sábado, 12 de março de 2011

Tuitadas de carnaval

Ilustração: Alexandra

E chegamos ao momento de mais uma rodada de tuitadas da semana. Pra quem se desconectou no carnaval... ou não. :-)

Adital - A igreja necessita hoje de uma reforma protestante http://t.co/rRZD1Tg RT@edi_mac

Abordagem da homossexualidade em "Insensato Coração" está uma tragédia http://t.co/f1bPhZl RT@blogentrenos

Universitário é expulso por cometer crime homofóbico em Porto Alegre http://t.co/9lWCDXF RT@blogentrenos

Pressão religiosa na Saúde: parlamentares pedem mudanças em campanhas de carnaval http://migre.me/3ZEze

Revista Saber Viver 47 (online): uma revista para quem vive com o virus da AIDS http://migre.me/3ZEzx via tantas noticias

Carnaval carioca tem campanha contra o preconceito http://migre.me/3ZEEn

"Que passe logo o carnaval, e que saia da frente, pois está na hora de começar o jogo de verdade." http://migre.me/3ZEHl

Revista Época trata sobre homofobia em reportagem de capa http://migre.me/3ZEJK via @blogentrenos

Um diagnóstico da ''implosão'' do Vaticano de Bento XVI http://migre.me/3ZETP via @_ihu

"Os abusos sexuais são o 11 de setembro católico" http://migre.me/3ZEUb via@_ihu

O itinerário espiritual de Simone Weil http://migre.me/3ZEUL via@_ihu

Cada Papa tem a sua cruz http://migre.me/3ZEV8 via@_ihu

Marcha Contra Homofobia em SP ganha vídeo na internet: Divulgado vídeo da Marcha Contra a Homofobia em São Paulo... http://bit.ly/f8ZNdr RT@GayNewsBrazil

Amor e ódio aos gays é capa da ‘Época’ desta semana http://migre.me/40Rdf

Frente Paulista Contra a Homofobia lança site oficial http://migre.me/40ReL via@dolado

Marta Suplicy acredita que novo Senado é favorável à lei anti-homofobia http://migre.me/40RgQ via@dolado

"Neste Carnaval anseio por folias interiores"... reflexão de Frei Betto http://migre.me/40RlZ

A casa sobre a rocha: as palavras de Jesus têm mais poder do que nossas doutrinas http://migre.me/40RnH

As cinzas da quarta-feira: hora de começar o caminho que nos levará a Jerusalém http://migre.me/40Rpn

TV: BBB11 faz "merchan social" contra preconceito, mas chama Diana de "Maria Sapatão" http://bit.ly/gd0xkH RT@homofobiaNAO

Observatório registra 254 casos de discriminação neste carnaval, sendo 42 casos de agressões contra os LGBT. http://bit.ly/gIFKnS RT@homofobiaNAO

Atores fardados interpretam casal homossexual e trocam carinhos em restaurante. Confira a reação das pessoas em http://t.co/sbWN60C RT@dolado

Jornalista pede que religiosos respeitem o casamento gay http://migre.me/40U2U via@dolado

Aprovado PL que aumenta penalidades contra discriminação de orientação sexual: A Comissão de Constituição e Just... http://bit.ly/ggOVyu RT@GayNewsBrazil

Para os fundamentalistas religiosos que vivem repetindo a frase "Deus fez Adão e Eva e não Adão e Ivo": ow.ly/4b3JC RT@jeanwyllys_real

Se passou por alguma situação de risco neste carnaval, é importante que você faça o teste de Aids: http://bit.ly/fcZMqW #fiquesabendo RT@minsaude

E se te dissessem que o HIV não causa a AIDS? Tem uma galera que acredita nisso. Vale a leitura: http://goo.gl/HAv4I RT@Prof_Jubilut

Livro sobre travestis e transexuais ganha versão digital http://migre.me/40YRB RT@gaybrasil

São Paulo recebe no próximo dia 20 encontro sobre união estável para casais LGBT http://mixbrasil.uol.com.br/t/YefN3v RT@Mix_Brasil

O diagnóstico precoce do HIV permite começar o tratamento no momento certo e ter melhor qualidade de vida http://bit.ly/fcZMqW #fiquesabendo RT@minsaude

Livro sobre diversidade sexual acaba de ganhar uma versão digital gratuita. http://migre.me/416Pg RT@noticiasgays

Grupo de pais Gays vai discutir união estável para Homossexuais. http://migre.me/416VT RT@noticiasgays

Uma matéria bem legal sobre a homofobia nas universidades! Vale a pena ler: http://bit.ly/gVsF4L RT@SomosLGBT

‘Glee’: episódio ‘Sexy’ mostra conversa franca sobre sexo entre pai e filho gay. http://migre.me/41hbN via@dolado

'As religiosas não são reconhecidas". Um clamor que vem da França http://migre.me/41hn4 via@_ihu

"A mulher é inferior em todas as religiões", diz feminista egípcia http://migre.me/41hnS via@_ihu

Madre Teresa: mística e apóstola da vida cotidiana http://migre.me/41hpa via@_ihu

