quinta-feira, 8 de maio de 2014

Clara e Marina, entre normas e absurdos

 
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A propósito do casal "Clarina" na novela das nove da Gobo e sua repercussão por aí.

Uma mulher trocar marido e filho por outra mulher é "absurdo", como diz uma das imagens acima, porque que mulher pode se dar a liberdade de trocar o lugar que lhe cabe na sociedade por qualquer outro de sua escolha, e diferente do que dela se espera? Pior, que mulher pode se dar a liberdade de não gravitar em torno do modelo androcêntrico que ainda rege, em grande parte, nossas escolhas e relações?

Imagens como estas denunciam o quanto nossa cultura ainda é normativa, o quanto ainda é difícil sair dos padrões, a carga de recriminações e segregações que tantos ainda têm de suportar como preço a pagar por sua "emancipação". Porque, para aqueles que temos normas a seguir, "autonomia" e "autodeterminação" se confundem com "subversão" e "transgressão". O "prazer", quando escapa aos limites devidamente estabelecidos, se transforma em "devassidão". Mesmo os prazeres clandestinos, para serem tolerados, têm de obedecer às leis que regem o domínio das sombras.

O perigo é que, se trevas e luz não se misturam, a lógica da exclusão de tudo o que escapa às normas condena seus cumpridores a uma paranoia perpétua. Afinal, quanto mais populosa a terra das sombras, mais cercados e acuados estarão os habitantes da luz - ou "cidadãos de bem", ou "defensores da moral e dos bons costumes" (ou, como chamam jocosamente as fãs do casal Clarina, "a família brasileira"). E, no entanto, é por suas sombras que a sociedade normativa respira. São os marginais e clandestinos que insuflam ar novo nos quartos fechados e lubrificam as engrenagens enferrujadas, mesmo pagando caro por isso.

A visão de mundo por trás das imagens acima, muito mais do que "apenas" lesbofóbica e machista, é heteronômica, opressora e sufocante. Mas essas imagens só existem porque expressam a tensão da mudança. Na relação entre a Marina de Manoel Carlos e Clara (esse exemplo de mulher-mãe-e-dona-de-casa da "família tradicional"), dois mundos se chocam e tentam se encontrar. A paixão meio platônica que coloca as duas em algum lugar entre a sedução e essa estranha "amizade" que não ousa dizer seu nome evoca todas as hostes de amantes anônimos que, durante gerações, tiveram de se contentar com migalhas de afeto e fragmentos de ternura - por não terem o direito, como disse Marina um dia desses, de "competir com o amor dele no seu coração"; "ele", o cônjuge legítimo e devidamente nomeado, ao passo que tantos de nós tivemos, e temos ainda, de relegar a expressão e vivência do nosso desejo e do nosso afeto à invisibilidade e ao silêncio da culpa e dos inferninhos. Mas não é só isso. Na dança de encontros e desencontros entre as duas, como nos debates e embates entre correntes antagônicas nas “redes sociais”, vejo as tentativas de mundos antes mutuamente excludentes de negociar e encontrar uma saída da antinomia inclusão/exclusão.

Claro, a Rede Globo, em si, não está fazendo nenhum favor a ninguém. Mas tampouco está discriminando ninguém. O que a emissora de televisão revela é a carga de contradições, a ebulição da mudança no corpo social, a busca de superação da polarização. A história de Clara, Marina, Vanessa e Cadu é a história de todos nós, LGBTs ou não, em busca da terceira margem do rio onde nos libertaremos. Onde não teremos de ser nem anjos nem demônios, mas apenas humanos - cada qual um ser singular, com seu modo único de experimentar e expressar, da maneira mais autêntica possível, seu desejo e seu amor.

- Cristiana Serra, psicóloga e membro do Diversidade Católica

* * *
E o valor da discussão suscitada pelo casal da novela se confirma em vídeos como este:




Para além dos dogmas


A espiritualidade é anterior à institucionalização das crenças e, em vez de respostas, traz perguntas, tolerância, meditação

Participei, de 1º a 4 de maio, do Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora. Reuniu cerca de 400 pessoas em Fortaleza, a maioria com menos de 30 anos. A notícia triste foi a transvivenciação, em Goiânia, dia 2, de Dom Tomás Balduino, bispo dominicano defensor de indígenas e sem-terra.

Há, hoje, uma busca difusa por espiritualidade. Porém, os sedentos não encontram com facilidade o caminho do Poço de Jacó (João 4).

Até o surgimento do cristianismo, as religiões se prendiam a limites étnicos, culturais e territoriais. O apóstolo Paulo universalizou a proposta de Jesus, estendeu-a a todos os povos sem precisarem renunciar a suas identidades culturais.

Por que espiritualidade e não propriamente religião? Espiritualidade e religião se complementam, mas não se confundem. A espiritualidade existe desde que o ser humano irrompeu na natureza. As religiões são recentes, datam de oito mil anos.

A religião é a institucionalização da espiritualidade, como a família o é do amor. Há relações amorosas sem constituir família. Há espiritualidade sem identificação com religião. Há, inclusive, espiritualidade institucionalizada sem ser religião, caso do budismo, uma filosofia de vida.

As religiões, em princípio, deveriam ser fontes de espiritualidade. Em geral, elas se apresentam como catálogos de regras, crenças e proibições, enquanto a espiritualidade é livre e criativa. Na religião, predomina a voz exterior, da autoridade religiosa. Na espiritualidade, a voz interior, o “toque” divino.

A religião é instituição; a espiritualidade, vivência. Na religião há disputa de poder, hierarquia, excomunhões, acusações de heresia. Na espiritualidade predominam a disposição de serviço, a tolerância para com a crença (ou a descrença) alheia, a sabedoria de não transformar o diferente em divergente.

