sábado, 2 de março de 2013

Sinal de Esperança



Quanto mais eu penso nos sofrimentos humanos deste mundo e em minha vontade de aliviá-los, mais eu tomo consciência do quanto é importante não me deixar paralisar pelos sentimentos de impotência e de culpa.
É necessário mais do que nunca ser fiel à minha vocação: eu sou chamado a fazer bem as pequenas coisas que me são confiadas, e a saborear a alegria e a paz que elas me trazem.
Eu devo resistir à tentação de deixar as forças das trevas me levarem ao desespero, e fazerem de mim mais uma de suas numerosas vítimas. Eu devo manter meu olhar fixo em Jesus e nos que o seguiram, confiante de que saberei cumprir plenamente minha missão: ser no mundo um sinal de esperança.


Henri Nouwen, Viver sua fé no cotidiano.

O que Martini queria dizer ao papa



"Manchete do jornal: O Papa renuncia.
Primeiro cardeal: Um novo Papa? Desta vez talvez um da América Latina?
Segundo cardeal: Talvez um da África!
Terceiro cardeal: Talvez um da Ásia!
Freira: Talvez um do século XXI?"


As críticas do cardeal Martini na sua última conversa eram como que um testamento, escrito por amor. Com firmeza, punha algumas pessoas no centro: os pobres, aqueles que buscam a fé, as mulheres e os estrangeiros. A eles ele havia se dedicado com todas as forças pela vida inteira. Não por acaso as suas demandas receberam o nome de"Agenda Martini" para o conclave.

A opinião é do jesuíta austríaco Georg Sporschill, coautor, junto com o cardeal Carlo Maria Martini, do livro Diálogos Noturnos em Jerusalém (Paulus, 2008). O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 25-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No dia 8 de agosto de 2012, a pedido do cardeal Martini, visitei-o em Gallarate junto com Federica Radice Fossati Confalonieri; foi o nosso último encontro. Celebramos a Santa Missa entre quatro pessoas na capela da casa dos jesuítas. Ele rezava, já com um fio de voz, por uma missão em favor das crianças de rua da Transilvânia, pelos jovens e pela mulher comprometidos naquele país.

No momento da Comunhão, ele quis se levantar e, com uma ajuda, conseguiu. Nunca me esquecerei dessa cena, de como ele estava profundamente prostrado e, ao mesmo tempo, forte. A confiança desse homem provinha de outro mundo. Depois da missa, eu o levei de volta ao quarto na sua cadeira de rodas. Era o quarto modesto de um jesuíta.

No falar, o cardeal buscava fatigantemente cada palavra. Compadecia-se da Igreja que ele também amava. Somente a sua fé em Deus explica por que ele deixou as instituições eclesiásticas e o rico mundo ocidental com palavras de crítica radical.

"A Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos". Com fé, confiança, coragem. Para permitir a entrada do Espírito Santo na Instituição, o cardeal sugeriu ao papa e aos bispos que se cercassem de pessoas próximas dos jovens e dos pobres. Naturalmente, entre estas, também deve haver mulheres. Somente com homens idosos seria impossível.

A principal preocupação do cardeal era a perda de credibilidade que a Igreja havia sofrido junto a vastas fileiras de pessoas. Não se tratava de leis ou de dogmas, mas sim da capacidade de assistência, de escuta. "Sabemos nos ocupar das perguntas dos jovens, dos problemas das famílias ampliadas, dos não crentes?", perguntava, duvidoso.

Aqueles que estão distantes da Igreja têm uma mensagem para nós, defendia ele. Mais do que a coincidência de pontos de vista, interessavam-lhe o diálogo, a busca comum. O seu pensamento admitia as contradições, assim como a Bíblia.

Várias vezes pediu que a Igreja se desculpasse pelo que havia afirmado no passado sobre o tema da sexualidade. Com uma coragem como a havia mostrado João Paulo II quando, em Israel, pediu perdão aos judeus pelos pecados da Igreja. A esse respeito, ele escreveu ao Papa Bento XVI pessoalmente. Muitas vezes citava a encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, um papa ao qual estava particularmente ligado. Ele afirmava, depois, que a medicina e a psicologia tinham muito de novo a nos dizer sobre a família e a sexualidade.

