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quarta-feira, 30 de julho de 2014

"Temos que ter paciência, mas o fato de que ele abriu essas portas mostra que a Igreja está querendo realmente ser mais positiva"


Arcebispo emérito de São Paulo, prestes a completar 80 anos, D. Claudio Hummes foi entrevistado no domingo passado, 27/07, pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Fez uma avaliação positiva do pontificado de Francisco, com quem troca cartas e se reúne quando viaja a Roma, falou sobre temas polêmicos e disse confiar que o Papa fará reformas necessárias na Igreja, pedindo paciência.

Para ler a entrevista na íntegra, clique aqui. A seguir, alguns trechos que selecionamos:


Que avaliação o senhor faz desses 16 meses de pontificado de Francisco?

Muito positivamente. Todos sabemos que ele foi um grande presente para a Igreja. É de uma vitalidade, de uma capacidade de sentir, de viver a realidade, de se aproximar das pessoas e de entrar na vida delas. Ele tem um carisma extraordinário e um grande amor aos pobres. Para ele, é fundamental que a Igreja consiga ir às periferias, ir até os que estão fora de todo o grande processo humano, que progride. Na escolha do nome, ele afirma isso, porque São Francisco de Assis é o homem dos pobres, da paz e da ecologia. (...)

O que há em comum, além do nome, entre Francisco de Assis e Francisco de Roma?

Há muita coisa em comum. Em Buenos Aires, Bergoglio estava presente nas favelas e tinha um trabalho muito grande, de muitos anos ali. Sempre digo que o Papa encontrou sua identidade. Não que ele começasse a partir daí a ser Francisco. Ele já era Francisco antes e aquilo deu um clique. O seu passado era isso, embora fosse jesuíta. É um homem profundamente dedicado aos pobres.

Bergoglio, como São Francisco de Assis, tem a missão de reparar uma "Igreja que está em ruínas"?

Claro. Ele nunca sublinhou isso, mas ele conhece essa frase e, certamente, isso o desafia muito.

Como será essa reconstrução?

Ele diz que a Igreja precisa de reforma. E essa é uma palavra muito forte na Igreja. Por causa da Reforma Protestante, acabou se tornando uma palavra de muito peso. Mas ele usa essa palavra, e diz que a Igreja precisa de reformas não apenas das estruturas institucionais, mas no que há de humanamente ultrapassado nela e nos novos desafios. Ele diz que essas reformas foram pedidas pelos cardeais, naqueles três dias de reuniões antes do conclave. Muitas coisas foram sugeridas. O Papa já está fazendo essas reformas, a começar pelo banco do Vaticano e pela Cúria.

Quais outras reformas pediram?

Que houvesse mais colegialidade, que os bispos fossem mais convocados a ter voz no governo universal da Igreja. O concílio já tinha dito isso, só que, depois, aos poucos, foi-se centralizando tudo em Roma. Muitas coisas podem ser resolvidas pelos episcopados locais, pelos tribunais eclesiásticos locais. Não precisa ser tudo atribuição da Cúria Romana, que vai centralizando, e a gente sabe que essas coisas são automáticas. Para você controlar tudo, você centraliza tudo. O Papa quer uma Igreja mais missionária, capaz de derrubar muros e construir pontes. Ele diz que nós fizemos muralhas e as pessoas não conseguem mais entrar na Igreja. Não são apenas leis que devem ser reformadas, mas a própria maneira de ser da Igreja e de fazer evangelização.

Existe a possibilidade de mudanças em questões como celibato, divórcio, homossexualidade e ordenação de mulheres?


Algumas coisas ele já indicou claramente que não tem como mexer, como o aborto, porque se trata de eliminação de vidas humanas. Sobre o celibato dos padres, já disse que não é um dogma e, portanto, a Igreja pode repensar. Mas isso ainda não entrou em discussão. O que está agora em pauta é a questão da família, e aí entram temas como os casais de segunda união, essa problemática dos tipos de família e aquilo que as leis começam a chamar de família. E também como dar apoio às famílias para que elas possam viver o evangelho dentro de uma sociedade secularizada. Foi enviado um grande questionário, e aí está uma outra novidade dele, porque ele insistiu que esse questionário — que já foi respondido — também fosse entregue aos leigos. Em outubro, terá o sínodo extraordinário que vai tratar dessa questão. e, em outubro do ano que vem, o ordinário.

Um pedido recorrente do Papa é para que rezem por ele. O senhor acha que ele vai encontrar resistências para fazer as reformas?

Certamente, perplexidade. Não diria resistência explícita, pública, talvez um pouco de resistências por baixo. Isso é humano. Mas o Papa diz que também quer ouvir quem não concorda, porque isso nos faz pensar, ter mais luz e equilíbrio nas soluções. (...)

Algo mudou na Igreja depois das declarações de Francisco sobre os homossexuais? Se um casal homoafetivo procurar uma paróquia, poderá receber os sacramentos ou ser padrinho em um batizado, por exemplo?

Não sei como estão agindo na realidade prática. O Papa disse uma palavra muito importante: "Se um homossexual busca Deus, quem sou eu para julgá-lo?" A pessoa tem de ser respeitada. Se ela tem uma orientação homossexual, o que isso significa na vida dela? Ela, na verdade, tem de viver dignamente a sua vida. Nessa questão do batizado, não sei como os bispos estão aplicando isso, porque, em si, não tem nada a ver com isso, a não ser que fosse um pecador público, digamos assim, que fosse uma pessoa complicada nesse sentido. O padrinho é aquele que deve ajudar a educar religiosamente, e uma pessoa que tem uma orientação sexual poder ser um santo. Se ele vive o evangelho, dentro das suas condições, ele pode ser um santo. Em tese, não tem nada contrário.

O Papa dá declarações de acolhimento, mas as normas da Igreja são excludentes. Como o senhor vê a questão?

Claro, a gente tem de ir devagar. Não se faz tudo de um dia para o outro. Por isso que o Papa apela: "Temos de pensar juntos, temos de discutir juntos" para chegar a ter, de fato, uma orientação que vá ao encontro das pessoas e daquilo que Jesus Cristo nos ensina. A gente não deve ter pressa. É a Igreja quem tem que indicar o caminho e não a pessoa individual querer fazer reformas. Então, temos que ter paciência, mas o fato de que ele abriu essas portas mostra que a Igreja está querendo realmente ser mais positiva nessas questões.

Se Jesus vivesse hoje, ele seria a favor do casamento gay?

Não sei, não faço nenhuma hipótese sobre isso. Quem deve responder isso é a Igreja em seu conjunto. Temos que cuidar para não ficar levantando questões individualmente, porque isso acaba criando mais dificuldades para a gente chegar numa conclusão que seja válida. Acho que a gente tem que se reunir, ouvir as pessoas, os próprios em jogo, os bispos. É a Igreja que deve indicar os caminhos, e deve haver caminho para todos. (...)

A Igreja Católica vem perdendo, em média, um ponto percentual de fieis ao ano no Brasil. O que explica esse fenômeno e como estancá-lo?
Há muitas razões. O povo que migra da Igreja Católica para as pentecostais, protestantes, evangélicas tem as suas razões. É preciso ouvir e analisar o porquê. Acho que tem a ver com a busca de soluções de problemas graves na vida, pois têm pessoas que sofrem com a falta de assistência em saúde, por exemplo. Então, elas vão buscar curas por bênçãos, exorcismos, porque há quem diga que a doença seja fruto do demônio. O povo que não tem recurso busca em qualquer lugar o mínimo de esperança. Poder ser também que tenham ficado desiludidos com a falta de atenção e de acolhimento dentro da Igreja Católica. Nós nos perguntamos se não estamos muito distantes das pessoas. Certamente, um dos motivos é que a Igreja ficou esperando muito as pessoas virem até ela e não foi ao encontro das pessoas.

domingo, 25 de maio de 2014

Comunicação ao serviço de uma autêntica cultura do encontro


Compartilhamos aqui a mensagem do Papa Francisco para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 1º de junho de 2014. Os grifos são nossos.

Queridos irmãos e irmãs,

Hoje vivemos num mundo que está a tornar-se cada vez menor, parecendo, por isso mesmo, que deveria ser mais fácil fazer-se próximo uns dos outros. Os progressos dos transportes e das tecnologias de comunicação deixam-nos mais próximos, interligando-nos sempre mais, e a globalização faz-nos mais interdependentes. Todavia, dentro da humanidade, permanecem divisões, e às vezes muito acentuadas. A nível global, vemos a distância escandalosa que existe entre o luxo dos mais ricos e a miséria dos mais pobres. Frequentemente, basta passar pelas ruas duma cidade para ver o contraste entre os que vivem nas calçadas e as luzes brilhantes das lojas. Estamos já tão habituados a tudo isso que nem nos impressiona. O mundo sofre de múltiplas formas de exclusão, marginalização e pobreza, como também de conflitos para os quais convergem causas económicas, políticas, ideológicas e até mesmo, infelizmente, religiosas.

Neste mundo, os meios de comunicação em massa podem ajudar a sentir-nos mais próximo uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Uma boa comunicação ajuda-nos a estar mais perto e a conhecer-nos melhor entre nós, a ser mais unidos. Os muros que nos dividem só podem ser superados, se estivermos prontos a ouvir e a aprender uns dos outros. Precisamos de harmonizar as diferenças por meio de formas de diálogo, que nos permitam crescer na compreensão e no respeito. A cultura do encontro requer que estejamos dispostos não só a dar, mas também a receber de outros. Os meios de comunicação podem ajudar-nos nisso, especialmente nos nossos dias em que as redes da comunicação humana atingiram progressos sem precedentes. Particularmente a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus.

No entanto, existem aspectos problemáticos: a velocidade da informação supera a nossa capacidade de reflexão e discernimento, e não permite uma expressão equilibrada e correcta de si mesmo. A variedade das opiniões expressas pode ser sentida como riqueza, mas é possível também fechar-se numa esfera de informações que correspondem apenas às nossas expectativas e às nossas ideias, ou mesmo a determinados interesses políticos e económicos. O ambiente de comunicação pode ajudar-nos a crescer ou, pelo contrário, desorientar-nos. O desejo de conexão digital pode acabar por nos isolar do nosso próximo, de quem está mais perto de nós. Sem esquecer que a pessoa que, pelas mais diversas razões, não tem acesso aos meios de comunicação social corre o risco de ser excluído.

