sábado, 28 de janeiro de 2012

Silêncio e palavra: caminho de evangelização

Ilustração: Mihai Criste

Desejo partilhar convosco algumas reflexões sobre um aspecto do processo humano da comunicação que, apesar de ser muito importante, às vezes fica esquecido, sendo hoje particularmente necessário lembrá-lo. Trata-se da relação entre silêncio e palavra: dois momentos da comunicação que se devem equilibrar, alternar e integrar entre si para se obter um diálogo autêntico e uma união profunda entre as pessoas. Quando palavra e silêncio se excluem mutuamente, a comunicação deteriora-se, porque provoca um certo aturdimento ou, no caso contrário, cria um clima de indiferença; quando, porém se integram reciprocamente, a comunicação ganha valor e significado.

O silêncio é parte integrante da comunicação e, sem ele, não há palavras densas de conteúdo. No silêncio, escutamo-nos e conhecemo-nos melhor a nós mesmos, nasce e aprofunda-se o pensamento, compreendemos com maior clareza o que queremos dizer ou aquilo que ouvimos do outro, discernimos como exprimir-nos. Calando, permite-se à outra pessoa que fale e se exprima a si mesma, e permite-nos a nós não ficarmos presos, por falta da adequada confrontação, às nossas palavras e ideias. Deste modo abre-se um espaço de escuta recíproca e torna-se possível uma relação humana mais plena. É no silêncio, por exemplo, que se identificam os momentos mais autênticos da comunicação entre aqueles que se amam: o gesto, a expressão do rosto, o corpo enquanto sinais que manifestam a pessoa. No silêncio, falam a alegria, as preocupações, o sofrimento, que encontram, precisamente nele, uma forma particularmente intensa de expressão. Por isso, do silêncio, deriva uma comunicação ainda mais exigente, que faz apelo à sensibilidade e àquela capacidade de escuta que frequentemente revela a medida e a natureza dos laços. Quando as mensagens e a informação são abundantes, torna-se essencial o silêncio para discernir o que é importante daquilo que é inútil ou acessório. Uma reflexão profunda ajuda-nos a descobrir a relação existente entre acontecimentos que, à primeira vista, pareciam não ter ligação entre si, a avaliar e analisar as mensagens; e isto faz com que se possam compartilhar opiniões ponderadas e pertinentes, gerando um conhecimento comum autêntico. Por isso é necessário criar um ambiente propício, quase uma espécie de «ecossistema» capaz de equilibrar silêncio, palavra, imagens e sons.

Grande parte da dinâmica actual da comunicação é feita por perguntas à procura de respostas. Os motores de pesquisa e as redes sociais são o ponto de partida da comunicação para muitas pessoas, que procuram conselhos, sugestões, informações, respostas. Nos nossos dias, a Rede vai-se tornando cada vez mais o lugar das perguntas e das respostas; mais, o homem de hoje vê-se, frequentemente, bombardeado por respostas a questões que nunca se pôs e a necessidades que não sente. O silêncio é precioso para favorecer o necessário discernimento entre os inúmeros estímulos e as muitas respostas que recebemos, justamente para identificar e focalizar as perguntas verdadeiramente importantes. Entretanto, neste mundo complexo e diversificado da comunicação, aflora a preocupação de muitos pelas questões últimas da existência humana: Quem sou eu? Que posso saber? Que devo fazer? Que posso esperar? É importante acolher as pessoas que se põem estas questões, criando a possibilidade de um diálogo profundo, feito não só de palavra e confrontação, mas também de convite à reflexão e ao silêncio, que às vezes pode ser mais eloquente do que uma resposta apressada, permitindo a quem se interroga descer até ao mais fundo de si mesmo e abrir-se para aquele caminho de resposta que Deus inscreveu no coração do homem.

No fundo, este fluxo incessante de perguntas manifesta a inquietação do ser humano, sempre à procura de verdades, pequenas ou grandes, que deem sentido e esperança à existência. O homem não se pode contentar com uma simples e tolerante troca de cépticas opiniões e experiências de vida: todos somos perscrutadores da verdade e compartilhamos este profundo anseio, sobretudo neste nosso tempo em que, «quando as pessoas trocam informações, estão já a partilhar-se a si mesmas, a sua visão do mundo, as suas esperanças, os seus ideais» (Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2011).

Devemos olhar com interesse para as várias formas de sites, aplicações e redes sociais que possam ajudar o homem actual não só a viver momentos de reflexão e de busca verdadeira, mas também a encontrar espaços de silêncio, ocasiões de oração, meditação ou partilha da Palavra de Deus. Na sua essencialidade, breves mensagens – muitas vezes limitadas a um só versículo bíblico – podem exprimir pensamentos profundos, se cada um não descuidar o cultivo da sua própria interioridade. Não há que surpreender-se se, nas diversas tradições religiosas, a solidão e o silêncio constituem espaços privilegiados para ajudar as pessoas a encontrar-se a si mesmas e àquela Verdade que dá sentido a todas as coisas. O Deus da revelação bíblica fala também sem palavras: «Como mostra a cruz de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de Deus, a experiência da distância do Omnipotente e Pai é etapa decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra Encarnada. (...) O silêncio de Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros, Ele fala no mistério do seu silêncio» (Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 30 de Setembro de 2010, n. 21). No silêncio da Cruz, fala a eloquência do amor de Deus vivido até ao dom supremo. Depois da morte de Cristo, a terra permanece em silêncio e, no Sábado Santo – quando «o Rei dorme (…), e Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos» (cfr Ofício de Leitura, de Sábado Santo) –, ressoa a voz de Deus cheia de amor pela humanidade.

Se Deus fala ao homem mesmo no silêncio, também o homem descobre no silêncio a possibilidade de falar com Deus e de Deus. «Temos necessidade daquele silêncio que se torna contemplação, que nos faz entrar no silêncio de Deus e assim chegar ao ponto onde nasce a Palavra, a Palavra redentora» (Homilia durante a Concelebração Eucarística com os Membros da Comissão Teológica Internacional, 6 de Outubro de 2006). Quando falamos da grandeza de Deus, a nossa linguagem revela-se sempre inadequada e, deste modo, abre-se o espaço da contemplação silenciosa. Desta contemplação nasce, em toda a sua força interior, a urgência da missão, a necessidade imperiosa de «anunciar o que vimos e ouvimos», a fim de que todos estejam em comunhão com Deus (cf. 1 Jo 1, 3). A contemplação silenciosa faz-nos mergulhar na fonte do Amor, que nos guia ao encontro do nosso próximo, para sentirmos o seu sofrimento e lhe oferecermos a luz de Cristo, a sua Mensagem de vida, o seu dom de amor total que salva.

Depois, na contemplação silenciosa, surge ainda mais forte aquela Palavra eterna pela qual o mundo foi feito, e identifica-se aquele desígnio de salvação que Deus realiza, por palavras e gestos, em toda a história da humanidade. Como recorda o Concílio Vaticano II, a Revelação divina realiza-se por meio de «acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido» (Const. dogm. Dei Verbum, 2). E tal desígnio de salvação culmina na pessoa de Jesus de Nazaré, mediador e plenitude da toda a Revelação. Foi Ele que nos deu a conhecer o verdadeiro Rosto de Deus Pai e, com a sua Cruz e Ressurreição, nos fez passar da escravidão do pecado e da morte para a liberdade dos filhos de Deus. A questão fundamental sobre o sentido do homem encontra a resposta capaz de pacificar a inquietação do coração humano no Mistério de Cristo. É deste Mistério que nasce a missão da Igreja, e é este Mistério que impele os cristãos a tornarem-se anunciadores de esperança e salvação, testemunhas daquele amor que promove a dignidade do homem e constrói a justiça e a paz.

Palavra e silêncio. Educar-se em comunicação quer dizer aprender a escutar, a contemplar, para além de falar; e isto é particularmente importante paras os agentes da evangelização: silêncio e palavra são ambos elementos essenciais e integrantes da acção comunicativa da Igreja para um renovado anúncio de Jesus Cristo no mundo contemporâneo. A Maria, cujo silêncio «escuta e faz florescer a Palavra» (Oração pela Ágora dos Jovens Italianos em Loreto, 1-2 de Setembro de 2007), confio toda a obra de evangelização que a Igreja realiza através dos meios de comunicação social.

- Papa Bento XVI
Vaticano, 24 de Janeiro – dia de São Francisco de Sales – de 2012
Reproduzido via ABC - Religion & Ethics. Postagem em português no site do Vaticano aqui. Os grifos são nossos.

Próxima missa da Pastoral da Diversidade, em São Paulo: 29/1


Próxima missa da Pastoral da Diversidade em São Paulo: dia 29 de janeiro, às 17h. Divulguem e compareçam!

Mais informações aqui e no www.pastoraldadiversidade.com.br :-)

O mistério último é sempre maior

Imagem daqui

Uma sociedade civil multirreligiosa funcional requer que cada comunidade religiosa considere que as outras religiões ocupam no mundo um lugar tão bom quanto o seu próprio.

A opinião é de Paul F. Knitter, professor da cátedra Paul Tillich de Teologia e Religiões e Cultura Mundiais do Union Theological Seminary, em Nova York. É professor emérito de teologia da Xavier University, de Cincinnati, Ohio. O artigo foi publicado na revista
Adista Documenti, nº. 98, 31-12-2011.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.



A necessidade do diálogo inter-religioso

Acredito que a urgência de um diálogo inter-religioso, a urgência, isto é, de respeitar os fiéis de outras religiões, de aprender com eles e de cooperar com eles, nasce de três exigências ou imperativos éticos que o mundo contemporâneo apresenta aos cristãos e aos fiéis de outras religiões. O mundo em que vivemos é globalizado e interconectado como nunca antes, mas também é um mundo ameaçado e em perigo como nunca antes. Os perigos e as ameaças nascem da violência que os seres humanos estão cometendo tanto contra outros seres humanos, quanto contra o ambiente.

Então, sugiro que se considere que este mundo globalizado mas ameaçado está convidando as pessoas religiosas a serem: 1) mútuos vizinhos inter-religiosos, 2) mútuos pacificadores inter-religiosos, 3) peregrinos inter-religiosos junto a cada um de nós.

