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domingo, 22 de abril de 2012

Intolerância religiosa


SOU ATEU e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.

A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.

Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos eternos, caso único entre os seres vivos.

Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado, para eles a vida eterna não faz sentido.

Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.

Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.

Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?

Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há milhares, mas um único Deus?

Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?

O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.

Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados mensageiros de Satanás.

Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a sociedade -quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos massacres.

Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.

Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne intolerante, autoritária ou violenta.

Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam.

- Drauzio Varella
Reproduzido via Conteúdo Livre

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Como se Deus não existisse

Foto: Shen Wei

Dietrich Bonhoeffer, autor dessa frase tão carregada de conteúdo, foi enforcado pelo regime de Hitler, acusado de conspirar contra o próprio. Sua vida transcorre entre o dia 4 de fevereiro de 1906 e sua execução no dia 9 de abril de 1945, após ter sido condenado por um tribunal em um pacote que reuniu o Almirante Canaris e outros cinco militares de alta graduação e um juiz. Ele era um pastor evangélico filiado à Igreja Confessante, um grupo dentro da Igreja Luterana que ele mesmo liderava em sua oposição aberta ao nazismo e ao silêncio de sua Igreja oficial e em defesa dos judeus.

Pertencia a uma família da alta sociedade prussiana. Havia dedicado a  vida a ser vigário do pastor de Barcelona e ao ensino nos seminários da Alemanha e dos EUA, mas, perante a irrupção do nazismo, se sentiu chamado a se concentrar na luta contra Hitler e se uniu ao grupo do almirante Canaris em sucessivas tentativas de derrubar o ditador.

Foi preso no dia 5 de abril de 1943 e, a partir desse momento, soube que acabaria na forca. No tempo em que passou na prisão, pôde escrever cartas e outros documentos nos quais amadurece seu pensamento e sua religiosidade. Afastado do ensino de futuros aspirantes ao ministério e da pregação nos seminários, sua vida na prisão está destinada ao fracasso da forca e – algo que lhe marcou ainda mais – ao diálogo e em relação com presos alheios a toda ideia religiosa, descrentes ou agnósticos.

Essa circunstância dupla – junto com a correspondência com sua namorada Maria von Wedemeyer, que sempre o trazia para a realidade – o move a elaborar um pensamento novo ou, melhor, a extrair as consequências mais audazes dos princípios do Iluminismo e da evolução da teologia e da filosofia alemãs mediante pensadores como Harnack, Barth e outros.

Extraímos de seus escritos da prisão alguns parágrafos que poderiam resumir seu pensamento e esclarecer e especificar o conteúdo de sua expressão "É preciso viver como se Deus não existisse", que, longe de significar um posicionamento ateu ou negação de Deus, é uma afirmação do Deus que se manifesta para nós através de toda a Bíblia e, principalmente, em Jesus de Nazaré.

- "O Iluminismo condena o homem a resolver todas as questões importantes, não só as científicas e artísticas, mas também éticas e até mesmo religiosas, sem apelar para a hipótese Deus. Não se trata de negar a Deus, mas sim de afirmar a sua inutilidade".

- "As pessoas religiosas falam de Deus quando o conhecimento humano não dá mais de si mesmo, ou quando fracassam as capacidades humanas. Na realidade, limitam-se sempre a oferecer um deus ex machina, ao qual exibem para que solucione os problemas insolúveis... Mas não quero falar de Deus nos limites, mas sim no centro, não nas fraquezas, mas sim na força, isto é, não na hora da morte e da culpa, mas sim na vida e no bom do homem. Nos limites, parece-me melhor guardar silêncio e deixar sem solução o insolúvel".

- "Não podemos ser honestos sem reconhecer que é necessário que vivamos neste mundo etsi Deus non daretur [como se Deus não existisse]... Ele nos faz saber que é preciso que vivamos como seres humanos que chegam a viver sem Deus. O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho "Deus" é aquele perante o qual estamos constantemente. Diante de Deus e com Deus, vivemos sem Deus. Deus se deixa desalojar do mundo e pregar na cruz. Deus é impotente e fraco no mundo, e só assim está em nós e nos ajuda... Mateus 8, 17 nos indica claramente que Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos".