"O Vaticano se move": a movimentação interna nas várias esferas da cúpula do magistério católico. Excelente! http://migre.me/41hwC via@_ihu

Centros de apoio aos gays na Itália, organizado pela Pastoral das Famílias http://migre.me/41hza via@_ihu

"Abandonar não faz parte do estilo de Jesus": a pastoral diocesana e os homossexuais na Itália http://migre.me/41hAM via@_ihu

Portugal: homossexuais católicos contra artigo "homofóbico" da Revista da Ordem dos Médicos http://migre.me/41hFG

Igrejas devem romper silêncio defendendo mulheres da violência, diz pesquisadora http://migre.me/41hWF via@Amai-vos

Diversidade sexual e Igreja, um diálogo possível. Entrevista com o Pe. Luis Correa Lima, S.J. http://migre.me/41idw

“Liberdade religiosa, caminho para a paz” http://migre.me/41iEh via@Amai-vos

Novo livro confirma: Bento XVI é o seu melhor porta-voz. http://bit.ly/g1Gvb0

Eqto o conservadorismo europeu funciona sem Deus, o neoconservadorismo norte-americano precisa de fundamento religioso http://migre.me/41CFD

Católicos e evangélicos dos EUA atualizam a Bíblia http://migre.me/41CGC via@_ihu

‘Vou continuar a exercer o meu sacerdócio’, diz sacerdote argentino (http://migre.me/41Dvd) processado http://migre.me/41Dtf via@_ihu

Cearense Leonilson ganha retrospectiva em SP com obras, cadernos e coleções http://mixbrasil.uol.com.br/t/wsw2rh RT@Mix_Brasil

Da (in)compreensão


Em tempos de violência homofóbica na capa da Época, é tempo de rezar juntos: livrai-nos da incompreensão, Senhor.

Um bom fim de semana a todos. :-)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Alumiada surpresa


Ainda que por instante, achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente, atormentantes.

A alumiada surpresa.

Alvava.

(...) Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.


- Guimarães Rosa

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Conto: "Substância", in Primeiras Estórias

Convite: reunião inaugural da Pastoral da Diversidade



É com grande alegria que divulgamos o convite para a reunião inaugural da Pastoral da Diversidade em São Paulo.

A primeira sessão da "Terças da Pastoral" será nesta terça-feira, 15 de março de 2011, às 19h30, no Casarão Brasil (Rua Frei Caneca, 1057 - São Paulo).

Nesta ocasião teremos uma apresentação sobre o tema "A Igreja Católica e a questão gay: uma visão panorâmica da situação internacional", em que o padre James Alison, autor do livro "Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay" (Editora É Realizações, 2010) vai oferecer uma visão do estado atual das questões da sexualidade na Igreja para dar um contexto para a nossa Pastoral.

A explanação contará com exemplos ilustrativos de tudo o que está acontecendo e mudando no universo dos católicos gays nos diversos lugares do mundo por onde Pe. James tem trabalhado.

Na ocasião, serão definidos uma agenda e um planejamento de ações dos encontros das “Terças da Pastoral”. Terminaremos com Missa às 21 horas.

Você será muito bem-vindo. Caso conheça alguém que possa se interessar, repasse o convite!

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Atualização de 18 de março: Veja aqui a repercussão da primeira reunião. :-)

Profanidade do mundo e silêncio de Deus

Foto: Jo Walton

O pensamento pós-moderno, caracterizado pela “desconstrução” e relativização de todo o edifício conceitual aparentemente sólido da modernidade, questiona também toda tentativa de dizer de forma plena o Absoluto inefável que o Cristianismo e outras tradições religiosas chamamos Deus. Considera igualmente todo discurso com pretensões à universalização e à totalização como redutor e inadequado.

Não seria pertinente, no entanto, admitir como premissa iniludível que vivemos uma época de enfraquecimento da fé em Deus e da reflexão sobre Ele. Ainda que seja certo que a época moderna proclamou a inevitabilidade do declínio das religiões, chegando até a sustentar a tese da morte de Deus, a identificação da modernidade com o humanismo ateu carrega consigo uma redução insustentável. Com efeito, o projeto da modernidade engendrou a indiferença religiosa mais do que a negação de Deus. Ao mesmo tempo, a crise deste projeto demonstrou que uma sociedade, se não encontrar seu fundamento em uma Transcendência – seja dado a ela ou não o nome de Deus - se dissolverá lenta e inexoravelmente.

A proclamação do advento da assim chamada pós-modernidade e do pretenso “retorno” do religioso, permite entrever que é bastante inadequado decretar o banimento de Deus do horizonte humano. E que, ao contrário, a busca de Deus continua a agitar o coração da humanidade, sem levar em conta o risco corrido por todos os discursos “oficiais” sobre Deus de encontrar-se envelhecidos.

Hoje, seria possível encontrar uma concepção que migrou de um Deus pessoal em direção a um Deus mais impessoal e, portanto, mais afastado da tradição cristã. Mas não estaria aí para o homem e a mulher pós-modernos a fascinante oportunidade de descobrir aquele que desde a primeira hora da nossa era, Paulo de Tarso tentava anunciar aos atenienses, procurando o caminho para nomear o Deus desconhecido cujo templo encontrara andando pela cidade(cf. At 17)?