Estes limites são reais, mas não justificam uma rejeição dos meios de comunicação; antes, recordam-nos que, em última análise, a comunicação é uma conquista mais humana que tecnológica. Portanto haverá alguma coisa, no ambiente digital, que nos ajuda a crescer em humanidade e na compreensão recíproca? Devemos, por exemplo, recuperar um certo sentido de pausa e calma. Isto requer tempo e capacidade de fazer silêncio para escutar. Temos necessidade também de ser pacientes, se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: uma pessoa expressa-se plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida. Se estamos verdadeiramente desejosos de escutar os outros, então aprenderemos a ver o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como se manifesta nas várias culturas e tradições. Entretanto saberemos apreciar melhor também os grandes valores inspirados pelo Cristianismo, como, por exemplo, a visão do ser humano como pessoa, o matrimónio e a família, a distinção entre esfera religiosa e esfera política, os princípios de solidariedade e subsidiariedade, entre outros.

Então, como pode a comunicação estar ao serviço de uma autêntica cultura do encontro? E – para nós, discípulos do Senhor – que significa, segundo o Evangelho, encontrar uma pessoa? Como é possível, apesar de todas as nossas limitações e pecados, ser verdadeiramente próximo aos outros? Estas perguntas resumem-se naquela que, um dia, um escriba – isto é, um comunicador – pôs a Jesus: «E quem é o meu próximo?» (Lc 10, 29 ). Esta pergunta ajuda-nos a compreender a comunicação em termos de proximidade. Poderíamos traduzi-la assim: Como se manifesta a «proximidade» no uso dos meios de comunicação e no novo ambiente criado pelas tecnologias digitais? Encontro resposta na parábola do bom samaritano, que é também uma parábola do comunicador. Na realidade, quem comunica faz-se próximo. E o bom samaritano não só se faz próximo, mas cuida do homem que encontra quase morto ao lado da estrada. Jesus inverte a perspectiva: não se trata de reconhecer o outro como um meu semelhante, mas da minha capacidade para me fazer semelhante ao outro. Por isso, comunicar significa tomar consciência de que somos humanos, filhos de Deus. Apraz-me definir este poder da comunicação como «proximidade».

Quando a comunicação tem como fim predominante induzir ao consumo ou à manipulação das pessoas, encontramo-nos perante uma agressão violenta como a que sofreu o homem espancado pelos assaltantes e abandonado na estrada, como lemos na parábola. Naquele homem, o levita e o sacerdote não vêem um seu próximo, mas um estranho de quem era melhor manter a distância. Naquele tempo, eram condicionados pelas regras da pureza ritual. Hoje, corremos o risco de que alguns meios de comunicação nos condicionem até ao ponto de fazer-nos ignorar o nosso próximo real.

Não basta circular pelas «estradas» digitais, isto é, simplesmente estar conectados: é necessário que a conexão seja acompanhada pelo encontro verdadeiro. Não podemos viver sozinhos, fechados em nós mesmos. Precisamos de amar e ser amados. Precisamos de ternura. Não são as estratégias comunicativas que garantem a beleza, a bondade e a verdade da comunicação. O próprio mundo dos meios de comunicação não pode alhear-se da solicitude pela humanidade, chamado como é a exprimir ternura. A rede digital pode ser um lugar rico de humanidade: não uma rede de fios, mas de pessoas humanas. A neutralidade dos meios de comunicação é só aparente: só pode constituir um ponto de referimento quem comunica colocando-se a si mesmo em jogo. O envolvimento pessoal é a própria raiz da fiabilidade dum comunicador. É por isso mesmo que o testemunho cristão pode, graças à rede, alcançar as periferias existenciais.

Tenho-o repetido já diversas vezes: entre uma Igreja acidentada que sai pela estrada e uma Igreja doente de auto-referencialidade, não hesito em preferir a primeira. E quando falo de estrada penso nas estradas do mundo onde as pessoas vivem: é lá que as podemos, efectiva e afectivamente, alcançar. Entre estas estradas estão também as digitais, congestionadas de humanidade, muitas vezes ferida: homens e mulheres que procuram uma salvação ou uma esperança. Também graças à rede, pode a mensagem cristã viajar «até aos confins do mundo» (Atos 1, 8). Abrir as portas das igrejas significa também abri-las no ambiente digital, seja para que as pessoas entrem, independentemente da condição de vida em que se encontrem, seja para que o Evangelho possa cruzar o limiar do templo e sair ao encontro de todos. Somos chamados a testemunhar uma Igreja que seja casa de todos. Seremos nós capazes de comunicar o rosto duma Igreja assim? A comunicação concorre para dar forma à vocação missionária de toda a Igreja, e as redes sociais são, hoje, um dos lugares onde viver esta vocação de redescobrir a beleza da fé, a beleza do encontro com Cristo. Inclusive no contexto da comunicação, é precisa uma Igreja que consiga levar calor, inflamar o coração.

O testemunho cristão não se faz com o bombardeio de mensagens religiosas, mas com a vontade de se doar aos outros «através da disponibilidade para se deixar envolver, pacientemente e com respeito, nas suas questões e nas suas dúvidas, no caminho de busca da verdade e do sentido da existência humana (Bento XVI, Mensagem para o XLVII Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2013). Pensemos no episódio dos discípulos de Emaús. É preciso saber-se inserir no diálogo com os homens e mulheres de hoje, para compreender os seus anseios, dúvidas, esperanças, e oferecer-lhes o Evangelho, isto é, Jesus Cristo, Deus feito homem, que morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado e da morte. O desafio requer profundidade, atenção à vida, sensibilidade espiritual. Dialogar significa estar convencido de que o outro tem algo de bom para dizer, dar espaço ao seu ponto de vista, às suas propostas. Dialogar não significa renunciar às próprias ideias e tradições, mas à pretensão de que sejam únicas e absolutas.

Possa servir-nos de guia o ícone do bom samaritano, que liga as feridas do homem espancado, deitando nelas azeite e vinho. A nossa comunicação seja azeite perfumado pela dor e vinho bom pela alegria. A nossa luminosidade não derive de truques ou efeitos especiais, mas de nos fazermos próximo, com amor, com ternura, de quem encontramos ferido pelo caminho. Não tenhais medo de vos fazerdes cidadãos do ambiente digital. É importante a atenção e a presença da Igreja no mundo da comunicação, para dialogar com o homem de hoje e levá-lo ao encontro com Cristo: uma Igreja companheira de estrada sabe pôr-se a caminho com todos. Neste contexto, a revolução nos meios de comunicação e de informação são um grande e apaixonante desafio que requer energias frescas e uma imaginação nova para transmitir aos outros a beleza de Deus.

Vaticano, 24 de Janeiro – Memória de São Francisco de Sales – do ano 2014.

Franciscus
Fonte

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Secretário geral da CNBB diz que uniões entre pessoas do mesmo sexo precisam de amparo legal


Desde que assumiu a liderança da Igreja Católica, o Papa Francisco vem tocando no assunto com cautela, mas tem assinalado uma disposição da instituição em aceitar os fiéis gays. Em um movimento inédito de abertura, o Pontífice disse, logo após sua passagem pelo Brasil, em julho do ano passado, que os homossexuais não devem ser marginalizados: “Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?”. Em entrevista ao GLOBO, o bispo auxiliar de Brasília e secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner, reitera a afirmação do Papa: “pessoas do mesmo sexo que decidiram viver juntas necessitam de um amparo legal na sociedade”.

A declaração pode ser interpretada como uma mudança de tom da CNBB. Há cerca de um ano, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução determinando que os cartórios brasileiros deveriam celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a CNBB se posicionou contra a medida, que vinha a reboque de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2011.

O GLOBO: Recentemente, o Papa Francisco disse: “Quem sou eu para julgar um homossexual que procura Deus?”. Hoje, a Igreja Católica está aberta a aceitar seus fiéis homossexuais?
Dom Leonardo Steiner: Pode-se dizer que o Papa faz eco ao que o Catecismo da Igreja Católica diz a respeito das pessoas homossexuais: “Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta”. Entende-se que acolher com respeito, compaixão e delicadeza significa caminhar e estar junto da pessoa homossexual e ajudá-la a compreender, aprofundar e orientar a sua condição de filho, filha de Deus.

É importante que a Igreja Católica não marginalize os homossexuais?

A acolhida e o caminhar juntos são necessários, para se refletir sobre o que condiz ou não com a realidade vivida pelas pessoas homossexuais, e o que, de fato, lhes é de direito, para o seu próprio bem e o da sociedade.

O Papa também quer estudar as uniões homossexuais para entender por que alguns países optaram por sua legalização. Isso representa o início de um diálogo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo?

É importante compreender as uniões de pessoas do mesmo sexo. Não é um interesse qualquer quando se trata de pessoas. É necessário dialogar sobre os direitos da vida comum entre pessoas do mesmo sexo, que decidiram viver juntas. Elas necessitam de um amparo legal na sociedade.

A CNBB, porém, se declarou contra a resolução do Conselho Nacional de Justiça que determinou que os cartórios devem celebrar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por quê?

Ao dar reconhecimento legal às uniões estáveis como casamento civil entre pessoas do mesmo sexo em nosso país, a Resolução do CNJ interpreta a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011. Certos direitos são garantidos às pessoas comprometidas por tais uniões, como já é previsto no caso da união civil. A dificuldade está em decidir que as uniões de pessoas do mesmo sexo sejam equiparadas ao casamento ou à família. A afirmação mais forte em relação à decisão do Conselho nacional de Justiça foi de que tal decisão não diz respeito ao Poder Judiciário, mas, sim, ao conjunto da sociedade brasileira, representada democraticamente pelo Congresso Nacional, a quem compete propor e votar leis, após aprofundado debate; o que não existiu.

A Igreja deve passar por mudanças para se adaptar aos novos tempos?

A Igreja muda sempre; está em mudança. Ela não é a mesma através dos tempos. Tendo como força iluminadora de sua ação o Evangelho, a Igreja busca respostas para o tempo presente. Assim como todas as pessoas, a Igreja sempre procura ler os sinais dos tempos, para ver o que se deve ou não mudar. A verdades da fé não mudam.

