parece recuar, mas sim avançar, sobretudo na Europa, berço do cristianismo, causa espanto ver que a discussão sobre Deus ganha cada vez mais centralidade e importância. Que o diga o grande filósofo Jürgen Habermas, que em 2009 celebrou 80 anos de idade, cujo novo livro, "An awareness of what is missing" (Consciência do que está faltando), tenta pensar o lugar da religião numa sociedade democrática, em debate com teólogos jesuítas.

Pelo visto, Deus não morreu, pelo menos no pensar humano do século XXI, que parece ter saudades dele e reflete sobre o que está faltando ao ser humano de hoje. Se sua volta pode ser qualificada de prodigiosa, é porque ele andava desaparecido de todas as finalidades úteis e eficazes das filosofias marcantes desde a segunda metade do século XIX.

O processo parece situar-se a partir dos anos 80. Aí Deus começou a ensaiar uma tímida volta, sobretudo nos escritos do filósofo judeu Levinas, seguido de perto por outros como Jean Luc Marion, Michel Henry, Remi Brague. Essa volta amplificou-se no decurso dos anos 90, logo após a queda do socialismo real e sua metafísica da secularização, entendida como o final de uma representação de um divino separado do humano e o divino inscrevendo-se no mundo sob a forma racional do Estado moderno, trazendo então o chamado fim da história.

A partir daí muitos pensadores importantes recomeçaram a falar de Deus, entre outros Habermas, Derrida, Vattimo. No entanto, este retorno de Deus não é unanimemente feito em nome da razão. É visto por alguns pensadores pós-modernos como uma conseqüência do fim da modernidade e da fé na razão. Se a modernidade repousa sobre a razão e a ciência erigidas em mitos, seu fim nos obrigaria a recolocar em questão o julgamento que ela fazia sobre a religião como uma superstição da qual a modernidade deve nos libertar.

Na verdade a secularização que se sente avançar impávida e iniludível sobre o mundo antes chamado cristão, a parte ocidental do globo terrestre, choca quando se vê países como a Irlanda, que exportou missionários para o mundo inteiro e onde a capital, Dublin, já não possui catedral como templo religioso. Este foi vendido e agora está transformada em um mercado que vende quinquilharias e monumento aberto à visita de turistas de várias nacionalidades que ali passeiam em total indiferença ao mistério tantas vezes abrigado e celebrado entre suas paredes.

Na verdade, a noção mesma de secularização encontra sua origem na religião, no seio do cristianismo institucional, que separa a esfera sagrada da secular. E a separação começa a fazer-se mais visível e maior na medida em que a autonomia da razão humana salta clamando por sua existência e preponderância.

O fato é que o reinado absoluto desta razão parece não satisfazer o ser humano, que sente saudade e nostalgia da Transcendência e começa a expressar esta saudade a plenos pulmões.

O grande teólogo Karl Rahner, na primeira metade do século XX, já dizia com muito acerto. Se um dia a palavra Deus fosse banida do horizonte humano a ponto de não restar nem a memória do que ela um dia significou e de seu sentido para os seres humanos não seria Deus na verdade quem teria desaparecido, mas sim o próprio ser humano.

Ser em continua auto transcendência, negar a Deus no fundo é negar a própria humanidade de corpo animado por um espírito que ele mesmo não pode se dar, o ser humano parece ter identificado sua carência. Oxalá as religiões ainda sejam capazes de responder a essa carência de maneira adequada e fecunda. É o que pensadores como Eagleton e Habermas parecem querer dizer com sua ciência e seu pensar.

terça-feira, 1 de março de 2011

O silêncio da alma


Um motivo pelo qual o silêncio nos é tão perturbador é este: assim que começamos a nos tornar silentes, experimentamos a relatividade de nossa mente comum cotidiana. Com essa mente medimos nossas coordenadas de espaço e de tempo,calculamos as probabilidades e contabilizamos nossos erros e acertos. Trata-se de um nível de consciência muito útil e importante. É um estado mental tão útil e familiar que, facilmente, acreditamos seja tudo o que somos: a totalidade de nossa mente, nosso verdadeiro eu, nossa inteira significação.