O grande teólogo Karl Rahner afirma muito certeiramente que se a palavra “Deus”e mesmo sua memória fossem banidos definitivamente do pensamento e discurso humanos, isso não provaria a não existência de Deus. Pelo contrário, o ser humano é que teria desaparecido e mergulhado no nada, fracassando em seu projeto e vocação. Pois Deus é constitutivo do ser humano, em sua identidade em contínua auto-transcendência.

A fragmentação da pós-modernidade vai re-situar o problema de Deus a partir de um reencontro com o primado da alteridade. A partir daí emergirá um novo paradigma inter-subjetivo e relacional que reconduzirá a linguagem humana a encontrar as palavras para dizer o Absoluto pelo qual seu coração anseia. Aí talvez possa voltar a ter sentido uma vida fragmentada pelo estilhaçamento de uma compreensão global totalizante e uniformizante do mundo e da história.

O judeu-cristianismo coloca como caminho possível da identidade do “eu” o rosto do outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo, portanto, o ser humano é visto como alguém livre. Porém livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro.

A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do ser humano, como inscrição ali gravada, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto do outro – do pobre, da viúva, do órfão, do estrangeiro – que institui para ele a única lei, que é a lei do amor. O caminho para Deus hoje, portanto, passa por sua descoberta no sofrimento e na fragilidade do outro. Disso deram testemunho todos os místicos – homens ou mulheres – do último século que, situados no epicentro da injustiça, da violência e do mal, experimentaram a vida em plenitude e a transmitiram como legado a nossa geração.


- Maria Clara Bingemer
Professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Publicado originalmente no Amai-vos. Os grifos são nossos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Diversidade sexual e Igreja, um diálogo possível


Ao analisar a forma como a Igreja aborda temas como a diversidade sexual, o padre jesuíta Luís Corrêa Lima disse, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, que “nós só podemos saber o que a Palavra de Deus significa para nós hoje, e que implicações ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade atual, que inclui a visibilização da população LGBT”. Ele relembra uma carta do Vaticano aos bispos, do ano de 1986, mencionando que “nenhum ser humano é mero homossexual ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna”.

O pesquisador destaca, ainda, uma declaração do Papa Bento XVI, dizendo que “o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva”. Segundo ele, o Papa acrescentou “que é muito importante evidenciarmos isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente. É muito bom que um Papa tenha reconhecido isto. Há no cristianismo uma tradição multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na condenação e no medo”.

Corrêa Lima frisa que não cabe “encaminhar os gays a terapias de reversão ou a ‘orações de cura’, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. No diálogo ecumênico e inter-religioso da Igreja, recomenda-se conhecer o outro como ele quer ser conhecido, e estimá-lo como ele quer ser estimado. O conhecimento e a estima recíprocos são também o melhor caminho para o diálogo entre a Igreja e o mundo gay”.

E completa: “O grande desafio da diversidade sexual é fazer-se compreender pela sociedade, não como uma ameaça, mas como uma pluralidade existente na condição humana que enriquece o mundo. No fundo, as pessoas querem ser elas mesmas, reconhecidas e aceitas pelos outros”.

Formado em Administração, Filosofia e Teologia, Luís Corrêa Lima também é mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, onde é professor desde 2004, e doutor em História pela Universidade de Brasília – UnB. É autor de "Teologia de Mercado – uma visão da economia mundial no tempo em que os economistas eram teólogos" (Bauru: EDUSC, 2001).

Confira a entrevista.

Qual é a importância de a Igreja abordar temas como a diversidade sexual, nos dias de hoje?
A diversidade sexual é um dado da realidade. No passado, gays, lésbicas e bissexuais viviam no anonimato ou à margem da sociedade. Escondiam-se em uniões heterossexuais e, quando muito, formavam guetos. Hoje, tornam-se visíveis, fazem imensas paradas, junto com travestis e transexuais, exigem respeito e reconhecimento, e reivindicam direitos.

Para a Igreja, a lei de toda a evangelização é pregar a Palavra de Deus de maneira adaptada à realidade dos povos, como lembra o Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, nº 44). Deve haver um intercâmbio vivo e permanente entre a Igreja e as diversas culturas dos diferentes povos. Para viabilizar este intercâmbio – sobretudo hoje, em que tudo muda tão rapidamente, e os modos de pensar variam tanto – ela necessita da ajuda dos que conhecem bem a realidade atual, sejam eles crentes ou não. O laicato, a hierarquia e os teólogos, prossegue o Concílio, precisam saber ouvir e interpretar as várias linguagens ou sinais do nosso tempo, para avaliá-las adequadamente à luz da Palavra de Deus, de modo que a Revelação divina seja melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente.

A correta evangelização, portanto, é uma estrada de duas mãos, do intercâmbio entre a Igreja e as culturas contemporâneas. Nós só podemos saber o que a Palavra de Deus significa para nós hoje, e que implicações ela tem, com um suficiente conhecimento da realidade atual, que inclui a visibilização da população LGBT.