As críticas expressadas pelo cardeal na sua última conversa eram como que um testamento, escrito por amor. Com firmeza, punha algumas pessoas no centro: os pobres, aqueles que buscam a fé, as mulheres e os estrangeiros. A eles ele havia se dedicado com todas as forças pela vida inteira. Não por acaso as suas demandas receberam o nome de "Agenda Martini" para o conclave.

O cardeal Martini era muito próximo do Papa Bento XVI. Por mais de uma década, como cardeais, foram membros da Congregação para a Doutrina da Fé e também tinham a mesma idade. Porém, os dois homens tinham sentimentos e pensamentos muito diferentes.

No entanto, a lealdade do cardeal idoso ao Santo Padre era indiscutível. Era junho de 2012 quando o cardeal Martini viu pela última vez o Papa Bento XVI, em visita a Milão. Naquela ocasião, ele voltou ao palácio que havia deixado em 2002. Ele o fez em cadeira de rodas, e o papa se inclinou sobre ele. Quando quase ordenou o papa a se acomodar, este, contra todas as regras ditadas pelo protocolo, se sentou, e o bispo idoso pôde reconhecer nos seus olhos cansados a fragilidade do coetâneo. A coragem, assim, o abandonou, não podia fazer-lhe as propostas que ele havia preparado. Apenas lhe disse: "Santo Padre, rezo pelo senhor e pela Igreja".

O cardeal contou, comovido, sobre aquele encontro com o pontífice e acrescentou com um toque de humor: "O alfaiate do papa deve ser um artista para fazer com que os hábitos lhe caiam bem". A sua enfermeira lhe perguntou então: "Eminência, o senhor, fraco e idoso, deixaria o ofício de papa ou de bispo?". O cardeal deve ter respondido: "Sim, eu me retiraria para Montecassino". Era como se tivesse aberto a estrada para a grande e surpreendente decisão do pontífice.

O que diz a "Agenda Martini" sobre o perfil do novo papa?

Deve ser um otimista como João XXIII: não defender o que é antiquado, mas abrir as portas da Igreja ao novo. Deve ter muita compreensão humana e confiança no futuro.

Deve ter amor como Paulo VI. Talvez ele tivesse um excessivo temor das possibilidades oferecidas pela tecnologia, pela medicina e pela liberdade social, mas era uma preocupação pelo ser humano, como gostava de sublinhar o cardeal Martini quando criticava a encíclica Humanae Vitae. Ele mesmo podia testemunhar isso, pois Paulo VI o convidava muitas vezes como um amigo a discutir questões bíblicas.

Deve ser decidido como João Paulo II. O cardeal Martini contava que o papa polonês o tinha nomeado, natural de Turim, como arcebispo de Milão, sem ouvir as objeções. Ele tinha decidido e ponto final. Com a sua força, conseguia mover muitas coisas no Vaticano e na política eclesiástica. Uma força que fez cair até mesmo a cortina de ferro.

O que o novo papa deve ter dos seus antecessores? Pode construir sobre o que fez Bento XVI, que queria preservar a Igreja dos perigos, queria manter todos na comunidade eclesiástica, até mesmo a Fraternidade São Pio X. Apontava para as elites, que via nos novos movimentos.

Agora é preciso o agere contra, um movimento voltado às paróquias, à revalorização das Igrejas locais e a escuta do mundo inteiro, como o cardeal Martini fazia corajosamente. Bento XVI, no seu clericalismo, era impulsionado por forças centrípetas; agora são necessárias energias centrífugas.

Com um bispo proveniente do Novo Mundo, da África ou das Filipinas, o Espírito Santo pode nos surpreender mais do que com um defensor do Velho Mundo. Quão jovem, estrangeiro ou de cor deve ser hoje um instrumento do Espírito Santo?

Fonte

DEIXA A CÚRIA, PEDRO



Deixa a Cúria, Pedro,
Desmonta o sinedrio e as muralhas,
... Ordene que todos os pergaminhos impecáveis sejam alterados
pelas palavras de vida, temor.