A vida, o amor e a morte, frequentemente nos ensinam o contrário. Nos encontramos inesperadamente com o silêncio, em muitas reviravoltas inesperadas da estrada da vida, de maneiras imprevisíveis, em pessoas improváveis. Sua saudação possui um efeito que é, ao mesmo tempo, emocionante, pleno de maravilhamento, ainda que, frequentemente apavorante.

A cada momento, nossos pensamentos, medos, fantasias, esperanças, raivas e atrações, estão todos surgindo e desaparecendo. Nos identificamos, automaticamente, com esses estados, sejam eles passageiros ou, compulsivamente recorrentes, sem pensar o que pensamos. Quando o silêncio nos ensina o quão transitórios e, portanto pouco confiáveis, na verdade, são esses estados, confrontamo-nos com o terrível questionamento de quem somos nós. No silêncio precisamos lutar com a terrível possibilidade de nossa própria irrealidade.

O pensamento budista faz dessa experiência, denominada
anatman ou o “não eu”, um dos principais pilares de sabedoria em seu caminho de libertação do sofrimento e, um de seus meios de iluminação essenciais. Incentiva-se o praticante budista a buscar essa experiência da transitoriedade interior e, em vez de fugir dela, mergulhar nela de cabeça, assim como fizeram, Mestre Eckhart e os grandes místicos cristãos.

É compreensível que
anatman seja a idéia budista que representa o maior problema para as outras pessoas. Tão absurdo, tão terrível, tão sacrílego dizer que eu não existo. De fato, muito do antagonismo cristão ao anatman é infundado ou, fundamentado em interpretação errônea. Não quer dizer que não existimos, mas, que não existimos em autônoma independência, que é o tipo de existência que o ego gosta de imaginar que tem; o tipo de fantasia de ser Deus, com que a serpente tentou Eva. Trata-se da arrogância que, frequentemente, acomete as pessoas religiosas.

Não existo independentemente, pois Deus é o fundamento de meu ser. À luz desse entendimento, lemos as palavras de Jesus no Novo Testamento, com percepção aprofundada: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me..., mas, o que perder a sua vida por causa de mim, a salvará” (Lc 9, 23-24).

Caso, através do silêncio, possamos abraçar esta verdade do anatman, faremos importantes descobertas acerca da natureza da consciência. Descobriremos que a consciência, a alma, é mais do que o fantástico sistema cerebral que computa, calcula e, julga. Somos mais do que aquilo que pensamos.


- Dom Laurence Freeman, OSB

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Tradução de Roldano Giuntoli.
Publicado originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (9): o desafio da Igreja diante da diversidade do próprio Deus


Reproduzo abaixo a nona e última parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus, na primeira parte; a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na segunda; a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação, na terceira; a atual relação da sociedade e da Igreja com os temas da sexualidade e da homoafetividade, na quarta; a pluralidade de visões no seio da Igreja católica e o próprio significado de “ser católico”, na quinta; a unicidade e o dinamismo de Deus, em seu caráter trinitário, na sexta;o dinamismo e a atualidade da Trindade, na sétima; e, na oitava, as consequências, para a Igreja, da sua compreensão dinâmica do Deus trinitário, concluo neste último post com uma reflexão acerca das possibilidades e desafios que se abrem para a Igreja a partir da diversidade do próprio Deus.

Assim como o Pai e o Filho sendo diversos são um no amor, também a Igreja tem como sustentáculo a comunhão, não entendida como a reunião do mesmo, do igual. Comunhão, na entrega e no acolhimento, se faz com o outro, com todo tipo de diverso. Uma comunhão que só admitisse o igual não seria comunhão, mas narcisismo.

E aqui eu quero, a partir da reflexão trinitária, tocar em mais um ponto controverso. Uma das objeções ao “amor gay” é que, sendo o amor ao "igual", seria fechado em si mesmo, uma atitude meramente egocêntrica e, por isso, merecedora da linda expressão cunhada tantas vezes nos documentos oficiais: um ato intrinsecamente desordenado.

Aqui a principal questão é a maneira como se compreende o ser humano. Dissemos que a noção de Deus como um princípio homogêneo, absoluto e, no fundo, sempre igual a si mesmo constrói um mundo de objetividades, muito claro e preciso.