Fonte

terça-feira, 20 de maio de 2014

O cardeal de Viena felicita a “drag queen” Conchita Wurst, vencedora do Festival Eurovision


O cardeal de Viena e presidente da Conferência Episcopal da Áustria, Christoph Schönborn, felicitou a “drag queen” barbada Conchita Wurst por sua recente vitória no Festival Eurovision da canção.

A reportagem é publicada por Noticiero Digital, 16-05-2014. A tradução é de André Langer, aqui reproduzida via IHU.

“Alegro-me muito por Thomas Neuwirth, que teve tanto sucesso com sua atuação como Conchita Wurst”, escreve o cardeal em sua coluna semanal publicada na sexta-feira, dia 16 de maio, pelo jornal gratuito Heute, um dos mais lidos da capital austríaca.

“No colorido jardim de Deus há uma variedade de cores. Nem todos os que nasceram como seres masculinos sentem-se como homens, e o mesmo acontece do lado feminino. Merecem como pessoas o mesmo respeito que todos nós”, acrescenta Schönborn.

A tolerância, o principal lema da atuação de Conchita Wurst [que costuma repetir "Seja a melhor versão de você mesmo, em vez de uma cópia mal feita de outra pessoa"], “é um tema real e grande”, explica o cardeal de Viena.

E ser tolerante significa “respeitar o outro, embora não se compartilhe suas convicções”, assegura o líder da Igreja austríaca.

“Rezo por ele (Thomas Neuwirth) para que sua vida seja abençoada”, conclui Schönborn, considerado um dos cardeais mais influentes da Europa.

Neuwirth, um cantor homossexual de 26 anos, causou furor em todo o mundo com a figura de Conchita Wurst ao vencer o recente Festival Eurovision, em Copenhague, com a música “Rise like a Phoenix”.

Em tempo: apesar de o cardeal se referir a Conchita pelo nome Thomas e no masculino, há que se reconhecer o quanto é significativo ele ter decidido livremente abordar o assunto em sua coluna semanal (em vez, por exemplo, de ter se limitado a comentar caso lhe tivessem perguntado), sobretudo quando se leva em conta a forte reação conservadora e moralista que se seguiu à vitória de Conchita, principalmente na Rússia, onde se organizou uma campanha em que homens postaram na internet fotos e vídeos raspando a barba por esta "não representar mais um símbolo de masculinidade". Schönborn já havia mostrado antes uma postura respeitosa e acolhedora em relação aos gays, "mesmo não compartilhando de suas convicções", como ele diz - tal como demonstrou no episódio em que confirmou a escolha de um jovem gay eleito para o conselho de sua paróquia (como contamos aqui), tendo depois convidado o rapaz e seu marido para almoçar (como comentamos aqui).

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Carta de um pai gay a um bispo homofóbico


Nos últimos dias, lemos na imprensa as palavras insistentes do Papa Francisco de que "o Evangelho se anuncia com doçura e amor, não com porretadas inquisitoriais" (aqui) e na necessidade de manter o coração aberto e em busca, movido pelo desejo profundo de mudar o mundo (ainda aqui); lemos suas reflexões sobre a importância de formar o coração dos sacerdotes, para que "despertem o mundo" (aqui) e não se transformem em "pequenos monstros" (aqui, aqui e aqui); e recordamos, ainda, como fato-síntese do diálogo entre LGBTs e Igreja em 2013, a resposta e a benção dada pelo Papa a um grupo de LGBTs católicos italiano (aqui). Ontem, lemos também esta carta de um espanhol, gay, casado e pai de um menino de três anos, que defende seu casamento e seu filho dos ataques de um bispo homofóbico.

Achei de fundamental importância traduzir e compartilhar essa carta não só por sua clareza e pertinência, mas também porque coincide em muitos pontos com a carta que enviamos aos Bispos da Igreja Católica (saiba mais aqui. Ainda não assinou a petição on-line? Clique aqui!). Suas palavras sobre a família, especialmente, encontram eco em nosso pedido:
Todos nós, como pessoas LGBT, filhas e filhos de Deus, nascemos no seio de famílias, das mais diversificadas, e todos nós buscamos viver em família, seja ela eletiva ou biológica. Como Católicos, sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo sempre promoveu e promove mais a família eletiva que a biológica. Ou seja, consideramos que o discurso Católico sobre a família nos toca profundamente, sobretudo porque estas palavras de Jesus nos ressoam: "A minha mãe e os meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 8, 21). Temos as mais variadas experiências de vida familiar (...). Por isto, não podemos deixar de notar que, até agora, o discurso eclesiástico sobre a família nos trata como se fôssemos os inimigos da família, hostis de alguma forma à sobrevivência da mesma. Porém, nenhuma dinâmica familiar pode ser considerada saudável se alguém nela é tratado como ovelha negra (ou rosa). E isto nos leva a pedir que os Senhores não insistam em “defender” a família contrapondo-a aos direitos e à estabilidade psíquica e espiritual das pessoas LGBT. Estas “defesas” soam como forma de se imiscuir de maneira pouco evangélica em vivências familiares complexas em que todos sairiam ganhando se o assunto fosse tratado com honestidade, escuta, paciência e carinho. [Leia na íntegra aqui.]
Que a defesa veemente que este marido e pai faz de sua família nos inspire a buscar um coração sempre mais aberto, como pede o Papa Francisco, e um olhar sempre mais evangélico e acolhedor em relação às realidades vividas pelos nossos irmãos, por mais distintas ou distantes que possam parecer das nossas próprias vivências; e a orar por nossos sacerdotes, para que cada vez mais tenham o coração e os olhos abertos em amoroso serviço aos irmãos e possam ser, assim, sinais da Boa Nova de Cristo na terra.

Com carinho,


Casimiro Lopez Llorente, bispo de Segorbe Castellón [Espanha], começou 2014 não só atacando o casamento gay, mas também criticando os filhos de famílias homoparentais. Ao mesmo tempo em que responsabiliza o primeiro pela destruição da família, descreve os segundos como crianças com graves perturbações de personalidade, propensas a desenvolver comportamentos violentos.

Pedro Fuentes, casado com um homem e pai de um filho de três anos, responde ao bispo:

"Monsenhor, na minha cidade, quando uma pessoa é de classe social baixa ou baixa em termos de sua conduta, usamos uma expressão simples: 'pobre' — embora seja muito diferente ser pobre de dinheiro ou pobre de espírito. Digo isso por causa de uma carta em que o senhor denigre certas crianças, ainda que a palavra amor permeie cada uma das homilias que se ouve nas igrejas e catedrais.

Suas palavras, senhor bispo, soam como um tapa na cara. São palavras inaceitáveis, por mais que, ao revesti-las de assertividade, o senhor pretenda conferir-lhes um brilho de que carecem.

O senhor alega que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é a base "para a destruição da família" e tem entre seus efeitos "o aumento significativo de crianças com grave distúrbio de personalidade".

Só me ocorrem três possíveis razões para tais afirmações.

A primeira é que o senhor se baseie em evidências. Mas isso não é possível, não existem evidências disso. Eu poderia lhe apresentar uma infinidade de referências a artigos publicados em revistas médicas, de bioética, psicológicas ou psiquiátricas (estas, talvez as mais significativas, se é nesses dados que o senhor tem maior interesse) mostrando que não há nenhuma diferença entre os filhos de homossexuais e os de heterossexuais, entre crianças de famílias tradicionais e de famílias não tradicionais, como o senhor diria. Não só não existem, como os estudos indicam uma tendência (não significativa, é verdade, mas tendência ainda assim) a um maior compromisso dessas crianças com os Direitos Humanos e a defesa dos mais fracos, com relação aos quais elas mostram mais empatia. Os pesquisadores concluem que isso se deve à sua criação em um ambiente familiar que lhes inculca esses valores, já que seus pais ainda precisam defender os próprios direitos, Direitos Humanos, quase todos os dias, como estou fazendo aqui. Pena que o senhor mesmo não foi educado nesses valores e nessa defesa.

A segunda razão possível para que o senhor faça tais afirmações é que esteja falando por experiência. Espero que não seja essa a razão; caso seja, lamento muito. Viver em uma família que destroce uma criança deve ser horrível; e se, mais de 60 anos depois, as feridas ainda estão sangrando, só pode ser por terem sido muito profundas. A violência na família é algo medonho. Ainda assim, suas dores não podem ser uma desculpa para infligir dor aos outros. Ao contrário, devem constituir razão para defender o ser humano, não para criminalizá-lo injustamente.

A terceira razão seria a impudência da palavra: falar por falar, para causar danos e dor, para criar uma base ideológica a partir da qual atacar o outro só por ser diferente, por não viver como eu desejo. Aí há que reconhecer a existência de uma grande tradição. Basta lembrar a facilidade com que passamos do "não julgueis e não sereis julgados" para a Santa Inquisição — que, além de julgar, foi responsável pelo saque, tortura e morte de milhares de pessoas. Contudo, senhor bispo, por mais que o senhor queira a Idade de Ferro do papado não voltará mais, nem o esplendor do Poder Temporal, nem o senhor poderá ostentar seu ouropel em passeio por suas terras, recebendo as homenagens do povo.

Respeito se conquista, não é concedido por um anel ou uma mitra. A Igreja vem se esquecendo das bases que a formaram e o episcopado se distorceu de uma tal maeira que ninguém mais se lembra das palavras da Primeira Epístola de S. Paulo a Timóteo: 'quem aspira ao episcopado, saiba que está desejando uma função sublime. Porque o bispo tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez, sóbrio, prudente, regrado no seu proceder, hospitaleiro, capaz de ensinar. Não deve ser dado a bebidas, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; deve saber governar bem a sua casa, educar os seus filhos na obediência e na castidade. Pois quem não sabe governar a sua própria casa, como terá cuidado da Igreja de Deus?' [1 Timoteo 3:1-5] Marido... prudente... condescendente... filhos... são belas palavras. O senhor, que não formou uma família (viver em família não é o mesmo que formá-la), em vez de vivê-las, não só se permite opinar como tem o atrevimento de condenar.