Que elementos de discussão a diversidade sexual propõe para setores da sociedade como a família, a igreja e a escola? Quais são os desafios no que se refere à cidadania?
Por muitos séculos, o homoerotismo foi visto no Ocidente como um pecado nefando (que não deve nem ser nomeado) e como um crime gravíssimo que atrai o castigo divino para a sociedade. Igreja e Estado estiveram unidos. Tribunais eclesiásticos julgavam os acusados de “sodomia”, e os culpados eram entregues ao poder civil para serem punidos. Em casos extremos, a punição chegava à pena de morte.

O homoerotismo foi descriminalizado, e a condição homossexual foi despatologizada. Desde o final do século XX, esta condição não é mais considerada doença. Atualmente o Conselho Federal de Psicologia proíbe as terapias de reversão. Ou seja, algumas pessoas são homossexuais e o serão por toda vida. Elas estão em toda parte. Quem não é gay, tem parentes próximos ou distantes que são, bem como vizinhos ou colegas de trabalho que também são, manifesta ou veladamente. Eles compõem a sociedade, visibilizam-se cada vez mais e não aceitam mais serem tratados como doentes ou criaturas abomináveis. Querem ser cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres dos demais.

O que a fé cristã, na sua opinião, tem a dizer sobre a diversidade sexual?
O mais importante é algo que foi dito numa carta do Vaticano aos bispos, em 1986: nenhum ser humano é mero homossexual ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna. E acrescenta que toda violência física ou verbal contra é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifiquem. A oposição doutrinária que possa haver às práticas homoeróticas não elimina esta dignidade fundamental do ser humano. Deus criou a todos. O Cristo veio para todos e oferece o seu jugo leve e o seu fardo suave. Cabe a nós, com fidelidade criativa, conhecermos e darmos a conhecer estes dons divinos.

Como a Igreja, a partir da fé e das ciências, pode dialogar com a diversidade sexual?
Certa vez o Papa Bento XVI afirmou que o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciarmos isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente. É muito bom que um Papa tenha reconhecido isto. Há no cristianismo uma tradição multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na condenação e no medo. O historiador Jean Delumeau fala de uma “pastoral do medo”, que com veemência culpabiliza e a ameaça de condenação para obter a conversão. Isto não se deu somente no passado distante. Também no presente, alguns interpretam a doutrina da maneira mais restritiva e condenatória possíveis, com obsessão pelo pecado, sobretudo ligado a sexo.

Sem a obsessão pelo pecado, o caminho do diálogo se abre. É preciso também respeitar a autonomia das ciências e da sociedade, como determina o Concílio. Não cabe hoje encaminhar os gays a terapias de reversão ou a “orações de cura”, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. No diálogo ecumênico e inter-religioso da Igreja, recomenda-se conhecer o outro como ele quer ser conhecido, e estimá-lo como ele quer ser estimado. O conhecimento e a estima recíprocos são também o melhor caminho para o diálogo entre a Igreja e o mundo gay.

A Igreja, no Brasil, tem, por meio de publicações, cursos, seminários, proposto o diálogo sobre a diversidade sexual. O que isso significa? Há aí um interesse legítimo dos diversos membros da Igreja, ou esta é uma necessidade da Igreja de se inserir em um novo contexto contemporâneo, em que gays e lésbicas ganham mais espaço? Como interpreta a posição da Igreja nesse contexto?
Constata-se que há no Brasil várias publicações, e de qualidade, sobre diversidade sexual feitas por religiosos ou por editoras católicas. Também há cursos e mesas redondas. Pode-se notar que o interesse é crescente, afinal o contexto da sociedade é inevitável. Em vários ambientes católicos, sejam paróquias, escolas ou centros de pastoral, pode-se tratar do assunto com liberdade. De um modo geral, as eventuais resistências não são barreiras intransponíveis.

Os homossexuais já conquistaram o direito de manterem uma união estável no Brasil. Como avalia a luta pela cidadania religiosa no Brasil?
Na verdade, há decisões judiciais que favorecem os conviventes homoafetivos, bem como normas de instituições públicas e privadas no mesmo sentido. Casais homossexuais podem obter em cartório um documento declaratório de convivência homoafetiva. Recentemente o Imposto de Renda e os planos de saúde contemplam estes casais com os mesmos direitos dos casais heterossexuais em união estável. Sobre a cidadania religiosa, nos ambientes religiosos católicos, de um modo geral, muitos gays estão presentes mas não manifestam a sua condição para evitar discriminação. É algo semelhante à escola e ao mundo do trabalho.

O que podemos entender por diversidade sexual? Quais os principais desafios da diversidade sexual?
A visibilização dos homossexuais, e a sua organização como movimento social, já usou diversas siglas: Gay (termo anterior a homossexual, que evoca alegria e autoestima), MHB (Movimento Homossexual Brasileiro), HSH (Homens que fazem sexo com homens – sigla ainda utilizada em saúde pública), GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes – sigla adotada pelo mercado) e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), a mais recente. Há tendências de se acrescentar o ‘I’, de intersexual, para os hermafroditas. O termo diversidade sexual é uma maneira de englobar esta crescente pluralidade, embora com imprecisão.

