sábado, 8 de fevereiro de 2014

Coisa de bicha

Quando você aprende que existem "coisas de homem" e "coisas de mulher", e passa a ter a sua liberdade de desejo e escolha tolhida e condicionada por esses padrões, você está sendo esmagado pela misoginia e pela homofobia, meu amigo, e nem sabe. Mesmo que você não seja mulher. Mesmo que você não seja gay.

Como assinalou o jornalista Leonardo Sakamoto aqui, "Já atravessamos uma revolução sexual. Podemos fazer sexo de forma mais livre e com menos culpa que antes. Mas expressar nossos sentimentos é algo longe de acontecer livremente. (...) O homem é programado, desde pequeno, para que seja agressivo. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto para outro amigo em público. Manifestar seus sentimentos é coisa de mina. Ou, pior, é coisa de bicha. De quem está fora do seu papel."

Trata-se de uma mudança de mentalidade, transformação sempre lenta e penosa. Tem quem não entenda a importância de defender os direitos das minorias - sejam os LGBTs, os negros, as mulheres, os deficientes ou qualquer outra. Inclusive os pobres, minorias políticas que têm seus direitos e sua voz cassados cotidianamente. Mas a violência que atinge um atinge todos. Se falta para uns a boa lei (aquela que define limites e deveres, a fim de estabelecer e assegurar os direitos), ela falta para todos.

Meu amigo Léo Rossetti cita este exemplo aqui, e comenta:

"A homofobia mata! E mata mesmo. Mata adultos e mata crianças. A homofobia mata nas ruas, mata a pontapés, mata com lâmpadas fluorescentes, mata com espancamentos, mata com decapitações, mata com requintes de crueldade... mas mata também crianças, crianças que não suportam o peso do preconceito e se juntam aos milhares de jovens e adultos que, sem conseguir fôlego pra viver, buscam na morte um alívio para seus dramas diários. Veja o caso desse menino de 11 anos que está entubado por tentar suicídio! O motivo? Gostar de um desenho que, na escola, era considerado um desenho de menina. A matéria em inglês (aqui) tem uma foto dele no leito do hospital. Nó na garganta"...

(A propósito, leia aqui sobre o projeto "Arte por Michael", de pessoas que se mobilizaram mandando desenhos e ilustrações de apoio ao garoto, como a que ilustra este post.)

A refletir.

Com amor,

Cris

PS (1): Caso queira se aprofundar no tema, sugiro também "O preço da masculinidade", da psicanalista Diana Corso (aqui) e "A homoafetividade dos heterossexuais", aqui.

PS (2): Claro, quando a gente luta por leis que assegurem nossos direitos políticos e protejam nossa cidadania, não podemos esquecer que mudança nenhuma acontece na base da canetada. Legislar, por si só, não muda os conceitos e preconceitos vigentes na sociedade. Mas a questão é o tanto de debate implicado no processo. Para uma lei chegar a ser aprovada, houve muito diálogo e muita negociação entre forças antagônicas antes, até se chegar a algum consenso sob a forma de lei. E, uma vez aprovada, a lei fomenta uma nova etapa de debate e diálogo para sua implementação. Ou seja: a lei é uma peça do processo mais amplo de transformação. 

Ilumina e serás iluminado, cura e serás curado


«Vós sois o sal da terra ... Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens.» (Mateus 5, 13-16)

Jesus tinha acabado de proclamar o núcleo da sua mensagem, as bem-aventuranças, e acrescenta, dirigindo-se aos seus discípulos e a nós: se as viverdes, sereis sal e luz da terra.

Uma afirmação que surpreende: que Deus é a luz do mundo já o tínhamos ouvido, o Evangelho de João repetiu-o, e nós acreditamos; mas ouvir - e crer - que também o ser humano é luz, que o somos também eu e tu, com todos os nossos limites e sombras, é surpreendente.

E não se trata de uma exortação de Jesus, "esforçai-vos por vos tornardes luz", mas "sabei que já o sois". A lâmpada, se estiver acesa, não tem de se esforçar por dar luz, porque é da sua natureza; assim também vós. A luz é o dom natural do discípulo.

É incrível a consideração, a confiança que Jesus comunica, a esperança que repõe em nós. E encoraja-nos a tomar consciência disso: não fiques na superfície de ti mesmo, na porosidade do barro, mas procura em profundidade, no reduto secreto do coração, desce ao centro de ti próprio e lá encontrarás uma lâmpada acesa, uma mão cheia de sal.

Vós que viveis segundo o Evangelho, sede luz no mundo. E sede-o não com a doutrina ou as palavras, mas com as obras: resplandeça a vossa luz nas vossas boas obras. Tu podes realizar obras de luz! E são as mansas, as puras, as justas e as pobres as obras alternativas às escolhas do mundo, a diferença evangélica oferecida à flor da vida.

Quando segues o amor como única regra, então és luz e sal para quem te encontra. Quando duas pessoas se amam, tornam-se luz na escuridão, lâmpada para os passos de muitos. Em qualquer lugar onde se quer o bem, é espalhado o sal que dá o bom sabor à vida.