Eis aqui a diferença decisiva de todas as demais religiões. A religiosidade do ser humano o remete, em sua miséria, ao poder de Deus no mundo: Deus é o deus ex machina. A Bíblia o remete ao sofrimento e à debilidade de Deus. Só o Deus sofredor pode ajudar. Nesse sentido, pode-se dizer que a evolução do mundo para a vida adulta, fazendo tábua rasa de uma falsa imagem de Deus, liberta a miséria do ser humano para direcioná-la para o Deus da Bíblia, que adquire seu poder e seu lugar no mundo pela sua impotência.

Bonhoeffer confessava da prisão que, frente "às pessoas religiosas, com frequência, não me atrevo a pronunciar o nome de Deus, porque tenho a sensação de produzir um som equivocado e não muito honesto. Frente a pessoas não religiosas, ao contrário, posso nomear Deus ocasionalmente com toda a tranquilidade e como algo óbvio".

É claro que essa linguagem de Bonhoeffer, lutador de primeira fila e mártir do nazismo, se choca frontalmente com a linguagem de Ratzinger, cuja trajetória frente ao nazismo está muito longe de ser tão veemente e decidida como a do pastor da Igreja da Confissão... E, sem dúvida, a tensão do ser humano e de seu espírito ao enfrentar uma morte violenta como a que coube a Bonhoeffer ajudam a alcançar as verdades em toda a sua profundidade.

- Honorio Cadarso
Artigo publicado no sítio Atrio, 18-01-2012. Tradução: Moisés Sbardelotto
Reproduzido via IHU, com grifos nossos.

Nota do autor:
As citações foram extraídas do livro Resistencia y sumisión. Cartas y apuntes desde el cautiverio, que reúne os escritos de Bonhoeffer na prisão. Foi editado pelas Ediciones Sígueme, Salamanca, 2008. Também pode-se consultar um estudo da teologia de Bonhoeffer escrito por Arnaud Corbic, intitulado Cristo, Señor de los no religiosos, disponível aqui (em espanhol), Biblioteca Koinonia.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Sim, sou alguém e sou feliz sem Deus

Charge daqui

Do excelente blog da Lola, tomamos a liberdade de reproduzir este guest post do Robson, do blog Consciência. Para a gente ver e refletir como preconceitos, sectarismos e exclusões são muito parecidos, independente de quem sejam os alvos.

É uma pena que a fundamental busca do ser humano pela verdade e por sua realização seja tantas vezes obscurecida pelo uso das "verdades" que se vão encontrando pelo caminho como instrumentos de intolerância, segregação e marginalização... Ou, como diz um texto que publicamos há algum tempo aqui:

"A única coisa que um judeu precisa saber é que Moisés ensinou que havia um só Deus para todas pessoas. O resto é irrelevante.
Um cristão precisa saber que o Cristo mensageiro disse para amar o próximo como a si mesmo e Deus sobre todas as coisas. O resto é irrelevante.
Os budistas precisam saber que Buda ensinou que devemos nos desprender de nosso orgulho, ego, cobiça e ambição material. O resto é irrelevante.
A única coisa que um muçulmano precisa saber é que a guerra santa que o profeta ensinou não é uma batalha contra outras crenças. E sim a conquista do nosso próprio mal, tentações e orgulho. O resto é irrelevante.
E a única coisa que um ateu precisa entender é que nós, não um deus distante, somos os responsáveis por nossas atitudes. O resto é irrelevante." ;-)

Sou alguém e sou feliz sem (um) Deus. Sou ético e tenho bom coração sem ele. É o que sou. Sou aquilo que tantos religiosos juram que não existe: alguém que descrê em Deus, respeita os irmãos de senciência e leva uma vida agradável –- não a mais agradável possível, com que eu sonho diariamente, mas me sinto bem confortado com o que tenho ao meu alcance hoje, livre de grandes problemas.

Religiosos ateofóbicos dizem que ninguém pode ser feliz nem bondoso sem o Deus deles. Dizem que ninguém que não crê em Deus pode viver uma vida boa, saudável e moralmente reta. Para eles eu sou alguém que não existe. Porque sou feliz e bondoso sem um Deus para me guiar e moralizar.