Devemos ser os vizinhos inter-religiosos dos outros

Sempre houve diversas religiões no mundo. A diversidade religiosa não é nada de novo. Mas, no passado, essas diversas religiões permaneciam na sua "própria área", ou seja, dentro das suas próprias fronteiras geográficas e culturais. Hoje, isso está mudando. Muitas religiões diferentes estão mudando de área. Aqueles que acreditam de maneira diferente, que rezam de maneira diferente, que se vestem de maneira diferente não vivem mais do outro lado do mundo. Vivem na casa ao lado, trabalhamos junto com eles, e os seus filhos vão à escola junto com os nossos; certamente, os seus filhos poderão se casar com os nossos. (...)

Atualmente, a comunidade das nações e cada nação singular estão estão se transformando cada vez mais em sociedades civis multirreligiosas.

Se a segurança de uma nação depende do fato de que os seus cidadãos sejam "bons vizinhos" dos outros – vizinhos que não somente vivem dentro das mesmas fronteiras, mas que trabalham juntos para fazer com que o seu espaço comum seja uma vizinhança sadia, limpa, segura para todos –, então devemos ser bons vizinhos multirreligiosos dos outros. Somos convidados a trabalhar com os outros, a sermos amigos dos outros, como pessoas que encontram o significado da vida de formas muito diferentes, baseando-nos em livros religiosos muito diferentes, seguindo líderes religiosos muito diferentes, que apresentam imagens diferentes das coisas últimas. (…)

Se quisermos ser "bons vizinhos" dos outros, se esperamos ser "bons vizinhos" dos outros, devemos ser capazes de sê-lo de maneira inter-religiosa.

E aqui vem a parte difícil, o verdadeiro desafio. Ser bons vizinhos multirreligiosos requer algo mais do que tolerância. Entendam bem que não estou desprezando a tolerância. Deus sabe se temos maiores necessidades dentro das comunidades religiosas do nosso mundo. Tolerância significa (...) permitir que outros sejam religiosos do modo que quiserem. Mas isso implica que o façam de má vontade. Gostaríamos que não houvesse aquilo que deixamos que aconteça, pelo menos não na casa ao lado da nossa.

É por isso que, para ser bons vizinhos de múltiplos credos, a tolerância não é suficiente. Para formar uma vizinhança ou uma nação a partir de diferentes comunidades religiosas, devemos reconhecer e apoiar – no nosso pensamento e no nosso sentimento – não só a existência, mas também a validade das outras comunidades religiosas. Nós, cristãos, devemos ser capazes de olhar para os nossos vizinhos muçulmanos não apenas reconhecendo-os como tais, mas também ficando contentes que o sejam.

Uma sociedade civil multirreligiosa funcional requer que cada comunidade religiosa considere que as outras religiões ocupam no mundo um lugar tão bom quanto o seu próprio. (...)

O que eu proponho aqui é que, na nossa comunidade mundial multirreligiosa e nas nossas nações multirreligiosas, quer se trate dos Estados Unidos ou da Colômbia, se deve sustentar a igualdade de direitos das religiões, o que significa a igual validade das religiões. Acredito que, de bom grado, reconhecemos que uma nação que afirme ser democrática não pode funcionar sem que haja igualdade de gênero ou de raça. (...) Deve-se poder dizer o mesmo das religiões: em uma nação multireligiosa que se defina como democrática, dizer que Deus fez de uma religião – geralmente o cristianismo – a única religião verdadeira ou superior às outras é contrário aos seus valores democráticos. (…)

Devemos ser pacificadores inter-religiosos com os outros

Nós, cristãos, naturalmente, em virtude da nossa própria identidade, somos chamados a ser pacificadores. Mas hoje, em certo sentido, isso não é mais suficiente. Devemos ser pacificadores inter-religiosos. Tal desafio se tornou muito mais urgente depois dos acontecimentos do 11 de setembro de 2001 – e dos acontecimentos do pós-11 de setembro. A violência daquela dia e a violência que se seguiu a esse dia encarnaram e evidenciaram o que está acontecendo em muitas outras partes do mundo: se está utilizando a religião – que significa convicções e valores religiosos – para alimentar, justificar e intensificar a violência de algumas pessoas contra outras.

Embora, através da história humana, sempre tenha havido violência em nome da religião, tal violência parece hoje mais ameaçadora do que no passado. Alguns especialistas e alguns políticos em posições de poder defendem que a religião está alimentando um choque de civilizações, civilizações dotadas agora de armas mais devastadoras do que jamais se imaginou. Com isso não se está dizendo que a religião cause por si só a violência. Mas sim que a religião é muitas vezes a faísca que acende as tensões políticas, econômicas ou éticas ou é a lenha que permite que as chamas da guerra ardam com maior intensidade e ferocidade.

As pessoas religiosas (...) que veem como a sua religião é empregada para justificar a violência terrorista do lançar de aviões contra edifícios ou para justificar a violência militar de jogar bombas sobre outros povos devem se levantar e reagir, sentindo que a sua religião e os seus valores religiosos são usados e manipulados.

O rabino Jonathan Sacks, no seu maravilhoso livro "A dignidade da diferença", enuncia o desafio que se apresenta aos vizinhos religiosos: "Os fiéis não podem pôr-se de lado quando as pessoas são assassinadas em nome de Deus ou de uma causa sagrada. Quando a religião é invocada como justificação para o conflito, as vozes religiosas deve se levantar e protestar. (...) Se a fé é mobilizada por causa da guerra, deve haver uma contrarrespostas em nome da paz. Se a religião não faz parte da solução, certamente faz parte do problema".

Sacks sugere que a tarefa de enfrentar a violência em nome da nossa religião é um problema que não podemos gerir sozinhos. Precisamos da ajuda de outras religiões, que podem nos ajudar, assim como nós podemos lhes ajudar, a ver como a nossa religião é instrumentalizada e por qual motivo os líderes políticos se estão apropriando dela. Pede-se aos cristãos, assim como a todos os fiéis, que sejam pacificadores inter-religiosos. A nossa resposta é um entusiasmado "Sim, nós podemos". Mas, como vou indicar, tal disposição positiva poderia nos apresentar exigências inesperadas.

Devemos ser peregrinos inter-religiosos com os outros

A terceira razão pela qual o diálogo inter-religioso é necessário (...) toca a dimensão mais profunda de nosso ser pessoas religiosas, pessoas que chegaram a conhecer ou a confiar, através de Jesus Cristo, no fato de que há uma Realidade que nos transcende no mistério, assim como nos abraça na intimidade. (...)

Nós, cristãos, estamos nos dando conta de que, quando assumimos o pluralismo religioso com seriedade como um dos mais prementes "sinais dos tempos", quando procuramos ser bons vizinhos e companheiros pacificadores junto com pessoas de outros credos, descobrimos que somos capazes de experimentar e de aprender coisas a respeito de Deus e de nós mesmos e do nosso mundo que jamais poderíamos aprender sozinhos. A nossa relação com os outros é uma forma de dar profundidade à nossa própria espiritualidade! Como afirmou Edward Schillebeeckx, estamos chegando a aceitar o fato de que há mais verdade em todas as religiões juntas do que em qualquer uma delas separadamente. E, para esclarecer esse ponto, ele acrescenta: isso inclui o cristianismo! (...)

O diálogo inter-religioso nos oferece a oportunidade para sermos companheiros peregrinos dos muçulmanos, dos judeus, dos budistas, dos hindus, das espiritualidades indígenas, explorando e descobrindo cada vez mais coisas do Mistério que chamamos de Deus, um Mistério que tem muitos nomes, e cuja integridade nenhuma religião poderá abraçar completamente. (…)

As oportunidades oferecidas pelo diálogo

Um novo modo de ser Igreja

O apelo ao diálogo dirigido pelo Concílio Vaticano II e por João Paulo II se tornou, para muitos cristãos, tanto católicos quanto protestantes, um convite a um novo modo de ser Igreja. Esse convite foi ouvido e depois pronunciado sobretudo pelos bispos católicos da Ásia. Ouvindo os seus povos e recebendo apoio de teólogos como Aloysius Pieris, Raimon Panikkar, Felix Wilfred e Michael Amaladoss, os bispos asiáticos insistiram com clareza e vigor sobre o fato de que a Igreja cristã poderá ser uma Igreja asiática somente entrando em um diálogo autêntico com outras religiões asiáticas e com os muitos pobres e marginalizados do continente.

Mas o caráter multirreligioso da sociedade civil em todo o mundo está indicando que o que é verdadeiro para as Igrejas locais da Ásia também é certamente para a Igreja universal. O chamado Pentecostes asiático, em que está nascendo um novo modo de entender a Igreja, está se transformando em um Pentecostes mundial. Para ser uma verdadeira Igreja cristã, a Igreja deve ser uma Igreja dialógica. O Espírito Santo que dá vida à Igreja é um Espírito de diálogo.

Dizer que a Igreja deve ser realmente dialógica ilumina e atualiza uma de suas quatro características essenciais (...): "una, santa, católica, apostólica". O pluralismo religioso e a urgência do diálogo, a meu ver, nos ajudaram, nos obrigaram a nos darmos conta do que realmente significa "católico". Kata holos – "abraçar tudo" – nos diz que a Igreja deve incluir o todo, tudo o que existe além das suas fronteiras. Só entrando em relação com o outro podemos nos dar conta de quem somos, de quem podemos ser, de quem somos destinados a ser. (...)

Mas o que queremos dizer com essa nova definição de Igreja-diálogo? (...) Em 1984, o Secretariado para os Não Cristãos (posteriormente chamado de Conselho Pontifício para o Diálogo) não só repetiu, mas também intensificou o apelo ao diálogo do decreto conciliar Nostra Aetate, que definia o diálogo como uma parte essencial da missão da Igreja. (...)

Depois, em 1991, o significado do diálogo foi iluminado talvez com maior clareza na encíclica de João Paulo II, Redemptoris Missio (RM) e na Declaração Dialogo e Annuncio (DA) do Conselho Pontifício para o Diálogo. Essas declarações oficiais reconhecem expressamente que o diálogo autêntico visa ao "enriquecimento mútuo" de todas as partes (RM 55, DA 9), que no diálogo os cristãos devem permitir serem "postos em discussão", até mesmo "purificados" (DA 32 ), talvez "transformados" (DA 47).

Surpreendentemente, o documento vaticano chega ao ponto de reconhecer que, em um verdadeiro diálogo, todos os participantes (incluindo os cristãos) devem estar aberto à possibilidade de serem "convertidos", isto é, abertos ao fato de que pode "nascer a decisão de deixar uma situação espiritual ou religiosa anterior para se dirigir para uma outra" (DA 41).