Na primeira leitura, Isaías sugere a estrada onde a luz deve estar: «Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante. Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar».

Ilumina os outros e serás iluminado, cura os outros e serás curado. Não te curves sobre a tua história e sobre as tuas derrotas, mas ocupa-te da terra, da cidade do outro; senão nunca te tornarás um homem ou mulher radiosa. Quem olha só para si nunca se ilumina.

Então serás lâmpada sobre o candelabro, mas segundo a forma própria da luz, que não faz ruído e não violenta as coisas. Acaricia-as e faz emergir o belo que existe nelas. Assim também «nós do Evangelho» somos pessoas que a cada dia acariciamos a vida e revelamos a sua beleza oculta.

P. Ermes Ronchi
In Lachiesa.it
Trad.: SNPC/rjm
07.02.14

Fonte

Nós, cristãos, somos sal e luz



A Palavra de Deus deve traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é, em primeiro lugar, indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Celebrar a eucaristia decorre disso.

A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 5º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico (09 de fevereiro de 2014). A tradução é de André Langer.

Referências bíblicas:
Primeira leitura: Is 58,7-10
Evangelho: Mt 5,13-16

Eis o texto.

O evangelho de hoje vem imediatamente depois do relato das Bem-aventuranças. Isto quer dizer que aquelas e aqueles que fazem das Bem-aventuranças o programa da sua vida, são chamados a uma responsabilidade real e atual, ou seja, eles não vão se tornar sal da terra e luz do mundo, no futuro, mas devem sê-los aqui e agora para aqueles que não têm este programa...

1. Uma responsabilidade plena

O evangelho não diz que Cristo é a luz do mundo e que temos que refletir esta luz. O evangelho diz: “Vocês são a luz do mundo” (Mt 5,14). Ou seja, nós temos a mesma responsabilidade e a mesma dignidade que o Cristo ressuscitado. E o mesmo vale para o sal: “Vocês são o sal da terra” (Mt 5,13). Nós temos, portanto, toda a responsabilidade de dar o sabor de Deus e de Cristo aos outros.

2. Uma responsabilidade individual e coletiva

A responsabilidade não é somente individual; ela é também coletiva: ela se endereça aos primeiros cristãos, à Igreja do primeiro século e, através dela, à Igreja de hoje. Devemos precisar que esse discurso de Jesus que chamamos de Sermão da Montanha, reúne diversos ensinamentos de Jesus que são relidos à luz da Páscoa.

3. O sal e a luz

Os dois símbolos utilizados – sal e luz – são ainda hoje muito significativos. O sal é, ao mesmo tempo, condimento e meio para conservar os alimentos (especialmente os peixes na Palestina). O sal é, portanto, o símbolo do que é precioso e também do que permanece. Da palavra sal vem a palavra salário, isto é, o sal que era dado aos soldados como forma de pagamento. Havia também uma expressão antiga: “comer sal com alguém” – o que significava fazer um pacto de amizade com essa pessoa. O pacto de sal era indissolúvel, de sorte que nem o próprio Deus podia desfazê-lo.

No Templo de Jerusalém utilizava-se muito o sal; havia ali inclusive um armazém de sal. Os animais sacrificados eram salgados e o incenso perfumado continha sal. Os recém-nascidos eram esfregados com sal para significar a sabedoria e a pureza moral que se desejava à criança. Antigamente, nos batizados católicos, colocava-se sal na língua das crianças para significar a sua pureza e sua pertença ao Deus da Aliança. Esta prática foi abandonada pela Igreja por motivos de higiene.

Utilizado por Mateus, o sal, que são os discípulos, dá o gosto ao Reino que eles anunciam, no Espírito das Bem-aventuranças, de sorte que se eles perderem de vista sua missão de anunciar o Reino, o sal perde seu sabor; ele não serve para mais nada e as pessoas o pisoteiam (Mt 5,13).

O símbolo da luz é ainda mais rico do que o do sal: a luz ilumina, aquece, guia, agrega, tranquiliza, reconforta. Utilizado por Mateus, o símbolo da luz do mundo nos remete à vocação de Jerusalém, a cidade luz, lugar situado sobre a montanha para atrair todos os povos para Deus e para a vocação de Israel luz das nações. Portanto, a imagem se aplica não ao indivíduo cristão, mas à comunidade cristã definida pelas Bem-aventuranças.

Então, o que é esta luz que são os discípulos? “As boas obras que vocês fazem” (Mt 5,16), isto é, as boas ações, as boas obras que se traduzem no compromisso com os pobres, os excluídos, os abandonados, a fim de que a justiça seja restaurada. Isso me remete ao profeta Isaías, na primeira leitura de hoje (Is 58,7-10): estamos no tempo do retorno do Exílio, no século VI a.C., e constatamos os estragos da deportação; o templo está destruído, e era lá que eram feitas as liturgias para comemorar a deportação, onde se jejuava, fazia penitência, rezava a Deus, oferecia sacrifícios e mortificações... Mas Deus não escuta; parece surdo aos apelos. A coisa vai de mal a pior...