Vamos ao jardim das plantações de banana,
revestidos e de noite, a qualquer risco,
que ali o Mestre sua o sangue dos pobres.

A túnica/roupa é essa humilde carne desfigurada,
tantos gritos de crianças sem resposta,
e memória bordada dos mortos anônimos.

Legião de mercenários assediam a fronteira da aurora nascente
e César os abençoa a partir da sua arrogância.
Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde.

O povo é apenas um "resto",
um resto de esperança
Não O deixe só entre os guardas e príncipes.
É hora de suar com a Sua agonia,
É hora de beber o cálice dos pobres
e erguer a Cruz, nua de certezas,
e quebrar a construção - lei e selo - do túmulo romano,
e amanhecer
a Páscoa.

Diga-lhes, diga-nos a todos
que segue em vigor inabalável,
a gruta de Belém,
as bem-aventuranças
e o julgamento do amor em alimento.

Não te conturbes mais!
Como você O ama,
ame a nós,
simplesmente,
de igual a igual, irmão.
Dá-nos, com seus sorrisos, suas novas lágrimas,
o peixe d a alegria,
o pão da palavra,
as rosas das brasas...
... a clareza do horizonte livre,
o mar da Galileia, ecumenicamente, aberto para o mundo.

(Poema de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de S. Félix do Araguaia para reflexão pós-renúncia do papa)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Não Tenhas Medo

Linda esta montagem do Rumos Novos com a música Be Not Afraid.

Vaticano e os direitos civis para casais homossexuais



Do Zero Hora

Vaticano declara-se aberto a direitos civis para casais homossexuais

Ministro da Família afirma que se deve impedir injustiças e discriminações na questão do casamento

O ministro do Vaticano para a família, monsenhor Vicenzo Paglia, presidente do Pontifício Conselho da Família, defendeu a família tradicional e reconheceu direitos para os casais "de fato", homossexuais ou não, o que constitui uma abertura por parte da hierarquia da Igreja Católica.

Em um encontro com a imprensa, Paglia explicou que são situações que o Estado deve resolver para impedir injustiças e discriminações:

— É preciso encontrar soluções no âmbito do Código Civil para garantir questões patrimoniais e facilitar condições de vida para impedir injustiças com os mais fracos — disse.

— Infelizmente, não sou um especialista em Direito, mas, pelo que sei, me parece o caminho que precisa ser percorrido — acrescentou.

Paglia, um dos fundadores da Comunidade de Santo Egídio, organização que mediou conflitos internacionais, entre eles em El Salvador, e defensor da causa de canonização do monsenhor salvadorenho Arnulfo Romero, costuma ter posições abertas sobre temas sociais.

O religioso, designado no ano passado para administrar um dos ministérios-chave do Vaticano, reiterou sua defesa do casamento tradicional, entre um homem e uma mulher, que considera "elemento fundador" da sociedade.

Durante o encontro com a imprensa, Paglia analisou a atual crise atravessada pelo casamento católico frente ao aumento do divórcio, dos pedidos de legalização do casamento homossexual e do aumento do número de mães solteiras:

— As formas de vida comum não familiares constituem um verdadeiro arquipélago de situações — afirmou — É claro que é preciso garantir os direitos individuais — acrescentou.

O arcebispo italiano manifestou sua total oposição a formas de discriminação contra os homossexuais em alguns países, em particular no Oriente Médio e na África:

— Em vários países, a homossexualidade é considerada um crime. É preciso combater isso — disse.

Por sua vez, condenou a aprovação da adoção por parte de casais do mesmo sexo:

— A Igreja conhece o preço do que é uma família sem filhos, dos idosos sozinhos e dos doentes. A família se transformou ao longo de décadas, mas nunca vamos abandonar seu 'genoma', ou seja, que é formada por um homem, uma mulher e seus filhos — disse.

Vaticanista diz que futuro da Igreja está na descentralização do poder



Para Juan Arias, a primeira ação do próximo Pontífice deveria ser convocar novo concílio
RIO — O correspondente do jornal ‘El País’ no Brasil cobriu durante 14 anos o lado sagrado - e o profano - do Vaticano. Para ele, a primeira ação do próximo Pontífice deveria ser convocar novo concílio.