A religião culpabiliza; a espiritualidade induz a aprender com o erro. A religião ameaça; a espiritualidade encoraja. A religião reforça o medo; a espiritualidade, a confiança. A religião traz respostas; a espiritualidade, perguntas. Religiões são causas de divisões e guerras; espiritualidades, de aproximação e respeito.

Na religião se crê; na espiritualidade se vivencia. A religião nutre o ego, uma se considera melhor que a outra. A espiritualidade transcende o ego e valoriza todas as religiões que promovem a vida e o bem. A religião provoca devoção; a espiritualidade, meditação. A religião promete a vida eterna; a espiritualidade a antecipa. Na religião, Deus, por vezes, é um conceito; na espiritualidade, experiência inefável.

Há fiéis que fazem de sua religião um fim. Ora, toda religião, como sugere a etimologia da palavra (religar), é um meio de amar o próximo, a natureza e a Deus. Uma religião que não suscita amorosidade, compaixão, cuidado do meio ambiente e alegria serve para ser lançada ao fogo.

Há que se cuidar para não jogar fora a criança com a água da bacia. O desafio é reduzir a distância entre religião e espiritualidade. E não abraçar uma religião vazia de espiritualidade nem uma espiritualidade solipsista, indiferente às religiões.

Há que fazer das religiões fontes de espiritualidade, amor e justiça. Jesus é exemplo de quem rompeu com a religião esclerosada de seu tempo e vivenciou e anunciou uma nova espiritualidade, alimentada na vida comunitária, centrada na atitude amorosa, na intimidade com Deus, na justiça aos pobres, no perdão. Dela resultou o cristianismo.

Quem pratica os ritos de sua religião, acata os mandamentos e paga o dízimo, mas é intolerante com quem não pensa ou crê como ele, pode ser um ótimo religioso, mas carece de espiritualidade. É como uma família desprovida de amor. A espiritualidade deveria ser a porta de entrada das religiões.

- Frei Betto

Fonte

A família entre utopia e realidade: uma reflexão teológica


Leonardo Boff, teólogo e por mais de 20 anos professor de teologia sistemática e ecumênica no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, posteriormente professor de ética na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em outras universidades no estrangeiro, tece algumas reflexões sobre a família, do ponto de vista da teologia católica.

Antes de abordarmos, suscintamente, a questão complexa da família (1), faz-se mister conscientizar uma verificação sem a qual toda nossa reflexão se apresentaria viciada ou condenada ao irrealismo. É o fato de que a família, mais que qualquer outra realidade, participa da ambiguidade inerente à condição humana que nos faz simultaneamente dementes e sapientes, sim-bólicos e dia-bólicos, numa palavra, nos revela a coexistência da luz e da sombre e de intrincadas de contradições que existem em cada um de nós. Por isso, por um lado, a família encerra altíssimos valores e, por outro, contem deformações lamentáveis. Dai viver em permanente crise, com chances de acrisolamento (donde vem a palavra crise) e de crescimento ou também com riscos de decadência e de deterioramento de sua situação.

1. Família: utopia e realidade

Não obstante esse dado primeiro, não desaparece em nós dimensão utópica, vale dizer, aquele horizonte de sentido que nos chama sempre a melhorar e a não nos resignar à realidade dada. Recusamo-nos aceitar passivamente a situação decadente. Queremos superá-la. Não secundamos um pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e destituído de vontade de aperfeiçoamento, que simplesmente administra a crise, tirando vantagens onde pode, mas sem um projeto de criação de novos modelos de convivência. Infelizmente, esta é a tendência dominante, particularmente, no quadro da pós-modernidade para a qual qualquer coisa vale (anything goes) ou só vale o que está na moda.

Entretanto, uma pessoa ou uma sociedade que já não sonha e que não se orienta por utopias, escolheu o caminhou de sua decadência e de seu desaparecimento. Sem utopia não se alimenta a esperança. Sem esperança não há mais razões para viver e o desfecho fatal é a auto-destruição. Por isso é de fundamental importância a dimensão utópica em tudo o que empreendemos, também com referência à família, mesmo com a consciência de que jamais alcançaremos a utopia. Não obstante isso, esta desempenha função insubstituível, pois a ela relativiza as realizações históricas concretas e mantém o processo sempre aberto a novas incorporações. Numa palavra, a utopia nos fazer andar. Jamais alcançaremos as estrelas. Mas que seriam nossas noites sem elas? São elas que espantam os fantasmas da escuridão e nos enchem de reverência face à “grandeur” e à majestade de um céu estrelado. Porque temos estrelas, não tememos a escuridão.

Precisamos, portanto, de uma utopia para a família, para que continue humana, lugar de realização a dois no amor e na confiança, digna de procriar novas vidas para esse mundo e para Deus.

Quando confrontamos, entretanto, a família humana com a Família divina que é a SS. Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo e a sagrada família de Nazaré, de Jesus, Maria e José, estas contradições que referimos saltam aos olhos. O risco é a produção de um discurso paralelo: exaltar, por um lado, as excelências da Família divina e da sagrada Família de Nazaré e apontar e, por outro, as mazelas da família humana, sem um real confronto entre elas.

Outro risco, mais frequente na produção escrita e falada dos cristãos é apresentar, por cima das cabeças, a utopia cristã da família, sem tomar a sério os desafios que vêm da família atual, sob a pressão violenta de transformações de toda ordem que ocorrem na sociedade, nas formas dos relacionamentos humanos e de coabitação entre pessoas que querem viver juntas. O discurso cristão, então, soa irrealista, sem responder às demandas reais dos cristãos.