Assim, poderíamos dizer o que o ser humano é, explicá-lo a partir daquilo que o constitui: ser homem, ser mulher, ser racional. Com base nestas informações e em tantas outras é que se definiam antigamente os papéis, a missão de alguém no mundo. Por exemplo, na Idade Média, se você fosse homem e o primogênito cabia a você a herança paterna, se fosse primogênita, sendo mulher, deveria se casar antes de suas irmãs mais novas. Ou seja, as características de cada pessoa definiriam sua missão e identidade no mundo. É mais ou menos esta concepção que está por trás da chamada “lei natural”, visão fixista do ser humano que serve de base para os juízos morais da Igreja. Haveria determinadas características no ser humano que definiriam para ele as atitudes a tomar, a maneira de viver. Este “agir de acordo com aquilo que se é” (e o que se é está definido na lei natural) não pode ser “negociável”, mas precisa ser acolhido como algo definitivo, como, por exemplo, a identidade sexual masculina ou feminina, Se você é homem, é feito para uma mulher e o contrário, no caso da mulher, simples e ingênuo assim.

Com novas formas de compreender o ser humano e a vida, como por exemplo, o inconsciente de Freud – que nos mostrou não sermos o reino da objetividade racional que supúnhamos – e com o aparecer de outras culturas que pensam a realidade de forma bastante diversa da ocidental-cristã, fomos nos dando conta que talvez muitas das afirmações que constituem a nossa visão de mundo, não são absolutas, mas foram sendo construídas por uma série de processos históricos. Vamos nos dando conta que o que significa ser homem ou mulher não está armazenado, marcado de forma definitiva e natural em cada um de nós, mas é a conseqüência de um acúmulo de compreensões que, por uma razão ou outra, prevaleceram sobre as demais. Isto nos ajuda a tomar certa distância dos “absolutos” quando estes são muitos detalhados e rigidamente definidos.

Além disso, será que o fato de partilharmos algumas características em comum que nos identificam como ser humano do sexo masculino e feminino nos torna realmente iguais? Esta compreensão pressupõe uma maneira de pensar ainda muito ligada a definições. Se um ser humano é do sexo masculino e se chama João ou Carlos, ou do sexo feminino, chamando-se Patrícia ou Clara, o que eles têm em comum, ser humano de determinado gênero sexual, é o bastante para defini-los como iguais?

Dissemos antes que as pessoas divinas não podem ser compreendidas como núcleos isolados que em um segundo momento se relacionam. Guardadas as devidas proporções, bem desproporcionais quando “comparamos” Deus e o ser humano, o mesmo se pode afirmar a nosso respeito. Há sim, determinadas características que nos são comuns, mas jamais seriam suficientes para nos tornar iguais. As experiências por que passamos, as múltiplas relações que experimentamos durante a vida e a maneira como internamente recebemos tudo isto formam muito mais a nossa identidade específica do que definições gerais. Não há um ser humano igual a qualquer outro. A história das nossas relações nos forja de maneira única e irrepetível. Por isso, só alguém, pessoa ou instituição, que não estivesse atenta à dinâmica da vida poderia entender o “amor gay” como um fechamento egoísta no igual, no “em si mesmo”.

Mas o melhor de tudo é que não nos pomos a desconfiar do quão carregado de pré-definições e acúmulos meramente históricos é essa tal de “lei natural” por estarmos perdendo a fé, ou nos afastando da Igreja, ou por uma rebeldia infantil. A nossa fé adulta em Deus nos recorda que, antes de ter uma identidade fixa de “Pai” ou de “Filho” ou “Espírito”, cada uma das pessoas é ela própria porque se abriu, se pôs em relação com o diverso de si mesma. Ou seja, se a comunhão pressupõe a diversidade, esta só se realiza quando não despejamos uma série de pré-definições (pré-conceitos?) sobre aquilo que aparece como diferente, mas temos uma postura humilde diante de Deus, de, pelo menos, ouvir este “diverso de mim” que se propõe a dialogar.

Até bem pouco tempo atrás, a humanidade era pensada como sendo toda heterossexual. Esta era a regra. Não queremos que a Igreja acolha uma mudança tão abrupta e que ainda está se fazendo à base de muita luta e tantos conflitos. Seria desejar demais. Queremos apenas que ela não se negue ao diálogo, não rejeite a diversidade só porque não é o mesmo, o igual. Justamente porque, sendo um no amor, Deus é uma unicidade heterogênea que se realiza na diferença do Pai e do Filho.