É então que o profeta que chamamos de Terceiro Isaías intervém para dizer aos crentes que a única maneira de restabelecer a justiça não é pela oração passiva, nem pelo jejum ou pelas mortificações, mas pelo compromisso com os mais fracos, os mais pobres e com a dura das feridas: “Repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente” (Is 58,7). É então, diz o profeta, que “a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Javé virá acompanhando você” (Is 58,8). No fundo, o que o profeta Isaías diz é o seguinte: o verdadeiro culto que Deus ouve e que muda qualquer coisa na dura realidade da existência não é a celebração no templo; é o compromisso social...

4. Atualização

O texto do profeta Isaías e o evangelho de Mateus devem ser atualizados, caso queiramos que se tornem Palavra de Deus. Devem traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Eles desvirtuam o sal que devem ser tirando o sabor de Deus para as pessoas que eles encontram e escondem a luz debaixo do alqueire das suas certezas e da sua negação da liberdade dos outros.

O célebre teólogo protestante Karl Barth escreveu: “O cristão é um homem feliz”. E por que esta alegria inebriante? Simplesmente, porque nós nos dirigimos para a terra de Deus, independentemente das peripécias do caminho... E acrescenta: “Mesmo se a estrada é difícil e cruel, mesmo se o sofrimento já lhe não permite mais rir ou sorrir, resta-lhe a lembrança do que vai ser e a pequena filha Esperança se põe a brincar”. É porque ser sal da terra é testemunhar alegremente a nossa esperança no Reino em construção e em devir. Ser luz do mundo é engajar-se no restabelecimento da justiça, no Espírito das Bem-aventuranças e na prática cotidiana do grande mandamento do AMOR que liberta e salva. Depois disso podemos ir à igreja no domingo para celebrar com os outros o nosso compromisso.

O sal que perde seu gosto é a recusa de testemunhar, e a lâmpada debaixo do alqueire é a recusa de se comprometer com o caminho da liberdade; é a recusa de dar os pés e as mãos ao grande mandamento do Amor... E isso não tem nada a ver com a prática religiosa na igreja... Esta é importante, certamente, mas secundária em relação ao testemunho e ao engajamento.

Terminando, gostaria simplesmente de citar o Papa Francisco que convida os cristãos para o compromisso: “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas , curar as feridas... E é necessário começar de baixo”.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

É amanhã, sábado, 08/02: reunião da Pastoral da Diversidade em São Paulo - todos estão convidados :-)



É amanhã, sábado: reunião da Pastoral da Diversidade em São Paulo! Todos estão convidados!

"O sal e a luz, dois elementos tão cotidianos, são os escolhidos por Jesus Cristo para caracterizar nossa missão. É essa missão que hoje somos chamados a compreender e a executar.

Assim como é preciso acertar o ponto do sal no alimento, ser o "sal da terra" significa darmos às nossas ações aquela discrição essencial. Significa agirmos, ao mesmo tempo, com doçura e com firmeza, com leveza e profundidade. E o convite para sermos "luz do mundo" não é um chamado para ofuscarmos os olhos dos outros. Somos convidados apenas a sermos um "pontinho de luz", suficiente para iluminar o caminho. Este ponto luminoso, que às vezes se vê ao longe, renova a esperança de quem o avista e dá a certeza de um trajeto seguro.

Neste sábado, 08 de Fevereiro, a Pastoral da Diversidade se reúne na Casa de Clara, às 18h00. O endereço é Rua Japurá, nº 234, na Bela Vista, Centro de São Paulo. O local é bem próximo às estações Sé e Anhangabaú do Metrô, e fica nas proximidades da Câmara dos Vereadores."

  
Se quiser mais informações, mande uma mensagem para a página deles no Facebook, aqui, ou pelo e-mail
pastoraldiversidadesp@yahoogrupos.com.br

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O Brasil depois daquele beijo


Nunca um beijo teve tanta repercussão nacional no Brasil como o do casal gay da novela Amor à Vida da TV Globo. O importante é que a repercussão foi notoriamente positiva, quase uma festa. Isso significa que a sociedade brasileira está amadurecendo sua aceitação dos diferentes? O Brasil é outro, depois da sexta-feira, 31 de janeiro de 2014 quando, às 23h08, dois homossexuais se beijaram diante de milhões de pessoas sem que ninguém se escandalizasse?

Li na internet, críticas feitas na Argentina de pessoas que criticam o Brasil pela “absurda repercussão” gerada por um simples beijo gay. E criticam este país de ser um país “socialmente atrasado”.

Equivocam-se esses nossos irmãos argentinos. Talvez o Brasil proceda mais lentamente que os outros em sua conquista das igualdades sociais, da defesa dos direitos humanos e da aceitação dos diferentes, mas tem uma qualidade: quando o faz, não volta atrás. Nos últimos 20 anos, apesar dos graves atrasos em alguns temas de direitos sociais, o Brasil avançou de maneira significativa.

Hoje, a maioria (54%) dos brasileiros aceita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e subiu de 40% para 54% o percentual dos que vêem com bons olhos que um casal de gays ou lésbicas adotem filhos, algo impensável há alguns anos.