Nossa reflexão procura manter a dialética entre o utópico e o real contraditório. Partiremos dos desafios do real para, então, confrontá-lo com utópico. Desta forma, esperamos fazer justiça às duas dimensões e estaremos em condição de criar espaço para inspirações que incentivam a criatividade face à realidade histórico-social que nos toca sofrer e viver.

2. A família e as transformações histórico-sociais

A família padece pesadamente das influências da cultura dominante, hoje mundializada. Esta se caracteriza por processos sociais que colocam a economia como eixo estruturador de tudo. Esta economia e seu maior instrumento, o mercado, se regem por uma feroz competição deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da solidariedade, fundamentais para a vida humana e para a família. Ela trouxe inegáveis benefícios para a condição humana, especialmente as comodidades da vida cotidiana, a medicina, os transportes, a comunicação e tantas outras mas também a agravou porque está mais interessada em oferecer bens materiais do que qualquer outra coisa. Os valores não materiais, ligados à gratuidade, ao amor, à solidariedade, à fraternidade, à troca e à espiritualidade ocupam um lugar irrelevante quando não são feitos também mercadorias, colocadas na banca do mercado e exploradas por conhecidos pregadores televisos ou por todo um mercado de literatura de auto-ajuda que mais ilude que ilumina.

Ora, destes valores altamente positivos vive fundamentalmente a família. Lamentavelmente constatamos que nossa cultura não oferece as condições concretas e adequadas para a família viver com normalidade tais valores e alimentar seu sonho. Antes, destrói, para a grande maioria das famílias, a infra-estrutura que lhes permite subsistir, viver o amor e exercer o cuidado para com os filhos/filhas. Isso porque a riqueza é pessimamente distribuída. Esta injustiça social globalizada dá origem a milhões e milhões de famílias empobrecidas, marginalizadas e excluídas. Separações e divórcios campeiam de forma assustadora. As maiores vítimas são as crianças a quem se negam as condições fundamentais que ocorrem nos três primeiros anos, de elaborar, em conctato com a mãe e em seguida com o pai, as disposições básicas que vão orientar toda a vida: o sentimento de pertença, a percepção de cuidado, de proteção, o sentido dos limites e da partilha, valores fundamentais que orientam todo o percurso da vida.

Como se depreende, nosso tipo de organização social não prima pelo cultivo de valores nem se submete a critérios éticos coletivos que ultrapassam interesses individuais. A dimensão espiritual é privatizada ou se apresenta extremamente anêmica. Tal atmosfera não propicia ambiente favorável a uma família bem integrada e sadia nem lhe subministra motivações para resistir aos apelos da erotização generalizada dos meios de comunicação inclusive os chats eróticos e de namoros virtuais via internet, que tanto debilitam os laços da fidelidade e do afeto conjugal, nem lhe oferece auxílios em momentos de crise.

A este cenário familiar dramático somam-se ainda as profundas transformações sociais e tecnológicas que afetam pesadamente o estatuto da família como a precarização do trabalho, os horários e as longas horas de transporte. As formas tradicionais de família estão ameaçadas de desaparecimento.

A família clássica patricentrada que distribuía os papéis consoante o gênero, privilegiando o pai e o esposo está cedendo lugar à família participativa, onde marido e mulher assumem todas as tarefas num sentido cooperativo, aspecto esse que deve ser positivamente valorizado.

O que está se impondo hoje por causa da urbanização acelerada do mundo é a família nuclear: pai/mãe e filhos/filhas. Este tipo de família por força do regime de trabalho do casal (ambos trabalham fora), terceiriza funções que antes eram próprias da família: o cuidado do bebê por uma babá ou empregada e depois pela creche, a arrumação da casa, a preparação da comida, o cuidado pelos idosos e doentes. Tudo isso é feito por pessoas pagas para realizarem estas tarefas. Ao casal restam as relações intersubjetivas do afeto, da convivência e do companheirismo.

A família ampliada que engloba a todos do mesmo laço de sangue, tende, especialmente nas metrópoles, a se diluir. A grande família que encerrava a todos os que viviam sob o mesmo teto, familiares, parentes, inquilinos e empregados ficou reservada, praticamente, a alguns grandes latifundiários de terras que vivem relações arcaicas.

A família dos ancestrais se restringiu às famílias de notáveis, por algum título nobiliárquico ou outro qualquer. Elas ainda cultivam tradições e memórias genealógicas, mas geralmente o fazem num sentido socialmente conservador e elitista. Não determinam mais o sentido da família original.

3. Desafios das novas formas de coabitação

Ao lado das famílias-matrimônio que se constituem no marco jurídico-social e sacramental, mais e mais surgem as famílias-parceria (coabitação e uniões-livres) que se formam consensualmente fora do marco institucional e perduram enquanto houver a parceria, dando origem à família consensual não conjugal.

A introdução do divórcio dá lugar a famílias unipessoais (a mãe ou o pai com os filhos/filhas) ou multiparentais (com filhos/filhas provenientes de matrimônios anteriores) com conhecidos problemas de relacionamento entre pais e filhos/filhas. Por fim, crescem no mundo todo as uniões entre homoafetivos (homens e mulhares) que lutam pela constituição de um quadro jurídico que lhes garanta estabilidade e reconhecimento social.

Não queremos emitir um juízo ético sobre estas formas de coabitação. Precisamos antes entender o fenômeno. Concretamente: como conceituar a família face às várias formas como ela está se estruturando?