Então, "católico", entendido como "diálogo" – e "diálogo" entendido no sentido usado por João Paulo II e pelo Conselho Pontifício para o Diálogo – significa que a relação entre cristianismo e outras culturas e religiões deve ser uma autêntica relação biunívoca. Se as Igrejas cristãs devem crescer e ser fiéis ao Evangelho de Jesus, não só devem anunciar a Boa Nova, mas também estar abertas a qualquer Boa Nova que Deus possa comunicar através das outras tradições religiosas. (...)

Só assim a comunidade cristã chamada de Igreja pode realizar a sua missão de promover o Reino de Deus proclamado por Jesus. Se a comunidade dos seguidores de Jesus não estiver em uma verdadeira relação dialógica com outros – com pessoas e religiões realmente diferentes –, não pode definir a si mesma como católica. Efetivamente, como diria o meu professor Karl Rahner, só através de tal diálogo com outras religiões e culturas que a Igreja cristã poderá realmente se transformar em uma Igreja mundial encarnada não só na cultura europeia, mas também nas culturas da África, da Ásia e das espiritualidades autóctones das Américas do Norte e do Sul.

Um novo modo de fazer teologia

Mas se o diálogo é um novo modo de ser Igreja, então o diálogo também deve ser um novo modo de fazer teologia. (...)

Durante os últimos 20 ou 30 anos, muito se tem falado dentro da academia teológica, especialmente nos Estados Unidos, sobre a teologia comparada. (...) Mas o que se indica por "teologia comparada"? Acredito que se possa compará-la com a teologia da libertação e ver refletido e ampliado nela a sua recordação. Se a teologia da libertação mostrou claramente como a teologia cristã não pode ser autêntica se não ouvir as vozes dos muitos pobres e marginalizados do mundo, a teologia comparada acrescenta que os teólogos cristãos também devem ouvir as vozes das muitas religiões do mundo.

Assim como os teólogos da libertação descobriram que, quando leem a Bíblia através dos olhos e dos ouvidos dos pobres (que muitas vezes são seus próprios olhos e ouvidos), veem e aprendem coisas jamais antes vistas, o mesmo pode acontecer lendo a Bíblia e refletindo sobre o Credo na perspectiva do budismo, do hinduísmo ou do islamismo. Desse modo, ouvir as vozes de outras religiões, assim como ouvir as vozes dos marginalizados, não é só uma opção entre tantas na descrição do trabalho de um teólogo cristão. É uma exigência, uma necessidade.

É verdade que a teologia comparada ainda está se desenvolvendo na consciência da teologia cristã; ela ainda é examinada, elaborada e debatida na academia teológica. Mas, partindo do meu próprio estudo da teologia comparada e dos esforços para pô-la em prática, posso relatar a seguir uma lista de algumas das suas características e das suas afirmações essenciais:

1. Hermeneuticamente, a teologia comparada reconhece e assume para o seu próprio conhecimento aquilo que é comummente reconhecido pelos psicólogos e pelos antropólogos e ensinado pelos místicos de todas as religiões. Da psicologia, aprendemos que as relações com outros seres humanos são essenciais para o desenvolvimento da nossa própria identidade e saúde, de modo que apenas diante da pergunta "Quem é você?" pode-se responder à pergunta "Quem sou eu?". E dos místicos ouvimos e talvez experimentamos, nós mesmos, que a Realidade que chamamos de Deus, que está à nossa disposição através da nossa própria experiência, nunca pode ser capturada e entendida na nossa experiência. Podemos conhecer o Divino Mistério só de maneira parcial, só a partir de fragmentos. Por isso, para responder à pergunta "Quem ou o que é o meu Deus?", devo fazer a pergunta "Quem ou o que é o seu Deus?". Os teólogos comparados, por consequência, reconhecem que, de certa forma e em certo grau, o estudo e o compromisso ao lado de outras religiões diferentes do cristianismo são essenciais para o estudo e uma maior compreensão do próprio cristianismo.

2. Programaticamente, a teologia comparada, então, não é só um "apêndice" ou uma atração secundária para o Departamento de Teologia de uma universidade católica. Não é simplesmente um "novo campo" a ser alinhado aos campos tradicionais da teologia sistemática, bíblica, histórica e prática. Ao contrário, esse compromisso comparativo ou dialógico com outros ensinamentos, Escrituras, histórias e rituais religiosos devem ser incorporados a todas as áreas da teologia cristã. Ou seja, (...) estamos reconhecendo agora que as fontes às quais um teólogo cristão deve recorrer não são só "a Escritura e a Tradição", junto com a experiência humana contínua. A elas deve ser acrescentada uma terceira fonte: as Escrituras, os ensinamentos e as práticas espirituais de outras religiões.

Trata-de de exigências fortes. E que não podem ser realizadas da noite para o dia. Na realidade, a teologia comparada será o empreendimento da próxima geração de teólogos: pesquisadores e praticantes cristãos que não só estarão plenamente imersos no campo da sua própria especialidade, mas também que estarão familiarizados com uma ou mais tradições religiosas diferentes, e isso significa que conhecerão as suas línguas originais. Os teólogos cristãos do futuro, se poderia dizer, terão sempre uma subespecialização em pelo menos uma outra religião além do cristianismo. (...)

3. Quanto ao procedimento, no modo em que os teólogos comparados atualmente desenvolvem o seu trabalho, existem três linhas gerais: ir lentamente, proceder concretamente e estar preparado para surpresas.

"Ir lentamente" descreve a relutância dos teólogos comparados para estabelecer conclusões gerais e finais. Eles estão conscientes do fato de que as conclusões devem ser baseadas em dados coletados das fontes de outras religiões, e esses dados, justamente por causa do fato de serem, para nós, novos e estranhos, devem ser coletados com atenção, muitas vezes de um modo muito meticuloso. Assim, os teólogos comparados sugerem, por exemplo, aos teólogos sistemáticos que procuram elaborar uma "teologia das religiões" que decretem uma moratória temporária para os esforços de apresentar ambiciosas declarações teológicas acerca da salvação e da revelação em outras religiões. Que mergulhem primeiro no estudo de outras religiões, permitindo que as suas próprias avaliações teológicas fluam a partir desse estudo e experiência.

Os teólogos comparados preferem também se mover por passos pequenos, particulares e concretos em seu estudo de outras religiões. Em vez de se confrontar com a noção do Divino ou com o conceito do ser ou com a visão da vida eterna do budismo e do cristianismo, eles preferem se concentrar em figuras particulares, períodos determinados, livros ou trechos concretos. Deixemos que as ideias gerais nascem dos casos particulares.

Por fim, os teólogos comparados tentam ser abertos às surpresas com relação não só ao que se pode descobrir sobre outras religiões, mas ao que se pode descobrir sobre si mesmos através desse diálogo. (...)

Esse novo modo de fazer teologia, então, é tão fatigante quanto emocionante, tão promissor quanto arriscado.

Novos modos de entender e de seguir a Cristo

Permitam-me concluir estas reflexões pondo a ênfase em uma das mais promissoras, mas também mais difíceis e controversas, oportunidades oferecidas aos cristãos (e, de modos diversos, a todas as tradições religiosas) pelo diálogo com outras religiões. A oportunidade nasce do que pareceria ser a tensão, ou a contradição, entre o início de um diálogo aberto com outras religiões e a convicção de que Deus tornou a minha religião superior a todas as outras.

Ou, mais precisamente: acredito que haja tensões desestabilizadoras mas criativas entre o diálogo como nova maneira de ser Igreja e de fazer teologia, e a cristologia tradicional que exalta Jesus como único Salvador e portador da revelação completa, definitiva e insuperável. A menos que essas tensões ou contradições sejam diretamente enfrentadas e resolvidas, temo que o diálogo cristão com outras religiões não será honesto nem eficaz, e correrá o risco de ser manipulador.

Como os cristãos podem ter um diálogo com outros fiéis que seja realmente uma relação de sentido duplo – como disse João Paulo II –, uma conversa em que os cristãos estejam realmente abertos à possibilidade de serem "postos em discussão... purificados... transformados, até mesmo convertidos" – se eles acreditam que Deus lhes deu a única fonte de salvação e a verdade completa, final e normativa com relação a todas as outras verdades?

Com essa atitude, os cristãos sempre terão, por assim dizer, a carta vencedora, divinamente concedida, contra todas as outras verdades religiosas. Pareceria, então, que, dentro das Igrejas cristãs tradicionais atuais e dentro do próprio Vaticano, existe uma tensão entre a prática do diálogo ao qual os cristãos são chamados, de um lado, e a teoria da cristologia tradicional, de outro. Esse é, creio, um dos desafios mais sérios e urgentes que as Igrejas cristãs enfrentam hoje.

É um desafio que convoca os teólogos cristãos à tarefa que muitas vezes guiou a teologia ao longo dos séculos da história da Igreja: avançando através dos tempos e das diversas culturas, como a Igreja pode resolver as tensões que naturalmente nascem entre a prática da vida cristã e a teoria da fé cristã, entre o que tradicionalmente tem sido chamado de lex orandi e lex credendi?

O desafio particular ao qual estou me referindo nestas reflexões convida os teólogos a elaborar uma cristologia, uma compreensão de Jesus Cristo que preserve a sua mensagem distinta sem subordinar as identidades e a mensagem distinta de outras figuras religiosas. Uma cristologia que permita e exija dos cristãos um compromisso contínuo e total com o Evangelho de Jesus e, ao mesmo tempo, uma abertura genuína à verdade que possa nos desafiar perante outras tradições religiosas (...).

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Por mais longo que seja o inverno...


Em tempo de desabamentos, reintegrações de posse, cracolândias, MP557, intolerâncias e tantas outras violências várias, é sempre bom lembrar que a primavera com certeza virá.

Porque a esperança também é uma atitude crítica.

Todo adulto gay foi uma criança gay (parte 2)

Imagem daqui

(Continuação do post de hoje de manhã. Se você não leu, dê uma olhada aqui primeiro. :-))

São duas e meia da manhã e eu estou olhando para a tela do computador. Dentro de cerca de quatro horas eu preciso estar acordada pra levar meu filho pra escola e ir pro trabalho. Ao invés disso, estou quebrando a cabeça tentando descobrir o que dizer para um adolescente cujos pais estão fazendo de sua vida um inferno.

Minha vida não foi sempre assim.