Defenda seu modelo de família ou sociedade, mas respeite, como quer ser respeitado, os outros modelos. E, se quiser falar de crianças em situação de risco, volte seu olhar para as centenas delas que, aqui na Espanha, passam fome todos os dias — FOME, senhor bispo, enquanto milhões de euros chegam às mãos dos ricos sem que ressoe, nos palácios episcopais, o chicote com que Jesus açoitou os vendilhões do templo. Não admito que ninguém falte ao respeito com meu filho, nem pelo modo como ele nasceu, nem por ser filho de quem é. Com suas palavras, o senhor desrespeitou não só a ele, mas a milhares de crianças que não conhece e, obviamente, nem pretende conhecer. Desrespeitou milhares de famílias sobre as quais nada sabe, porque nem as entende nem tem a alma limpa para delas se aproximar. A concupiscência, a lascívia na palavra, é um pecado grave, especialmente quando fere inocentes.

'Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.' (Mt, 25, 40)

Esta é a minha esperança: saber, que mais cedo ou mais tarde, o senhor comparecerá perante Ele. Saber que Ele o olhará no rosto. Saber que Ele lhe lançará Seu desprezo. Porque ser bispo não pode jamais significar ferir qualquer um destes meus irmãos pequeninos.

A meu marido e a mim, Deus nos deu um filho. O fato de o senhor não ter compreendido isso só mostra o quanto está longe d’Ele.

Pedro Fuentes"

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A Igreja caminhando no meio da noite com o seu povo


As 38 perguntas recebidas pelos episcopados do mundo (saiba mais aqui e aqui) foram colocadas repentinamente em rede por intermédio de uma pesquisa anônima e aberta a todos. Leia na reportagem de Piero Schavazzi, publicada no jornal L’Huffington Post, 05-11-2013, com tradução de Anete Amorim Pezzini, aqui reproduzida via IHU.

Atualização em 9-12-13: você já leu a carta de alguns grupos católicos LGBT brasileiros para os bispos? O texto, com o link para a petição (pra quem quiser assinar e apoiar), está aqui.
:-)

Projetada com a intenção de filtro para bispos e para paróquias, a sondagem promovida por Francisco tornou-se, assim, patrimônio de todos, “regulares” e especialmente “irregulares”, a começar pelos interessados diretos, ou seja, os casais protagonistas das novas realidades, ou “Rerum Novarum”, com alusão à mais famosa das encíclicas, a respeito da qual as palavras do documento apresentado mostra uma afinidade sugestiva.

“Delineiam-se hoje problemáticas inéditas até a alguns anos”, começa o texto que introduz o questionário, “a propagação dos casais de fato, que não procuram o matrimônio, e, às vezes, não excluem a ideia da união entre pessoas do mesmo sexo, a quem, não raro, é consentida a adoção de filhos”.

"Nós não podemos mais fazer o papel de avestruz”, sintetizou com cuidado explícitou o bispo Bruno Forte, teólogo progressista de renome mundial, que Francisco tirou de sua década de exílio na província como arcebispo de Chieti e nomeado Secretário Especial da Assembleia Extraordinária, programada para 5 a 19 de outubro de 2014, sobre “Desafios Pastorais da Família”, reunindo, em Roma, os presidentes de todas as conferências episcopais.

O seu convite para não enterrar a cabeça na areia e para não virar o olhar encontra nítido eco no preâmbulo: “Se, por exemplo, pensa-se no simples fato de que, no atual contexto, muitas crianças e jovens, nascidos de matrimônios irregulares, possam não ver jamais os seus genitores aproximarem-se dos sacramentos, compreende-se o quanto urgente são os desafios para a evangelização na situação atual, no entanto, espalhou-se para todas as partes da aldeia global”.

É o próprio Papa que presidirá as reuniões preparatórias de 7 e 8 de outubro, contribuindo com a individuação e redação das perguntas, incluindo a mais espinhosa: “No caso das uniões de pessoas do mesmo sexo, como comportar-se pastoralmente em vista da transmissão da fé?”.

Bergoglio não inovou somente o método, mas a estrutura do Sínodo, que, até agora, contradizendo a própria etimologia e natureza, parecia estático, não dinâmico, condescendente a priori, e independência plebiscitária contra os Pontífices.

Ao contrário, para a sua Igreja, Francisco tem em mente um “sistema bicameral” verdadeiro que se distinga pela vivacidade do debate e pela capacidade de mobilização.

Os jornalistas tiveram a prova na conferência de imprensa do bispo Lorenzo Baldisseri, toscano de Garfagnana e embaixador versátil, habituado aos países continentes do Brasil à Índia, hoje secretário da assembleia sinodal ou, se quisermos, em analogia com a linguagem parlamentar, porta-voz da “câmara baixa”, por definição, a mais próxima das pessoas.

De resto, Bergoglio não tinha deixado dúvidas acerca de seu entendimento na entrevista de setembro para a Civiltà Cattolica: “Os consistórios, os sínodos são lugares importantes para tornar a consulta verdadeira e ativa. Necessita, no entanto, torná-los menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais”.

Provando que está falando sério sobre a experiência de partida, o Papa que, na juventude diplomou-se em química, escolheu o reagente mais explosivo – a moral familiar –, e a fórmula mais arriscada – um questionário de trinta e oito perguntas sobre os problemas em aberto e temas que queimam, suscetíveis de provocar uma reação em cadeia com consequências imprevistas: “Pode acontecer o que pode acontecer a todos aqueles que saem de casa e vão às ruas: um incidente”, tinha dito há seis meses durante a vigília de Pentecostes. “Mas eu lhes digo: prefiro mil vezes uma Igreja machucada, por causa de um acidente a uma Igreja doente porque fechada em si mesma!”.

Se Bergoglio dispõe do diploma em Química, Baldisseri possui um de piano: papa Ratzinger executava Mozart, Baldisseri, ao contrário, o genial compositor carioca Villa-Lobos, que inseriu no classicismo europeu os ritmos populares da América do Sul.

Para ler atentamente a partitura e escutar o papel de relator geral, bem como o primeiro tenor do Sínodo, o arcebispo de Budapeste, Peter Erdö, adverte que, de fato, a configuração que permanece por enquanto é a tradicional, mas mudou a interpretação, menos rigorosa e mais generosa, empreendedora e com traços aparentemente inacabados, com acentos suspensos e liberdade de expressão, e claramente estendeu firmemente a mão para conquistar um público diferente e mais amplo.

O documento confirma a mensagem das Sagradas Escrituras e o magistério do Concílio sobre os valores da família e sobre a lei natural, reiterando-o com as palavras do catecismo: “A aliança matrimonial, mediante a qual um homem e uma mulher constituem entre si uma comunhão íntima de vida e de amor foi fundada e dotada de suas próprias leis pelo Criador”.

Ao mesmo tempo, no entanto, perguntou desde a primeira indagação do questionário, se e até que ponto esse ensinamento é “conhecido e integralmente aceito” pelos fiéis: “O conceito de lei natural na relação da união entre homem e mulher é comumente aceito enquanto tal por parte dos batizados em geral?”.

Como na tradição dos verdadeiros parlamentos, a “câmara” reunir-se-á em duas sessões, com uma distância de um ano entre elas: uma assembleia extraordinária em outubro de 2014, para obter respostas e testemunhos, definindo o “status quaestionis” e medindo a extensão dos “desafios” que afetam e ameaçam perturbar a pastoral da família. Uma outra assembleia, ordinária, ocorrerá no outono de 2015, para assimilar os novos conceitos e desenvolver uma sensibilidade coletiva, ao longo de um caminho que envolve um bilhão de católicos, e desenvolve-se sob os olhos do mundo, confiando em Deus e confiando no instinto das pessoas.

“Os bispos, particularmente, devem ser homens capazes não somente de acompanhar com paciência o seu povo, de modo que nenhum fique para trás, mas também acompanhar o rebanho que tem um instinto para encontrar novos caminhos”, explicou Francisco no colóquio com Padre Spadaro.

Na ânsia de reformar o executivo com a incorporação dos ministérios, em que o concílio “constituinte” dos oito cardeais está trabalhando, Bergoglio transmitiu, portanto, um choque de adrenalina nas duas assembleias “legislativas”: a câmera alta dos cardeais e a baixa do Sínodo dos Bispos.

No papel, tratam-se dos órgãos consultivos, que não legislam, visto que o Pontífice Romano é ainda um monarca absoluto, mesmo na era de Francisco: ambos, porém, tornam-se legais, se o soberano reinante ratifica suas deliberações, no sentido de um exercício colegial do ministério de Pedro, que, sem afetar a constituição formal da Igreja, inova-a, todavia, a material.

A câmara alta de imediato virá reequilibrada geograficamente, já no consistório de fevereiro, redimensionando o componente italiano e europeu, para dar espaço aos países excluídos do último conclave. Mas, mais tarde, poderia ser modificada geneticamente, com o ingresso de uma mulher cardeal ou, pelo menos, uma reavaliação e reorganização do colégio que elege o Papa, integrando a linhagem divina dos purpurados com os representantes laicos do povo de Deus.

Há dois domingos, enquanto caía o pano na festa das famílias, a última quermesse no tema do Ano da fé, escrevemos que, no Vaticano, tinha aparecido o sinal “trabalho em curso”.

Francisco de manhã, nos seus discursos tinha voado alto, como os balões que alçam no céu de São Pedro, metáfora colorida de uma realidade mais variada, e “irregular”, dos preceitos que a retratam em preto e branco.

Um dia depois, no entanto, com os dias que se encurtavam, voltou celeremente ao hospital de campanha e aos corredores de emergência, que conduzem o caminho do Sínodo em direção à zona de sombra, em que a tarefa da Igreja e de seu questionário, em primeiro lugar, não é a clareza da doutrina, mas sentir a carícia divina sobre as feridas da vida: “Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de reaquecer o coração das pessoas, de caminhar no meio da noite com elas, de saber dialogar, e também de descer na noite delas, na sua escuridão sem perder-se”.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Pastor luterano defende a homoafetividade

Fonte: Facebook

Do Rev. Silvio Meincke, no blog Teologia Inclusiva:

No Dia da Igreja em Colônia, na Alemanha, trabalhei como voluntário e fui hospedado em casa particular. Meus hospedeiros eram gentis e atenciosos. Sua casa revela traços da personalidade dos moradores: gostam da beleza simples e prática, sem sofisticações, com critério na escolha e nada de consumismo exagerado. Percebi grande consciência ecológica na organização da casa, no uso de água e energia, na seleção do lixo ou nos cuidados do pequeno jardim. O modo como meus hospedeiros convivem e se comunicam revela atenção carinhosa, respeito e cuidado mútuos, como acontece entre casais que são felizes e se enriquecem mutuamente.