Um especialista brasileiro, Marco Antônio Fetter, o primeiro entre nós a criar a Universidade da Família com todos os graus acadêmicos, assim define: "a família é um conjunto de pessoas com objetivos comuns e com laços e vínculos afetivos fortes, cada uma delas com papel definido, onde naturalmente aparecem os papéis de pai, de mãe, de filhos e de irmãos”(2).

Transformação maior, entretanto, ocorreu na família com a introdução de preservativos e de anticoncepcionais, hoje incorporados à cultura como algo normal, fazendo com que o discurso contrário da Igreja hierárquica católica pareça a alguns críticos, extemporâneo, e no caso da AIDS, até demasiadamente rigorista. Os próprios cristãos, de resto fervorosos e determinados a acolher as prescrições oficiais, têm dificuldades de assumi-los. Acresce ainda que com os preservativos e a pílula, a sexualidade ficou separada da procriação e do amor estável.

Mais e mais a sexualidade bem como o matrimônio são vistos como chance de realização pessoal, incluindo ou não a procriação. A sexualidade conjugal ganha mais intimidade e espontaneidade, pois, pelos meios contraceptivos e pelo planejamento familiar fica liberada do imprevisto de uma gravidez não desejada. Os filhos/filhas deixam de ser consequência fatal de uma relação sexual mas são queridos e decididos de comum acordo. Esta perspectiva é libertadora não obstante o risco do individualismo e do fechamento da família sobre si mesma.

A ênfase na sexualidade como realização pessoal propiciou o surgimento de formas de coabitação que não são o matrimônio. Expressão disso são as uniões consensuais e livres sem outro compromisso que a mútua realização dos parceiros ou a coabitação de homoafetivos, homens e mulheres.

Tais práticas, por novas que sejam, devem incluir também uma perspectiva ética e espiritual. Importa zelar para que sejam expressão de amor e de mútua confiança. Se houver amor, para uma leitura cristã do fenômeno, ocorre algo que tem a ver com Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,12.16). Então, não cabem preconceitos e discriminações. Antes, cumpre ter respeito e abertura para entender tais fatos e colocá-los também diante de Deus, como insinuou o Papa Francisco em sua curta entrevista no avião regressando da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Se o casal homoafetivo vive um compromisso e assumir a relação com responsabilidade não se lhe pode negar relevância religiosa e espiritual. Cria-se uma atmosfera que ajuda superar a tentação da promiscuidade e reforça-se a fidelidade e a estabilidade que são bens de toda relação entre pessoas, seja por via do matrimônio ou de outra forma de coabitação. Então, antes de moralizar, procurar compreender.

Se há sexo sem procriação, pode haver procriação sem sexo. Trata-se do complexo problema da procriação in vitro, da inseminação artificial e do “útero de aluguel”. Toda esta questão é extremamente polêmica em termos éticos e espirituais e não parece que se tenha chegado a um consenso seja na sociedade seja nos pronunciamento das Igrejas.

Geralmente a posição oficial católica, expressa, por exemplo, na encíclica de João Paulo II, Evangelium Vitae tende a uma visão naturista, exigindo para a procriação a relação sexual direta dos esposos, quando, é razoável se admitir a legitimidade da união de um óvulo da esposa com um espermatozóide do marido de forma artificial e depois implatar óvulo fecundado no útero, desde que tal procedimento seja imbuido de amor e de adesão à vida.

Para encurtarmos a reflexão sobre esta questão tão complexa que não cabe aqui ser tratada, valemo-nos da opinião de um especialista holandês católico:

“A tecnificação da procriação humana não é sem problemas. A inseminação artificial em suas diferentes formas, a fecundação in vitro e o transplante de embriões, todas estas possibilidades técnicas nos permitem, por um lado, tratar o espermatozóide e o óvulo como ‘material biológico’, e com eles fazer procedimentos técnicos e tomá-los como objeto de pesquisas científicas, e, por outro, realizar uma gravidez fora dos quadros seguros do casamento tradicional. Assim é possível que uma mulher engravide por inseminação artificial com esperma de um doador anônimo; pode-se reunir in vitro espermatozóides e óvulos e implantá-los depois em uma mulher qualquer; pode-se ter um filho por meio de uma ‘mãe de aluguel’. Estes meios técnicos não estão, de forma neutra, à nossa disposição enquanto capacidade puramente instrumental”(3). Exigem um discernimento ético e a criação de uma ambiência de amor, de mútuo apoio e de calorosa acolhida da vida que vem.

Numa palavra: eles devem permanecer como instrumentos a serviço do amor, da ajuda a esposos com problemas e sempre no respeito à sacralidade da vida.

Não basta a procriação artificial. O ser humano tem direito de nascer humanamente, de um pai e de uma mãe que em seu amor o desejaram. Se por qualquer problema, recorre-se a uma intervenção técnica, nunca pode-se perder a ambiência humana e o correto propósito ético.

O filho/filha que daí procede deve poder ter nome e sobrenome e ser recebido socialmente. A identidade social, nestes casos, é mais importante, antropologicamente, que a identidade biológica, como no caso de Jesus em sua relação com José. Este dando-lhe um nome e inserindo-o em sua descendência davídica, garantiu a Jesus identidade social. Ademais, é importante que a criança seja inserida num ambiente familiar para que, em seu processo de individuação, possa realizar o complexo de Electra em relação à mãe ou o de Édipo em relação ao pai, de forma bem sucedida. Desta forma se evitam danos irreparáveis pelo resto da vida.

O que se deve, entretanto, impedir é que a procriação humana seja entregue à instituições tecnológicas com seus especialistas que manipulam “material genético” pois seria a inaguração do terrificante “Admirável Mundo Novo”(1932) de Aldous Huxley, violando a sacralidade da vida e dispensando o que há de mais excelso e divino no ser humano que é sua capacidade de amar e pelo amor conjugal transmitir a vida, a maior criação da complexidade do universo e o supremo dom de Deus.