Eu escrevi o que eu achava que era uma pequena história fofa e inocente sobre meu filho mais velho e seu amor por um personagem de um programa popular de televisão, e como isso acabou o levando a me contar que ele queria beijar meninos e não meninas. Eu, ingenuamente, coloquei isso na Internet, pensando que talvez alguns fãs da série ou do ator achariam fofo também.

12 horas depois, essa história foi “curtida” e reblogada mais de 20 mil vez.
24 horas depois, foi colocada na página inicial do Out.com.
36 horas depois, Dan Savage estava blogando sobre ela.
48 depois, o Trevor Project posta sobre ela no Facebook.

Foi impressionante. Mais que isso, foi de quebrar o coração. Por causa de toda a exposição, vieram comentários e uma caixa de entrada cheia.

Eu consigo lidar com comentários negativos. Pessoas dizem que meu filho é muito novo para assistir à série. Que eu não deveria estar escrevendo sobre meu filho sendo ele tão novo. Que minhas piadas são ruins. Eu consigo olhar pra tudo isso imparcialmente e concordar que eles tem alguma razão (ainda que eu nem sempre concorde).

O que eu não consigo lidar é com centenas de pessoas dizendo que gostariam que eu fosse a mãe deles. Centenas de pessoas me dizendo que eu mereço prêmios. E, pior, pessoas dizendo que eu sou uma mãe perfeita.

Eu simplesmente não sou tão legal assim.

Eu me esforço pra ser uma boa mãe, mas eu não estou nem entre as 25 melhores mães que conheço. Eu sou aquela mãe que fala irritantemente alto. Eu nunca nem tentei ler um livro sobre bebês. Eu danço ska com meu marido no meio de lojas quando estou entediada e faço meus filhos desejarem morrer de tanta vergonha. E isso é só o começo.

Mas aí estão todas essas pessoas online dizendo quão boa eu sou. E o que eu fiz? Eu disse que amava meu filho incondicionalmente. Isso é algo tão raro que as pessoas precisam parar pra falar sobre? Eu não pensava assim, mas agora começo a me perguntar.

Porque a parte que realmente quebra meu coração são as mensagens na minha caixa de entrada. Aquelas que vêm de crianças cujos pais evidentemente falharam na parte mais importante de ser pai ou mãe: de fato amar seu filho. Os comentários são simples e devastadores, e quase sempre terminam da mesma forma: me agradecendo por amar meu próprio filho.

Eu respondo a todos, no escritório enquanto deveria estar trabalhando, e tarde da noite no sofá quando eu deveria ter ido dormir há horas. Não responder não é uma opção para mim. Eu preciso fazê-lo. Eu preciso que essas crianças saibam que eu li suas palavras. Que eles merecem o melhor. Que eles significam algo pra mim.

Não é tudo ruim. Um garoto de 14 anos me disse que acabou de sair do armário para os pais. Eu respondi parabenizando-o e perguntei como foi. E então eu sentei, ansiosa, esperando que ele respondesse, e ele apareceu um minuto depois dizendo que “tudo correu muito bem!”.

Mas infelizmente, os comentários que me fazem sorrir e rir são uma minoria. A maioria deles são como o que eu estou vendo nesse momento. Uma criança de coração partido que deseja desesperadamente que sua mãe pare de lhe dizer coisas horríveis. Um menino que deseja que sua mãe ainda o ame.

Eu vou achar alguma coisa pra dizer pra ele, mas eu sei que não vai ser o suficiente.

Eu quero viver em um mundo onde aquela histórinha boba que eu escrevi não tem nada de especial, é apenas uma bobagem sobre um garotinho e seu amor por um garoto de blazer.

(Postado em agosto)

* * *

No dia 16 de agosto eu aprendi o significado de “viral”.

Eu escrevi um texto sobre meu filho mais velho e seu amor por um popular personagem gay da televisão, o Blaine de Glee, e como sua paixonite o levou a me contar que ele queria beijar garotos e não garotas. Eu, ingenuamente, postei isso em meu blog, achando que alguns fãs da série achariam fofo.

Dentro de 24 horas ele havia sido repostado e “curtido” mais de 30 mil vezes no site do blog. Não demorou muito até que as mensagens começassem a lotar a caixa de entrada, outros sites começarem a postar e as pessoas a comentarem. A recepção pela esmagadora maioria foi positiva. O que eu pensei que era uma simples história sobre meu filho e minha família claramente tocou fundo em muitas pessoas.

Também deixou muitas pessoas desconfortáveis. Das críticas, a mais comum é que meu filho tem seis anos de idade e não sabe nada sobre sexo. Ainda que eu tenha certeza de que isso não diz nada de definitivo a respeito da orientação sexual do meu filho, eu rejeito a ideia de que ser gay diz respeito apenas a atos sexuais. Nossas emoções e sentimentos, nossas atrações e compulsões, tudo contribui, não apenas as partes do nosso corpo. Se meu filho estivesse apaixonado pela atriz principal de iCarly, eu duvido que as pessoas diriam que ele é muito jovem pra ter sentimentos sexuais por uma garota. Eu acredito que pensariam que é apenas uma paixonite inocente de menino, o que é exatamente o que isso é. Além disso, pra cada comentário que eu lia dizendo que meu filho era muito novo, havia vários outros de adultos dizendo “eu também sabia quando era pequeno”.

Isso tudo me fez pensar e depois de um tempo eu comcei a sentir como se eu soubesse um grande segredo que não deveria de maneira alguma ser um segredo: todo adulto gay foi uma criança gay. Não é como se todas as crianças começassem héteros até que algum tempo depois alguém ligasse o “botão gay”.

As palavras horríveis e cheias de ódio das Michelle Bachmann da vida são levadas a um novo nível de repugnância quando as imaginamos sendo gritadas a um grupo de crianças na pré-escola ou primeira série. Eles são anti-naturais. Eles são pecadores. Eles vão pro inferno. Eles são sujos, errados e doentes.

Essas pessoas diriam para o meu garotinho inocente (que no momento quer ser um bombeiro-ninja quando crescer) que ele é a maior ameaça existente para a família americana… porque ele quer beijar meninos e não meninas.

A realidade é que eles estão enfiando essas palavras de ignorância e ódio na cabeça de crianças gays todos os dias. E essas crianças estão ouvindo isso. Eu sei porque muitas dessas crianças agora estão me escrevendo. Crianças de 14 anos me mandaram mensagens. Tantas delas são crianças assustadas, que obviamente não escolheram isso pra si mesmas, vivendo com medo de que suas famílias descubram porque sabem o que seu pai e sua mãe vão dizer. E eles me dizem que gostariam que eu fosse a mãe deles.

Eu quero deixar toda essa conversa, todas essas mentiras, todo esse ódio, longe dessas crianças. Claro, há um problema inerente nisso. Nós não podemos saber quem são as crianças gays só de olhar, e comportamento não é um indicador preciso (algumas meninas héteros são “moleques” e alguns meninos gays adoram brincar de carrinho). A única maneira de saber a orientação sexual de alguém é a pessoa nos contando, o que para alguns não acontece até a vida adulta.

Então, a solução é óbvia pra mim. Manter isso longe de todas as nossas crianças. É minha responsabilidade como mãe, como ser humano, levantar e dizer “basta”. Não, você não pode dizer essas coisas na frente dos meus filhos, a menos que você queira lidar comigo. Porque eu não vou permitir que nenhum dos meus filhos seja maldosmente atacado sem que eu os defenda. Eles nunca terão que duvidar sequer por um segundo pelo quê seus pais lutam, e nunca terão que viver com medo de quem são.

Porque desde 16 de agosto, eu aprendi que o ódio é o vírus com qual temos que nos preocupar.

(Postado em 3/10/11, aqui; grifo do Jack.

E sabem o que é mais fofo? É que a própria autora desses textos, a Amelia, acabou sabendo da postagem do pessoal do Minoria é a Mãe e entrou em contato com eles. Maravilhas da internet neste mundo globalizado - veja aqui.)

Todo adulto gay foi uma criança gay (parte 1)

Imagem daqui

Esta semana ganhamos um presente: o link para o post que reproduzimos abaixo, do blog Minoria é a Mãe. O texto fala por si mesmo: é lindo, amoroso, sincero. Tanto, que hoje só vamos falar disso. Nossa postagem da tarde será a continuação desta aqui.

O presente maior, porém, foi ter conhecido os três autores do Minoria é a Mãe. Tão maior, que precisamos dizer uma coisa: vá lá. Agora. Esse blog precisa ser conhecido, comentado, divulgado, viralizado. Porque eles sabem que o mundo é plural, que todo mundo é diferente, que cada um é cada um, e que esse negócio de rótulos e categorias pra enquadras as pessoas é chato, é limitante e é perigoso, quando você vê a categoria antes de ver a pessoa; pior, quando a própria pessoa vê a categoria a que "pertence" antes de se ver. E que dialogar e conviver e trocar com o outro, que é necessariamente único e diferente de mim, é uma coisa boa.

Então, faz assim: lê este texto, comente se quiser (adoraríamos saber o que você achou) e vá . Ou salve o link para ir depois com calma, mas não deixe de ir.

E, às 15h, volte para ler a continuação - aqui. ;-)

Beijos.


Meu filho mais velho tem seis anos e está apaixonado pela primeira vez. Ele está apaixonado pelo Blaine de Glee.

Para quem não sabe, Blaine é um garoto… um garoto gay, namorado de um dos personagens principais, Kurt.

Não é um amor do tipo “ele acha o Blaine muito maneiro”. É do tipo de amor em que ele devaneia olhando para uma foto de Blaine por meia hora seguido por um ávido “ele é tão lindo”.

Ele adora o episódio em que os dois meninos se beijam. Meu filho chama as pessoas que estão em outros cômodos pra ter certeza de que não perderão "sua parte favorita”. Ele volta o video e assiste de novo… e obriga os outros a fazerem o mesmo, se achar que as pessoas não prestaram atenção suficiente.

Essa obsessão não preocupa a mim e a seu pai. Nós vivemos em uma vizinhança liberal, muitos de nossas amigos são gays e a ideia de ter um filho gay não é algo que nos preocupa. Nosso filho vai ser quem ele é, e amá-lo é nosso dever. Ponto final.

E também, ele tem seis anos. Crianças nessa idade ficam obcecadas com todo tipo de coisa. Isso pode não significar nada. Nós sempre brincamos que ou ele é gay ou nós temos a melhor chantagem na história da humanidade quando ele tiver 16 anos e for hétero. (Toma essa, fotos tomanho banho.)