Não me sinto superior de forma alguma, mas eu sinceramente posso sentir uma ponta de pena daqueles que dizem coisas do tipo “Sem Deus eu não sou ninguém”, “Sem Deus eu não sei viver”, “Sem Deus eu não sou nada!”, “Sem Deus minha vida não tem sentido!”. Porque isso revela um tanto de pequenez, submissão humilhante e autoestima deficiente viciada na religião. E também porque há no planeta centenas de milhões de pessoas -– talvez passem do bilhão -– que, a despeito da crença auto-humilhante e negacionista de tantos crentes, são algo/alguém, sabem viver e têm uma vida provida de sentido sem uma entidade superior que chamem de Deus.

Tenho família e amigos fiéis e sou financeiramente razoável (nem pobre nem abastado). E, claro, sou cheio de amor para dar. Amor a tod@s – mulheres (em todos os sentidos), homens (fraternidade, amizade, respeito e apreço), animais não humanos (carinho, amizade e respeito ético) e Natureza silvestre (devoção, carinho, comunhão espiritual e profundo respeito não só como mantenedora da vida, mas também como portadora de um sentido intrínseco que eu gostaria de desvendar).

Gosto de computador, de internet, dos meus blogs, dos meus artigos, do Twitter, de alguns “blogs sujos”, de alguns blogs de humor, das tirinhas de memes, do Trollface, do FFFFFUUUUU-, de games de estratégia, de praia, de viajar, de florestas, do céu estrelado da noite, de contato com a Natureza, de animais não humanos (o que se reflete também em meus hábitos de consumo), de Coldplay, de synthpop, de new wave anos 80, de rock pernambucano, do antigo movimento Rock Brasil, de sair com amigos, de paquerar, de amar, de visitar livrarias, de sucos de maracujá e acerola, de comida vegana, de revisão e correção de textos, de livros, de sociologia, da esquerda política, de feminismo, de abolicionismo animal, de antimilitarismo, de ambientalismo, de teoria socioambiental, de Educação Ambiental, de História à Annales, de ler sobre religiões politeístas e orientais, de literatura ateísta, de O Senhor dos Anéis, de Star Wars, de Matrix, de Smallville, de Beavis & Butt-head, de Cavaleiros do Zodíaco, de Dragon Ball Z, do anime Yu-Gi-Oh, de Capitão Planeta, dos Simpsons, de Chaves, de Chapolin, de rir com gols contra… Sou um ser humano íntegro, com emoções, gostos, interesses, necessidades, anseios, sonhos, tudo o que um ser humano normal tem.
Sou, estou, sinto, gosto, amo, detesto, sofro, protejo, luto, rio, choro, regozijo, trabalho, contemplo, medito, conquisto, fracasso, venço, perco, supero… Sem Deus. Sem Javé, sem Cristo, sem Allah, sem Zeus, sem Xangô, sem Shiva, sem Odin, sem Amaterasu, sem a Deusa e o Deus, sem Ísis, sem Dagda, sem Marduk, sem Baal, sem Ngai, sem Quetzalcoatl, sem Inti, sem Aton, sem nenhuma deidade.

Sou um dessas centenas de milhões de seres humanos que sabem que sentido da vida, ética, bondade e alegria de viver independem de religião e crença. Não preciso de deus nenhum, tampouco de recompensas e punições como o céu e o inferno cristãos, para me dizer o que é certo e errado e que devo ser submisso a uma divindade altamente contraditória para ser feliz. E isso, a despeito da intolerante crença de tantos, não me tira o conceito de moral -– pelo contrário, modéstia à parte, minha consciência ético-moral respeita e zela por muito mais seres vivos do que a média da população religiosa respeita (ou diz respeitar), ainda que isso não seja regra no ateísmo.