O grande desafio da diversidade sexual é fazer-se compreender pela sociedade, não como uma ameaça, mas como uma pluralidade existente na condição humana que enriquece o mundo. No fundo, as pessoas querem ser elas mesmas, reconhecidas e aceitas pelos outros.

Como o senhor avalia o posicionamento da Igreja em relação à diversidade sexual na sociedade contemporânea?
A Igreja, antes de tudo, está alicerçada na milenar tradição judaico-cristã, ao mesmo tempo em que está presente em diversas partes do mundo, interagindo com a cultura ocidental moderna e com culturas não ocidentais. No judaísmo antigo, acreditava-se que o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se unirem e procriarem. O homoerotismo era considerado uma abominação. Israel devia se distinguir das outras nações de várias maneiras, inclusive pela proibição do homoerotismo. A Igreja herdou esta visão antropológica com sua interdição.

Alguns conteúdos doutrinais mudam ao longo dos séculos, como é o caso da legitimidade da escravidão e da proibição do empréstimo a juros. Isto mostra que eles não comprometem o núcleo da fé. Outros conteúdos também podem mudar, mas não há como prever. De qualquer maneira, a consciência individual tem um peso decisivo em questões complexas como esta. Este papel não deve ser omitido ou subestimado. O Concílio reconheceu o direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência, e o dever de não agir contra ela. Nela está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se manifesta. A fidelidade à consciência une os cristãos e os outros homens no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social (Gaudium et Spes, nº 16). Nenhuma palavra externa substitui o juízo e a reflexão da própria consciência.

Entre os evangélicos também há discordância em relação à homossexualidade. Entretanto, qual sua opinião sobre a Igreja Cristã Contemporânea, coordenada pelo casal de pastores homossexuais Fábio Inácio de Souza e Marcos Gladstone?
Entre os evangélicos, a oposição à homossexualidade em geral é mais intensa, com práticas frequentes de exorcismo para expulsar o demônio que supostamente toma conta da pessoa. Os que continuam a cometer atos homossexuais são muitas vezes expulsos de suas igrejas, ou sofrem um assédio moral devastador que os faz sair. Como o mundo protestante é fragmentado em diversas denominações, gays evangélicos fundaram igrejas inclusivas para acolherem crentes repelidos por suas igrejas de origem.

As igrejas inclusivas nasceram nos Estados Unidos, na ampla constelação do movimento gay. A Igreja Cristã Contemporânea é um rebento brasileiro com notável difusão no Rio de Janeiro. Os pastores Fábio e Marcos protagonizaram o primeiro casamento público entre dois pastores gays, com grande repercussão na mídia, muita simpatia da militância LGBT e forte execração dos evangélicos tradicionais.

Quais são, no seu entendimento, as razões que dificultam o consentimento das religiões aos homossexuais?
As grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – enraízam-se em tradições milenares consignadas em textos sagrados antigos, situados em horizontes socioculturais bem diferentes do nosso. Estas religiões se vincularam a uma suposta heterossexualidade universal, expressa no imperativo “crescei-vos e multiplicai-vos’” do livro de Gênesis. Por outro lado, há religiões de matrizes africanas que aceitam os gays. Na verdade, a heterossexualidade não é universal, nem na espécie humana, nem entre os animais. No mundo animal, já se conhecem atualmente mais de 450 espécies com indivíduos homossexuais.

Certa vez um rabino disse que a tradição não é um bastão de uma corrida de revezamento. O bastão é sempre mesmo, passando de mão em mão. A imagem correta da tradição é uma casa em que vivem sucessivas gerações. Cada uma delas pode dar o seu toque peculiar e até fazer reformas internas. Mas a casa é sempre reconhecível por quem passa na rua. Assim é a tradição: um legado vivo, constantemente enriquecido para ser fiel a si mesmo. O teólogo Yvez Congar afirmou que a única maneira de se dizer a mesma em um contexto que mudou, é dizê-la de modo diferente. A mensagem cristã precisa se reinventar sempre se quiser ser Boa Nova.

As uniões homoafetivas representam uma ameaça à tradição?
Não, pelo contrário. A união entre o homem e a mulher conserva seu valor e função social, e permanece como sinal bíblico do amor entre o Senhor e o seu povo eleito, e do amor entre Cristo e a Igreja. As uniões homoafetivas não ameaçam as uniões heterossexuais, pois estes não são gays enrustidos prestes a debandarem diante da possibilidade de união homossexual. E nem os gays têm obrigação de se “curarem” e de se casarem com pessoas de outro sexo. Até porque, para o direito eclesiástico, este casamento é nulo. Uniões gays e uniões heterossexuais são de naturezas distintas e não concorrem entre si.

Um documento do Vaticano de 2003, sobre o reconhecimento civil da união entre pessoas do mesmo sexo, fez severa oposição à equiparação ou equivalência desta forma de união àquela entre homem e mulher. No entanto, ele afirma que, mesmo assim, podem-se reconhecer direitos decorrentes da convivência homossexual. Este é um passo muito importante. Se não houver nenhum reconhecimento social ou proteção legal às uniões gays, o preconceito homofóbico difuso na sociedade vai pressionar os gays a contraírem uniões heterossexuais. O que já acontece há séculos continuará acontecendo. É lastimável, pois isto traz enorme sofrimento a muitas pessoas.