Costuma-se dizer que a sociedade brasileira é mais atrasada, mais conservadora e mais de direita que o Congresso. O beijo da TV Globo e a simpatia gerada em todo o país por aquela cena revela que não é sempre assim. Hoje por exemplo, está parada no Congresso uma lei que considera crime a homofobia. Os ilustres progressistas congressistas não são capazes da aprovar, apesar de ter tido em 2012 a cifra horrível de 338 assassinatos homofóbicos, 27% a mais que em 2011, como lembrou neste diário Talita Bedinelli em sua preciosa matéria. Tudo isso porque o grupo de deputados evangélicos impede sua aprovação. Um grupo que é mais conservador e intransigente que o público religioso, já que não há dúvida que entre os milhões de telespectadores que viram com simpatia o tabu do beijo gay cair, uma boa parte (talvez uma maioria) era de evangélicos. E não parece que tenham se escandalizado. Nestes tempos de manifestações de rua, não teve nenhum pequeno grupo que tenha saído para protestar contra aquele beijo.

No Brasil -como de modo geral nos países latino-americanos- a aceitação dos diferentes e o respeito em relação a que cada um use com liberdade seu próprio corpo e possa viver sem ser discriminado por sua sexualidade avançou nos últimos tempos.

Todos os verdadeiramente democratas gostariam que esse processo fosse mais rápido, mas na realidade, hoje as coisas avançam em poucos anos mais que antes em séculos. Faz só 70 anos (não séculos) que, na hoje moderna e secularizada Espanha, os sacerdotes e bispos lançavam dos púlpitos das Igrejas maldições contra os católicos que frequentavam as praias e contra as mulheres que ousassem aparecer nelas em biquíni, uma peça que se dizia que era “objeto de pecado” e “inventada pelo demônio”.

As autoridades franquistas, obedientes à Igreja, proibiram o uso do biquíni, o que provocou cenas grotescas como a dos policias civis vigiando as praias para levar à delegacia as mulheres “indecentes” que seguiam o usando a peça. Conta-se que em uma manhã, um guarda se encontrou com uma turista em uma praia do sul e lhe perguntou se não sabia que estava proibido estar ali com um traje de banho de “duas peças”, isto é, em biquíni. A turista- devia ser britânica por seu humor- respondeu-lhe: “Então, senhor guarda, diga-me qual das duas peças eu devo tirar”. E isso foi praticamente ontem.

E os gays? Eles eram chamados depreciativamente de maricas, um apelativo que constituía a maior afronta, o maior insulto capaz de se fazer a um homem, que devia ser “quanto mais macho melhor”. Os diferentes eram mariquinhas e o ditador Franco odiava-os e os perseguia.

Que as coisas mudaram é inegável; que o Brasil após o beijo gay será mais aberto às diferenças também é muito possível. Ninguém, é verdade, vai pensar que a partir de hoje se acabarão as agressões e assassinatos de homossexuais, mas é muito possível que esse número, que envergonhava a esta sociedade, de 338 assassinatos homofóbicos possa diminuir a partir de agora. Se apenas um homossexual deixasse de ser assassinado, já valeria a pena aquele beijo da televisão.

Os analistas sociais estão convencidos de que o avanço que o Brasil fez nestes anos na batalha a favor do respeito às diferenças se deveu em boa parte a uma sociedade mais consciente e aberta que, junto dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, tem criticando duramente as tentativas das forças mais reacionárias contra os homossexuais.

Alguns gays até choraram de alegria e emoção vendo cair aquele tabu na TV Globo. Entendo-os. Esses milhões de diferentes sofreram já demasiadas humilhações e até o papa Francisco teve que sair em sua defesa. Chegou a hora de que possam viver em paz como os demais cidadãos.

O que seria positivo é que, já que a sociedade está se aproximando deles para compreendê-los e defendê-los, que eles também fizessem um esforço para reconhecer. Existe, por exemplo, uma expressão usada pelos gays que talvez devesse desaparecer de seu dicionário já que, ao ter mudado a sociedade, isso poderia carecer de interesse. Refiro-me ao orgulho gay. É verdade que isso era uma provocação aos que se achavam superiores por não ser gays. Hoje, que começamos a nos aceitar todos como iguais, esses orgulhos deveriam desaparecer para estendermos juntos, gays e não gays, a mesma bandeira da liberdade para viver a própria sexualidade.

Deveríamos nos sentir felizes e orgulhosos, todos, de ter avançado na aceitação dos que até ontem considerávamos diferentes de forma negativa. Sentir-se todos iguais respeitando nossas diferenças é a melhor conquista civilizatória. O Brasil está no caminho. E com um beijo. Na filosofia gnóstica, que esteve a ponto de se converter na primeira teologia do cristianismo, o beijo significava além de um símbolo de afeto sexual, a “transmissão de sabedoria”, algo que a Igreja não entendeu quando se escandalizou com os evangelhos gnósticos onde se lê que Jesús “beijava na boca” Maria Madalena. E isso faz mais de dois mil anos.