Por mais que suas igrejas e a Bíblia neguem isso aos cristãos pouco tolerantes, há ateus boníssimos e cristãos perversos e criminosos –- da mesma forma que há também cristãos boníssimos e ateus perversos e criminosos. Ao contrário do que os Datenas da vida vociferam, não ter Deus no coração não me leva a cometer nenhuma violência, crueldade, crime ou transgressão legal, ao mesmo tempo em que “amar a Deus sobre todas as coisas” não impede que tantos padres abusem de crianças, inúmeros pastores extorquam seus “cordeiros” e muitos fanáticos assassinem e destruam “em nome de Deus”.

Não vou me arrogar como um exemplo de pessoa moral e reta, tenho defeitos e vícios (nenhum, porém, que comprometa minha saúde) como qualquer ser humano, mas minha vida e personalidade me são bastantes para derrubar diversos odiosos mitos morais que envolvem o ateísmo.

Como o de que Deus seria necessário para dizer o que é certo e errado: especialmente porque muito do que a tal moral bíblica diz como certo os Direitos Humanos e também os Direitos Animais, ambos de cunho essencialmente secular, consideram eticamente censurável –- guerras, genocídios, sacrifícios animais, estupros, machismo, homofobia, intolerância religiosa, ódio, extorsão com pretextos religiosos etc. E porque mesmo a grande maioria dos ditames morais que os cristãos obedecem hoje não são bíblicos, mas sim laicos -– em outras palavras, mesmo para os próprios crentes a Lei de Deus na prática não prevalece mais sobre a Lei dos Humanos (“dos homens” não, por favor).

E o de que o ateísmo teria sido responsável pela malignidade dos Stalins, Pol Pots e Milosevics da vida: além desse mito ser uma generalização extremamente preconceituosa e ignorar que, ao contrário das religiões, o ateísmo, não sendo nenhum sistema organizado de crenças mas sim a ausência dele, não determina qualquer orientação moral, ele ignora a existência dos assassinos cristãos que até apelaram ao seu Deus para justificar seus crimes, como Hernán Cortés, Francisco Pizarro Adolf Hitler, Tomás de Torquemada, George W. Bush, Teodósio e inúmeros papas das Idades Média e Moderna.

Sou algo e alguém, sou feliz e moralmente reto e minha vida tem todo um sentido sem Deus, e não tenho vergonha nenhuma de dizer isso, pelo contrário. Faço questão de fazê-lo -– aliás, sou obrigado a isso, ainda mais neste país em que infelizmente a não amoralidade ateísta não é considerada algo óbvio. E sou mais satisfeito ainda por poder dizer que sou oposto aos religiosos intolerantes e teocêntricos no que tange a ser livre daquela submissão e autoestima viciada que condiciona todo o sentido da vida, a felicidade e a própria qualidade de ser algo ou alguém a um Deus específico.

É para mostrar que ateus também são gente como qualquer cristão, como qualquer religioso, que escrevi este texto. Para mostrar que todos os seres humanos são moralmente iguais, são igualmente humanos, são igualmente sencientes, são igualmente vivos, são igualmente seres com ou sem Deus. E não é a ausência dele que nos faz deixar de ser tudo aquilo que somos em essência.
Se você ainda acredita que sem Deus é impossível ser alguém e viver, conheça a nós ateus. Conviva conosco. Busque nos entender. Abandone seus preconceitos. Aceite-nos como somos. Aceite os irreligiosos que somos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sentidos do fundamentalismo


"Os motores de muitos fundamentalismos missionários são a incapacidade de viver à altura dos preceitos pregados e a inveja de quem não respeita esses preceitos", escreve Contardo Calligaris, psicanalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2011.

Eis o artigo, aqui reproduzido via IHU.


Eis uma (pequena) contribuição ao debate sobre fundamentalismo que se deu, recentemente, na Folha (artigos de Ives Gandra da Silva Martins, 24/11, e Daniel Sottomaior, 8/12; cartas dos leitores Antônio Ilário Felici e Francisco Guimarães, 9/12; coluna de Hélio Schwartsman, 10/12).

Fundamentalista é, antes de mais nada, quem leva a sério sua convicção e segue à risca os preceitos que derivam dela.