O que deve fazer parte de uma reflexão moral sobre o amor homossexual?
Antes de tudo, a vocação fundamental do ser humano é amar e ser amado. O amor é a plenitude da lei e da vida em Cristo. E o próprio Cristo ensina que a lei foi feita para o homem, e não o homem para a lei. Para a reflexão moral, convém escutar a Palavra de Deus e buscar uma teologia que supere a leitura ao pé da letra; e que leve em conta a Tradição, o ensinamento da Igreja, os sinais dos tempos e os saberes seculares.

A moral não deve se limitar ao ideal, mas deve estar atenta ao possível, à situação em que cada um se encontra e aos passos que pode dar. O papa tratou recentemente do uso da camisinha, e afirmou que em algumas circunstâncias ele representa o primeiro passo para uma humanização da sexualidade. É preciso buscar sempre os caminhos de humanização.

Deseja acrescentar algo?
Sim. Jesus afirmou que há eunucos de nascença, eunucos feitos pelos homens e eunucos que assim se fizeram pelo Reino dos Céus (Mt 19,12). Esta frase, um tanto estranha, tem um sentido literal e um sentido não literal. No caso de eunucos feitos pelos homens, trata-se de castração. No caso de eunucos pelo Reino dos Céus, trata-se do próprio Jesus e dos que renunciaram ao casamento para se dedicarem inteiramente à obra de Deus. Não há propriamente castração. E quem são os “eunucos de nascença”? Para os primeiros leitores do Evangelho, talvez fossem pessoas com um defeito físico que impossibilita o casamento. Mas para nós, hoje, é indispensável considerar aqueles que por natureza, em razão de sua libido, não se destinam ao casamento tradicional. São os gays. Eles têm seu lugar no plano divino. E também devem tê-lo na sociedade e na Igreja.

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Publicado originalmente na IHU On-Line

quarta-feira, 9 de março de 2011

As cinzas de quarta-feira


A festa central do tempo litúrgico é a Páscoa do Senhor. A partir dela, todo o calendário litúrgico é estabelecido. A preparação para a celebração dos mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus – a Quaresma – é o período de 40 dias que antecede a Páscoa e começa em uma quarta-feira, com uma celebração específica que convida o fiel a entrar no espírito de conversão e penitência que estará presente em toda a Quaresma.

Entre os judeus do tempo de Jesus era costume entre aqueles que praticavam jejum ou penitência cobrirem-se de cinzas. O próprio Jesus cita esse costume várias vezes em seus ensinamentos. E Ele mesmo nos advertirá no sentido de que o costume não seja maior que o sentimento que nos impele ao jejum e à penitência.

Receber as cinzas na quarta-feira que inicia a Quaresma – dia de guarda, a propósito – é um sinal de que o fiel se une à Igreja para começar o caminho que desembocará em Jerusalém, com a Morte e a Ressurreição do Senhor. Neste tempo privilegiado, somos convidados a rever nossos passos, nossas atitudes, nossa história de vida e nossas relações. Relembrar o sofrimento de Jesus chama a atenção para o sofrimento dos mais necessitados e para os inúmeros "cristos" que ainda hoje são crucificados. Não poderemos entrar na glória e vivenciar as alegrias do mistério Pascal em plenitude, se nos eximirmos do Calvário. Por isso, é um período em que toda a Igreja busca silenciar-se para tirar desse silêncio os frutos de uma reflexão aguda sobre o que cada um de nós pode fazer para melhorar a sua realidade e a dos que estão à sua volta.

Lembro-me de que quando criança aproximava-me do altar para receber as cinzas com o sentimento de que aquilo me sujaria e seria identificada na rua como alguém que tinha cumprido o seu preceito e ido à Missa no "dia santo". Isso bastava. Hoje, já adulta, não pode mais bastar. Ao contrário, hoje já não importa se as cinzas "sujam" a testa, mas o sentimento de estar unida à Igreja neste momento em que ela começa o seu silêncio e a convicção de que tem início um tempo rico e propício para retomar minha caminhada em direção à glória de Deus.

Que esta Quaresma seja abençoada pelo silêncio interior de cada um de nós e pela misericórdia de Deus que nos conduzirá ao canto de Aleluia diante do mistério Pascal.

Texto para sua reflexão: Mt 6, 1-6.16-18


- Gilda Carvalho
Artigo publicado originalmente no Amai-vos

terça-feira, 8 de março de 2011

A casa sobre a rocha


Mateus conclui o grande discurso de Jesus em uma montanha da Galiléia, com duas breves parábolas, narradas com mestria e fáceis de lembrar por todos. Sua mensagem é fundamental: seguir Jesus é "escutar as suas palavras” e “colocá-las em prática". Se não fizermos assim o nosso cristianismo é um disparate. Não faz sentido nenhum.