- Juan Arias

Fonte

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A reação conservadora


Impressionante como desde o beijo na novela os ataques homofóbicos aqui no blog e na página do Diversidade Católica no Facebook se multiplicaram. É a rebordosa conservadora... :-(

Como disse meu amigo Hugo Nogueira, um dos moderadores do nosso blog: "É o preço que se paga pela visibilidade, mas os benefícios são muito maiores, vejo cada vez mais demonstrações de afeto em público sem reações adversas. A internet acoberta os covardes."

Por outro lado, o Rodolfo Viana, também da equipe do blog, lembrou (e muito bem lembrado) que é o movimento típico de resistência que ocorre durante um processo de mudança de mentalidade, sobretudo quando a transformação começa a ganhar corpo e a se fazer sentir. O sistema resiste à mudança, e a reação é violenta. Como neste caso.

Acredito que a mudança da nossa sociedade e a gradual substituição não só da homofobia, mas de toda misoginia e da nossa dificuldade de lidar com tudo o que difere do padrão patriarcal hegemônico, são inevitáveis. Mas o processo que atravessamos não é linear, nem homogêneo; ao contrário, é intermitente e sinuoso, cheio de idas e vindas - e é aí que mora o perigo maior, para o qual precisamos nos manter atentos, mais do que nunca.

Nosso amigo Teleny comentou muito bem em seu blog (aqui):
As redes sociais têm a sua dinâmica própria que em parte demonstra a evolução da mentalidade humana. Tirando uma margem que a tela de um computador proporciona, isto é, aquela diferença entre as coisas que se tem a coragem de escrever, mas nunca se diria na cara do outro, em sua grande parte, a discussão tão acalorada como essa, mostrou o crescimento vertiginoso de posicionamentos radicais. O que mais chamou a minha atenção foi o fato de observar isso principalmente entre os jovens. Eu sei que a juventude é radical (OK, digamos: idealista) por natureza e que a moderação (no bom e no mau sentido) ocorre com o tempo, através de choques com a realidade, de decepções, de cansaço e de comodismo, bem como através de estudo e de um amadurecimento em geral. 
A humanidade apresenta a mesma dinâmica de forma ainda mais clara. É uma interminável conquista, é a descoberta, é o avanço constante. Sem dúvida, como em cada caminhada, houve tropeços, capazes até de travar por algum tempo o natural progresso da civilização. Tais tropeços tornaram-se, no entanto, uma fonte de sabedoria e enriqueceram a consciência coletiva do gênero humano, passando de uma geração para outra. E é, justamente, neste fluxo de gerações que a gente deposita a expectativa dos tempos melhores. Repete-se, de certa forma, a experiência do povo de Israel que, no final de sua longa peregrinação rumo à terra prometida, constatou que era preciso que morresse aquela geração e surgisse a outra, para obter a vitória definitiva (cf. Jos 5, 6-7). É tão natural a suposição - quase automática - de que cada nova geração supere em suas qualidades a geração anterior.
A impressão que tenho, após a leitura das berrantes declarações homofóbicas daqueles que representam a Igreja Católica Apostólica Furiosa, é que as coisas irão piorar. Essas pessoas, ainda que confusas em sua argumentação e apresentando as falhas graves na compreensão e no uso da língua portuguesa, estão profundamente convencidas quanto à razão exclusiva e absoluta daqueles princípios que nós tão bem conhecemos e que tanto mal já nos fizeram. (...) É como a "Juventude Hitlerista" (Hitlerjugend). Esta analogia pode parecer drástica demais, porém, trata-se de uma lógica semelhante (...). A crueldade das declarações verbais anuncia uma nova, maior onda da homofobia, com a base no cego fundamentalismo cristão. Lamentavelmente...

Um exemplo é a notícia da gangue de jovens de classe média que se lançaram às ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro - não nos rincões longínquos de uma "periferia" qualquer, mas no coração da sociedade dita "civilizada" - com o propósito declarado de caçar "gays, 'cracudos' e assaltantes" e fazer justiça com as próprias mãos. "Limpar" a sociedade do que eles entendem ser a "escória" que a polui - e, nisso, seguem a lógica que legitima que se agridam gays, surrem e acorrentem ladrões a postes (este caso aqui, aliás, se deu no mesmo bairro e é possível que esteja ligado à ação da mesma gangue), assassinem travestis. No relato (assustador) de um rapaz que foi atacado pelo bando, compartilhado pelo amigo Sergio Viula em seu blog (leia aqui), podemos detectar as contradições inerentes a qualquer transformação da sociedade quando a vítima critica os garotos negros que fazem parte do grupo por perseguirem outra minoria, mas parece dar a entender que se fosse mesmo pra perseguir "assaltantes e cracudos", tudo bem. A lógica da violência e da agressão ao Outro, àquele que percebo como diferente de Mim e, por isso mesmo, potencial ameaça à minha integridade, se insinua e contamina TODOS nós. (Daí ser inaceitável, em qualquer circunstância, partir para o linchamento e o fazer justiça com as próprias mãos - inclusive dos nossos agressores homofóbicos. A propósito, leia isto aqui.)