4. A Sagrada família e a família moderna

Depois desta agenda de problemas, alguém, seguramente, poderia perguntar: que tem a ver o arquétipo cristão de família que é representada pela família de Nazaré de Jesus, Maria e José, com a atual e contraditória família humana? Como ela nos pode iluminar e inspirar?

Antes de qualquer resposta possível, cumpre reconhecer a radical diferença de situações e de modelos de família. Não há apenas uma distância temporal de mais de dois mil anos, mas também uma distância cultural considerável. A família de Nazaré vivia a cultura agrária e das pequenas vilas, ligada diretamente à relações primárias. Nós viemos da cultura tecno-científica cheia de aparatos que nos criam um mundo de segunda mão. Neste nível, Nazaré não nos poderá dizer, diretamete, nada. Habitamos em mundos diferentes.

Mas isso não é tudo o que se pode dizer. Ela, ao contrário, nos tem muito a dizer. Mas o que nos tem a dizer, se situa num outro nível e pode interessar a todos. Tanto lá como aqui, estamos às voltas com pessoas humanas que amam, que se angustiam, que tem perplexidades, que buscam sentido, que trabalham, que cuidam, seguem as tradições de seu povo e que são tementes de Deus. Todas estas pessoas são habitadas por sonhos, valores e propósitos de felicidade e paz. E também acometidas de angústias e medos como, segundo os evangelistas, por ocasião da fuga da família de Nazaré para o Egito porque Herodes ameaçava de morte o filho recém nascido.

Toda família ou toda forma de coabitação e convivência entre humanos, seja de gêneros distingos ou do mesmo gênero, por mais diferentes que sejam suas modalidades históricas, vivem, não de técnicas nem de arranjos, mas da vontade de encontrar e viver o amor, sonham em inserir-se bem na comunidade (era o que significava “ser justo”, aplicado a José) e ser minimamente felizes. O núcleo imutável da família é o afeto, o cuidado de um para com o outro e a vontade de estar junto, também abertos à procriação de novas vidas. Este é o lado permanente, dentro do lado cultural cambiante.

Se assim é, então, não devemos, em primeiro lugar, considerar o caráter institucional da família (a perspectiva dominante nos documentos eclesiásticos e nas reflexões dos teólogos) mas seu caráter relacional. Importa ver o complexo jogo de relações que se realiza entre os parceiros. Nestas relações é que está a vida, funcionam os sonhos e as utopias de amor, fidelidade, encontro e feliidade, numa palavra, aparece o lado permanente. O lado institucional é socialmente legítimo, mas não é originário, ele é derivado, histórico e cambiente conforme as diferentes tradições. Por isso pode assumir as mais diversas formas. Nele a vida já vem enquadrada e normas presidem as relações. Mas tais delimitações somente perduram com sentido quando são alimentadas pelo húmus do sonho, do afeto terno e pela intercomunhão.

Aceitas estas premissas, o que nos tem a dizer a família de Nazaré? Exatamente esse lado de relação, de amor, de cuidado, de piedade e de fidelidade a três: entre Jesus, Maria e José. Eles se transformaram em arquétipos cristãos que, num nível profundo e coletivo, continuam a alimentar o imaginário dos fiéis e a suscitar valores que dão sentido e trazem felicidade à família. É aquilo que chamamos modernamente de capital social familiar.

Estudos transculturais revelaram que a quantidade e a qualidade de tempo em que os membros da família passam juntos vivendo relações de afeto e de pertença são determinantes para os comportamentos individuais e para as opções sociais que serão tomadas. Se o capital social familiar se apresenta alto e sadio dá origem a uma maior confiança no próximo, há menos violência e corrupção. Em consequência, há mais participação nas associações, nos movimentos sociais e no voluntariado. Os conflitos familiares e o número de divórcios caem surpreendemente. Quando o capital social familiar vai se diluindo, lentamente emergem situações críticas com desfechos muitas vezes dramáticos senão trágicos.

Podemos imaginar que o capital social familiar de Jesus, Maria e José era altíssimo. Logicamente, sabemos pouco do dia-a-dia da sagrada Família. A pesquisa histórica e exegética levantou os dados sócio-históricos mais seguros especialmente nos últimos anos com os métodos refinados da arqueologia e da antropologia da vida cotidiana (cf. J. A. Pagola e J. H. Crossan entre outros). Mas independente desta pesquisa, ao analisarmos o José da história, que de profissão era artesão e campones mediterrâneo, depois esposo, pai, educador e “homem justo” veremos que ele é representante legítimo da família normal judaica, piedosa, ordeira e trabalhadora.

Eu diria até que José inaugurou uma forma de coabitação absolutamente nova e até escandalosa para a época: casa com uma mulher grávida (Mt 1,18; Lc 1,27) que, depois é informado, ser grávida pelo Espírito Santo (Mt 1,20; Lc 1,35). Tem a coragem de levá-la para sua casa (Mt 1,24), quem sabe, tendo que enfrentar os comentários dos vizinhos e as suspeitas dos parentes, como insinuam com razão os evangelhos apócrifos.

Não precisamos detalhar os valores que esta família teve que viver, como já referimos, ao fugir do sanguinário Herodes, no desconforto do exílio, com a perplexidade face ao menino que já desperta com consciência própria no Templo em Jerusalém e, que por fim, segue seu próprio caminho, sem que Maria e os demais parentes o entendam completamente (cf. Mc 3,23 quando querem pegar Jeus porque acham que ficou louco).