O GLOBO: Bento XVI afastou o cardeal escocês Keith O’Brien, acusado de cometer abusos sexuais, e antecipou o conclave. O que essas ações representam a poucos dias de sua saída?

Juan Arias: Mostram que Bento XVI quer exercer sua autoridade até o fim. Ele está de saída, mas ainda é o Papa. E são ações que só ele, com poder absoluto, poderia tomar. O adiantamento do conclave aproveita que os cardeais já estão em Roma para se despedir de Bento XVI. Não há por que esperar. E, no caso do cardeal escocês, seria uma omissão muito grave não afastá-lo. Bento XVI deveria até ir mais longe e proibir também a participação no conclave do cardeal Roger Mahony, acusado de proteger abusadores.

Há uma discussão frequente sobre os perfis dos papáveis, de conservadores a progressistas. Que diferença essas denominações podem fazer para os fiéis?

Juan Arias: Pensamos nesses conceitos como se fossem categorias políticas. Se Papa progressista é aquele que vai permitir o uso de preservativos ou o divórcio, é pouco para os fiéis. Essas práticas já foram aceitas na consciência dos católicos. E o que seria um Papa conservador? Um Papa tem que ser conservador, porque ele deve manter as essências do cristianismo. O Papa mais conservador dos últimos anos foi João XXIII, um homem piedosíssimo e simples, que convocou o Concílio Vaticano II, chamou três mil bispos e provocou uma reviravolta da Igreja. Por isso, esses conceitos não têm sentido. O que precisamos é de um Papa profeta. Alguém com voz crítica, que se antecipe aos acontecimentos do mundo e promova mudanças radicais.

Existe algum cardeal assim?

Juan Arias: Aparentemente não, mas pode haver surpresas, porque ninguém esperava esse perfil também de João XXIII. Tamanho foi o espanto quando ele convocou o Concílio Vaticano II que quiseram depô-lo. O cardeal Giuseppe Siri, que era então arcebispo de Gênova, reuniu cardeais para estudar a possibilidade, segundo o Direito Canônico, de depor João XXIII. Dom Hélder Câmara e dom Eusébio Scheid teriam sido bons Papas profetas. Eles teriam tido coragem de fazer a Igreja voltar às origens.

Que vantagem isso traria?

Juan Arias: No primeiro século do cristianismo, o poder da Igreja estava dividido em patriarcados. Havia o patriarca de Constantinopla, o de Jerusalém, o bispo de Roma. Cada um tinha grande liberdade de ação. A única diferença era que o bispo de Roma, como representava Pedro, o maior dos apóstolos, era primus inter pares, o primeiro entre iguais. Quando surgia algum problema, era ele quem mediava, como um irmão mais velho. Aos poucos, isso foi desaparecendo, e tudo acabou centralizado na figura do Papa, com o privilégio da infalibilidade. Moderno seria voltar no tempo. Criar hoje o patriarcado da Europa, da América Latina, da América do Norte, da África... Os problemas da Igreja não são iguais em todas as regiões. É necessária uma descentralização, e não um Papa de idade avançada como único chefe. Imagine um presidente do mundo inteiro!

Muitos teólogos falam sobre uma transformação ampla da Igreja. Por onde começar?

Juan Arias: Só a reforma da Cúria não basta. Se o próximo Papa quiser ficar marcado na História, deveria convocar imediatamente um novo concílio. O último foi há mais de 50 anos. Estive lá. Mas o mundo mudou completamente desde então, e a Igreja continua a mesma. Os problemas que Bento XVI enfrentou de gestão, burocracia, intrigas e traições são em parte os mesmos desde a Idade Média. O novo Papa deveria chamar todos os bispos, mas não só: poderia ser uma oportunidade sem precedentes de ouvir os fiéis. Abrir-se também às redes sociais e descobrir como a Igreja pode dialogar com o mundo. O Papa deve retomar o papel de líder espiritual e renunciar ao de chefe de Estado. Há que se romper o hábito. O ambiente de política contamina a Igreja.

Os fiéis estão preparados para isso? Como a Igreja mede essa necessidade?