Outro exemplo dos paradoxos do processo, voltando à novela: o beijo gay ressuscitou o auê em torno da suposta ameaça que os LGBTs representamos à "família tradicional" - levando um pastor/deputado estadual baiano a anunciar que vai entrar com uma ação na Justiça contra a Globo. O problema dos que defendem a família tradicional é que, ao se fixar em um modelo único, eles têm de atacar todas as outras, e acabam sendo muito mais nocivos à dignidade da família em todas as suas formas e da pessoa humana em geral, pois deslegitimam os demais formatos familiares - que nem minoria mais são, aliás. Será que todo esse rigor é mesmo coerente com os valores do Evangelho?

Toda transformação, por mais inexorável que seja, é processo - e, no seu decorrer, retrocessos a curto e médio prazos acontecem. É o dragão ferido de morte que estrebucha e, em suas convulsões, tem um enorme potencial de destruição. Esta é justamente a hora que requer mais atenção - porque, à medida que ganhamos espaço e abertura, tendemos a relaxar, e é aí que os ataques mais covardes e mais virulentos podem nos pegar desprevenidos. Façamos a nossa parte, amigos, e zelemos uns pelos outros - sempre com amor e atenção para não cedermos à tentação da mesma lógica da exclusão e da violência contra o Outro que tanto nos empenhamos em extirpar. 

Com amor, 


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Qual é a graça de ser gay?


Fantástico o texto de Fabricio Longo publicado ontem no Brasil Post (aqui), compartilhado no Facebook pelo sempre oportuno Markos Oliveira:

"Com toda a dor e com toda a delícia, ser gay nos transforma em agentes da mudança. Nos faz contribuir ativamente com o desenrolar da História e o progresso social, o que no fim das contas é um privilégio."

Mas minha parte preferida foi, disparado, "A família, quando vem, é uma escolha". Porque fala da diferença entre caminhar pela vida no piloto automático, seguindo os rumos predefinidos do modelo pronto em que todos nascemos inseridos, e a dádiva inestimável que é você ter de aprender a ter consciência do seu desejo, e segui-lo de peito aberto.

Aprendi lendo "A História sem Fim" (esqueça o filme, que tentou o impossível - adaptá-lo para a tela. É livro pra ler e reler pelo resto da vida), que o caminho que nos conduz à nossa Verdadeira Vontade "é o mais perigoso de todos os caminhos, (...) Exige a maior autenticidade e atenção, porque em nenhum outro é tão fácil perder-se para sempre" (leia a citação completa aqui). Essa experiência de realização da Verdade de cada um será libertadora sempre, qualquer que seja a sua orientação sexual, identidade de gênero ou qualquer outra identidade.

Leia o texto inteiro do Fabricio aqui. Vale a pena, é primoroso.

Com amor,

Cris

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Treze características da pedagogia emancipatória de Jesus de Nazaré



Parte de um artigo de Frei Gilvander Luís Moreira, padre da Ordem dos carmelitas, professor de Teologia Bíblica, assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI, do Serviço de Animação Bíblica - SAB e da Via Campesina em Minas Gerais. Para ler o texto na íntegra, clique aqui.

Jesus não nos salva automaticamente, mas testemunha um jeito de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador e salvador. Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz bem prestarmos atenção no processo pedagógico efetivado por Jesus. Trata-se de uma Pedagogia emancipatória com muitas características, entre as quais, destacamos treze.

5.1) A partir da periferia. O Evangelho de Lucas interpreta a vida, ações e ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, em Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de sumo sacerdote, nem do poder.

5.2) Prioriza a formação. Nessa grande viagem, subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas injustas e corruptas. Assim, o jovem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o maior embate.

5.3) Não foge do combate. O Evangelho de Lucas diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro, caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).

5.4) Sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.

5.5) Anda na contramão. Seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano existente em nós.

5.6) Sabe a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos discípulos que fossem despojados e desarmados para o campo de missão. Assim deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se um/a irmã/ão entre as/os irmã/ãos para que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para a resistência. Por isso “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38).

Durante a evolução da missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicao Xucuru, Padre Gabriel, padre Henrique etc.

5.7) Resiste, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.

5.8) Não trai sua origem. Jesus, o jovem de Nazaré, se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1). Segundo Lucas, Jesus inicia sua missão pública em Nazaré, sua terra de origem, em uma sinagoga, onde aprendeu muita coisa libertadora. Jesus se orgulhava de ser jovem camponês. Valorizava a cultura camponesa. Percebia que a cidade, muitas vezes, mata os profetas, mata os jovens, como o jovem de Naim(Lc 7,11-17).

5.9) Pedagogia da partilha de pães, que liberta e emancipa. A fome era um problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo. É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original do jovem galileu. Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de pão.

A beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de pães e não multiplicação de pães - está no processo seguido: uma série de passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo em várias características:

5.10.1) Cidade, lugar de violência? O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades, ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.” Conta-se que alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador concluiu que era melhor descansar.

5.10.2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.