O homem prudente edifica sua casa sobre a rocha sólida. Por isso, quando as chuvas torrenciais do inverno e a água desce das montanhas e assopram os fortes ventos do Mediterrâneo, a casa não afunda: "está edificada sobre a rocha". Assim é a Igreja formada por crentes que se esforçam em escutar o evangelho e colocá-lo em prática.

O homem insensato, pelo contrário, edifica sua casa sobre a areia no fundo do vale. Portanto, quando chegam as chuvas, correm os rios e assopram os ventos, a casa cai e “é grande a sua queda”. Da mesma forma, o cristianismo se desmorona quando não é fundamentado na rocha do Evangelho escutado e praticado nas comunidades.

Na consciência moderna tem se produzido uma profunda mudança cultural que está colocando em crise o nascimento e a vivência da fé cristã. Está se tornando cada vez mais difícil despertar uma fé viva em Deus e em Jesus Cristo por meio da "doutrinação". Apontemos duas causas fáceis de detectar.

Por um lado, há uma crise de autoridade, qualquer tipo de autoridade. Hoje em dia é difícil a Fe brotar da obediência a uma autoridade religiosa que se apresenta como possuidora da verdade. A palavra que a Igreja profere desde sua posição de autoridade sagrada, não resulta hoje, por si mesma, nem crível nem atraente.

Além disso, ao invés de doutrina religiosa, as pessoas procuram uma experiência que lhes ajude a viver com sentido e esperança. Muitos homens e mulheres se distanciam quase instintivamente de qualquer iniciação à fé entendida como "processo de aprendizagem".

Temos que acreditar muito mais na força transformadora do Evangelho. As palavras de Jesus têm mais poder do que nossas doutrinas. Sua Boa Nova é mais atraente do que todos os nossos sermões. Não é hora de formar grupos, criar espaços, possibilitar encontros em que as pessoas de hoje tenham a oportunidade de entrar em contacto direto com o Evangelho para escutar Jesus e descobrir juntos a Boa Nova?

Muitos dos que se sentem perdidos e vivem sem esperança, poderiam descobrir com alegria que não estão sozinhos, que eles podem confiar em um Deus Pai e que podem viver com a esperança de Jesus. Isto é o que eles mais precisam.


- Jose Antonio Pagola
Reproduzido via Amai-vos

segunda-feira, 7 de março de 2011

Folias interiores

Foto: exposição Vem ver o lambe-lambe, Recife

Neste Carnaval anseio por folias interiores, de maravilhas indescritíveis, de sinuosos alaridos, de magnificências a dispensar ruídos e palavras. Quero toda a avenida regida por inequívoco silêncio, o baile imponderável em gestos rituais, a euforia estampada em cada sorriso.

Rasgarei a fantasia de minhas pretensões e, despido de hipocrisias, deixarei meu eu mais solidário desfilar alegre pelas recônditas passarelas de minha alma.

Fecharei os ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta, escutarei o ressoar melódico do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei cair as máscaras do ego e, nas alamedas da transparência, farei desfilar, soberba, a penúria de minha condição humana.

Aplaudirei os sambistas com fogo nos pés e as mulatas eletrizadas pelo ritmo da batucada. Mas não me deixarei arrastar pelo bloco da concupiscência. Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria imaginação.

Neste Carnaval serei figurante na escola da irreverência e desfilarei pelas ruas meu incontido solipsismo, até cessar a bateria que faz dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na desfantasia do real, atirarei confetes aos foliões e perseguirei os voos das serpentinas para que impregnem de colorido as diatribes de meu ceticismo.

No estertor da madrugada, farei ébrias confidências à Colombina e, Arlequim apaixonado, ofertarei as pétalas que me recobrem o coração. Não porei olhos no desfile da insensatez, nem abrirei alas à luxúria do moralismo. Quando a porta-bandeira desfraldar encantos, ficarei ajoelhado na ala das baianas para reverenciar o Almirante Negro.

Ao eco dos tamborins, esperarei baixar a sofreguidão que me assalta, buscarei a euforia do espírito no avesso de todas as minhas crenças, exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras da montanha dos sete patamares.

Darei vivas à vida severina, riscarei Pasárgada de meu mapa e, ainda que não me chame Raimundo, farei da rima solução de tantos impasses nesse devasso mundo. Expulsarei de meu camarote todos os incrédulos do Pai Nosso cegos aos direitos do pão deles.

Revestido de inconclusas alegorias, sairei no cordão das premonições equivocadas e, vestido de Pierrô, aguardarei sentado na esquina que a noite se dissolva em epifânica aurora.

Ao passar o corso da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para ver o céu coberto pela revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por aleluias e encharcarei de perfume os monges voláteis incrustados em minhas imprudências.

Olhos fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile fulgurante dos astros na Via Láctea. Verei o sol, mestre-sala, inflamar-se rubro à dança elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as caras, festejarei a beatífica apoteose.

No cortejo dos Filhos de Gandhy, evocarei os orixás de todas as crenças para que a paz se irradie sobeja. Do alto do trio elétrico, puxarei o canto devocional de quem faz da vida a arte de semear estrelas.

