sábado, 9 de julho de 2011

Arnaldo Jabor - Os gays e a paranoia do mundo




Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo - 05 de julho de 2011

As recentes "paradas gay" surpreendem - nunca pensamos que houvesse tanta gente "dentro do armário". São milhões pelas avenidas, atacados depois por evangélicos e caretas em geral, que criticam a falta de pudor.

Será ilusão ou estatística? Antes, havia três ou quatro homossexuais declarados no Brasil. Diziam: "Fulano é "mulherzinha", ou sicrano é "pederasta" ou ainda beltrano é fresco, fruta, maricas, invertido, perobo, tia e: veado (ou "viado"?) Creio que foi Millôr Fernandes quem escreveu uma vez que "quem escreve "veado" em vez de "viado" é viado. Acho a melhor palavra para definir "homossexual" em português, apesar dos traços pejorativos do nome.

Mas, por que "gay", que também revela sutilmente uma "finesse" falsa, um eufemismo em inglês meio preconceituoso? "Gay" é originalmente "alegre", o que também é uma denegação do sofrimento que tiveram (e têm) de enfrentar.

Viado é uma doce palavra brasileira e devia ser assumida como oficial. "Sexo, por favor?" "Viado", responde a "santa".

Há muito tempo, procurei a origem da palavra que tanto inquieta o macho brasileiro. Cheguei uma vez a telefonar para Antônio Houaiss, que me disse que talvez a origem venha do particípio passado do verbo venari em latim (que significa "caçar", ou seja, venatus, o "caçado").

Esta palavra já descrevia o "corço" desde o século 13, mas o sentido de pederasta passivo surge com o carioca do século 20, talvez, me aventou o Houaiss, pelo fato de que o corço é seduzido pela corça, sendo portanto um macho passivo. Veado é a grafia certa, mas tira da palavra sua conotação sexual. Houaiss me autorizou a usar "viado".

Esta palavra me transtorna desde pequeno.

Lembro-me de que, na rua da infância profunda do Rio, escutei pela primeira vez: "Fulano é viado!" Senti que era um rótulo apavorante e antes mesmo de saber o que era aquilo, era necessário não ser "viado". Era inquietante ver indícios na minha infância: garotinhos que davam atrás do muro, um fremir de medo diante da violência do futebol de rua, uma alvura de nádegas nos cantos de quintal, era o pecado nascente nos subúrbios dos anos 50, quando tudo era pecado - gravidez solteira era uma espécie de doença venérea que as mulheres podiam pegar.

Havia outros palavrões, claro, que íamos descobrindo. "Puta", por exemplo, carregava uma pecha brutal, mas pelo menos tinha contornos visíveis. Puta era supergráfica. Uma mulher era "puta" ou não era. Qualquer uma podia ser, menos a mãe da gente, claro. "Viado", não. "Viado" tinha uma sombra de ambiguidade, um quê de duplo, um desequilíbrio que assustava.

Acho que aprendi da complexidade da vida com a palavra "viado". A palavra dava medo, porque nos fazia perder a identidade; não seríamos nem homem nem mulher. Viado era o ser dividido. Viado era o mistério.

Isso me ensinou que não havia apenas o pai e a mãe; havia uma terceira coisa mais além, mais perigosa. Aprendi que a vida não era simples como pensávamos, que corríamos o risco de cair no mundo terrível de "Amélia", um mendigo viado que fazia trejeitos com os olhos pintados que, diziam, tinha dado mijo à mãe doente que lhe pedira água e, por isso, Deus o castigou. Lendo Proust, vemos que a barra era mais pesada ainda no início do século, quando ele próprio se referia ao homossexualismo como "vício".

Ser viado nos anos 50 era uma permanente tarefa de ocultação.

Os homossexuais tinham de se esgueirar entres dois mundos, o do macho e da fêmea, em vielas e disfarces.

Nos anos 50, os mais corajosos e livres chegavam no máximo à categoria de "bichas loucas", assumidas, mas mantendo uma caricatura de si mesmas, feita de trejeitos autoaviltantes.

Com os anos 60, o gay tornou-se a celebração viva do complexo, do múltiplo, de uma alegre liberdade, num parentesco com o mundo hippie e psicodélico.

Ser gay virou uma força política, a "gay power", um orgulho que só foi ferido com a trágica chegada da aids.

A epidemia virou a desculpa para a ressurreição rancorosa dos "homofóbicos" e conservadores que puseram a culpa nas vítimas da doença que viraram "culpados". A partir daí, a sexualidade sofreu uma mutação sinistra para todos, pois na hora do amor e sexo pensamos no perigo de morte.