Ora, estes valores foram vividos outrora e são vividos do mesmo jeito, hoje em dia, por tantas famílias, por parceiros de vida ou por outros que optaram viver juntos com coragem, com fidelidade, com responsabilidade e, não raro, com uma dimensão religiosa e espiritual.

A questão é superarmos certo moralismo que não ajuda a ninguém, prejulga as várias formas de família ou de coabitação e que nos faz perder os valores que podem estar ai presentes, vividos com sinceridade pelas pessoas. Na verdade, são tais realidades que contam numa perspectiva ética e valem diante de Deus.

O valor maior da doutrina da Igreja sobre a família reside exatamente nisso: recordar sempre de novo os valores perenes e trazer à consideração dos cristãos e às demais pessoas de boa vontade a perspectiva utópica da família. Infelizmente nem sempre a Igreja é compreendida, porque ela mesma não sabe esclarecer o gênero literário da utopia e do mundo dos valores. Utiliza demasiadamente o rigor da doutrina e menos a compreensão cordial, ”a revolução da ternura” e a misericórida, tão enfatizadas pelo Papa Francisco.

Seja como for, são inconsistentes as críticas mais frequentes de que, via de regra, trata-se de uma doutrina abstrata e irrealista. Se entendermos a função da utopia e de sua linguagem, como esclarecemos acima, estamos em condições de valorizar positivamente a função da doutrina eclesiástica, como poderoso reforço do capital social familiar.

Partindo das realidades que os documentos dos Papas não desconhecem, o ensino a Igreja bebe sua inspiração deste fundo utópico da sagrada Família de Jesus, Maria e José. A partir dela, se alimenta uma visão altamente humana e esperançadora da vida em família.

Não obstante todas as contradições reais, desta iluminação podem surgir possíveis alternativas e novos caminhos ao lado e junto a outras instâncias que na sociedade também se empenham por resgatar a família e dar-lhe a centralidade que possui para a vida em todas as suas etapas de realização.

Assim o faz, por exemplo, João Paulo II. na Carta Apostólica Familiaris Consortio (1981) e na Carta às Famílias (1994). Em ambos os documentos, enfaticamente se afirma que a família é uma comunidade de pessoas, fundada sobre o amor e animada pelo amor, cuja origem e meta é o divino Nós(4).

Na Familiaris Consortio predomina, curiosamente, a dimensão de relação sobre a dimensão de instituição. Define-se a família “por um complexo de relações interpessoais – relação conjugal, paternidade-maternidade, filiação, fraternidade – mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na família humana”(5)

São estas relações interpessoais que fazem dela uma comunidade de pessoas: ”A família, fundada e vivificada pelo amor, é uma comunidade de pessoas: dos côngues, dos pais e dos filhos, dos parentes”(6). A comunhão caracteriza a família:”A lei do amor conjugal é comunhão e participação, não a dominação”(7), valores que fazem da família, como bem o diz o Catecismo da Igreja Católica “um símbolo e imagem da comunidade do Pai e do Filho no Espírto Santo”(8), a “Igreja doméstica”(9).

Que seria da família e dos parceiros se não ardesse neles a utopia? Não é próprio do amor e das relações intersubjetivas de afeto e de cuidado, a linguagem do sonho e da exaltação? Não se chamam com frequência os esposos de “meu bem”, “meu amor”? Sem esse motor que continuamente anima a caminhada, sem esse nicho de sentido, ninguém suportaria as dificuldades inerentes a toda relação intersubjetiva, nem as limitações da condição humana decadente e lábil. O capital social familiar iria desaparecendo.

São estes valores que abrem a família para além dela. O sonho mesmo é que a partir dos valores da família, em suas diferentes formas, surja a família-escola, a família-empresa, a família-comunidade, a família-nação e a família-humanidade, para se chegar enfim, à família-Terra, trampolim derradeiro para a família-Deus-Trindade.

Portanto, os valores e inspirações que deram vida à família de Nazaré, continuam a sustentar as relações conjugais, as parcerias humanas e todos os que celebram o sentido da vida na relação de amor e de intimidade. O Deus-Trindade que penetrou tão profundamente na condição familiar pela trindade de Nazaré, a ponto de ai se personificar, continua assistindo os seres humanos em suas buscas. As formas e os caminhos podem variar, não varia, entretanto, o amor e a comunhão que movem os corações humanos na direção de um ao outro e na direção do grande Outro que é Trindade de Pessoas, intercambiando eternamente vida, amor e comunhão.

Estas esparsas reflexões querem animar a discussão sobre o tema da família, proposto pelo Papa Francisco para ser examinado por todo o povo de Deus, em todas as dioceses, paróquias e grupos de base. Desta discussão tão vasta e diversificada nascerão, seguramente, perspectivas novas que nos ajudarão a entender a família que sempre existiu e as novas formas de coabitação surgidas nos últimos tempos.

Notas

1) A bibliografia sobre a família e o matrimônio é infindável. Como não pretendemos erudição sobre o assunto veja os seguintes estudos a título de orientação: os dois números da revista internacional Concilium, o nº 55 de 1970 e o nº 260 de 1995; Bach, J. M., O futuro da família: tendências e perspectivas, Vozes, Petrópolis 1983; Id., Evolução do amor conjugal, Vozes, Petrópolis 1980; Schillebeeckx, E., O matrimônio- realidade terrestre e mistério de salvação, Vozes, Petrópolis 1969; Vidal, M., Moral do matrimônio, Vozes, Petrópolis 1982; um casal de leigos cristãos, Esther Brito Moreira de Azevedo e Luiz Marcello Moreira de Azevedo, Matrimônio – para que serve este sacramento? Vozes, Petrópolis 1997; CNBB, Casamento e família no mundo de hoje – textos seletos do magistério eclesial, Vozes, Petrópolis 1994; Boff, L., O sacramento do matrimônio: símbolo do amor de Deus para com os homens no mundo presente, em O Destino do homem e do mundo, Vozes, Petrópolis 2002(10ª edição)pp. 137- 156; Id. São José, a personificação do Pai, Vozes, Petrópolis 2012.