Juan Arias: Não só estão preparados como esperam uma mudança. As pessoas não sabem em que uma reforma da Cúria Romana afetaria suas vidas. Mas gostariam de um Papa próximo às pessoas, que não tenha que se deslocar em carro blindado. O problema da Igreja é que ela luta para defender a instituição. E quando fala em renovação, é sempre para renovar a instituição. Mas a Igreja é mais do que isso. Deveria aproveitar sua capacidade de ser o fermento do mundo, de orientar os fiéis. Mas não sabe o quanto ficou parada no tempo.

A Igreja arriscaria esse novo passo hoje?

Juan Arias: Ele só partiria de um Papa profeta. E ele pode aparecer, pois o conclave é sempre uma surpresa. Assisti a cinco e a única vez em que cheguei perto de acertar foi na escolha de Paulo VI. Desta vez, pode ser ainda mais difícil, porque temos um Papa vivo e não sabemos que influência ele vai exercer. Nem os cardeais, quando começam o conclave, têm um nome de consenso. Não é como na política, com candidatos em campanha. Os cardeais não começam pensando em outros nomes porque acham que o melhor são eles próprios.

A eleição de um Papa não europeu seria um sinal de abertura da Igreja?

Juan Arias: Não. Há cardeais latino-americanos e africanos que são mais fechados do que muitos europeus. Atrelar uma escolha por origem geográfica à maior abertura seria equivocado. Adoraria que surgisse um Papa brasileiro, mas não porque seria mais liberal. O que pode acontecer é um Papa de um país em desenvolvimento ter mais sensibilidade a problemas sociais, por conviver diretamente com eles. Mas pensar que, por isso, o novo Papa permitiria que mulheres exerçam o sacerdócio ou aceitaria preservativos e aborto é uma ilusão. Nenhum deles fará isso.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/vaticanista-diz-que-futuro-da-igreja-esta-na-descentralizacao-do-poder-7672582#ixzz2M7UGHxVt
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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Bento XVI e os Gays: Balanço e Perspectivas


O término do pontificado de Ratzinger é um momento bastante oportuno para avaliações, sobretudo em um de seus aspectos mais polêmicos e conflitivos, que é a relação com o mundo gay.

À primeira vista, saltam aos olhos as declarações duríssimas contra o casamento gay, as famílias homoparentais e a teoria de gênero. A equiparação da união homossexual à união heterossexual é considerada uma ferida grave infligida à justiça e à paz. A família sem a dualidade homem e mulher tornaria o filho não um sujeito de direito, mas um objeto que se pode adquirir. E a teoria de gênero, que contesta a heterossexualidade compulsória e a submissão da mulher ao homem, seria uma auto-emancipação do ser humano em relação à criação e ao Criador, conduzindo-o à destruição de si mesmo. Estas oposições da Igreja já existiam no pontificado de João Paulo II, mas Bento XVI lhes deu uma dimensão catastrófica. Isto teve imensas repercussões na mídia, além de inevitavelmente alimentar o ódio contra os gays.

Estas declarações, porém, não são tudo. Houve um avanço importante que ficou quase despercebido. Em 2008, discutiu-se na ONU a descriminalização da homossexualidade em todo mundo, conforme uma proposta encabeçada pela França. Nações ocidentais se posicionaram a favor, e nações islâmicas contra. A delegação da Santa Sé, ainda que divergindo parcialmente da proposta francesa, manifestou-se pela descriminalização e condenou todas as formas de violência contra pessoas homossexuais. Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil. Isto significa admitir, no mínimo, que eles não são uma ameaça para a humanidade.

Houve também ruídos de comunicação bastante infelizes. Em uma viagem à África, em 2009, Bento XVI declarou que não se pode superar o problema da aids só com dinheiro e distribuição de preservativos. Se os africanos não se ajudam, assumindo responsabilidades pessoais para humanizar a sexualidade, o problema aumenta. Correu o mundo a notícia de que o papa na África disse que a camisinha só aumenta o problema da aids. Na verdade, a declaração na íntegra não apóia e nem condena a camisinha, mas a sua formulação não foi suficientemente clara para evitar aquele tipo de notícia. No ano seguinte, o papa finalmente inovou, afirmando que em algumas circunstâncias o uso do preservativo representa o primeiro passo para uma humanização da sexualidade.