E então, dia desses estávamos viajando para outra cidade ouvindo (é claro) o CD dos Warblers, e no meio da música Candles, meu filho, do banco de trás, fala:

“Mamãe, Kurt e Blaine são namorados.”
“São sim,” eu confirmo.
"Eles não gostam de beijar meninas. Eles só beijam meninos.”
“É verdade.”
“Mamãe, eles são iguais a mim.”
“Isso é ótimo, querido. Você sabe que eu te amo de qualquer forma?”
“Eu sei…” Eu podia ouví-lo rolando os olhos pra mim.

Quando chegamos em casa, eu contei da conversa para o pai dele, e nós simplesmente olhamos um nos olhos do outro por um momento. E então, sorrimos.

“Então se aos 16 anos ele quiser fazer o grande anúncio na mesa de jantar, poderemos dizer ‘Você disse isso pra gente quando tinha 6 anos. Passe as cenouras’ e ele ficará decepcionado por roubarmos o grande momento dramático dele’, meu marido diz rindo e me abraça.

Só o tempo dirá se meu filho é gay, mas se for, estou feliz que ele seja meu. Eu estou feliz que ele tenha nascido na nossa família. Uma família cheia de pessoas que o amarão e o aceitarão. Pessoas que jamais vão querer que ele mude. Com pais que não veem a hora de dançarem no casamento dele.

E eu tenho que admitir, Blaine seria realmente um genro fofo.

- Reproduzido via Minoria é a Mãe
Original postado em 15/08/11, aqui

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"Desculpem pelo modo como a Igreja tem tratado vocês"


Acabamos de receber via twitter, e não resistimos. Taí uma ideia que merecia se espalhar:

Grupo de cristãos aparece em uma Parada do Orgulho Gay de Chicago com cartazes pedindo desculpas, inclusive um "Desculpem pelo modo como a Igreja tem tratado vocês". (link original aqui)

Obrigado, @thrgomes!

* * *

Caso se interesse:
Por que os cristãos devem defender os direitos dos homossexuais
"Caro Santo Padre, diga algo contra a homofobia"
Carta aberta do Fórum Europeu LGBT ao Papa Bento XVI

Entrevista com Leonardo Boff – Imperdível

Na segunda-feira, dia 23, zapeando, deparei-me com uma excelente entrevista no programa “É Notícia” da RedeTV com o Leonardo Boff.

Já tinha lido muitos textos dele, mas sua serenidade e firmeza nas duras críticas a Igreja me fez pensar bastante no tipo de Igreja que desejo pra mim. Em vários momentos eu exclamei - “...isso, Isso, ISSO...”!!!

Ou seja, para este homem permanecer na Igreja é um ato muito Cristão. Resistindo e se articulando pra mudar o que ele acredita.

Durante a entrevista, Boff explica os princípios da teologia da libertação, sexualidade, ética na hierarquia, de quando estudou com Ratzinger, fala também dos anos como Frei Franciscano e dos conflitos com o Magistério nesse período e critica a postura das Igrejas na mídia.

A entrevista é longa, está divida em 3 partes. Mas, enquanto você trabalha pode ir ouvindo :)

Na sequência:

Parte 1


Parte 2



Parte 3





O teólogo Leonardo Boff é considerado um dos nomes mais importantes da Teologia da Libertação e da defesa dos Direitos Humanos. Ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1959 e, em 1992, pressionado pelo Vaticano, renunciou às atividades de padre. Boff é autor de mais de 60 livros sobre teologia, ecologia, espiritualidade, filosofia e antropologia.



Rodolfo Viana

''Com o ágape, o impossível é a medida do amor''

Foto: Amamak

"Ama o teu próximo": o mandamento que ilumina "toda a Lei e os Profetas", segundo Enzo Bianchi e Massimo Cacciari.

A análise é do filósofo italiano Federico Vercellone, professor da Universidade de Turim, em artigo para o jornal La Stampa, 21-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


Existe um mandamento que resume completamente o ensinamento de Jesus, e é o último: "Ama o teu próximo". O décimo mandamento realiza o mandatum novum, sela o novo pacto entre Deus e o seu povo. Aquilo que assim se configura é um caminho que subverte os limites. Nesse caminho, o cristianismo se configura como religião universal.

Quem nos lembra disso é Enzo Bianchi e Massimo Cacciari, em Ama il prossimo tuo, o magnífico livro dedicado ao décimo mandamento que eles escreveram para a editora Il Mulino. O volume é composto por dois ensaios. O primeiro, de Enzo Bianchi, é intitulado "Fazer-se próximo como amor", e o segundo, de Cacciari, "Dramática da proximidade". Os textos sintetizam o âmbito histórico-religioso, e o teológico e filosófico da questão.

Enzo Bianchi nos guia através da tradição judaica e da cristã. O décimo mandamento é um mandamento que soa sempre como um desafio; e o é, talvez, com ainda mais razão, em uma época como a nossa, que também foi definida como a época da "morte do próximo". O amor, lembra Enzo Bianchi, é um apelo constante a sair de si mesmo. E o mandamento adverte, como já lembrava São Jerônimo, que todo ser humano deve ser considerado com próximo pelo outro ser humano. O ensinamento a amar o próximo como a ti mesmo, no Antigo Testamento, aparece no Levítico: "Não procures vingança nem guardes rancor aos teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico 19, 18).

Não estamos diante de uma concepção individualista do amor, porque, como se evidencia do contexto, a intenção da passagem do Levítico é de fazer de Israel uma comunidade justa e solidária entre os seus membros. Isso ocorre, não obstante, no quadro de uma equilibrada interação entre responsabilidade individual e dimensão coletiva.

Além do modo como se pode entender o mandamento na Bíblia judaica, não é possível não perceber novamente como o mandatum novum representa um das grandes rupturas produzidas por Jesus com relação ao judaísmo, um dos pontos em que ele se afasta da religião dos pais para expressar uma nova interpretação da Lei, fundamentada na hermenêutica do amor. Como ensina o Evangelho de Mateus, o décimo mandamento se torna o ponto de vista através do qual deve-se ler a Bíblia, um fogo que ilumina "toda a Lei e os Profetas", um exemplo encarnado por Jesus, que faz da sua vida uma obra-prima do amor. "Nisso", diz o Evangelho de João, "todos saberão que sois meus discípulos".

Tudo isso é absolutamente dramático. Como magistralmente aponta Massimo Cacciari, estamos diante de um sentimento totalmente paradoxal, "com uma compaixão que não conhece ciúmes, e que não tem outro propósito do que libertar o amado". Toda tradução torna-se arriscada com relação ao conteúdo absolutamente paradoxal da mensagem evangélica. Com o décimo mandamento, vai-se muito além do conceito grego de philia, que não exclui que é melhor fazer o bem do que recebê-lo.

Com o cristianismo, estamos diante de um passo que vai decisivamente além de todo amor antigo. O que se anuncia aqui é o ágape, o amor que não tem a ver principalmente com as relações humanas, mas sim com a relação que Deus mantêm consigo mesmo por meio do Filho. Quando o Pai se realiza na unidade com o Filho, estamos diante de um amor que rompe todos os limites, para acolher dentro de si o sofrimento que aflige o amado. É um amor, portanto, que escolhe o impossível como própria medida. E mostra, assim, que o amor é todas as vezes um óbulo infinito que reconhece o outro antes de nós mesmos. Que o atribui à sua singularidade absoluta. Realizando-se o amor do próximo, ele se demonstra, de vez em quando, como o mais poderoso dos impossíveis.

* * *

Façamos um exercício de imaginação: que realidade se pode construir com base em "um amor que rompe todos os limites e acolhe dentro de si o sofrimento que aflige o amado"?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sacerdote católico australiano busca apoio dos cidadãos para condenar a homofobia

Imagem daqui

Cada país com seus próprios problemas. Pelo menos tem alguém fazendo a sua parte...

Paul Kelly, padre católico da região australiana de Queensland, criou uma petição cidadã com o objetivo de garantir que os tribunais nacionais não aceitem o "pânico de gays" alegado por réus em casos de agressões a LGBTs como atenuante que permite reduzir a pena dos condenados.

O padre australiano criou uma petição cidadã com este objetivo, condenando o suposto pânico que é invocado por agressores e assassinos de homossexuais e transexuais, a fim de reduzir suas penas.

"É simplesmente intolerável que alguém possa aceitar uma defesa ou uma justificativa baseada no medo da homossexualidade. Isso de nenhuma maneira diminui a violência que leva à morte", disse o padre.

A petição cidadã criada pelo líder religioso da região australiana ocorreu depois que, em 2009, um homem gay foi assassinado em uma briga homofóbica perto da igreja dirigida pelo padre em Marlborough.

Paul Kelly recentemente criticou o fato de que o julgamento do assassino possa acabar aceitando um suposto "medo da homossexualidade", diminuindo assim a sentença.

"As leis que defendem um suposto pânico de gays são uma parte crucial do processo de legitimar e reforçar uma cultura de ódio que faz com que 73% dos gays e lésbicas em Queensland estejam sujeitos a abuso verbal e violência física por sua sexualidade", defendeu o padre.

Kelly disse que "Queensland é um dos poucos estados que defendem a idéia de que uma pessoa pode ter um acesso de pânico perante pessoas homossexuais, permitindo-lhes justificar assim graves agressões que levam à morte".

Fonte: universo gay

Dica do amigo @MarkosOliveira

Como se Deus não existisse

Foto: Shen Wei

Dietrich Bonhoeffer, autor dessa frase tão carregada de conteúdo, foi enforcado pelo regime de Hitler, acusado de conspirar contra o próprio. Sua vida transcorre entre o dia 4 de fevereiro de 1906 e sua execução no dia 9 de abril de 1945, após ter sido condenado por um tribunal em um pacote que reuniu o Almirante Canaris e outros cinco militares de alta graduação e um juiz. Ele era um pastor evangélico filiado à Igreja Confessante, um grupo dentro da Igreja Luterana que ele mesmo liderava em sua oposição aberta ao nazismo e ao silêncio de sua Igreja oficial e em defesa dos judeus.

Pertencia a uma família da alta sociedade prussiana. Havia dedicado a  vida a ser vigário do pastor de Barcelona e ao ensino nos seminários da Alemanha e dos EUA, mas, perante a irrupção do nazismo, se sentiu chamado a se concentrar na luta contra Hitler e se uniu ao grupo do almirante Canaris em sucessivas tentativas de derrubar o ditador.