5.10.3) Nunca perder a capacidade de se comover e de se indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro, só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome ou da má alimentação.

5.10.4) Postura crítica. Jesus não sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto. O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt 14,15).Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.

5.10.5) Postura criativa. O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André (em grego, andros = humano), anima o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10). Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.

5.10.6) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinquenta, ...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão resolvidos, de forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir para lutas coletivas.

5.10.7) Gratidão. “Jesus agradeceu a Deus...” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar cantando com Manelão - cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários, tal como: É madrugada, levanta povo! / A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo! / O povo agora é Senhor da história, / Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!

5.10.8) Não ser paternalista. Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da maioria.

5.10.9) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica, com aquecimento e escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar reaproveitar, recusar, recuperar e repensar.

5.11) Participar da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42). Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e Maria (Lc 10,38-42). Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como uma oposição entre vida ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida contemplativa em detrimento da vida ativa, mas essa interpretação não tem consistência exegético-bíblica. Não há nenhuma referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.

Primeiro, nas duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc 10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...” (Lc 10,41-42).

Segundo, precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e do evangelho de Lucas (anos 80/90 do 1º século). As mulheres eram - não todas, é óbvio - propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá, a Lei. Encontra-se escrito no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!” O machismo e o patriarcalismo campeavam.

Ao sentar-se aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no sentido pleno. “Sentar-se aos pés” era a atitude dos discípulos dos rabis, os mestres.

Em Lc 10,38-42, Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus ouvindo-o. Somente os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se tornarem discípulos. Maria ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga. Assim Maria se torna discípula.

Um judeu entrar em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade. Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim, Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para Jerusalém.

5.12) Ser simples como as pombas e esperto como as serpentes. Após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas (Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.

Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma discreta, clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão.

Com os “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas. “Bendito o que vem como rei...” Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum.

Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam.

Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”

Dia 10 de abril de 1996, milhares de trabalhadores rurais do MST, em marcha, estavam chegando a 22 capitais do Brasil. Na chegada a Belo Horizonte, após marcharem de Governador Valadares à capital mineira, 500 Sem Terra foram bloqueados pela tropa de choque da polícia militar de Minas Gerais. Vinte Sem Terra foram presos; outros vinte, hospitalizados. O governador de Minas havia dado ordens para proibir a entrada do MST em Belo Horizonte, porque três dias após, dia 13 de abril de 1996, a Fiat faria o lançamento de um novo modelo de automóvel, o Fiat Pálio, na Av. Afonso Pena, em Belo Horizonte. 700 jornalistas internacionais estariam presentes. Os gritos do MST por reforma agrária poderiam aparecer na imprensa internacional, o que seria mosca na sopa. Mesmo reprimidos, conseguimos entrar em Belo Horizonte no dia seguinte contando com o apoio do povo de BH. Um Sem Terra disse: “Quando os oprimidos hebreus tentaram fugir da opressão do imperialismo egípcio tiveram que enfrentar o Mar Vermelho. Na chegada de Belo Horizonte, um Mar de policiais queria fazer um Mar Vermelho com nosso sangue. Feriram-nos, mas conseguimos entrar na capital. Assim foi com Jesus de Nazaré também.”

5.13) Intransigência diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo 2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma opressão.

Enfim, jovens como Jesus de Nazaré, exercitemos pedagogias que libertam e emancipam.

Fonte

domingo, 2 de fevereiro de 2014

"Amor à vida": um beijo pelo sonho

O beijo de Félix e Niko na novela da Globo (veja aqui; bastidores da cena aqui) e a cena final de reconciliação do pai homofóbico e seu filho gay, são uma grande vitória. Como mostrou o Jornal Nacional sábado à noite (assista aqui), e como postou nosso querido amigo Murilo Araújo no Facebook, esse beijo foi pedido, aguardado e comemorado pelas pessoas de norte a sul no Brasil. É um grande passo. Demos graças a Deus.

"Estou muito, muito feliz. Alguém comentou no twitter agora há pouco, e acho pertinente a reflexão: há 16 anos, um casal de lésbicas estava sendo explodido em Torre de Babel, por rejeição do público. Hoje, tivemos um beijo entre dois homens, na cena final... e um beijo desejado, esperado, comemorado com gritos aqui em casa e em toda a vizinhança. Para além do beijo em si, acho que Amor à Vida conseguiu prestar um bom serviço com a história que foi contada durante estas últimas semanas, cheia de doçura, carinho e sinceridade - com direito até à presença de um pai homofóbico, que se mostrou um grande babaca derrotado (mas que, no fim, conseguiu entender e acolher os gestos de amor do filho). Félix e Niko eram mais um casal, como todos os outros da novela (e até mais legal do que os outros da novela). Uma afetividade possível, mostrada de um jeito que nunca vimos antes na teledramaturgia brasileira.