Aqui penso Igreja não só, e nem principalmente como Magistério, mas em cada um que segue a Jesus Cristo e procura viver aqui na terra esta comunhão amorosa com os outros, cuja plenitude esperamos ser o céu. Penso no rosto de cada um pessoalmente, a face verdadeira da Igreja. Na época de Jesus, quem diria que o rosto dos leprosos, prostitutas e pecadores públicos (uma espécie de gente “intrinsecamente má”) seria o mais procurado por Deus? Quem da instituição religiosa contemporânea a Jesus perceberia que seriam essas pessoas o sinal do amor gratuito e universal do Pai que se constitui na grande boa-nova do reino? E, hoje? Que faces e rostos? De que excluídos e marginalizados Deus hoje está à procura?

Pássaros no céu, lírios no campo

Foto: Dana-Kate

Continuando a pregação na montanha registrada por Mateus nos capítulos 5 e 6 de seu Evangelho, Jesus toca na nossa preocupação excessiva com as coisas do dia-a-dia, que acabam por nos fazer esquecer de coisas mais essenciais à manutenção da vida e das relações com aqueles que nos cercam.

Assim, o Mestre convida a multidão – e a nós, hoje! – a olhar os pássaros no céu e os lírios do campo. Que esforço fazem para ser o que são? Que preocupações ocupam seu viver? Óbvio que não se trata de um convite à irresponsabilidade, mas à confiança no cuidado do Pai para com seus filhos.

Confiança talvez seja, aqui, a palavra-chave. Confiar é entregar-se à certeza de que o Senhor irá prover aquilo de melhor para cada um de nós, ainda que por algumas vezes não consigamos enxergar Seus desígnios, ou entender para onde estamos sendo levados. Se cremos em um Deus que quer o melhor para cada um de nós, podemos viver como Santo Inácio nos ensinou fazendo tudo como se dependêssemos somente dos nossos esforços, mas esperando tudo como se tudo dependêssemos apenas de Deus. Esse é o verdadeiro significado da confiança.

Não é fácil a proposta do Senhor, pois indica que muitas vezes abrir mão de coisas que nos dão segurança. Por isso, o tênue limite entre confiança e irresponsabilidade. O cuidado de Deus para conosco não significa que tudo nos será proporcionado sem qualquer limite; ao contrário, a preocupação com a manutenção da vida é necessária. O alimento não chega à boca do pássaro: ele tem que fazer o esforço de buscá-lo e dividi-lo com seus filhotes. Também o lírio precisa sugar a água da terra, lançar suas raízes, enfim, esforçar-se para manter-se vivo. Cabe ao homem cuidar da vida que recebeu e esforçar-se para mantê-la com qualidade. O resto, cabe a Deus, é graça que Dele recebemos.

Portanto, possamos nos ocupar não com aquilo que o tempo corrói, mas com aquilo que possa ter um efeito definitivo na nossa vida e na de nossos irmãos: o reino de Deus e sua justiça.

Texto para reflexão: Mateus 6, 24-34


Artigo de Gilda Carvalho, publicado originalmente no Amai-vos. Boa semana a todos! :-)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A propósito do Pai Nosso (4)


Damos hoje continuidade à proposta iniciada no três domingos atrás de publicar, em partes*, a reflexão de Simone Weil sobre a oração do Pai Nosso. Para meditar, orar e, esperamos, aprofundar a fé. Um bom domingo a todos!