Meus hospedeiros são dois jovens homoafetivos. Prefiro essa palavra. Homoafetividade. O termo homossexualidade soa-me muito restrito à prática sexual física propriamente dita. Homoafetividade sugere uma relação muito mais ampla: homo-convivência, homo-partilha, homo-cuidado, homo-ternura, homo-realização como ser humano.

Os próprios envolvidos devem decidir sobre o termo que querem usar. Eu vou dizer homoafetividade. Também são eles que devem decidir se querem entender a sua homoafetividade como opção ou como condição.

Eu vou dizer que é uma condição humana, porque os jovens e do ensino confirmatório, da juventude evangélica e das escolas secundárias onde lecionei, quando me procuraram como pastor, sempre vieram desesperados ao descobrirem sua homoafetividade, e nenhum deles ou delas optou por isso. Descobriram-na e sofreram. Não contribuíram em nada para que fossem homoafetivos.

Não resta dúvida que cada grupo humano precisa criar regras de convivência, leis de conduta, normas de orientação, para que a vida em comunidade seja possível. Precisa encontrar consensos, escritos ou não, que possibilitam a vida organizada e feliz dentro do seu território, dentro do seu espaço de habitação - para dizê-lo com uma palavra grega, dentro do seu "étos". O conjunto dos regulamentos, costumes convencionados, consensos escritos ou não formam os valores "éticos" de uma sociedade.

Na medida em que os grupos humanos decidem como querem organizar sua convivência, também decidem como não querem viver. Existe até mesmo certa necessidade de distanciar-se dos que são diferentes, para firmar a própria identidade. Por exemplo, o povo de Israel declarou o porco impuro entre outros motivos para se diferenciar de outros povos que o adoravam como animal sagrado.

Infelizmente, essa necessidade de diferenciar-se acontece não raras vezes à custa de minorias numéricas para as quais se cria uma imagem de inimizade. Tal imagem se agiganta e pode adquirir formas de brutal discriminação, perseguição e eliminação.

Pessoas homoafetivas têm experimentado a discriminação no decorrer da história, às vezes, tornando-se bodes expiatórios para insucessos, fracassos e frustrações de todo um povo. Ainda que as pessoas homoafetivas não prejudiquem em nada a feliz convivência no "étos", a sina da discriminação insiste em persegui-los. Meus hospedeiros, por exemplo, em nada prejudicam a possibilidade de vida boa e feliz dos moradores de Colônia.

Seguidores de Jesus Cristo podem conhecer, nos seus ensinamentos e no seu procedimento, grandes exemplos de acolhimento, inclusão e fraternidade com as minorias discriminadas pela sociedade. Amplos setores das igrejas cristãs assimilaram essa mensagem de Jesus e procuram agir dentro do seu propósito de inclusão.

Tanto mais lamentável se mostra a discriminação praticada por certos grupos dentro das comunidades cristãs - geralmente grupos terrivelmente "fortes na fé" e que, por isso, julgam-se pessoas melhores do que as que não aderiram ao seu grupo. Não estariam esses grupos incorrendo no equívoco de criar bodes expiatórios para os seus próprios medos e preconceitos? Não estariam desconhecendo os propósitos de Jesus, em nome do qual alegam agir? Não estariam caindo no equívoco de George Bush que pretende prescrever a Deus quem são os seus inimigos, para destruí-los, em nome de Deus?

No entanto, os nossos inimigos não são os inimigos de Deus; os que nós consideramos merecedores de discriminação, Deus não os discrimina. Nem mesmo precisamos recorrer a alguma piedosa generosidade - aliás, sempre humilhante - e dizer que aceitamos em nosso meio as pessoas homoafetivas em nome do amor cristão. Melhor é tê-las em nosso meio espontaneamente, sem justificativas piedosas, simplesmente como semelhantes, que não trazem mais do que apenas outra condição afetiva. Melhor do que incluí-los generosamente depois de excluí-los primeiro, é nem chegar a excluí-los.

(Silvio Meincke é pastor emérito da Igreja Evangélica da Confissão Luterana Brasileira e reside na Alemanha.)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Comunidade: quando a correção é fraterna


Hoje, na Igreja, precisamos, mais do que nunca, de correção fraterna, e os pastores da Igreja, que corrigem a comunidade cristã, por sua vez, devem ser corrigidos pela comunidade com respeito e sem contestação, nem, muito menos, desobediência.

A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal
Avvenire, dos bispos italianos, 20-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, reproduzido via IHU.


Estamos no tempo pascal, no qual a Igreja nos convida a proclamar a boa notícia por excelência: "Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente". Imersos nessa alegria, podemos olhar para trás, para o caminho quaresmal recém-percorrido, para verificar se foi um caminho de conversão e de crescimento espiritual, ou se não demos um passo para voltar ao Senhor, ou mesmo se acabamos cedendo ainda mais aos ídolos mundanos que sempre nos tentam.

Ao fazer esse exame de consciência, não podemos esquecer que, no início da Quaresma, Bento XVI endereçou à Igreja uma mensagem voltada a fazê-la refletir sobre o fim do seguimento: o amor, a caridade. Por isso, o papa de Roma nos forneceu o rastro de uma busca, de uma reflexão, de um compromisso cotidiano a ser assumido, o que se refere à correção fraterna.

Contaminados como estamos por uma verdadeira doença que é a indiferença uns pelos outros, a falta de proximidade, já não sabemos mais que a correção fraterna é uma das atitudes cristãs mais decisivas para a salvação do indivíduo e para a própria comunidade cristã, a Igreja. Se não nos sentimos protetores, responsáveis pelo irmão, pela irmã, pelo outro (cf. Gn 4, 9: "Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?"), então vivemos no próprio autismo, sem olhar para os outros, sem nos aproximarmos do outro, sem praticar o face a face.

Desse modo, nunca nasce a ocasião para a correção recíproca, e, de fato, encoraja-se o crescimento do mal, que sempre será mais disseminado enquanto nunca for julgado. Entre as obras de misericórdia que aprendemos na catequese, havia também "advertir os pecadores", expressão talvez pouco feliz, porque parece pressupor que o cristão não pecador deve advertir quem o seja. Também por isso, provavelmente, essa obra foi esquecida, e assim se perdeu a memória do fato de que a instância subentendida a essa expressão é, na verdade, a da correção fraterna, uma correção sempre recíproca.

A mensagem de Bento XVI para esta Quaresma não me parece ter recebido uma recepção igual à que foi reservada às anteriores, e isso também diz muito sobre as dificuldades que os cristãos já têm com relação à prática da correção fraterna. Assumindo um estilo mundano, às vezes, alguns cristãos oscilam entre a indiferença e uma intervenção imediata violenta, caracterizada por insultos e por palavras que visam a deslegitimar a outra parte.

Com relação a isso, o Papa Bento XVI chegou até a escrever que, infelizmente, hoje, na Igreja, existe um "morder-se e um devorar-se uns aos outros" (cf. Gal 5, 15) que é escandaloso e contradiz gravemente a comunhão eclesial (Carta aos Bispos da Igreja Católica do dia 10 de março de 2009).

Sim, no tecido da vida eclesial, isso parece ser gravemente contraditório com relação ao Evangelho, ao estilo de Jesus, a uma vontade de comunhão que não perde a ocasião de declarar publicamente em palavras, mas que na realidade se desmente de modo persistente com o comportamento cotidiano, com acusações infundadas, com palavras caluniosas.

Porém, a correção fraterna está no coração da vida eclesial, é até indicada como necessária e normalizada pelas palavras de Jesus contidas nos Evangelhos. Como, portanto, ela pode ser praticada?

Acima de tudo, "prestando atenção uns aos outros" (cf. Hb 10, 24, versículo que intitula a mensagem de Bento XVI). O cristão é, por natureza, um vigilante, alguém que presta atenção, que mantém o seu olhar fixo no Senhor (cf. Hb 12, 2). A partir desse exercício de olhar com atenção para o Senhor, tornamo-nos capazes de olhar para os irmãos, para as irmãs e para os eventos da história cotidiana fazendo um discernimento sobre eles, isto é, lendo-os na sua verdade profunda e tentando olhar o outro com um olhar que o próprio Cristo teria voltado para ele.

Só quem assumiu o olhar, os sentimentos, o pensamento de Jesus também pode ver o outro na verdade, pode descobrir o seu mal, a sua culpa que jamais coincide com o outro – e, portanto, pode julgá-la na sua objetiva gravidade. Mas eu o repito – isso deve ser feito olhando para quem cometeu o mal, um homem ou uma mulher que é muito mais do que o pecado cometido: o outro sempre continua sendo uma pessoa, e nenhuma ação malvada por ele cometida pode nos fazer esquecer isso!

Normalmente olhamos o outro e logo vemos um ladrão, um mentiroso, um delinquente, uma prostituta... acabando por identificá-lo com a ação cometida: mas o ser humano é sempre muito mais do que o seu agir eventualmente julgado como negativo.

Portanto, para corrigir o outro é preciso se despojar do preconceito, daquele pensamento que nos habita e nos induz a julgar uma pessoa sobretudo pelo fato de que ele repetiu algumas vezes o seu pecado. Não, precisamos nos esforçar para ver o outro como Jesus o veria. Então, diante de uma mulher adúltera, não teríamos pedras nas mãos para apedrejá-la, mas, como Jesus ensinou, nos perguntaríamos se temos o direito de condenar quem cometeu o pecado, nós que somos pecadores como ela: "Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra" (Jo 8, 7).

Se somos exercitados a "ter em nós os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo" (cf. Fl 2, 5), a "ter o pensamento de Cristo" (cf. 1 Cor 2, 16), então devemos e podemos praticar a exortação e a correção fraterna com sinceridade e parrésia, franqueza, sem dureza, sem nos colocarmos em posição de superioridade com relação ao outro. Cada um de nós é tentado, em seu próprio subjetivismo, a perder o sentido objetivo das coisas, a não saber mais avaliá-las a justa distância.

Precisamos, portanto, de outros que nos ajudem a voltar novamente à objetividade, que nos inspirem reservas, perguntas as quais devamos responder, se quisermos ser autênticos e permanecer na verdade. Sozinhos, isolados, sem a ajuda de outros e o confronto com eles, fazemos poucos avanços e caímos facilmente.