Hoje, o crescimento das marchas e bandeiras está assustando os "heteros", com a intensidade ideológica da luta dos gays.

Uma amiga me disse: "Hoje só há três tipos de homem: os casados, os "roubadas" e os viados".

Mas, é verdade que os gays têm uma importância política hoje, pois carregam a lâmina das incertezas. Eles são a prova de que o mundo não é dois. Eles provam que as causas e efeitos não se cruzam tão facilmente e celebram uma ambiguidade muito mais rica que o discurso feminista ou machista radical.

Segundo psicanalistas, o homossexual não entra no "mundo do pai". Fica no estágio mais seguro de um drama edípico não realizado. Fica em uma casa com a mãe imaginária, não sai para a vida da Lei, do mundo real, da diferença sexual, da aceitação dos dois sexos.

Aí, arrisco minha humilde tese esquemática (bem o sei...): o mundo está virando uma barra tão pesada que a saída da casa (mãe) para a rua (pai) está cada vez mais apavorante. Como querer que uma pobre criança vire macho, se os exemplos de macheza são dados pela estupidez terrível dos homens do Poder? O sujeito olha o mundo lá fora, desmunheca e grita: "Nem morta!" E fica na saia da mãe.

A aceitação do homossexualismo ajuda a desenhar a constelação polivalente de hoje, a nebulosa de sentidos, as mil caras das injustiças.

Os viados são os didáticos habitantes deste mundo árido e confuso. São menos lineares, mais coloridos.

Estudando o caso do dr. Schreber, Freud argumentou que a paranoia seria talvez uma forma de defesa contra o homossexualismo latente.

Portanto, seguindo a minha linha simplista, acho que se a paranoia era uma defesa contra a viadagem, a viadagem é hoje uma defesa contra a paranoia.

Fonte: Estadão

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A leitura seletiva da Bíblia e suas consequências





Só interpretação fundamentalista do texto religioso cristão pode explicar
a postura de certos religiosos, diz especialista

30/06/2011

Joana Tavares

da Redação


Enquanto representantes conservadores das bancadas evangélica e católica protestam contra a ampliação dos direitos da população LGBT, estudiosos de teologia afirmam que o Estado deve separar a dimensão religiosa e civil, garantindo o bem comum. Recentemente, a Câmara dos Deputados indeferiu um Projeto de Decreto Legislativo, proposto pela Frente Parlamentar Evangélica, que visava derrubar a decisão do STF de legalizar as uniões estáveis homoafetivas.

“Em geral, os fundamentalistas assumem postura seletiva na leitura do texto bíblico: escolhem os versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e olvidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras fortes contra o homossexualismo e o condena, ensina o amor ao próximo”, aponta o reitor da Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG), padre Jaldemir Vitório, doutor em Exegese Bíblica. Ele aponta ainda que os direitos da população LGBT devem ser respeitados. “O Estado não pode se identificar com os interesses de grupos particulares, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interesse de todos e não a este ou aquele grupo”, afirma.

Brasil de Fato – Como o senhor vê a questão dos direitos da população LGBT e das políticas para garantí-los, como a decisão do STF de reconhecer as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo?

Jaldemir Vitório – A população LGBT é formada por cidadãos e cidadãs cujos direitos devem ser respeitados. Se se sente ameaçada, deverá ser protegida pelo Estado. Jamais poderá ser deixada à própria sorte, com o risco de ser vítima da intransigência de grupos intolerantes. Nas últimas décadas, tem buscado reconhecimento, lutando para garantir seu espaço no amplo espectro da realidade social, política, econômica, religiosa e, também, legal. Nesse sentido, a decisão do STF vai ao encontro dos anseios dos LGBT. Cabe perguntar se o STF é a instância competente para dirimir pendências no campo da união estável homoafetiva. Quanto à política do Estado, é preciso considerá-la sob o aspecto ético-cultural. É função do Estado promover políticas que ajudem os cidadãos a viver melhor, de modo que todo o corpo social cresça e se desenvolva de maneira harmônica, sem privilegiados e preteridos. Assim, a política do governo deve ser efetivada, tendo em vista a superação da discriminação, do preconceito e do ódio contra os LGBT. Por outro lado, é preciso considerar um dado cultural brasileiro, no tocante à constituição da família. Se se mantiver a distinção entre matrimônio e união estável, a decisão do STF poderá ter maior acolhida. Se houver equiparação, a sensibilidade cultural poderá ser afetada. Larga faixa da sociedade brasileira não está madura para pensar, com serenidade, a questão.