Ainda há muito, muito a conquistar. Ainda precisamos conquistar o direito de beijar nas ruas, nas praças, andar de mãos dadas... Ainda precisamos conquistar o direito a ser quem quiser, o que quiser, e o direito de não ser nada se não quiser também... mas digo sempre que toda violência começa na invisibilidade, e se a gente conseguir dar um passo em direção à mudança disso, já é motivo pra comemorar. Ainda que numa emissora conservadora como a Globo, que não vai assumir uma luta real pelo direito das pessoas LGBT - essa parte, fica por nossa conta." (Murilo Araújo, no Facebook)


"Ainda vivemos num país homofóbico, infelizmente. Mas eu seria injusto em não afirmar que muita coisa mudou. Há oito anos, quando eu me assumi pra minha mãe, eu nunca imaginaria ver na novela das nove o que eu vi em “Amor à Vida”. O afeto, o carinho, os dramas de um casal gay de uma forma tão nua, tão crua. Um contato físico mais próximo, não aquela coisa fria e forçada como em “América” ou “Paraíso Tropical”, por exemplo. Pela primeira vez, nós fomos os protagonistas. Eu vi Félix e Niko como todo casal é, com os seus altos e baixos, com os seus sonhos anotados na porta da geladeira. O beijo foi só um pedaço disso tudo.

A cena final [assista aqui], quando Félix, apesar de todas as bengaladas, xingamentos e patadas, ainda demonstrava vontade em fazer parte da vida do pai, é o que merece a minha ovação. Enfim, foi aceito. Não porque o orgulho de César estava ferido, mas porque ele percebeu que, independente da orientação afetiva do filho, ele estava lá por ele. Assim como nós, gays, estamos aqui pelo Brasil, mesmo com todo o desprezo que ainda somos tratados." (André Pacheco, no Vestiário, publicou aqui)

"Quem fez esse beijo existir não foram os gays, lésbicas, mas, sim, o povo brasileiro, que manifestou torcida, mandou cartas para a Globo. Isso é uma emoção." (Carlos Tufvesson, militante dos direitos humanos e responsável pela Coordenador Especial de Diversidade Sexual do Rio, aqui)

"É um pequeno passo na dramaturgia, mas um grande passo na sociedade." (Mateus Solano, intérprete de Félix, aqui)


E, para assinalar a importância desse beijo com um dos muitos relatos de casos reais que já vimos desde ontem, reproduzimos abaixo esse relato emocionante, publicado no Facebook pela página Cartazes & Tirinhas LGBT, a partir da coluna da Majú Giorgi no iG (vale a leitura, aqui):

(Clique na imagem para ampliar)

Porque tornar-se visível, amigos, é o princípio da libertação.

(Leia mais sobre a repercussão do beijo e a nota divulgada pela Globo aqui)

Fé simples


A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 2,22-44 que corresponde a Apresentação do Senhor, ciclo A do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto.


O relato do nascimento de Jesus é desconcertante. Segundo Lucas, Jesus nasce numa aldeia onde não há lugar para acolhê-lo. Os pastores tiveram que procurá-lo por toda Belém até que o encontraram num local afastado, deitado numa manjedoura, sem outras testemunhas além de seus pais.

Ao que parece, Lucas sente necessidade de construir um segundo relato em que essa criança seja retirada do anonimato para ser apresentada publicamente. Que lugar mais apropriado que o Templo de Jerusalém para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus ao seu povo?

Mas, de novo, o relato de Lucas vai ser desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com a criança, não saem ao seu encontro os sumos sacerdotes nem os outros líderes religiosos. Dentro de alguns anos, eles serão aqueles que o entregarão para ser crucificado. Jesus não encontra acolhimento nessa religião segura de si mesma e esquecida do sofrimento dos pobres.

Tampouco vêm a recebê-lo os mestres da Lei que pregam as suas “tradições humanas” nos átrios daquele Templo. Anos mais tarde, rejeitam Jesus por curar doentes rompendo a lei do sábado. Jesus não encontra acolhimento nas doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais sã.

Quem acolhe Jesus e o reconhece como Enviado de Deus são dois anciãos de fé simples e coração aberto que viveram ao longo da sua vida esperando a salvação de Deus. Os seus nomes parecem sugerir que são personagens simbólicos. O ancião chama-se Simão (“O Senhor escutou”), a anciã chama-se Ana (“Oferenda”). Eles representam tantas pessoas de fé simples que, em todos os povos de todos os tempos, vivem com a sua confiança posta em Deus.

Os dois pertencem aos ambientes mais sãos de Israel. São conhecidos como o “Grupo dos Pobres de Javé”. São pessoas que não têm nada, só a sua fé em Deus. Não pensam na sua fortuna nem no seu bem-estar. Só esperam de Deus a “consolação” que necessita o seu povo, a “libertação” que seguem procurando geração após geração, a “luz” que ilumina as trevas em que vivem os povos da terra. Agora sentem que as suas esperanças se cumprem em Jesus.

Esta fé simples que espera de Deus a salvação definitiva é a fé da maioria. Uma fé pouco cultivada, que se concretiza quase sempre em orações lentas e distraídas, que se formula em expressões pouco ortodoxas, que se desperta sobretudo em momentos difíceis. Uma fé que Deus não tem nenhum problema em entender e acolher.

Fonte
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