Se você for católico, não se divorciará nem comerá carne na Sexta da Paixão; se for judeu, no sábado, evitará ligar a luz elétrica; se for muçulmano, não tomará álcool e, caso seja mulher, circulará de véu fora de casa; se for ateu, não invocará a misericórdia divina, nem mesmo em momentos de extremo perigo.

Meu pai era convencido de que existem mistérios para os quais qualquer resposta seria desonesta.

Nesse seu agnosticismo, ele era fundamentalista no sentido que acabo de definir. Um dia, quando meu irmão e eu éramos já adultos, ele quis que prometêssemos que, se ele, na agonia, pedisse a assistência de um padre, nós lhe negaríamos esse recurso, considerando que sua sanidade mental teria se perdido no aperto acovardado da última hora.

Prometemos. Por sorte, ele morreu sem pedir conforto religioso algum. Se ele tivesse pedido, não sei se eu teria mantido minha promessa; à diferença dele, eu não sou fundamentalista: decido e escolho segundo as circunstâncias e não por princípio.

Mesmo assim, tenho respeito, se não simpatia, por esse tipo de fundamentalismo. E acho que todos deveriam poder levar (e viver) suas convicções a sério, se assim quiserem -claro, nos limites básicos impostos pelos códigos Penal e Civil, que regem a convivência social.

Mas tenho pressa de chegar ao outro sentido, pelo qual fundamentalista é quem exige que os preceitos que derivam de suas convicções ou de sua fé sejam observados por todos -ou mesmo que eles se transformem em lei da sociedade inteira.

Esse tipo de fundamentalista, seja qual for sua convicção, religiosa ou ateia, é animado pela necessidade de converter os outros, a qualquer custo. Em geral, ele acha que a violência de seu espírito "missionário" é um corolário de sua fé e uma prova de sua generosidade: "Forçando o outro a se converter, eu só quero seu bem, mesmo que seja contra a vontade dele".

Com esse tipo de fundamentalista, eu implico, por duas razões.

Primeiro, detesto que alguém esconda sua violência atrás de pretensas boas intenções e não gosto da ideia de que um outro imagine saber o que é "bom" para mim.

Segundo, não acredito que alguém possa querer converter os outros à força por generosidade.

Há duas razões pelas quais, em regra, alguém quer impor as normas de suas convicções aos outros, e ambas são péssimas:

1) Ele precisa que ao menos os outros respeitem essas normas, que ele preza, mas não consegue impor a si mesmo - ou seja, incapaz de obedecer a seus próprios princípios, ele quer validá-los pela obediência forçada dos outros;

2) Ele quer se livrar da inveja que ele sente da vida dos que não respeitam essas mesmas normas (para assinalar a componente de inveja, presente nos moralistas, Alfred Kinsey, o grande sociólogo e sexólogo, dizia que "ninfômana" e "tarado" são os que conseguem ter uma vida sexual mais intensa do que a da gente).

Em suma, os motores de muitos fundamentalismos missionários são a incapacidade de viver à altura dos preceitos pregados e a inveja de quem não respeita esses preceitos.

Por isso, no debate (ou na gritaria) entre homossexuais e evangélicos, por exemplo, nem preciso decidir se gosto mais de Oscar Wilde ou do apóstolo Paulo.

Pois, bem antes e independentemente disso, a oposição relevante é a seguinte: os homossexuais não pretendem que os evangélicos passem todos a transar com parceiros do mesmo sexo ou a frequentar baladas gays, enquanto os evangélicos pretendem que os homossexuais se convertam e renunciem a seu desejo (transformado em "pecado") - ou, no mínimo, que eles sejam impedidos de viver segundo suas próprias disposições e convicções.

Ou seja, para se situar nessa oposição, não é preciso escolher entre as ideias e as práticas das partes, mas entre os que querem regrar a vida de todos segundo seus preceitos e os que preferem que, nos limites da lei, todos possam pensar e agir como quiserem.

Assim sendo, como se diz na roleta, "façam suas apostas".

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Eu, religioso sem fé

Ilustração: Adriana Komura

Depois de ter perdido toda uma série de práticas e de tradições que os ateus consideravam insuportáveis por causa daquilo que Nietzsche definia de "o mau cheiro da religião". a sociedade secular se empobreceu injustamente. Enquanto buscávamos nos libertar de ideias impraticáveis, também renunciamos erroneamente a alguns dos aspectos mais úteis e fascinantes da religião.