Qual sua opinião em relação ao programa “Escola sem homofobia”?

Seria bom que o governo, muito antes de levar adiante essa campanha, promovesse outras, do tipo “Escola sem professores mal remunerados”. Ou promovesse campanhas que tocassem na raiz da homofobia, ou seja, a intolerância e a violência que tomaram conta da sociedade,a ponto de escapar ao controle do Estado. E, em muitas circunstâncias, terem agentes do Estado como seus causadores. Não só os homossexuais estão com medo e vivem acuados. A “fobia” é uma espada de Dâmocles que pende sobre a cabeça da sociedade em geral. Cabe ao Estado, em primeiro lugar, enfrentar essa grave situação.

Como o senhor vê a polêmica que se deu com alguns congressistas religiosos que são contra a implementação de políticas públicas voltadas para os LGBT?

Por um lado, a moral dos grupos religiosos vale, em primeiro lugar, para seus membros. Quando pretendem impô-la ao conjunto da sociedade, extrapolam seus direitos. O Estado não pode se identificar com os interesses de grupos particulares, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interesse de todos e não a este ou aquele grupo. Por outro lado, as igrejas têm o direito de participar do debate democrático, defendendo seus pontos de vista, dialogando e interagindo com a variada gama de entidades e movimentos que compõem o tecido social. Entretanto, julgando-se revestidas de autoridade divina, podem cair na tentação de se considerarem com acesso direto à verdade. E, com isso, quererem impor seus pontos de vista. Tal equívoco mostrou-se, historicamente, inconveniente. Articuladas em contexto democrático, as igrejas devem aprender a arte do diálogo franco e aberto, com a possibilidade de prevalecerem pontos de vista contrários aos seus. Tenho, porém, uma crítica a fazer aos congressistas religiosos. Em geral, são pessoas de duvidosa qualidade política, articulados em torno de interesses corporativistas ligados às respectivas igrejas, quando não de baixa estatura moral, embora assumam posturas moralistas. Quiçá cumprissem melhor seu papel de religiosos se se lançassem na defesa dos pobres e se empenhassem na promulgação de leis que beneficiassem as parcelas desfavorecidas da população.

Há algum argumento bíblico que justifique a discriminação contra os homossexuais?

Só uma leitura fundamentalista e anacrônica da Bíblia pode fundamentar a postura de certos religiosos, que recorrem a ela, a cada passo, para justificar seus pontos de vista. A sociedade e a cultura da época eram muito distintas da nossa. Por isso, antes de se afirmar que a Bíblia ensina isso ou aquilo para os fi éis de hoje, é preciso fazer um longo percurso hermenêutico. São muitas as perguntas a serem, previamente, respondidas:quando o texto foi escrito? Em que contexto histórico, social, político, religioso etc.? O texto bíblico não tem um sentido imediato, à mão do leitor. Em geral, os fundamentalistas assumem postura seletiva na leitura do texto bíblico: escolhe mos versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e olvidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras fortes contra o homossexualismo e o condena (cf. Levítico 18,22; 20,13) ensina o amor ao próximo (cf. João 15,12). Quem, hoje, em nome da Bíblia, insiste em condenar os homossexuais ao fogo do inferno, deve considerar com atenção as palavras de Jesus: “Não julgueis e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos” (Mt 7,1-2). Com a mesma Bíblia na mão, é possível encontrar muitos textos para condenar os juízes dos homossexuais. Portanto, muito cuidado ao se servir da Bíblia no embate em torno de questões polêmicas, para as quais os consensos estão longe de serem encontrados.

Padre Jaldemir Vitório

é doutor em Exegese Bíblica e reitor da FaculdadeJesuítica de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG).




Fonte: Brasil de Fato

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Bispo apoia fiéis gays


Há dias que fico muito triste e decepcionado com a Igreja a ponto de esvair toda a minha esperança e despertar o que há de mais infrutífero em mim, principalmente com relação algumas asneiras da hierarquia. Estas, minam muito meu Eu católico e me desconectam da minha pouca religiosidade facilmente. No dia que estou de bom humor só me dá uma vergonha alheia, rs!

Foi o caso num dia desses que li o seguinte, post, “A propaganda gay, a cultura ex-cristã e os cristãos" de Dom Henrique Soares da Costa que é Bispo auxiliar da Arquidiocese de Aracaju, em Sergipe. Se tiver estomago clique e confira o texto medonho no blog Voto Católico.