Entoado o alusivo, darei o grito da paz, pronto a fazer da comissão de frente o prenúncio do inefável. No reverso do verso, cunharei promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora e o cordeiro beberem da mesma fonte.

Meu enredo terá a simplicidade de um haicai, a imponência de um poema épico, a beleza das histórias recontadas às crianças. De adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros distraído.

Farei da nudez a mais pura revelação de todas as virtudes; assim, ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de criar, e a culpa será redimida pelo amor infindo. A rainha da bateria virá tão bela quanto uma vitória-régia pousada numa lagoa despudoramente límpida. Sua beleza interior suscitará assombro.

A evolução da escola culminará em revolução: a fantasia se fará realidade assim como o sertão há de vir amar e o mar de ser tão pellegrinamente pão do espírito.

Neste Carnaval não haverei de me embriagar de etílicos prazeres nem me deixarei arrastar pelos clóvis a disseminar o medo entre alegrias. Irei aos bailes rituais e me submeterei às libações subjetivas, ofertarei ao Mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas em hóstias.

Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na festa que se faz de fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não conhece dor. Então a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será transubstanciada em festival perene – Carnaval.


- Frei Betto
Publicado originalmente no Amai-vos

domingo, 6 de março de 2011

A propósito do Pai Nosso (5)


E chegamos hoje ao final da nossa jornada,  iniciada há um mês. Publicamos hoje a última parte* da reflexão de Simone Weil sobre a oração do Pai Nosso. Para meditar, orar e, esperamos, aprofundar a fé. Um bom domingo a todos!

E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal
A única provação para o homem é ser abandonado a si próprio em contato com o mal. O nada é então verificado experimentalmente. Ainda que a alma tenha recebido o pão sobrenatural no momento que ela o pediu, sua alegria fica misturada com o pânico porque ela não pode pedi-lo a não ser para aquele instante presente. O futuro permanece duvidoso. Ela não tem o direito de pedir o pão para o dia de amanhã, mas ela expressa seu pânico relativamente ao futuro, sob a forma da súplica. A oração do Pai-Nosso termina assim. A palavra "Pai" começou-a, a palavra "mal" a encerra. É preciso ir da confiança ao medo (ou temor, que etimologicamente está próximo de estimar, aqui seria a nossa capacidade de avaliar a nossa impotência para resistir ao mal). Unicamente a confiança traz a força suficiente para que o temor não seja uma causa de queda. (e sim uma avaliação mais realista dos efeitos devastadores do pecado – aquelas horríveis frutificações geradas por nossa ilimitada insaciabilidade ). Após haver contemplado o Nome, o Reino, e a Vontade de Deus, após haver recebido o pão sobrenatural e haver sido purificado do mal, a alma está pronta para a verdadeira humildade que coroa todas as virtudes. A humildade consiste em saber que neste mundo, a alma inteira, não apenas aquilo que chamamos de eu, em sua totalidade, mas também a parte sobrenatural da alma que corresponde à presença de Deus nela, está submetida ao tempo e às vicissitudes da transformação. É preciso aceitar absolutamente a possibilidade de que tudo que é natural em si mesmo seja destruído. Mas é preciso ao mesmo tempo aceitar e resistir à possibilidade de que a parte sobrenatural da alma desapareça. Aceitá-lo como um acontecimento que não se produziria a não ser pela vontade de Deus. Resistir como se faz diante de algo horrível. É preciso ter medo disto, mas que o medo seja a maneira de alcançar a confiança. As seis demandas do Pai-Nosso se correspondem duas a duas. O pão transcendente é a mesma coisa que o nome divino. É aquilo que opera o contato do homem com Deus. O reino de Deus é a mesma coisa que sua proteção estendida sobre nós contra o mal; proteger é uma função real. O perdão das dívidas a nossos devedores é a mesma coisa que a aceitação total da vontade de Deus. A diferença é que nas três primeiras demandas a atenção esta voltada unicamente para Deus. Nas três últimas, reconduzimos a atenção sobre nós a fim de nos constranger a fazer das demandas um ato real e não imaginário. Na primeira metade da oração, começamos pela aceitação. Depois nos permitimos um desejo. Em seguida o corrigimos, voltando para a aceitação. Na segunda metade, a ordem é alterada; encerramos pela expressão de um desejo. É que o desejo se tornou negativo, ele se expressa como receio, mais do que isto, corresponde ao mais alto grau de humildade, o que convém para encerrar. Esta oração contém todas as demandas possíveis, não conseguimos conceber uma oração que já não esteja aí incluída. Ela esta para a oração, como o Cristo para a humanidade. É impossível pronunciá-la uma única vez colocando em cada palavra a plenitude da atenção, sem que uma transformação talvez infinitesimal, mas real se opere na alma.

*Parte 1: 6 de fevereiro; parte 2: 13 de fevereiro; parte 3: 20 de fevereiro; parte 4: 27 de fevereiro

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Texto original:

WEIL, Simone. À propos du "Nôtre Père", In Attente de Dieu. Paris: Flamarion, 1996. Tradução de Elisa Cintra.

Tradução publicada originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil
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