Corrigir – lembra o papa – "dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal". O próprio Jesus praticou muitas vezes a correção para aqueles que o escutavam ou o seguiam: desse modo, queria justamente exercitar a correção do pecador, e não dar-lhe a condenação ou a morte (cf. Ez 18, 23.32; 33, 11). Jesus usou palavras de reprovação, mas sempre finalizadas a dar a salvação. Ele o fez às vezes também com palavras fortes, de cólera, que relatam o seu pathos, isto é, comportando-se como verdadeiro herdeiro do pathos dos profetas, da sua paixão pelo ser humano e pela sua salvação, pela vida.

Não é por acaso que, no discurso de Jesus sobre a Igreja relatado no capítulo 18 do Evangelho segundo Mateus, se dê tanto espaço à correção fraterna. Nesse texto, registra-se uma indicação de tipo quase processual sobre o desenvolvimento da correção fraterna: "Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão. Se ele não lhe der ouvidos, tome com você mais uma ou duas pessoas, para que 'toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas' (Dt 19, 15). Caso ele não dê ouvidos, comunique à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele der ouvidos, seja tratado como se fosse um pagão ou um cobrador de impostos" (Mt 18, 15-17).

A correção deve, portanto, ocorrer em três etapas: a correção pessoal, discreta "só entre vocês dois", para que o irmão se reveja e o seu pecado não seja conhecido por outros. Depois, se necessário, a correção feita em dois ou três, de modo que quem cometeu uma culpa seja induzido a se rever na presença de mais irmãos. Se nem isso for suficiente, como medida extrema, que se faça uso da correção no meio da assembleia, diante de todos. Mas, se essa forma de correção também não tiver sucesso, Jesus pede que se adote contra quem errou a atitude que ele mesmo viveu com relação aos pagãos e aos pecadores. Nos lábios de Jesus, isso equivale a dizer: "Vá encontrá-lo, hospede-se com ele, coma com ele e converta-o com o seu amor e a sua atenção, como eu fiz com Levi, o publicano (cf. Mc 2, 13-17 e par.) e com tantos pecadores que estão no meu seguimento".

Corrigir, advertir é necessário, mas está habilitado a fazê-lo quem nutre o amor pelo irmão: cada um de nós também é responsável pelo outro, quem quer que seja, mas sobretudo de quem é irmão na fé e vive "o mandamento novo" do amor recíproco (cf. Jo 13, 24).

Certamente, "na hora, qualquer correção parece não ser motivo de alegria, mas de tristeza" (Hb 12, 11), porque quem é repreendido se sente humilhado e conhecido no seu próprio pecado. Mas, depois, torna-se verdade que, da correção, podem nascer "frutos de paz e de justiça" (cf. ibid.), e, portanto, podemos nos sentir amados por quem nos corrige.

Na parênese apostólica do Novo Testamento, pede-se mais de uma vez que se pratique a correção fraterna (cf. (cf. Rm 15, 14; 2Cor 2, 6-8; Gal 6, 1; Ef 5, 11; Col 3, 16; 1Ts 5, 12.14; 2Ts 3, 15; Tt 3, 10-11), mas esses ensinamentos já manifestam como a correção é difícil e cansativa, mesmo para quem a faz; indicam que, para corrigir, é preciso humildade e amor sincero; que nunca devemos nos sentir estranhos ao pecado do outro, nunca julgá-lo ou se considerar superior a ele. Enfim, nunca devemos praticar a correção como um inspetor que realiza a sua tarefa friamente: a correção cristã, de fato, não uma vigilância de tipo empresarial!

Na história – sabemo-lo bem –, a correção fraterna foi atestada principalmente nos primeiros séculos cristãos, depois quase desapareceu; ou, melhor, foi relegada aos mosteiros ou delegada à práxis do sacramento da penitência administrado individualmente. Nos mosteiros, que levam uma vida cenobítica, a correção ocorre todas as manhãs durante o capítulo, ou seja, a assembleia diária dos irmãos. Aqui, aquele que preside corrige os erros e os pecados comunitários, mas às vezes também corrige um irmão individual. Mas quem preside, o abade ou o prior, também pode ser corrigido e advertido pelos outros irmãos.

A respeito disso, escrevia Basílio de Cesareia: "Quem preside a comunidade não deve ser o único a não se beneficiar do apoio fraterno da correção recíproca, ele que exerce a função mais pesada" (Regras difusas 27). E o autor da Didaqué não perguntava talvez: "Corrigi-vos reciprocamente, não na ira, mas na paz" (15, 3)?

Na sua mensagem, Bento XVI pede com força o exercício da caridade fraterna na Igreja, na vida eclesial. Aqui, a correção fraterna se torna ainda mais difícil; demonstra-o o fato de que ela é muito pouco realizada, como fica aparece na prevalência da desobediência, da revolta, da divisão dentro da Igreja. Também nesse caso, a história é mestra. No primeiro milênio, a práxis da correção fraterna era bem atestada: há inúmeros exemplos de correção fraterna eclesial entre as Igrejas orientais e a Igreja latina romana (pense-se apenas na de Basílio de Cesareia com relação ao Papa Dâmaso I), e muitas tensões foram resolvidas graças ao diálogo, à escuta recíproca e à correção. No segundo milênio, ao contrário, raros são os casos de correção fraterna praticada pelo simples fiel com relação à autoridade, mesmo a suprema.

Perguntemo-nos com franqueza: se a escuta fosse mais praticada, se fosse aceita a correção recíproca, teríamos sofrido o grande cisma do Ocidente, aquele em que Lutero, de fato, levou trouxe a divisão à Igreja? O grande rabino Tarfon, depois do Holocausto de 70 d.C., defendeu que o povo de Deus havia sofrido a humilhante catástrofe porque não tinha sabido praticar humildemente a correção fraterna...

Mas há algumas exceções, que vale a pena elencar brevemente. Clássica, conhecidíssima e de perene atualidade é a correção praticada pela abade de Claraval, Bernardo, com relação ao Papa Eugênio III, no seu De consideratione (1150 ca.). Bernardo chega até a lembrar ao papa audaciosamente que ele é o sucessor de Pedro, e não de Constantino, e se dirige a ele dizendo: "Mesmo que estejas vestido de púrpura e caminhes coberto de ouro, não há nenhuma razão para que tu, que és o herdeiro do Pastor, tenhas tédio do ministério pastoral e sintas vergonha do Evangelho (cf. Rom 1, 16). Mas, se te dedicares com decidida vontade à evangelização, terás um lugar glorioso entre os apóstolos. Evangelizar significa pastorear. Portanto, faze a evangelização e serás pastor" (IV, 3.6).

Cerca de um século antes, deve ser lembrado Pedro Damião; depois de Bernardo, é a vez de Mechthild de Magdeburgo, depois Catarina de Siena, mulher de fogo, que, ao redor do fim do século XIV, durante o cativeiro de Avignon, criticava o Papa Gregório XI por não estar na sua cátedra de Roma. Mais tarde, viriam Vincenzo Quirini e Paolo Giustiniani; no século XIX, não podemos nos esquecer do Pe. Antonio Rosmini, e, no século passado, Pe. Primo Mazzolari.

No exercício da correção da Igreja por parte das autoridades da própria Igreja, devem ser lembrados ao menos Guillaume Durand, o bispo francês dos inícios do século XIV, que parece ter sido o primeiro a ter utilizado a expressão "reforma (da Igreja) na cabeça e nos membros"; o Papa Adriano VI, que, nos inícios do século XVI, reconheceu corajosamente a decadência da Igreja romana, identificando a sua causa principal nos comportamentos e nas escolhas da corte romana; e, sobretudo, o Papa João Paulo II, que, por ocasião do Jubileu do ano 2000, confessou os pecados dos cristãos na história pedindo perdão a Deus mediante uma solene liturgia pública.

Finalmente, gostaria de salientar que, a propósito da correção, dois conceitos são inseparáveis, embora em uma tensão recíproca nada fácil de resolver: correção fraterna, justamente, e obediência. Para exercer a correção fraterna precisamos ser guiados e iluminados por alguém, por alguma coisa, e, para o cristão, essa luz que dá orientação pode ser apenas o Evangelho que é Jesus Cristo e Jesus Cristo que é o Evangelho. E assim surge o valor da obediência. Sem obediência ao Evangelho e sem escuta a quem recebeu do Senhor a tarefa de ser testemunha do Evangelho, o apóstolo e portanto os seus sucessores, reinam a anarquia e a anomia – diz ainda Basílio – e não pode haver nem reciprocidade (allélon) nem comunhão (koinonia).

Hoje, na Igreja, precisamos, mais do que nunca, de correção fraterna, e os pastores da Igreja, que corrigem a comunidade cristã, por sua vez, devem ser corrigidos pela comunidade com respeito e sem contestação, nem, muito menos, desobediência.

Bento XVI lembrou recentemente na homilia pronunciada durante a Missa Crismal: "Será a desobediência um caminho para renovar a Igreja? (…) Pode-se intuir na desobediência algo da configuração a Cristo?" (5 de abril de 2012).

Não é verdade que a obediência nada mais é do uma virtude: ao contrário, é a virtude cristã por excelência, porque "Cristo Jesus se tornou obediente até à morte, e morte de cruz" (Fl 2, 5.8).


terça-feira, 12 de junho de 2012

A graça da dúvida de si

Foto: Takeshi Suga


O papa e o Vaticano estão cada vez mais defendendo a ideia de uma Igreja remanescente – uma Igreja pequena e pura que se vê muitas vezes em oposição ao mundo ao seu redor. Parece como se as autoridades da Igreja não estão nada preocupadas com aqueles que deixam a Igreja. Qualquer outra organização tomaria medidas fortes para remediar a perda de um terço de seus membros.

A opinião é do teólogo norte-americano Charles E. Curran, professor da cátedra Elizabeth Scurlock de Ética Cristã daSouthern Methodist University. O artigo foi publicado no sítio do jornal National Catholic Reporter, 06-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


A condenação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé ao premiado livro da Ir. Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, Just Love: A Framework for Christian Sexual Ethics, não é nenhuma surpresa. A Congregação insiste que o livro "não pode ser usado como uma expressão válida da doutrina católica" porque discorda do magistério hierárquico sobre masturbação, atos homossexuais, uniões homossexuais, indissolubilidade do casamento, divórcio e segundo casamento.