2) Veja Família: os desafios de uma instituição em crise, em Correio Riograndense de 29 de outubro de 2003, p.11. Diz ainda Fetter: ”Existem famílias idiossincráticas que, antigamente, seriam consideradasa absurdas: uma família formada por duas lésbicas, uma tem um filho de um rapaz, outra tem o filho de outro, e elas formam uma família muito organizada – uma funciona com o papel fálico e outra, mais como mãe….um grupo de irmãos pode constituir uma família, desde que um deles assuma o papel de pai, outro de mãe, enfim, que estejam presentes os três subsistemas básicos que normalmente formam uma família: o conjugal, o filial e o fraternal. Onde existem os papéis para esses subsistemas, posso afirmar que há uma família” op.cit. p. 11. Para quem se interessar pela Universidade da Família veja o site na internet:http://www.unifam.com.br e o e-mail: mafetter@terra.com.br

3) Houdijk, R., Formas de coabitação e procriação fora do matrimônio, em A família, revista internacional Concilium nº 260 (1995) pp. 30-38 aqui p.36.

4) Veja o Catecismo da Igreja Católica, Vozes, Petrópolis 1993 que nos números 1655-1658 e 2201-2233 sistematiza a posição oficial da Igreja.

5) Familiaris Consortio, nº 15.

6) Ibid. nº18

7) Cf. Documento de Puebla dos bispos latinoamericanos, 1979, nº 582.

8) Idem nº 2205

9) Lumen Gentium do Vaticano II nº 11; veja também Catecismo op.cit. nn.1665-1666 e 2204.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Reconstruir o diálogo com as pessoas homossexuais



É preciso tempo, diálogo, encontro, reflexão, implementação de iniciativas para mudar o olhar de certos católicos sobre a vivência das pessoas homossexuais através de uma melhor compreensão da realidade.

A opinião é de Claude Besson, copresidente da associação Réflexion et partage e autor de Homosexuels catholiques. Sortir de l'impasse ("Homossexuais católicos. Sair do impasse", Ed. De l'Atelier). O artigo foi publicado no jornal La Croix, 08-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.

Eis o texto.

Depois das ruidosas manifestações do ano passado e das últimas semanas, muitas pessoas homossexuais e suas famílias pensam, talvez, que não há muito a esperar por parte de uma certa faixa da Igreja Católica. Com efeito, pode-se acreditar que nada mudou, ou que até mesmo o modo de considerar as pessoas homossexuais deu passos para trás.

Há desânimo, o que é absolutamente legítimo e compreensível. No último encontro da nossa associação Réflexion et partage (Reflexão e partilha), uma mãe de família nos confidenciava: "Eu me acordo à noite e me pergunto por que tanto desprezo pelas pessoas homossexuais".

Apesar de tudo isso, não posso deixar de pensar naqueles que desejam continuar vivendo a sua fé na Igreja, mas que não encontram o lugar da palavra para eles, que estão isolados, que são desconhecidos, às vezes culpabilizados, que não vivem nas grandes cidades e que se escondem. Pessoalmente, não posso me desinteressar por ele, e é principalmente por essas pessoas que eu quero continuar agindo e acreditando que situações possíveis podem nascer.

Vai ser preciso tempo, diálogo, encontro, reflexão, implementação de iniciativas que poderão, pouco a pouco, mudar o olhar de certos católicos sobre a vivência das pessoas homossexuais através de uma melhor compreensão da realidade. Alguns poderão se surpreender, não faltam documentos, livros, artigos sobre esse tema. Mas, como eu pude constatar dando palestras em algumas dioceses francesas, tal ignorância traz medo. E o medo gera a exclusão, o desprezo, a confusão, os conflitos às vezes, os guetos e, no fim, o desejo de se livrar do outro. O medo é um mau conselheiro.

Ao invés, diversas dioceses organizam iniciativas para acolher melhor as pessoas homossexuais e as suas famílias. Por exemplo, na diocese de Grenoble, constituiu-se um "grupo da palavra" entre pessoas homossexuais, pais e responsáveis eclesiais. Em uma dezena de dioceses, ao menos, foram constituídas equipes, cujos primeiros encontros foram ricos em intercâmbios, partilha e diálogo.

Alguns elaboraram novas propostas, como o Chemin d'Emmaüs (uma iniciativa da diocese de Nanterre), um dia de peregrinação aberto a todos e particularmente às pessoas direta ou indiretamente envolvidas na homossexualidade. Tendo participado dele, posso assegurar que isso derrubou muitos preconceitos contra a homossexualidade. Também fui testemunha de um "grupo da palavra" constituído recentemente em uma paróquia da diocese de Lyonpor iniciativa dos pais.

Também foi apreciável a organização de seis seminários no Collège des Bernardins, em Paris, sobre "Fé cristã e homossexualidade" com representantes de associações (David et Jonathan, Devenir Un an Christ, Communion Béthanie, Réflexion et Partage). O último seminário, sobre o tema "Fazer casal", permitiu apresentar as experiências de casais homossexuais e heterossexuais na escuta, no diálogo, na construção do viver-juntos e da fraternidade que trarão os seus frutos.