Outro avanço foi a declaração de autoridades vaticanas, há poucas semanas, defendendo direitos civis para casais de fato, homossexuais ou não, a fim de se garantir questões patrimoniais e se facilitar condições de vida, impedindo injustiças para com os mais fracos. Foi dito que o legislador deve responder às exigências que antes não existiam.

A cidadania LGBT por um lado é fortemente combatida, mas por outro lado é apoiada. Esta disparidade na Igreja Católica se deve à sua tradição milenar judaico-cristã, que é heteronormativa, e à sua inserção no mundo moderno, onde as mudanças ocorrem em um ritmo alucinante. Com o Concílio Vaticano II, nos anos 60, a Igreja incorporou muitos elementos da modernidade, como a aceitação da separação entre Igreja e Estado, o reconhecimento da autonomia das ciências, e da liberdade de consciência. A fidelidade à norma reta da própria consciência é um direito e um dever da pessoa, acompanhados da obrigação de sempre buscar a verdade.

De acordo com o ensinamento da Igreja hoje, nenhum ser humano é um mero homo ou heterossexual, mas é antes de tudo criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna. Quanto à moral, ela deve se basear na razão iluminada pela fé, servindo-se das descobertas seguras das ciências. Embora a doutrina católica se oponha à prática homossexual, considerada intrinsecamente desordenada, também reconhece que há pessoas com tendência homossexual em circunstâncias onde a prática é inevitável, e a culpabilidade é nula.

A Igreja, porém, não são só o papa e os bispos, que formulam estes ensinamentos. São todos os fiéis, que fazem diferentes leituras nos diversos contextos em que vivem. Na França, por exemplo, o deputado socialista e relator do projeto de lei do Casamento para Todos, Erwann Binet, é católico praticante. Ele afirma que os valores aprendidos na cultura cristã e os valores de esquerda são coerentes. O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair se converteu ao catolicismo, religião de sua esposa, e defende o casamento gay. Nos Estados Unidos, a maioria dos católicos votou em Obama, bem como a maioria dos protestantes. Todos eles são protagonistas de mudanças importantíssimas em favor do direito homoafetivo.

É preciso reconhecer também que os gays não estão a salvo em muitos ambientes católicos, onde há pregações homofóbicas utilizando a doutrina com extrema rigidez e sem matizes. Alguns gays são encaminhados a “orações de cura e libertação”, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. É um assédio moral devastador. Em outros ambientes católicos, por sua vez, há leigos, religiosos e sacerdotes compreensivos e acolhedores. Há grupos que ajudam as pessoas a conciliarem a orientação homossexual e a fé, como o Dignity USA, o Rumos Novos, o Diversidade Católica e a Pastoral da Diversidade. Um dos grandes desafios é proteger os gays dos ambientes religiosos homofóbicos, e encaminhá-los aos ambientes acolhedores.

As mudanças na Igreja começam na sociedade e na vida dos fieis, e aos poucos alcançam a teologia, a hierarquia e a doutrina. Não é do papa e dos bispos que vêm as mudanças, é das bases. Não se espere muito do próximo pontífice, e nem pouco. O mais importante é não haver retrocesso, e se ampliarem os espaços de diálogo entre Igreja e sociedade moderna. Jamais se deve aceitar a falácia de que não há lugar para os gays na Igreja. Jamais se deve cair na armadilha do tudo ou nada. Isto só satisfaz o interesse dos religiosos ultraconservadores, que querem ver os gays o mais longe possível, ou pior, “curados”.

Bento XVI se despede cansado de um ofício desgastante. Inevitavelmente, ficam em nossa memória algumas de suas declarações homofóbicas de ampla repercussão. Porém, ele tem ensinamentos felizes que repercutiram bem menos. Dentre eles, o que mais pode ajudar a relação entre a Igreja e o mundo gay, é este: “o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente”. Nisto, o papa abre portas para caminhos que ele mesmo não chegou a percorrer. Mas outros podem fazê-lo. A bola está conosco.


Equipe Diversidade Católica
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