A opinião é do escritor e filósofo suíço Alain De Botton (fundador da School of Life, em Londres), em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 04-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Cresci em uma família de ateus convictos, filho de judeus não observantes que colocam a fé religiosa no mesmo plano da fé no Papai Noel. Meu pai tinha conseguido fazer a minha irmã chorar quando havia tentado extirpar da sua mente a ideia, nem tão enraizada, de que, em algum lugar do universo, se escondia um deus solitário.

Eu tinha oito anos, na época. Se os meus familiares descobrissem que alguém, no seu círculo de conhecidos, nutria secretamente um sentimento religioso, começavam a tratá-lo com a comiseração que, em geral, se reserva a quem sofre de uma doença degenerativa. A partir desse momento, para eles, era impensável recomeçar a levá-lo a sério. Embora eu tenha sido fortemente influenciado pela atitude dos meus pais, passados os 20 anos, o meu ateísmo me pôs em crise. As dúvidas surgiram quando eu ouvi pela primeira vez as cantatas de Bach; se desenvolveram enquanto eu observava algumas Madonnas de Bellini; e se tornaram um tormento quando eu me aproximei pela arquitetura zen.

No entanto, foi apenas muitos anos depois da morte de meu pai – enterrado sob uma lápide gravada em hebraico em um cemitério judeu de Willesden, zona noroeste de Londres, porque, detalhe interessante, ele tinha se esquecido de deixar instruções mais seculares – que eu comecei a aceitar o peso da minha ambivalência com relação aos princípios indiscutíveis que me haviam sido incutidos durante a infância.

A minha certeza de que Deus não existe permanecia intacta. Eu me sentia simplesmente mais livre para a ideia de que havia um modo de se aproximar da religião sem ter que aceitar também, por força, o lado sobrenatural; um modo, em termos mais abstratos, de pensar nos Padres sem ofuscar a memória do meu pai. Dei-me conta de que a minha prolongada resistência às teorias sobre o além ou sobre os habitantes do paraíso não era uma justificação suficiente para descartar a música, os edifícios, as orações, os rituais, as celebrações, os santuários, as peregrinações, as refeições em comum e os manuscritos iluminados.

Depois de ter perdido toda uma série de práticas e de tradições que os ateus consideravam insuportáveis por causa daquilo que Nietzsche definia de "o mau cheiro da religião", a sociedade secular se empobreceu injustamente. Agora, o termo "moralidade" nos causa medo, e, ao pensamento de ouvir um sermão, preferimos dar no pé.

Evitamos a ideia de que a arte pode nos elevar ou ter uma missão ética. Não vamos em peregrinação. Não sabemos mais construir templos. Não temos instrumentos para expressar gratidão. A ideia de ler um manual de autoajuda nos parece estar em contraste com os nossos nobres princípios. Rejeitamos o exercício mental. Raramente vemos desconhecidos cantando juntos. Infelizmente, estamos diante de uma escolha: abraçar a estranha ideia de que existem divindades imateriais, ou abandonar em bloco uma série de rituais reconfortantes, refinados ou simplesmente fascinantes dos quais custamos para encontrar um equivalente na sociedade secular. Talvez tenha chegado o momento de liberar as nossas necessidades espirituais do verniz religioso que os recobre, embora, paradoxalmente, muitas vezes, seja o estudo das religiões que nos fornece a chave para redescobrir e reformular essas necessidades.

A minha tentativa é a de ler as fés, principalmente a cristã, e, em menor medida, a judaica e a budista, em busca de intuições que possam ser úteis na vida secular, sobretudo com relação aos problemas levantados pela convivência dentro de uma comunidade e dos sofrimentos mentais e físicos.

Longe de negar os valores do secularismo, a minha tese é de que, muitas vezes, secularizamos mal, isto é, enquanto buscávamos nos libertar de ideias impraticáveis, também renunciamos erroneamente a alguns dos aspectos mais úteis e fascinantes da religião.
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