Ouvi outro dia uma homilia muito interessante, o Pe. dizia que devemos reciclar o lixo que há em nós e reaproveitá-lo. Ou seja, devolver este lixo de forma produtiva pro meio social em que nós vivemos, tentando não reverberar o mal que nos fazem.

Estão, este post é uma tentativa de tornar o discurso deste Padre, que por sinal é muito inclusivo, uma prática.

Um olhar mais atento nesta reciclagem é não propagar discursos bobos, convém um olhar mais crítico sobre eles, talvez, como a reflexão aqui próposta. O post de Dom Henrique está num blog chamado “Voto Católico” e ainda há quem diga que religião e política não se misturam. Sem falar que o “Voto Católico”, “Voto Muçulmano”, “Voto Judeu” ou “Voto Evangelico” ferem a laicidade do Estado quando aplicados de forma hegemônica seus princípios fundamentalistas num Estado Democrático. Ou seja, completa desconexão com o meio em que se vive. Então, religião é um assunto político sim, porque há valores nelas que mal interpretados geram práticas e políticas públicas horrendas às minorias. Logo, reciclar este lixo do fundamentalismo religioso fechado ao dialogo é transformá-lo num debate menos alienante, dando vozes aqueles que nem sempre são ouvidos. O Bispo Auxiliar Dom Henrique teve direito a voz, mas há outros Bispos que também falam e deveriam ter seus discursos ecoados e tuitados que contribuem para um Estado mais plural, mais humano e mais crítico.

Este bla, bla, bla todo é um pedido meu pra que você leia e repasse a ideia deste, também Bispo, lá do México. Afinal, só repassamos coisas que nos dão asco e repudio, porque não as coisas boas?

Confiram a nota que saiu no IHU:

No México, fiéis gays pedem o casamento com o apoio de bispo

"Queremos propor, além do pacto civil (que regula as uniões homossexuais), melhorias e facilidades nos âmbitos da adoção e da segurança social, além de alterar o nome de 'pacto civil' para matrimônio". Dirigida ao novo Parlamento e ao novo governador do estado mexicano de Coahuila, o pedido foi feito pelo grupo de fiéis gays de Saltillo, San Elredo, ostentando o apoio já costumeiro do bispo local, Dom Raúl Vera López (foto).

A reportagem é de Eletta Cucuzza, publicada na revista italiana Adista, 04-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Apoio confirmado em março passado, quando o bispo participou da inauguração do IV Fórum da Diversidade Sexual, Familiar e Religiosa, organizado pelo grupo, a fim de "erradicar o preconceito de que os atos de amor homossexuais são contrários à vontade de Deus". "Na doutrina da Igreja – havia dito Vera López naquela ocasião –, no Evangelho, não se define a homossexualidade como pecado. São opiniões, mas não é o Evangelho".

É errôneo, acrescentou, o pensamento da Igreja que considera ruim o sexo e tudo o que tem a ver com a homossexualidade: "Não é assim". "A Igreja olha para a integralidade da pessoa, não para um aspecto". Tanto é verdade que, no mundo, existem ministérios e missionários dedicados à pastoral das pessoas homossexuais.

Talvez seja uma novidade para o México, mas, em Saltillo, o grupo San Elredo tem um assistente espiritual, o Pe. Robert Coogan, que, contatado pela agência AciPrensa, declarou: "Temos um forte apoio do bispo", embora "a única resposta que o Catecismo ofereça é dizer aos homossexuais que vivam o celibato": o que, a seu ver, "não é apropriado".

São recorrentes os ataques a Dom Vera pela sua contribuição ativa para a superação da homofobia: "Ataques bem conhecidos", de "terrível sabor homofóbico", comentou o próprio bispo, que, porém, não pretende responder diretamente às acusações. Nenhuma observação foi feita, por exemplo, sobre o pedido dirigido a ele por Natalia Niño, presidente da associação Familias Mundi, para romper os laços com a comunidade San Elredo.

"Esse grupo – afirma Natalia Niño – propõe um estilo de vida abertamente homossexual, defendendo o matrimônio e a adoção gays. A nossa crítica não tem nada a ver com pessoas individuais, com a sua dignidade e os seus direitos. Mas a doutrina da Igreja se opõe aos seus ensinamentos, e por isso pedimos que sejam interrompidas as relações entre a diocese e a comunidade".