Há uma longa lista de teólogos morais católicos cujas obras sobre ética sexual, em um veio semelhante, foram condenados ou censurados pela Congregação para a Doutrina da Fé ao longo dos últimos 40 anos. O Papa João Paulo II escreveu a sua encíclica Veritatis splendor, em 1993, por causa da discrepância entre o ensino oficial da Igreja sobre questões morais e o ensino de alguns teólogos morais, até mesmo nos seminários. Segundo o papa, a Igreja está "enfrentando o que certamente é uma crise genuína, que não se trata já de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do patrimônio moral".

Todos têm que reconhecer que há uma crise real como essa na Igreja hoje. Mas a crise não é apenas uma crise na teologia moral: ela envolve uma crise na Igreja como um todo e na nossa própria compreensão da Igreja Católica. De acordo com o respeitado Pew Forum on Religion & Public Life, uma em cada três pessoas que foram educadas como católicas romanas nos Estados Unidos já não é mais católica. A segunda maior "denominação" nos EUA é de ex-católicos. Uma em cada 10 pessoas nos EUA é ex-católica. Todos nós temos experiência pessoal daqueles que deixaram a Igreja por causa do ensino sobre questões sexuais. Questões relacionadas, incluindo o papel das mulheres na Igreja, o celibato para o clero e o fracasso das lideranças eclesiais em lidar com o escândalo dos abusos infantis e o seu encobrimento, também foram reconhecidas como razões pelas quais muitas pessoas abandonaram a Igreja Católica.

A reação de papas e bispos até teólogos morais revisionistas é apenas uma parte de uma realidade crescente em nossa Igreja hoje. Há uma ladainha de outras ações similares tomadas pelo Vaticano – as restrições impostas à Leadership Conference of Women Religious (LCWR); o controle sobre as atividades da Caritas Internationalis, a agência da Igreja dedicada à ajuda aos pobres; a reação muito negativa das associações de padres na Áustria e na Irlanda; a remoção de Dom William Morris, bispo de Toowoomba, na Austrália, por ter meramente incentivado a discussão sobre o celibato e o papel das mulheres; a nomeação apenas de clérigos muito seguros como bispos etc. E a lista continua.

O que está acontecendo aqui é que o papa e o Vaticano estão cada vez mais defendendo a ideia de uma Igreja remanescente – uma Igreja pequena e pura que se vê muitas vezes em oposição ao mundo ao seu redor. Parece como se as autoridades da Igreja não estão nada preocupadas com aqueles que deixam a Igreja. Qualquer outra organização tomaria medidas fortes para remediar a perda de um terço de seus membros. Mas a Igreja remanescente se vê como uma Igreja forte de fiéis verdadeiros e, portanto, não está preocupada com essas partidas.

Esse conceito de Igreja opõe-se à melhor compreensão da Igreja Católica. A palavra "católico", em sua própria definição, significa grande e universal. A Igreja abraça tanto santos e pecadores, ricos e pobres, homens e mulheres, e conservadores e liberais políticos. Sim, há limites para o que significa ser católico, mas a compreensão de "católico" com "c" minúsculo insiste na necessidade de ser o mais inclusivo possível. Muitos de nós ficaram profundamente impressionados com os gestos do Papa Bento XVI no início do seu papado, ao ir ao encontro em diálogo com Hans Küng e de Dom Bernard Fellay, chefe do grupo originalmente fundado pelo arcebispo Marcel Lefebvre. Infelizmente, hoje, o diálogo ainda está em andamento com Dom Fellay, mas não com Hans Küng.

O problema básico de tudo isso é a compreensão e o papel da autoridade na Igreja Católica. Essa questão é muito vasta e complicada para ser discutida aqui com detalhes, mas três pontos deveriam orientar qualquer consideração sobre a autoridade na Igreja.

Primeiro, a principal autoridade na Igreja é o Espírito Santo, que fala de diversas maneiras; e todos os outros na Igreja, incluindo os detentores de cargos, devem se esforçar para ouvir e discernir o chamado do Espírito.

Segundo, a Igreja precisa dar corpo à compreensão de Tomás de Aquino de que algo é mandado e ordenado porque é bom, e não o contrário. A autoridade não faz algo certo ou errado. A autoridade deve se conformar ao que é verdadeiro e bom.

Terceiro, o perigo para a autoridade na Igreja é alegar uma certeza muito grande para o seu ensino e propostas.Margaret Farley desenvolveu esse ponto em um ensaio muito significativo, Ethics, Ecclesiology, and the Grace of Self-Doubt [Ética, Eclesiologia, e a Graça da Dúvida de Si]. A pressão por certeza fecha muito facilmente a mente e às vezes também o coração. A graça da dúvida de si permite a humildade epistêmica, condição básica para o discernimento moral comunitário e individual.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dizer Deus é amor

Foto daqui

Faz-se malabarismo com o texto bíblico. Usam-se versículos para tudo. Capítulos servem, ao mesmo tempo, para abençoar a guerra e semear a paz. Nada como um texto canônico para validar mecanismos opressores que perpetuam a pobreza. Como a sagrada Escritura já serviu para acalmar a revolta dos excluídos!

Um dos textos mais usados, celebrados e repetidos da Bíblia é o capitulo 13 da primeira epístola aos Corintios. Talvez tão celebrado por tratar do amor. Declamado em casamentos. Musicado por diferentes artistas. Seus 13 versículos valem até como cartilha de auto ajuda: “Como aprender a amar bem”.

Geralmente, os três primeiros versículos servem para explicar que amor é mais nobre que dogma, carisma e desempenho religioso:

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá”.

A partir do versículo 4, Paulo descreve alguns atributos do amor. Sua descrição é nobre:

“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.

Belíssimo! repetem até os não religiosos. Acontece que a lista não é receita. Deus é descrito como essencialmente amor. Sendo assim falar de amor é também falar de Deus.

É possível projetar o pensamento de Paulo sobre o amor na percepção de quem Deus é. Se Deus é amor e o amor tudo sofre – Deus sofre. Se Deus é amor e o amor tudo crê – a existência humana é fruto de um acreditar divino. Se Deus é amor e o amor tudo espera – Deus então espera, aguarda, pacientemente por respostas humanas. Se Deus é amor e o amor tudo suporta – o sofrimento que se universalizou produz uma dor incalculável no coração de Deus.

Infelizmente a cristandade ocidental preferiu compreender Deus a partir da onipotência. Caso tivesse prestado mais atenção ao que a revelação do amor indica, com certeza haveria menos ateus no mundo.

Nunca é preciso hesitar: o amor é simultaneamente frágil e avassalador. Jesus chorou sobre a impenitente Jerusalém.Lamentou a partida de um jovem rico. E contou uma parábola usando a figura de um pai abandonado pelo filho para revelar os sentimentos divinos. O amor que vulnerabiliza também salva.

O que é atrativo em Cristo? Que não sejam as descrições de sua majestade, mas de sua humildade. Sua glória foi revelada na cruz em não em tronos; no perdão e não em vingança. O texto diz peremptoriamente que o Pai lhe deu um nome que está acima de todos os nomes porque jamais cobiçou poder, mas viveu para servir. Depois de ressuscitado Jesus não procurou esmagar seus algozes. Para sempre se manteve como cordeiro.

O Deus encarnado expressou, com mansidão e humildade, que não há outra maneira de perceber Deus senão na ternura e na mansidão.

Qualquer deus que tente se impor através do poder ou com apelos mágicos não passa de um ídolo.

Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor. Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele… No amor não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo“. [1João 16-18]

Soli Deo Gloria

- Ricardo Gondim, em seu blog

domingo, 10 de junho de 2012

O mundo não é preto e branco, e sim colorido. Vamos falar de sexo?

Foto: Takeshi Suga

Do blog do Leonardo Sakamoto:

Na época da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo sempre aumenta a minha percepção do quanto nós somos desinformados sobre a nossa própria sexualidade. E terreno sem informação é fértil para o brotar o preconceito e a discriminação, principalmente entre aqueles que acham que a vida é um preto e branco maniqueísta, homem e mulher, macho e fêmea e o resto é doença. Ignoram que há outras cores no meio do caminho que, por sua vez, podem ser tão específicas que apresentem tonalidades únicas e individuais. Sim, na prática, cada um tem sua própria cor. Assustador e maravilhoso isso, não?

Por isso, pedi para Claudio Picazio, psicólogo especialista em sexualidade, um texto que fosse didático para ajudar aos leitores deste blog a entenderem a questão. Ele não encerra o tema, claro. Muito pelo contrário, é um bom ponto de partida.


Para entendermos a sexualidade e por uma questão didática, vamos analisá-la sob quatro aspectos diferentes e interligados: Sexo Biológico, Identidade Sexual, Papeis Sexuais e Orientação Sexual do Desejo. Repito essa divisão é didática, pois todos os aspectos se entremeiam, formando dentro de nós aquilo que chamamos identidade de gênero.

Sexo Biológico: Biologicamente falando quantos sexos existem? Dois, masculino ou feminino. Quando nascemos pelas características que nosso corpo possui, somos registrados como macho ou fêmea. Essa afirmação parece simplista e óbvia, mas não é bem assim, quando falamos de sexo masculino ou feminino estamos nos referindo às características dos órgãos sexuais e a predominância que este tem no nosso corpo.

Muitas pessoas nos anos 70, por uma questão de distinção ou até modismo, começou a chamar a homossexualidade de terceiro sexo. Isto não é verdade, só confundiu. Biologicamente falando, homens hetero, bi e homossexuais não têm a menor diferença, assim como as mulheres hetero, bi e homossexuais. Portanto, quando uma pessoa fala popularmente que um gay não é homem, esta incorreto, o gay é tão homem quanto qualquer outro, a única variação é por quem o seu desejo sexual se orienta. Há exceções, é claro. Por exemplo, uma pessoa hermafrodita nasce com uma dupla formação de características dos seus órgãos sexuais masculinos e femininos.