Foi preso no dia 5 de abril de 1943 e, a partir desse momento, soube que acabaria na forca. No tempo em que passou na prisão, pôde escrever cartas e outros documentos nos quais amadurece seu pensamento e sua religiosidade. Afastado do ensino de futuros aspirantes ao ministério e da pregação nos seminários, sua vida na prisão está destinada ao fracasso da forca e – algo que lhe marcou ainda mais – ao diálogo e em relação com presos alheios a toda ideia religiosa, descrentes ou agnósticos.

Essa circunstância dupla – junto com a correspondência com sua namorada Maria von Wedemeyer, que sempre o trazia para a realidade – o move a elaborar um pensamento novo ou, melhor, a extrair as consequências mais audazes dos princípios do Iluminismo e da evolução da teologia e da filosofia alemãs mediante pensadores como Harnack, Barth e outros.

Extraímos de seus escritos da prisão alguns parágrafos que poderiam resumir seu pensamento e esclarecer e especificar o conteúdo de sua expressão "É preciso viver como se Deus não existisse", que, longe de significar um posicionamento ateu ou negação de Deus, é uma afirmação do Deus que se manifesta para nós através de toda a Bíblia e, principalmente, em Jesus de Nazaré.

- "O Iluminismo condena o homem a resolver todas as questões importantes, não só as científicas e artísticas, mas também éticas e até mesmo religiosas, sem apelar para a hipótese Deus. Não se trata de negar a Deus, mas sim de afirmar a sua inutilidade".

- "As pessoas religiosas falam de Deus quando o conhecimento humano não dá mais de si mesmo, ou quando fracassam as capacidades humanas. Na realidade, limitam-se sempre a oferecer um deus ex machina, ao qual exibem para que solucione os problemas insolúveis... Mas não quero falar de Deus nos limites, mas sim no centro, não nas fraquezas, mas sim na força, isto é, não na hora da morte e da culpa, mas sim na vida e no bom do homem. Nos limites, parece-me melhor guardar silêncio e deixar sem solução o insolúvel".

- "Não podemos ser honestos sem reconhecer que é necessário que vivamos neste mundo etsi Deus non daretur [como se Deus não existisse]... Ele nos faz saber que é preciso que vivamos como seres humanos que chegam a viver sem Deus. O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho "Deus" é aquele perante o qual estamos constantemente. Diante de Deus e com Deus, vivemos sem Deus. Deus se deixa desalojar do mundo e pregar na cruz. Deus é impotente e fraco no mundo, e só assim está em nós e nos ajuda... Mateus 8, 17 nos indica claramente que Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos".

Eis aqui a diferença decisiva de todas as demais religiões. A religiosidade do ser humano o remete, em sua miséria, ao poder de Deus no mundo: Deus é o deus ex machina. A Bíblia o remete ao sofrimento e à debilidade de Deus. Só o Deus sofredor pode ajudar. Nesse sentido, pode-se dizer que a evolução do mundo para a vida adulta, fazendo tábua rasa de uma falsa imagem de Deus, liberta a miséria do ser humano para direcioná-la para o Deus da Bíblia, que adquire seu poder e seu lugar no mundo pela sua impotência.

Bonhoeffer confessava da prisão que, frente "às pessoas religiosas, com frequência, não me atrevo a pronunciar o nome de Deus, porque tenho a sensação de produzir um som equivocado e não muito honesto. Frente a pessoas não religiosas, ao contrário, posso nomear Deus ocasionalmente com toda a tranquilidade e como algo óbvio".

É claro que essa linguagem de Bonhoeffer, lutador de primeira fila e mártir do nazismo, se choca frontalmente com a linguagem de Ratzinger, cuja trajetória frente ao nazismo está muito longe de ser tão veemente e decidida como a do pastor da Igreja da Confissão... E, sem dúvida, a tensão do ser humano e de seu espírito ao enfrentar uma morte violenta como a que coube a Bonhoeffer ajudam a alcançar as verdades em toda a sua profundidade.

- Honorio Cadarso
Artigo publicado no sítio Atrio, 18-01-2012. Tradução: Moisés Sbardelotto
Reproduzido via IHU, com grifos nossos.

Nota do autor:
As citações foram extraídas do livro Resistencia y sumisión. Cartas y apuntes desde el cautiverio, que reúne os escritos de Bonhoeffer na prisão. Foi editado pelas Ediciones Sígueme, Salamanca, 2008. Também pode-se consultar um estudo da teologia de Bonhoeffer escrito por Arnaud Corbic, intitulado Cristo, Señor de los no religiosos, disponível aqui (em espanhol), Biblioteca Koinonia.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A história dos meninos gays e de infâncias devastadas

Uma foto por dia, durante 13 anos: Jeff Harris

Uma das integrantes do Diversidade Católica compartilhou com o grupo a história de Pedro e João, relatada na semana passada por Eliane Brum em sua coluna semanal na Revista Época. Ela começa contando:
"Da infância, somos todos sobreviventes. Alguns mais do que outros. Esta é a história de um homem em busca de compreender a si mesmo. E de tentar, como adulto, ser diferente do menino pelo poder da narrativa. Esta história é contada aqui porque foi a nossa ignorância – a minha e também a sua – que destroçou a vida dessas duas crianças. E tem destroçado – às vezes em brutal literalidade, com tiros e pancadas – a vida de muitos – demais."
Não vamos reproduzir o texto inteiro aqui, mas (para quem ainda não viu) recomendamos sua leitura, aqui. O que gostaríamos de compartilhar com os leitores do blog é o depoimento pessoal que, a partir desse caso, outro membro do grupo e colaborador deste blog (nosso Mister MM) compartilhou conosco.

Porque histórias como as de Pedro, João e tantas outras às vezes precisam ser compartilhadas para que as pessoas possam superar as dores e as feridas e seguir adiante - e, quem sabe, estender a mão para quem vier atrás e passar por situações semelhantes.


Vi isso acontecer de perto, muito de perto. Por ter estudado em Colégio Militar e ter convivido sempre com rapazes, presenciei por diversas vezes verdadeiros massacres como esse. Numa fase da vida em que a autoafirmação torna-se a base de toda e qualquer sobrevivência no grupo social, ninguém quer ser o diferente, seja lá qual for o parâmetro ou a medida para tal.

No colégio, vi muitos colegas serem perseguidos por serem mais fracos, franzinos, delicados, tímidos. Eu mesmo, porque era gordo, tive que desenvolver um jogo de cintura fenomenal para escapar às gozações e brincadeiras dos colegas. Nos casos de homofobia que presenciei, minha atitude foi a do omisso: temia que ali também me identificassem com todos aqueles pejorativos inflingidos à vítima e me silenciava. Um orgulho tenho no currículo (e isso ainda vou contar em episódio de um livro que estou escrevendo): salvei dois colegas da exposição à execração pública e consequente expulsão do colégio. Mas isso eu conto numa reunião do DC, prometo.

O relato do Pedro é de uma solidão infinita e a forma como ele descreve o seu percurso de "volta", de reconhecimento de si próprio, de sua identidade e (apesar do clichê) de sua verdade é bastante comovente. Em determinado ponto da sua história (quando ele diz: "eu era um adolescente exemplar. Nunca tinha bebido, nunca tinha usado drogas), vi nitidamente a figura de um ex-namorado meu: filho exemplar, certíssimo, sem falhas, sem mácula, defensor da ordem, da moral, impecavel no seu traje social e no cabelo escovinha, tudo brilhante, solar e perfeitamente enquadrado como num comercial de margarina. Obviamente, mentia para todos e para si mesmo até a raiz dos cabelos. O peso de ter que se enquadrar em qualquer esquema (seja ele a figura do filho ideal ou a do porra louca universitário, como aconteceu com Pedro), ainda mais quando o artifício serve como manutenção de um disfarce, inevitavelmente cobra um preço salgado. O próprio desenrolar da história de Pedro nos mostra isso.

Pelo que deduzi da história de Pedro, sou uns 10 anos mais velho que ele. Vivi uma época em que tanto a escassez de informação quanto a falta de meios para veiculá-las me obrigou a descobrir tudo sobre (homo)sexualidade e tudo sobre mim mesmo numa quase completa solidão. Não havia internet, os estereótipos gays eram impiedosamente repisados nos programas de humor televisivo e, quando queríamos ofender gravemente alguém, bastava chamar o sujeito de Clodovil ou Ney Matogrosso que era confusão na certa. Tive muita sorte na minha história pessoal em não ter caído no poço escuro e sem fundo da raiva, da repulsa e da culpa, como aconteceu com Pedro. E mesmo assim isso não me impediu de experimentar dolorosamente esses sentimentos diversas vezes, através das palavras, dos olhares e da (in)sensibilidade de outras pessoas.

Todos os dias rezo para que meu afeto sobreviva nesse mundo caótico de símbolos e siglas e tantas e tantas interdições, rezo para não perder a minha humanidade em meio aos que, por ignorância ou maldade, subtraem o que há de genuíno e o substituem pelo que há de supérfluo. Rezo, enfim, para que os percursos de tantos e tantos Pedros e Joões por aí desaguem em mares de compreensão e acolhimento. De perdão. Para outros e para eles mesmos.

Obrigado por ter compartilhado essa matéria.

Beijo carinhoso.

Os oceanos de Deus


Nossa vida é uma unidade porque está centrada no mistério de Deus. Mas para conhecer essa unidade temos que olhar para além de nós mesmos e, com uma perspectiva maior do que aquela com a qual geralmente olhamos, quando nossa principal preocupação é o interesse por nós mesmos. Apenas quando começamos a abandonar o auto-interesse e a auto-consciência, é que essa perspectiva maior começa a se abrir. Uma outra forma de dizer que nossa visão se expande, é dizer que nós conseguimos ver além das meras aparências, em direção à profundidade e ao significado das coisas (...) não apenas (...) em relação a nós mesmos mas (...) ao todo do qual fazemos parte. Esse é o caminho do verdadeiro auto-conhecimento e, é por isso que o verdadeiro auto-conhecimento é idêntico à verdadeira humildade. A meditação nos revela essa preciosa forma de conhecimento, [e] esse conhecimento se transforma em sabedoria... uma vez que conheçamos, não mais por análise e definições, mas por participação na vida e no espírito de Cristo. [...]