A proposta do grupo San Elredo não é totalmente passageira no México. Em março de 2010, o Parlamento aprovou uma lei que equipara a união civil entre gays ao casamento, norma válida, no entanto, só para a capital mexicana, onde, nos 365 dias posteriores, 367 gays e 333 lésbicas contraíram o matrimônio.

Então, não é bacana ver um membro da hierarquia reciclando o lixo que tanto vemos, ouvimos e repassamos!


Rodolfo Viana

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Ayres Britto: preconceito de homofóbico o faz chafurdar no ódio


Conhecido por citações poéticas e votos progressistas, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto, 68, defende, pela primeira vez publicamente, a criminalização da homofobia, ao entender que quem a pratica “chafurda no lamaçal do ódio”.

Protestos de congressistas da bancada evangélica acabaram paralisando a tramitação do projeto de lei 122/06, a lei anti-homofobia, que está estacionado no Senado. Para o ministro, não são necessárias novas leis para garantir aos casais gays os mesmos direitos dos heterossexuais já que a Constituição é "autoaplicável".

Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Ayres Britto disse que vê o debate sobre as drogas como uma questão de "saúde pública" e afirmou ainda que "se nós, os homens, engravidássemos, a autorização para a interrupção da gravidez de feto anencéfalo estaria normatizada desde sempre".

Confira abaixo a entrevista do Ministro:

FOLHA – O STF tem sido acusado de usurpar a competência do Legislativo. O sr. concorda com essa afirmação?

CARLOS AYRES BRITTO – Não concordo. Veementemente respondo que o Supremo não tem usurpado função legislativa, principalmente do Congresso. O que o STF tem feito é interpretar a Constituição à luz da sua densa principiologia. O parágrafo 2º do artigo 5º autoriza o Judiciário a resolver controvérsias a partir de direitos e garantias implícitos.

E por que essa crítica ao STF?
As pessoas não percebem que os princípios também são normas e com potencialidade de, por si mesmos, resolver casos concretos quando os princípios constitucionais têm os seus elementos conceituais lançados pela própria Constituição. O Judiciário está autorizado a dispensar a mediação do Legislativo, porque, na matéria, a Constituição se faz autoaplicável.

No caso das uniões estáveis homoafetivas isso aconteceu?
Aconteceu, fizemos o saque de princípios constitucionais, tanto expressos quanto implícitos. Como fizemos quando proibimos o nepotismo no Judiciário e nos demais poderes. Porque o nepotismo é contrário a princípios constitucionais, até explícitos, como o princípio da moralidade. E cumprimos bem com o nosso dever: tiramos a Constituição do papel. Também no caso da homoafetividade, interpretamos os artigos da Constituição na matéria à luz de princípios como igualdade, liberdade, combate ao preconceito e pluralismo.

Qualquer nova lei virá confirmar o que foi decidido, mas nunca para criar regra diferente do que foi debatido?
Exatamente. A isonomia entre uniões estáveis heteroafetivas e homoafetivas é para todos os fins e efeitos. Em linha de princípio, é isso. Assim foi pedido pela Procuradoria-Geral da República quando propôs a ação. Não pode haver legislação infraconstitucional, parece evidente, que amesquinhe ou nulifique essa isonomia.

O que exatamente o STF decidiu sobre homoafetividade?
Pela possibilidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Possibilidade jurídica, lógico. Em igualdade de condições com as uniões estáveis dos casais heterossexuais. União estável com a força de constituir uma entidade familiar.

Qual a diferença entre a decisão que negou a união estável em Goiânia e a que permitiu o casamento civil em Jacareí?
Como desfrutam de independência técnica, além da política, os magistrados são livres para equacionar juridicamente as controvérsias, desde que fundamentem tecnicamente suas decisões. Natural, portanto, que dois juízes projetem sobre a mesma causa um olhar interpretativo descoincidente, cabendo às partes insatisfeitas os devidos recursos ou, quem sabe, reclamações para o próprio Supremo.

Sem entrar no mérito de decisões específicas, qualquer decisão que diferencie a relação entre o homossexual e o heterossexual vai contra o STF?
Sim. A decisão foi claramente no sentido da igualdade de situações entre os parceiros do mesmo sexo e casais de sexos diferentes.
O Congresso precisa fazer alguma lei complementar?
Entendo que a Constituição é autoaplicável na matéria. Entretanto, há aspectos de minúcias que ficam à disposição da lei comum.