Eu acredito na possibilidade de avançar a pequenos passos, no trabalho de porosidade, como o fato de se inserir em uma equipe de animação pastoral, em uma equipe de partilha bíblica, em uma reflexão sobre o casal etc. Isso não é possível em toda a parte, certamente, mas eu conheço muitas pessoas homossexuais que, inserindo-se nas comunidades cristãs, fizeram avançar o modo de pensar de muitos católicos sobre a homossexualidade. Como um casal de homens com mais de dez anos de vida em comum que busca se inserir em uma reflexão paroquial para os casais (heterossexuais, é claro) que tem dez anos de vida em comum. Essas experiências de porosidade parecem particularmente frutíferas.

Poder-se-ia acrescentar a todas essas experiências in loco os recentes documentos do Conselho Família e Sociedade da Conferência Episcopal Francesa, que permitem entrever aberturas: "Não é pelo fato de que a Igreja concede um estatuto especial para a relação amorosa entre um homem e uma mulher que ela não concede valor a outras relações amorosas... Podemos estimar o desejo de um compromisso com a fidelidade de um afeto, de um apego sincero, da preocupação pelo outro e de uma solidariedade que vai além da redução da relação homossexual a um simples compromisso erótico" [1]. Em outro documento do mesmo conselho, lê-se: "Toda pessoa tem direito a uma acolhida amorosa, assim como ela é, sem ter que esconder um aspecto ou outro da sua personalidade" [2].

O verdadeiro diálogo, no sentido de deixar se atravessar pela palavra do outro (dia = atravessar; logos = palavra) é uma riqueza que é preciso começar e continuar sempre que possível. Penso que muitos cristãos e responsáveis eclesiais são pessoas de boa vontade e buscam refletir e compreender melhor.

"Para restaurar a comunhão, já se poderia começar com encontros entre pessoas homossexuais e simpatizantes da 'manif pour tous'", declarava recentemente Dom Descubes, arcebispo de Rouen (no La Croix do dia 3 de fevereiro). As pessoas homossexuais nas associações cristãs estão disponíveis e desejam esses encontros...

"Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce", diz o ditado. Não podemos prever o porvir, mas cabe a nós fazê-lo "advir", lá onde estamos, cada uma e cada um de nós.

Notas:

1. Élargir le mariage aux personnes de même sexe ? Ouvrons le débat !, setembro de 2012.

2. Poursuivons le dialogue !, maio de 2013. 

E vivam as diferenças! ;-)



Todos os héteros são iguais só por serem héteros? Então, os LGBTs também não.

Por um mundo em que, mais que "tolerar" as diferenças, possamos celebrá-las! :-)

Beijos!

Cris

terça-feira, 6 de maio de 2014

Um Deus pessoal pode ser uma séria responsabilidade


Palestra de Karen Armstrong, considerada a melhor TED de 2008

"(…) O Deus pessoal reflete uma importante intuição religiosa: que nenhum valor supremo pode ser menos que humano. Assim, o personalismo foi um importante e – para muitos – indispensável estágio de desenvolvimento religioso e moral. Os profetas de Israel atribuíram suas próprias emoções e paixões a Deus; budistas e hindus tiveram de incluir uma devoção pessoal a avatares da realidade suprema. O cristianismo fez de uma pessoa humana o centro da vida religiosa, de uma forma única na história da religião: levou ao extremo o personalismo inerente no judaísmo. Talvez sem um certo grau desse tipo de identificação e empatia, a religião não possa deitar raízes.

Contudo, um Deus pessoal pode tornar-se uma séria responsabilidade. Pode ser um mero ídolo esculpido à nossa imagem, uma projeção de nossas limitadas necessidades, temores e desejos. Podemos supor que ele ama o que amamos e odeia o que odiamos, endossando nossos preconceitos em vez de nos obrigar a transcendê-los. Quando ele parece não impedir uma catástrofe, ou mesmo desejar uma tragédia, pode dar a impressão de ser insensível e cruel. Uma fácil crença em que um desastre é a vontade de Deus pode nos fazer aceitar coisas fundamentalmente inaceitáveis. O próprio fato de que, como pessoa, Deus tem um gênero sexual é também limitante: significa que a sexualidade de metade da raça humana é sacralizada à custa do feminino, e pode levar a um desequilíbrio neurótico e inadequado nos costumes sexuais humanos. Um Deus pessoal pode ser perigoso, portanto. Em vez de nos puxar para além de nossas limitações, 'ele' pode nos encorajar a permanecer complacentemente nelas; 'ele' pode nos tornar tão cruéis, insensíveis e auto-satisfeitos quanto 'ele' parece ser. Em vez de inspirar a compaixão que deve caracterizar toda religião avançada, 'ele' pode nos estimular a julgar, condenar e excluir. Aparentemente, portanto, a ideia de um Deus pessoal só pode ser uma etapa em nosso desenvolvimento religioso. (…) "

- Karen Armstrong, em seu livro "Uma História de Deus" (Cia. das Letras)


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Na véspera da Parada, Igreja Católica lança nota em apoio à comunidade gay



Muitos já devem ter visto, mas nunca é demais reforçar a importância e relevância desse importante passo pastoral! Como tão bem colocou um grande amigo nosso, unimo-nos, na alegria e na esperança, a todos e todas que lutam por uma sociedade mais justa, humana e fraterna, onde as diferenças sejam respeitadas, e o Reino de Deus seja realidade neste mundo. Parabéns à Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo! Parabéns ao Grupo de Ação Pastoral da Diversidade - São Paulo, pois os frutos do trabalho de vocês já podem ser vistos, e são alegria e verdade aos nossos olhos!

Veja mais no Estadão e no Superpride


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