A maior dificuldade é começar, dar o primeiro passo, lançar-se na profundidade e na realidade de Deus, tal como revelada em Cristo. Uma vez que tenhamos deixado para trás as praias do nosso próprio eu, rapidamente, navegamos nas correntes da realidade que nos dão direção e impulso. Quanto mais quietos e atentos estivermos, mais sensivelmente responderemos a essas correntes. E, então, nossa fé se torna mais absoluta e, verdadeiramente, espiritual. Pela quietude no espírito, nos movemos em direção ao oceano de Deus. Se tivermos a coragem de sairmos das praias, não fracassaremos em encontrar essa direção e energia. Quanto mais nos distanciamos, mais fortes se tornam as correntes e mais profunda a nossa fé. Por algum tempo, o paradoxo de que o horizonte ao qual nos destinamos está sempre recuando, desafia a profundidade da nossa fé. Para onde estamos indo com essa fé mais profunda? Gradualmente reconhecemos o significado da corrente que nos guia, e compreendemos que o oceano é infinito.
Deixar as praias é o primeiro grande desafio, mas é necessário apenas começar, para encarar o desafio. Ainda que, depois, os desafios possam se tornar maiores, nos é assegurado que tudo o que é necessário para encará-los, nos será dado. Começamos repetindo o mantra. Recitar o mantra é estar sempre começando, retornando ao primeiro passo. Com o tempo aprendemos que há apenas um passo entre nós e Deus...Cristo deu este passo. Ele mesmo é o passo (...) A única forma de conhecer Cristo é entrar no seu mistério pessoal, deixando idéias e palavras para trás. Nós as deixamos para trás, de modo a entrar no silêncio do pleno conhecimento e amor, para os quais a meditação nos está conduzindo, a cada um de nós.

- John Main OSB
In THE PRESENT CHRIST (NY: Crossroad, 1991), pgs. 111-112, 116-117.
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Ouvir a beleza


Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

- Rubem Alves
(via @AmigoCardo)

Sobre a chuva, o choro e um lugar chamado Pinheirinho

Foto: G1

Do excelente blog do Fabrício Cunha, nos chega este pungente testemunho. Que a indignação perante a injustiça nos motive a prosseguir, como diz o autor, "lutando pelo que vale a pena". Para que episódios como esse não aconteçam mais.

As crianças sabem muito da vida. Tenho três aqui em casa.

Quando chove muito, costumam dizer que Deus está triste e chora suas lágrimas sobre a terra.

Têm razão.

Foi assim hoje.

Deus olhou aqui para São José dos Campos, onde moro, e viu aquela gente simples, pequena, pobre, sem voz, ser escorraçada do Pinheirinho, uma ocupação que abriga aproximadamente 8 mil pessoas desde 2004. (Clique aqui para saber mais).

Já fui lá muitas vezes. Hoje, pela última.

Andei, conversei, levei água e abraços pra alguns conhecidos e muitos desconhecidos. Senti-me completamente impotente diante da desgraça humana.

Minha amiga Loide, foi lá mais cedo. Viu uma senhora saindo da ocupação ainda muito desnorteada. Loide foi em sua direção e a abraçou em silêncio. A senhora dizia e repetia: “é a vida, minha filha, é a vida”. Não, minha senhora, não era pra ser assim. Seu pedacinho de terra deveria ser garantido pelo Estado, que deveria protegê-la, mas não. Junto dela, um sem número de gente levando o pouco que lhe restou em sacos de supermercado, mochilas velhas, malas esgarçadas, expressão de sua vida.

Ninguém me contou. Eu vi!

Quando esse tipo de interpretação do conceito de propriedade privada sobrepõe a dignidade humana, há algo de muito errado em nossa sociedade.

Quando uma prefeitura finge que não vê um número tão grande de pessoas e não as considera em sua gestão, há algo de muito errado com a política.

Quando um prefeito lava as mãos em silêncio diante de um fato que acontece debaixo de seus olhos, há algo de muito errado com um líder.

E quem sofre mais uma vez? O pobre, a viúva, o estrangeiro, as crianças, como bem nos disseram os profetas e o Messias.

Já vi muita coisa linda na vida, mas são as feias que não saem de minha cabeça, que insistem em gritar dentro de mim que algo vai mal, que algo está errado e que não posso dormir tranquilo.

Chore sim, Senhor. Chore muito. O choro de um pai que vê seus filhos sendo despachados novamente ao exílio, ao exílio da dignidade, da inclusão, da humanidade, de seu chão.

Chore sim, Senhor e que seu choro esconda o nosso, nos alivie a dor e nos motive a continuar lutando pelo que vale a pena.

Que seu choro amoleça a terra do Pinheirinho, tanto tempo infrutífera, e que do juntar do sangue e do suor ali derramados com as suas lágrimas de dor, a esperança nasça e renasça apontando a vida.

Mas hoje é dia de lamentar a morte.

Podemos mudar o curso da História


A leitura que a Igreja propôs neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 1, 14-29, que corresponde ao 3º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU. Os grifos são do autor.


Não sabemos com certeza como reagiram os discípulos de João Batista quando Herodes Antipas o encarcerou na fortaleza de Maqueronte. Conhecemos a reação de Jesus. Não se ocultou no deserto. Tampouco se refugiou entre os Seus familiares de Nazaré. Começou a percorrer as aldeias da Galileia predicando uma mensagem original e surpreendente.

O evangelista Marcos resume dizendo que «partiu para a Galileia proclamando a Boa Nova de Deus». Jesus não repete a predicação de João Batista, nem fala do Seu batismo no Jordão. Anuncia Deus como algo novo e bom. Esta é a Sua mensagem.

«Cumpriu-se o período». O tempo de espera que se vive em Israel acabou. Terminou também o tempo de João Batista. Com Jesus começa uma era nova. Deus não quer deixar-nos sós ante os nossos problemas, sofrimentos e desafios. Quer construir junto conosco um mundo mais humano.

«Está próximo o reino de Deus». Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos anunciando algo que nenhum profeta tinha se atrevido a declarar: "Já está aqui Deus, com a Sua força criadora de justiça, tratando de reinar entre nós". Jesus experimenta Deus como uma Presença boa e amistosa que procura abrir caminho entre nós para humanizar a nossa vida.

Por isso, toda a vida de Jesus é uma chamada à esperança. Há alternativa. Não é verdade que a história tenha que discorrer pelos caminhos de injustiça que lhe traçam os poderosos da terra. É possível um mundo mais justo e fraterno. Podemos modificar a trajetória da história.

«Convertei-vos». Já não é possível viver como se nada estivesse a acontecer. Deus pede aos Seus filhos e filhas colaboração. Por isso grita Jesus: "Mudai a forma de pensar e de atuar". Somos as pessoas, as que primeiro temos de mudar. Deus não impõe nada pela força, mas está sempre a atrair as nossas consciências para uma vida mais humana.

«Acreditai nesta Boa Nova». Tomai-a a sério. Despertai da indiferença. Mobilizai as vossas energias. Acreditai que é possível humanizar o mundo. Acreditai na força libertadora do Evangelho. Acreditai que é possível a transformação. Introduza-se no mundo a confiança.

Que fizemos com esta mensagem apaixonante de Jesus? Como pudemos esquecer? Pelo que o substituímos? No que nos entretemos se o importante é "procurar o reino de Deus e a Sua justiça"? Como podemos viver tranquilos observando que o projeto criador de Deus de uma terra cheia de paz e de justiça está sendo aniquilado pelos homens?

domingo, 22 de janeiro de 2012

Trans: anticonformistas para não se sentirem mais prisioneiros

Foto: Tomboy

Reivindicando a possibilidade de mudar de passar ao outro sexo (transexuais) ou o direito de não escolher a qual sexo pertencer (trangêneros), os/as trans nos levam, no fundo, a nos interrogar não só sobre a nossa identidade sexual, mas também sobre os limites intrínsecos da nossa corporeidade. E nisso são profundamente subversivos.

A opinião é da filósofa italiana Michela Marzano, doutora em filosofia pela Scuola Normale Superiore di Pisa e professora da Universidade de Paris V - René Descartes. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 17-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Quem são os transgêneros? É possível ser ao mesmo tempo homens e mulheres? Existe um "terceiro sexo"? Como muitas vezes acontece na vida, a resposta a esse tipo de perguntas não é nada simples. A menos que nos contentemos com a costumeira escolha seca entre o "sim" e o "não". A famosa lógica dualista que pensa o mundo de modo binário: o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a alma e o corpo, os homens e as mulheres.

Uma pena que quando se fala de identidade de gênero, tudo é muito mais complicado. Porque em cada pessoa existem elementos de feminilidade e de masculinidade, mesmo que depois, ao longo da própria vida, tenha-se a tendência a se estabilizar dentro de um gênero específico. À parte dos transgêneros, certamente, que, diferentemente dos transexuais, não reivindicam o direito de mudar de sexo, mas sim o da indeterminação sexual.

Para os transexuais, o objetivo é conciliar "identidade psicológica" e "sexo anatômico": trata-se de pessoas convictas, desde a mais terna idade, de que pertencem ao sexo oposto. Por um terrível erro da natureza, algumas mulheres se encontram em um corpo de homem, e alguns homens, em um corpo de mulher, e então buscam apenas "colocar as coisas novamente no seu lugar".

Diferentemente de todos aqueles para os quais o sentimento de pertença a um ou outro gênero coincide com a própria formação genital e a própria herança cromossômica, os transexuais sofrem por causa da existência de uma lacuna entre "corpo" e "identidade", de um "esfacelamento" ao qual querem pôr fim, para não se sentirem mais prisioneiros de um "corpo" ou de um "nome" que não reconhecem.

Desse ponto de vista, os transexuais não têm nenhuma intenção de subverter a ordem das coisas: só querem se adequar à imagem que, desde sempre, têm de si mesmos. É por isso que mesmo aqueles que não querem se submeter a uma cirurgia querem poder modificar seu nome na carteira de identidade. Para se tornar, perante os olhos de todos, aquilo que sabem ser desde pequenos.

Com relação aos transexuais, os transgêneros são muito mais subversivos. Rejeitando toda oposição binária, eles querem pôr em cena a dualidade homem/mulher sem escolher a qual sexo pertencer: querem ser ao mesmo tempo homens e mulheres. É por isso que a maior parte dos transgêneros reivindica o rótulo queer – literalmente estranho, bizarro, excêntrico – e encontram dentro da teoria queer os instrumentos necessários para reivindicar o direito de viver fora das categorias de gênero tradicionais.