A questão deve voltar ao STF?
A Constituição atual, caracterizando-se como redentora dos direitos e garantias, e não como redutora, estimulou muito a judicialização das controvérsias, inclusive as de natureza política. Daí a expectativa de que a matéria tem potencialidade para retornar ao tribunal.

O sr. é a favor de criminalizar a homofobia?
Tenho [para mim] que sim. O homofóbico exacerba tanto o seu preconceito que o faz chafurdar no lamaçal do ódio. E o fato é que os crimes de ódio estão a meio palmo dos crimes de sangue.
Recentemente o STF decidiu sobre o direito de organização para a defesa da legalização da maconha. Será assim para todas as marchas?
A decisão se circunscreveu à chamada Marcha da Maconha, mas os respectivos fundamentos se prestam para a discussão a céu aberto de toda e qualquer política de criminalização das demais substâncias entorpecentes.
O sr. tem opinião sobre o tema?
Minha inclinação pessoal é para ver o tema como uma focada questão de saúde pública. Me inquieta o fato de que temos tantas leis de endurecimento da resposta punitiva do Estado e, no entanto, a produção, o tráfico e o uso de tais substâncias não param de crescer.

Outro tema polêmico é o do aborto em caso de feto anencéfalo. O sr. já expôs opinião favorável à prática, certo?
No voto que proferi na discussão sobre o cabimento da ADPF [ação que trata do tema] manifestei opinião de que se nós, homens, engravidássemos, a autorização para a interrupção da gravidez de feto anencéfalo estaria normatizada desde sempre.

Folha de S. Paulo

Fonte: Gonline

terça-feira, 5 de julho de 2011

O teste da caneta e o motorista gay


Depois de alguns dias da Parada Gay com tema religioso (Amai-vos uns aos outros – Basta Homofobia), houve algumas falas hegemônicas da impressa e da Igreja sobre o tema nada positivas. Falei um pouco sobre o tema no post A "Parada" é triste.

Confiram agora matéria de excelente bom gosto e nada medíocre da jornalista Eliane Brum na Época:

Deve ter sido um junho tenebroso para os católicos que vivem verdadeiramente o evangelho. Para quem não é católico, para os que praticam outra religião, para os agnósticos e os ateus também. Para qualquer pessoa minimamente decente, confrontar-se com o discurso da crueldade – travestido de fé – é uma experiência aterradora. Foi o que aconteceu quando Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo da diocese de Guarulhos, no estado de São Paulo, falou em entrevista sobre o estupro de mulheres. Depois, o choque se repetiu no pronunciamento de Myrian Rios, deputada pelo PDT do Rio de Janeiro e, segundo ela mesma, “missionária católica da Canção Nova”, ao discursar sobre gays e pedofilia – e confundir as duas coisas.


Quando duas pessoas públicas, com responsabilidade e ressonância de pessoas públicas, dizem o que Dom Bergonzini e a deputada Myrian Rios disseram, é preciso prestar atenção. Não é banal, não é folclórico. É sério – e tem consequências.


Primeiro, Dom Bergonzini – que, em seu blog, aparece várias vezes com o título de “o leão de Guarulhos”. Em entrevista à repórter Cristiane Agostine, do jornal Valor Econômico, publicada em 13 de junho, o bispo afirmou que há “uma ditadura gay” em curso e que uma “conspiração da Unesco transformará metade do mundo em homossexuais”. Esta forma de ver a conjuntura internacional poderia, por si só, chocar boa parte dos leitores, mas o bispo se supera no trecho da reportagem que reproduzo aqui:

“Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima… É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil”, comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. “Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre… Há os casos em que não é bem violência… [A mulher diz] ‘Não queria, não queria, mas aconteceu…’", diz. “Então sabe o que eu fazia?” Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. “Eu falava: bota aqui”, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. “Entendeu, né? Tem casos assim, do ‘ah, não queria, não queria, mas acabei deixando’”. (...) O bispo continua o raciocínio. “A mulher fala ao médico que foi violentada. Às vezes nem está grávida. Sem exame prévio, sem constatação de estupro, o aborto é liberado”, declara, ajeitando o cabelo e o crucifixo.


Sim, no teste do bispo, a vagina da mulher é uma tampa e a caneta é o pênis do estuprador. Se a mulher não quer ser violentada, basta que ela não permita que a tampa encaixe na caneta. Simples assim. É com esta humanidade que Dom Bergonzini escuta, há 52 anos, como ele faz questão de enfatizar, as católicas violadas que buscam acolhida e compaixão na sua igreja. E então passam por uma acareação através do método da tampa-vagina e da caneta-pênis.