Perdoai as nossas ofensas (dívidas) assim como perdoamos a quem nos tem ofendido (a nossos devedores)
No momento de dizer estas palavras, será preciso já ter perdoado todas as dívidas. Não é somente o perdão das ofensas que nós pensamos ter sofrido. É também o reconhecimento do bem que pensamos ter feito, e de uma maneira geral tudo que esperamos da parte dos seres e das coisas, tudo aquilo que acreditamos ser nosso direito, tudo aquilo cuja ausência nos daria o sentimento de ter sido frustrados. São todos aqueles direitos que acreditamos que o passado nos dá sobre o futuro. Acima de tudo, o direito a uma certa permanência. Quando pudemos fruir de alguma coisa durante certo tempo, acreditamos ser nosso objeto e que o destino nos dá o direito de continuar fruindo daquilo. Depois pensamos ter o direito a uma compensação por cada esforço, qualquer tenha sido sua natureza: trabalho, sofrimento, ou desejo. Todas as vezes que um esforço sai de nós e que o equivalente disto não retorna a nós sob a forma de um fruto visível, temos o sentimento de desequilíbrio, de vazio, que nos faz crer que fomos roubados. O esforço de suportar uma ofensa nos faz esperar o castigo ou as desculpas daquele que se beneficiou, mas estes são apenas casos particulares de uma lei universal de nossa alma. Todas as vezes que alguma coisa sai de nós, temos necessidade de que pelo menos o equivalente daquilo volte a nós, e por que temos esta necessidade acreditamos ter um direito. Nossos devedores são todos os seres, todas as coisas, o universo inteiro. Acreditamos sempre ter um crédito e que todas as coisas nos são devedoras relativamente a todos os créditos sobre os quais julgamos ter direito, trata-se no mundo, sempre de um crédito imaginário do passado sobre o futuro. É a isto que é preciso renunciar. Ter perdoado a nossos devedores é ter renunciado em bloco a todo o passado, (com seus créditos imaginários). Aceitar que o futuro seja ainda virgem e intacto, rigorosamente ligado ao passado, por laços que ignoramos, mas completamente livre dos laços que nossa imaginação quer impor a ele. Aceitar a possibilidade de que qualquer coisa possa nos acontecer, e que o dia de amanhã faça de nossa vida uma coisa estéril e vã. Renunciando de um só golpe a todos os frutos do passado sem exceção, podemos pedir a Deus que nossos pecados não gerem em nossa alma seus miseráveis frutos de mal e de erro. Enquanto nos apegamos ao passado, Deus, ele próprio não pode impedir em nós esta horrível frutificação. Não podemos nos apegar ao passado sem nos agarrar a nossos crimes, pois o que é mais essencialmente mau em nós nos é desconhecido. O principal crédito que pensamos ter sobre o universo é a continuidade de nossa personalidade. Este crédito está implícito em todos os outros. O instinto de conservação nos faz sentir esta continuidade como uma necessidade e acreditamos que uma necessidade seja um direito. Como o mendigo dizia a Talleyrand: "Senhor, é preciso que eu viva; e a quem Talleyrand respondia: "Não vejo esta necessidade". Nossa personalidade depende inteiramente das circunstâncias exteriores, que têm um poder ilimitado para arrasá-la. mas preferimos morrer do que reconhecer isto. O equilíbrio do mundo é sempre para nós uma seqüência de circunstâncias tal que nossa personalidade fique intacta e pareça pertencer-nos. Todas as circunstâncias passadas que feriram nossa personalidade nos parecem rupturas do equilíbrio que, mais dia menos dia, deveriam ser infalivelmente compensadas por fenômenos em sentido contrário. Vivemos à espera destas compensações. A aproximação iminente da morte é horrível sobretudo por que nos obriga a descobrir que estas compensações não se produzirão. O perdão das dívidas é a renúncia à nossa própria personalidade. Renunciar a tudo que chamo "eu" . Sem nenhuma exceção. Saber que naquilo que chamo "eu" não há nada, nenhum elemento psicológico que as circunstâncias externas não possam fazer desaparecer. Aceitar isto. Estar feliz de que seja assim. A palavra: "seja feita a tua vontade", se nós a pronunciamos de coração inteiro, pressupõe esta aceitação. É por isso que podemos dizer em seguida: "Assim como perdoamos a nossos devedores". Perdoar as dívidas é a pobreza espiritual, a nudez espiritual, a morte. Se aceitamos completamente a morte, podemos pedir a Deus que nos faça reviver, purificados do mal que está em nós. Pois pedir-lhe que perdoe nossas dívidas, é pedir-lhe que apague o mal que está em nós. O perdão é a purificação. O mal está em nós e que aí permanece, Deus ele próprio não tem o poder de perdoá-lo. Deus perdoará nossas dívidas quando nos colocar no estado de perfeição. Até lá, Deus nos perdoará as ofensas parcialmente, na medida em que pudermos perdoar nossos devedores.

*Parte 1: 6 de fevereiro; parte 2: 13 de fevereiro; parte 3: 20 de fevereiro

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Texto original:

WEIL, Simone. À propos du "Nôtre Père", In Attente de Dieu. Paris: Flamarion, 1996. Tradução de Elisa Cintra.

Tradução publicada originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil
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