Diferentemente dos transexuais, os transgêneros não se definem como prisioneiros de um "corpo equivocado". Não buscam um "corpo verdadeiro". A ideia de que possa haver uma "verdade" ligada à materialidade do corpo é completamente rejeitada. Tudo é artifício, prótese, implante, maquiagem, roupas... Tudo a fim de chegar a um "corpo aceitável", ou seja, aquela aparência ambivalente e andrógina, que, depois, é a única a encarnar o "compromisso".

É por isso que a cultura transgênero rejeita drasticamente a ideia de uma passagem definitiva: a transição de "ele" para "ela", ou de "ela" para "ele", nada mais seria do que uma prova do assujeitamento de um indivíduo aos discursos e às práticas que buscam normalizar a sua existência atribuindo-o uma identidade específica.

Ser transgênero significa, por definição, encarnar o excêntrico, fugindo de todo âmbito social e de qualquer dispositivo institucional, até da linguagem: o próprio fato de falar "do" ou "da" transgênero significaria, além disso, trair a sua identidade múltipla. O/a transgênero é sempre "homem e mulher", "nem homem, nem mulher." Um "terceiro sexo", então?

Cada um de nós vive como pode a relação com seu próprio corpo. Cada um organiza sua própria identidade buscando aceitar suas próprias contradições. Reivindicando a possibilidade de mudar de passar ao outro sexo (transexuais) ou o direito de não escolher a qual sexo pertencer (transgêneros), os/as trans nos levam, no fundo, a nos interrogar não só sobre a nossa identidade sexual, mas também sobre os limites intrínsecos da nossa corporeidade. E nisso são profundamente subversivos. E têm razão. Porque é talvez o único modo para sair definitivamente dos atávicos dualismos ontológicos.

Porém, pode-se ser e querer verdadeiramente "tudo"? No momento em que rejeitamos o nome que nos foi dado e escolhemos um novo, não acabamos nos identificando da mesma forma com um gênero bem específico? E, depois, há realmente necessidade de "ontologizar" um terceiro sexo para viver até o fim as ambivalências da nossa identidade de gênero?

* * *

Caso se interesse, leia também:
"Poder transgênero", aqui

A fé cristã exige liberdade e sinceridade


"João Batista é detido, mas nunca nada pode deter a Palavra de Deus e, o primeiro ato da missão de Jesus é chamar um Povo, chamando os seus discípulos. Jesus os chama para segui-lo como discípulos, mas também para segui-lo como sucessores".

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 3º Domingo do Tempo Comum (22 de janeiro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Jo 3,1-5.10
2ª leitura : 1 Co 7,29-31
Evangelho: Mc 1,14-20

Após o chamado dos primeiros discípulos, segundo São João, eis o chamado dos quatro primeiros discípulos, que é narrada diferentemente na versão de São Marcos, o evangelista do ano B. O Jesus discreto e despercebido de São João é substituído por um Jesus cheio de autoridade, de acordo com São Marcos, que, mesmo antes de ensinar, de pregar e de agir, escolhe os discípulos. Ele tem tanta autoridade e carisma, que ninguém ousa contestá-lo. E no entanto, ele não obriga ninguém a crer nele e a segui-lo. Apenas convida: “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). E, contrariamente a João Batista, que anunciava um julgamento severo da história, Jesus proclama uma Boa Notícia que convida à conversão e à fé: “Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,15b). Mas qual é esta Boa Notícia? O que fazer para vivê-la?

1. A Boa Notícia ou o Evangelho: Se lemos bem no Evangelho de Marcos, o primeiro evangelista, e nos outros depois, a Boa Notícia é Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1,1). Mas por que ele se tornou uma Boa Notícia? Jesus tornou-se Boa Notícia pelo acontecimento morte-ressurreição, que nos demonstrou que a morte não tem a última palavra sobre a vida e que a pessoa humana, marcada pelos seus limites e suas fragilidades, pode realizar coisas muito grandes: mais justiça para todos, o respeito do outro, de todo outro, o reconhecimento da dignidade de qualquer pessoa, da capacidade ilimitada de perdoar e de reconciliar-se, o amor incondicional, a partilha das nossas riquezas, a igualdade entre os humanos, a esperança de um mundo melhor. Se isso não é uma Boa Notícia, eu me pergunto o que é…

A Boa Notícia de Jesus Cristo é, também, anunciar a salvação para todos sem exceção. Não são as nossas obras que nos salvam; é a nossa fé no Cristo da Páscoa, no Cristo ressuscitado. As obras vêm depois: “Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita com seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo” (Rm 10,9). A fé é a resposta à Boa Notícia e tem por objeto Jesus que foi ressuscitado por Deus e transformado no Cristo, Senhor e Salvador de toda a humanidade. A verdadeira justiça é aquela que vem de fé (Rm 10,6) que é dada pela fé (Rm 3,25), e a justiça recebida pela fé é perdão (Ga 5,24), reconciliação com Deus (Ef 3,12), união com Jesus Cristo (Ef 3,17), e ela inaugura a vida do Espírito (Ef 1,13-14).

O convite de Jesus Cristo à conversão e à fé na Boa Notícia nos chama à nossa liberdade humana. Não é obrigatório; é uma opção livre e sem constrangimento. E a resposta ao convite que nos é feito, deve ser também um chamado a nossa liberdade e a nossa responsabilidade. Não é por nada que São Paulo, na segunda leitura de hoje, convida aos Coríntios a não seguir alguns iluminados da comunidade que, em Corinto, pretendiam proibir a todos o casamento, porque queriam impor a todos o celibato consagrado. Querendo sublinhar o caráter provisório, mas real das realidades deste mundo, do qual o casamento faz parte, São Paulo escreve: “Uma coisa eu digo a vocês, irmãos: o tempo se tornou breve. De agora em diante, aqueles que têm esposa, comportem-se como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se alegram, como se não se alegrassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; os que tiram partido deste mundo, como se não desfrutassem. Porque a aparência deste mundo é passageira” (1 Co 7,29-31).

Infelizmente, nestes propósitos de São Paulo, há um perigo de interpretação que a Igreja não soube evitar: o desprezo do mundo, a falta de engajamento e a evasão fora das tarefas terrestres, como se não fossem necessárias. E no entanto, o pensamento de Paulo e a lógica do Evangelho são todo o contrário. O mundo que vemos requer as nossas energias, a nossa vigilância e a nossa imaginação ao serviço da justiça e a paz. Mesmo sendo essenciais, no entanto, estas realidades são provisórias em relação à nossa pertença ao Cristo da Páscoa. O exegeta Charles Wackenheim escreve: “O cristão não despreza nem os desafios nem as preocupações daqui em baixo; ele deve cuidar para não fechar o seu coração à Palavra de Deus que contesta todas essas visões fechadas”.

E temos o belo exemplo de atitude fechada na primeira leitura de hoje, onde o profeta Jonas fecha no medo os ninivitas para que eles não se convertam: “Jonas entrou na cidade e começou a percorrê-la, caminhando um dia inteiro. Ele dizia: 'Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída!'" (Jn 3,4). Durante muito tempo temos funcionado desta maneira, provocando medo nas pessoas: o inferno, os demônios, a morte e a perdição… etc.… Felizmente, hoje, saímos disso. Essa conversa não pega mais. Porque Deus, que é misericórdia, perdão e amor, como poderia ameaçar as mulheres e os homens que são a obra da sua criação? Não são criados à imagem e à semelhança de Deus? Pierre Domergue escreveu: “Certamente, Jonas pronuncia um oráculo de condenação: Nínive será destruída. Certamente, os ninivitas se converteram, e Deus repensou a sua decisão. O leitor desta história profética fica sabendo que não tem mais condenação incondicional: Deus não está obrigado a dar razão aos seus enviados. Ele está somente obrigado a manter a sua própria palavra, que é ternura e misericórdia”.

2. Tornar-se discípulos: Perante a pergunta: o que fazer para viver a Boa Notícia? Eu respondo isto: para viver a Boa Notícia devemos nos tornar discípulos de Cristo, ou seja, deixar-nos ver por Cristo: “Ao passar pela beirado mar da Galiléia, Jesus viu Simão e seu irmão André; estavam jogando a rede ao mar, pois eram pescadores” (Mc 1,16), entender o seu convite: “Jesus disse para eles: «Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens” (Mc 1,17), haver livremente: “Eles imediatamente deixaram as redes e seguiram a Jesus.” (Mc 1,18).

Eis aqui dois símbolos importantes a definir:

1) A rede: Símbolo de sedução. Cair nas redes de alguém é deixar-se seduzir por ele. O Cristo do Evangelho de Marcos é um sedutor; ele seduz tanto que não dá para se escapar dele, daí o ardor dos quatro primeiros discípulos chamados a segui-lo. Fazem-no espontaneamente, com total liberdade.

2) Pescadores de homens: É verdade que a pesca consiste em pegar ou capturar peixes. Mas o sentido da pesca humana utilizado por São Marcos é bem outro. É necessário lembrar que, na Bíblia, o mar é símbolo das forças do mal, e pescar homens é liberar o homem da influência do mar, das forças do mal. Por conseguinte, a missão dos discípulos não consiste em tomar ou capturar homens, mas antes consiste em libertá-los. Essa é a missão da Igreja ainda hoje.

Para concluir, gostaria simplesmente de citar o exegeta francês Jean Debruynne, no seu comentário do Evangelho de hoje: “É a detenção de João Batista que serve de sinal. João Batista é jogado na prisão e isso liberta a palavra do Evangelho como se a prisão de João fosse o encontro marcado para que Jesus saísse do silêncio. Como se uma retransmissão se passasse de João a Jesus. Como se a história mudasse e se passasse do antigo ao novo testamento. João Batista é detido, mas nunca nada pode deter a Palavra de Deus e, o primeiro ato da missão de Jesus é chamar um Povo, chamando os seus discípulos. Jesus os chama para segui-lo como discípulos, mas também para segui-lo como sucessores”. Eu acrescentaria que é em plena liberdade que os quatro discípulos aceitam seguir Cristo, e é com total liberdade, ainda hoje, que nós aceitamos nos tornar discípulos do Ressuscitado, seguir o Cristo Páscoa. Somos, por conseguinte, os sucessores dos primeiros discípulos, que foram também os sucessores de Jesus Ressuscitado.
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