Agora, Myrian Rios. Aliás, só descobri nesse episódio que hoje ela é deputada estadual. Até então, só a conhecia como ex-atriz e ex-mulher do cantor Roberto Carlos. A deputada do PDT apresentou-se como “missionária católica” e discursou no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 21 de junho, sobre a PEC-23, que inclui a orientação sexual entre as características pelas quais um cidadão não poder ser discriminado. Reproduzo um trecho do seu discurso aqui, mas sugiro que o leitor ouça da própria deputada, na íntegra, em vídeo de menos de 12 minutos, postado no YouTube.

O vídeo é todo coberto por textos em amarelo, num discurso sobreposto em defesa da deputada. Pede apoio a ela e faz, inclusive, um alerta: “Cuidado com a imprensa e a mídia”. Sugiro escutar Myrian Rios, sem prestar atenção ao texto. E, em seguida, assistir ao vídeo novamente, só lendo os textos em amarelo. Ambos – o discurso e a defesa do discurso – são muito reveladores. Para alguns, pode parecer uma perda de tempo, mas vale a pena o esforço para compreender o mundo onde estamos metidos.


A seguir, uma amostra da fala de Myrian Rios no plenário da Alerj:

Eu não sou preconceituosa e não discrimino. Eu prego o amor e o respeito ao próximo. (...) Se somos todos iguais, com os mesmos direitos, eu também tenho que ter o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa. (...) Digamos que eu tenha duas meninas em casa, que eu seja mãe de duas meninas, e eu contrate uma babá. E esta babá mostre que a orientação sexual dela é ser lésbica. (...) Se minha orientação sexual não for esta, for contrária, e querer demiti-la, eu não posso. (...) O direito que a babá tem de mostrar que a orientação sexual dela é lésbica eu tenho como mãe na minha casa de não querer que ela seja babá das minhas filhas, dá licença? (...) Com esta PEC, eu não tenho esse direito. Eu vou ter de manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas, e sabe Deus se ela não vai inclusive cometer a pedofilia com elas.


(...) Então, se o rapaz escolheu ser homossexual, o problema é dele. (...) Ele escolheu ser homossexual, ser travesti, aí eu o contrato para ser motorista da minha casa e eu tenho dois meninos em casa. Ele começa então a trabalhar vestido de mulher, travestido, porque é essa a orientação sexual dele. Aí eu, como mãe dois meninos, digo opa, não é essa a minha orientação sexual aqui em casa. Aqui em casa eu gostaria que meus filhos crescessem pensando em namorar uma menina para perpetuar a espécie, como está em Gênesis. Deus criou o homem e a mulher para perpetuar a espécie. (...) No momento em que eu descobri que o motorista é homossexual e poderia estar, de uma maneira ou de outra, tentando bolinar o meu filho... não sei, pode de repente partir para uma pedofilia com os meninos, eu não vou poder demiti-lo, a PEC não me permite. (...) Se essa PEC passa, e o rapaz tem uma orientação sexual pedófilo (sic), se a orientação sexual do rapaz é transar, é ter relacionamento sexual com um menino de 3 a 4 anos, nós não vamos poder fazer nada, porque ele está protegido pela lei.


(...) Eu estou defendendo as crianças e os jovens de uma porta para a pedofilia. (...) Não vou permitir que, por uma desculpa de querer proteger ou para que se acabe com a violência, a homofobia, a gente abra uma porta para a pedofilia! (...) Deus abençoe a todos, tenham uma boa tarde, que o Espírito Santo possa hoje, nesta Assembleia, cair fogo do céu aqui. Muito obrigada.”


É constrangedor fazer alguns esclarecimentos pela sua obviedade. Mas já que discursos desse nível existem – e são feitos por representantes democraticamente eleitos – é preciso dizer à deputada que: 1) homossexualismo e pedofilia não são a mesma coisa; 2) pedofilia não é uma orientação sexual, mas um crime; 3) se um funcionário da sua casa ou da sua empresa ou qualquer pessoa, em qualquer lugar, tenha a orientação sexual que tiver, cometer o crime de pedofilia, deverá ser denunciado e preso, independentemente da PEC-23, porque está previsto no Código Penal.


Se Myrian Rios cometeu esse discurso por ignorância ou por má fé, só ela, com sua consciência, pode resolver consigo mesma. E aqui uso o “má fé” em dois sentidos: tanto na tentativa de manipular a opinião pública, fazendo com que os cidadãos do estado do Rio de Janeiro pensem que não vão poder demitir criminosos se a PEC-23 for aprovada, como por sua controversa interpretação do evangelho que diz praticar.