Identidade Sexual: Vamos definir como sendo o aspecto de onde guardamos a nossa certeza do que somos. Quando nascemos, somos registrados como menino ou menina. A partir daí somos tratados como tal e incoporamos a sensação de pertencemos a um gênero. Acreditamos que somos menina ou menino: a forma de como somos tratados é tão importante como o nosso sexo biológico para a formação da nossa identidade sexual. Mas a nossa identidade sexual não depende tanto do nosso corpo para se manter. Ele é importante para seu desenvolvimento, mas a sensação de quem somos é muito maior, e muito mais profunda do que o nosso corpo pode dizer.

Papeis Sexuais: Vamos entender como papeis sexuais, todos os comportamentos definidos como maneirismos, atitudes e expressões daquilo que chamamos de masculino e feminino. Papeis sexuais são variados de cultura para cultura de sociedade para sociedade e estão em constante transformação. Aquilo que era considerado há 20 anos como exclusivamente ao papel feminino, hoje também pode ser considerado do masculino. As mudanças sociais e econômicas, o movimento feminista permitiu uma flexibilidade e mudança das posturas rígidas de ser masculino ou feminino. Um exemplo: o uso de brincos por homens.

Ainda temos muito enraizado em nós os papeis sexuais e a análise que fazemos destes para julgar o outro. Uma mulher que não se identifique muito com os papeis femininos típicos, tenderá a ser “diagnosticada” pelos outros como lésbica. Mas papeis sexuais não determinam desejo erótico e sim ações e atitudes que incorporamos. Um garoto que não goste de futebol e de nenhum esporte violento, será interpretado como “mulherzinha, gay”. Pensando nesse exemplo, estamos dizendo que um homem heterossexual de verdade tem que ser violento assim como uma mulher heterossexual de verdade tem que ser passiva e meiga. Já estamos estabelecendo uma divisão entre os gêneros complicada, porque incentivamos um comportamento na criança que mais tarde brigaremos muito para retirar. Na verdade encontramos homens heterossexuais e gays violentos, assim como encontramos homens heterossexuais e homossexuais que não são violentos e nem se adaptam a essa postura.

Orientação Sexual do Desejo: Muita gente utiliza “opção sexual”, o que não é nada correto quando falamos da sexualidade. Quando falo em “opção” estamos falando em escolha e para ser considerada uma escolha teríamos que ter duas ou mais coisas de igual significado ou valor para quem escolhe. Se desejo erótico fosse opção teríamos que sentir desejos tanto por homens quanto por mulheres da mesma forma. Isso não acontece por ninguém. Nenhum de nós parou um certo dia, para pensar quem desejaria. Acredito que muitos gostariam que assim o fosse, por que isso o permitiria flexibilizar, variar, e não sofrer julgamentos e preconceitos tão doídos de serem combatidos. Dizemos Orientação Sexual do Desejo pois nosso desejo se orienta para um determinado objeto amoroso. Não optamos e sim percebemos o nosso desejo erótico, descobrimos algo que já parece instalado em nós.

O desejo erótico não é influenciável como se imagina ser. Se o fosse não existiram gays e lésbicas. A nossa sociedade é heteronormativa. Tudo que existe nela é feito pensando na heterossexualidade. Pais e mães educam seus filhos para a heterossexualidade. O preconceito social, a homofobia e as religiões ainda são muitos fortes na sua postura contra a homossexualidade. E mesmo com tudo isso os homossexuais não se influenciam pela heterossexualidade.

“Desejo sexual” é parte fundamental da orientação afetivo sexual, ao passo que uma “atitude sexual” pode existir interdependentemente da orientação do desejo. Por exemplo, na época da Segunda Grande Guerra muitas mulheres tinham relações sexuais entre si, assim como muitos homens, no campo de batalha. Estas mulheres sentiam falta de seus companheiros, a orientação de seu desejo era claramente voltada para homens, mas relacionavam-se sexualmente com outras mulheres. As mulheres motivadas por um desejo de descarregar a sua energia sexual. Com a volta de seus companheiros, essa atitude automaticamente deixava de existir.

Em muitos casos, homossexuais que não querem viver a sua orientação, vão à procura de igrejas, e/ou profissionais que estimulam atitude sexual desses homossexuais. Esses gays tentam viver anulando o seu desejo erótico e tendo somente atitudes sexuais heterossexuais. A dor psíquica é muito grande.

Muitos meninos têm uma relação que se chama “troca-troca” que está longe de ser considerada homossexualidade. Um dos motivos é porque para a maioria o objeto desejado internamente é uma pessoa do outro sexo. O que há é um exercício de sexualidade, um descarrego de energia que está vibrando nos corpos com toda a sua força e é vivido com um(a) colega. Em suma, todo ser humano pode ter uma atitude sexual com qualquer dos sexos, mas seu desejo interno, a libido, é o determinante de uma conduta homo, hetero ou bissexual.

O que seria então a bissexualidade? A bissexualidade não é termos uma atitude sexual por uma pessoa e um desejo erótico por outra. A bissexualidade é um fenômeno que algumas pessoas têm de desejar afetiva e sexualmente tanto homens como mulheres. Não podemos falar que um bissexual optou por homens ou por mulheres. Não escolhemos, conscientemente, por quem nos apaixonamos, assim como não escolhemos por que vamos desejar eroticamente.
Concluindo: podemos dizer que o desejo erótico, ou ele é homo, por uma pessoa do mesmo sexo que o nosso, hetero por uma pessoa do sexo diferente do nosso, ou bissexual que é o desejo erótico pela pessoa do mesmo sexo ou do sexo oposto.

E a Travestilidade e a Transexualidade, como se comportam? Uma pessoa hetero ou homossexual tem a sua identidade sexual correspondente ao seu sexo biológico. Uma travesti tem a sua identidade dupla, ou seja, ela se sente homem e mulher ao mesmo tempo. O leitor deve se lembrar quando falamos de identidade sexual? A sensação de pertencimento à identidade sexual feminina e masculina da travesti é o que lhe garante mais do que o desejo, a necessidade de adequar o seu corpo aos dois sexos que sente pertencer.

A Travestilidade também não é opção, muitas pessoas crêem erroneamente que a travesti é um gay muito afeminado que resolveu virar mulher. Além de simplista esta afirmação esta recheada de equívocos. Uma travesti diferente do gay tem uma identidade dupla: masculina e feminina. Uma travesti pode ter papeis sexuais tanto masculino como feminino, pois como já dissemos anteriormente esse é um processo de identificação com valores e costumes da sociedade. Quanto ao desejo erótico, uma travesti pode ser homo, hetero, ou bissexual.

A maioria delas se intitula homossexuais, mas não é bem assim. Quase a unanimidade dessas travestis sente-se mulher. Na grande maioria do tempo, elas não desejam eroticamente o seu amigo gay, elas desejam um homem típico heterossexual. Portanto se uma pessoa se identifica, sente-se mulher e sente atração por um homem, o seu desejo é heterossexual. Portanto a maioria das travestis tem o desejo heterossexual. Uma relação homossexual de uma travesti seria com uma outra travesti.

A Transexualidade, caracteriza se pela identidade sexual ser oposta ao sexo biológico é como se a sua “alma” fosse do sexo oposto do que o seu corpo a condena. A necessidade de correção do corpo para a identidade sentida se faz urgente. Muitos Transexuais se mutilam para poder fazer a cirurgia de adaptação genital. A força da identidade sexual é a tônica na construção da nossa identidade de gênero. Uma transexual também pode ser homo, hetero ou bissexual.

Para quiser se aprofundar, sugiro o livro “Uma outra verdade – Perguntas e respostas para pais e educadores sobre homossexualidade na adolescência”, de Claudio Picazio pela Editora Summus. A leitura é fundamental. Talvez com informação possamos inverter uma lógica perversa. Quando alguns pais “descobrem” que o filho é gay ou a filha lésbica, recebem suporte emocional de parentes e amigos. Mas deixam sozinhos seus filhos, que têm que passar sozinhos pela fase de sua própria descoberta. Isso é justo?

O bonde da história


A Parada Gay de São Paulo é um marco na luta pelos direitos dos homossexuais no Brasil. O aumento estrondoso no número de participantes a cada ano mostra a evolução do evento. Em sua primeira edição, há 16 anos, cerca de 300 pessoas -em sua maioria homossexuais- reuniram-se para reivindicar a garantia de seus direitos. Eu estava lá.

O evento cresceu enormemente, manteve as reivindicações e transformou-se em motivo de encontro e celebração de diferentes tribos. As famílias foram para a rua declarar sua tolerância e a parada se tornou a maior manifestação gay do mundo. No ano passado, 4 milhões de pessoas lotaram a avenida Paulista e o evento gerou mais de R$ 200 milhões para os cofres da cidade.

Se aos poucos a cobrança de direitos foi ficando diluída, é indiscutível que a parada possibilitou o surgimento de vários outros eventos culturais voltados para o público LGBT e deu enorme visibilidade para as reivindicações da comunidade. Além de outras paradas que criam espaços na mídia e celebram o orgulho da diversidade sexual por todo o país.

Nestes últimos anos tivemos alguns avanços do lado do Executivo (declaração de Imposto de Renda conjunta e INSS) conquistados no governo Lula. Nada do Congresso. O projeto que criminaliza a homofobia encontra-se há anos no Senado ainda com dificuldades de aprovação.

Há um ano o STF concedeu aos casais homossexuais os mesmos direitos e deveres que a legislação brasileira já estabelece para os casais heterossexuais. Durante a votação, o então presidente do STF, o ministro Cezar Peluso, cobrou do Congresso que "assumisse a tarefa que até agora não se sentiu propenso a fazer" e transformasse a conversão em lei. Começamos.

Há poucas semanas a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou projeto, de minha autoria, que altera artigos do Código Civil para reconhecer como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A proposta dá um passo adiante na decisão do STF permitindo a conversão da união homoafetiva em casamento.

O projeto seguiu para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde será relatado pelo senador Roberto Requião. Aprovado, irá à Câmara dos Deputados.

É uma oportunidade concreta para os parlamentares tomarem o bonde da história, como fizeram recentemente na CCJ aprovando a lei das cotas nas universidades para os mais carentes e os negros. Esse caminho, do cumprimento da Constituição e de ações afirmativas voltadas à garantia dos direitos humanos, está traçado. Pode demorar mais, ou menos, mas é inexorável.

Agora é a vez do Congresso. O Brasil espera e a parada de amanhã [hoje] exigirá.

- Marta Suplicy
Publicado ontem na Folha de S. Paulo. Reproduzido via Conteúdo Livre
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