Após a repercussão dos respectivos discursos, tanto Dom Bergonzini quanto Myrian Rios manifestaram-se como de hábito: a questão não foi o que disseram, mas uma interpretação equivocada de suas palavras. É curioso como a responsabilidade é sempre do outro. No caso, do leitor, da jornalista, do espectador, do eleitor. Mas as respostas, tanto de Dom Bergonzini quanto de Myrian Rios, são autoexplicativas. E iluminam melhor do que eu seria capaz de fazer as verdades dos fatos.

O bispo reproduziu a reportagem do Valor Econômico em seu blog. Sem desmenti-la, fez uma chamada em vermelho, acima da matéria: “Obs: sobre estupro, leia aqui”. Depois, repetiu o alerta no ponto da reportagem em que discorre sobre o tema. Neste novo link, ele declara: “Só um insano diria que a mulher é culpada pelo estupro”. Aqui, sou obrigada a concordar com ele. O religioso continua: “A violência contra a mulher é mostrada diariamente pela imprensa. As mulheres, de qualquer idade, são atacadas, brutalmente violentadas e assassinadas por maníacos sexuais em praças, vias públicas, locais mal iluminados e até em casa. A lei presume a violência em crimes de estupro praticados contra menores e pessoas especiais”. Dom Bergonzini termina esse tópico dizendo: “Jamais afirmamos que a mulher não é a vítima. O criminoso é o culpado pelo crime que ele cometeu”.


O bispo parece não apenas duvidar da dor e do testemunho das mulheres violentadas, mas também da inteligência e da capacidade de discernimento do leitor. Todos puderam ler o que disse Dom Bergonzini à jornalista do Valor Econômico e aprender sobre o “teste da caneta”. Portanto, cada um pode tirar suas próprias conclusões.


Já a deputada Myrian Rios (PDT) divulgou uma nota, através de sua assessoria. No texto, ela pede desculpas pelo discurso, mas responsabiliza o público por uma compreensão equivocada de suas palavras: “Se entenderam dessa maneira, peço desculpas”. Reproduzo a nota na íntegra: “Iniciei meu discurso de 21 de junho na tribuna da Alerj relatando a minha condição de católica, missionária consagrada da comunidade Canção Nova (ligada ao movimento de Renovação Carismática) e, como tal, eu prego o respeito, o amor ao próximo, o perdão. Destaco que Deus ama a todas as pessoas, pois Ele não faz diferenciação. Em um dos trechos, afirmo: não sou preconceituosa e não discrimino. Repudio veementemente o pedófilo e jamais tive a intenção de igualar esse criminoso com o homossexualismo. Se entenderam desta maneira, peço desculpas. Conto na minha família com parentes e amigos homossexuais e os amo, respeito como seres humanos e filhos de Deus. Da mesma forma repudio a agressão aos homossexuais, pois nada justifica tamanha violência. Votei contra a PEC-23 por minhas convicções e não contra este ou aquele segmento de determinada orientação sexual”.

Graças à internet e à tecnologia, o leitor pode assistir ao discurso da deputada na íntegra. E tirar suas próprias conclusões sobre as intenções da “missionária católica” ao dizer o que disse.


Percebo que existem pessoas que, ao falarem em nome de sua fé, seja ela qual for, acreditam ter o patrimônio do bem, da ética e da verdade. Às vezes, até do “amor”. Como alguém já disse, muita gente tortura os números para que eles digam aquilo que pode comprovar a sua tese. Lendo, escutando e assistindo à fala de alguns religiosos, tenho a impressão de que torturam a Bíblia para que possam seguir com a propriedade de uma verdade única – a sua. O caminho da sabedoria, porém, inclusive para os grandes teólogos da Igreja Católica, passou e passa pelo exercício da dúvida, constante e tenaz. É preciso se despir da vaidade das certezas para alcançar a dor do outro – movimento imprescindível para o amor.


De minha parte, acho que o mundo pode abrir mão de demonstrações de “amor ao próximo” como a de Dom Bergonzini e Myrian Rios.


Eliane Brum - Revista Época

Jornalista, escritora e documentarista.
Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios),
A Vida Que Ninguém Vê
(Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
E-mail: elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum

Liberdade e democracia é mais ou menos isto. Todos podem e devem manifestar opiniões.

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