sexta-feira, 27 de maio de 2011

Deus não está na fé, mas na ética

Almofadas: Stephanie Marin

O presente texto é um extrato do discurso lido por José María Castillo na solenidade em que recebeu o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Granada, da Espanha.

José María Castillo, teólogo espanhol, é autor de uma importante obra teológica. Vários dos seus livros foram traduzidos para o português.

O texto está publicado no sítio Rebelión Digital, 13-05-2011. A tradução é do Cepat. Reproduzimos via IHU, com grifos nossos, e dividido, para melhor apreciação, em duas partes

Eis o discurso: após uma breve introdução, Castillo se propõe a refletir sobre como se pode pensar em Deus e falar de Deus em um espaço secular. E ele começa a responder a questão apontando uma contradição na capacidade do ser humano pensar em Deus, e buscando uma forma de superá-la:

(...) Deus é o Transcendente. Ao dizer isto, estamos afirmando que Deus está para além dos limites de nosso conhecimento experimental e demonstrável. Ou seja, quando falamos de Deus, na realidade estamos nos referindo à sua realidade que não conhecemos. Por isso, quando as religiões nos falam de Deus, realmente não falam, nem podem falar, de Deus em si, mas nos falam das representações de Deus que os humanos se fazem. Porque, desde a nossa imanência [a realidade material, a natureza, em sua concretude], tudo quanto podemos pensar e dizer é sempre imanente. Nunca pode ser o transcendente.

Por essa razão, a representação de Deus, que nos fizemos, é inevitavelmente projetiva. Quer dizer, nossa representação de Deus é uma projeção de nossos desejos mais fortes: o poder, a bondade, a felicidade... E assim, apareceu um Deus infinitamente poderoso e infinitamente bom. Mas, ao fazer isso, não caímos na conta de que o resultado foi um Deus contraditório e um Deus perigoso. Um Deus contraditório, porque o poder sem limites e a bondade sem limites não são compatíveis com o mal que há no mundo (se é que Deus tem algo a ver com este mundo). E um Deus perigoso, porque todo Deus monoteísta é, por isso mesmo, um Deus excludente. Por esta razão, inevitavelmente, é também um Deus violento.

Quer isto dizer que o Deus, que os humanos representaram para si, é um Deus condenado inevitavelmente ao fracasso? (...) Por esse caminho desembocamos em uma contradição insolúvel. Mas sabemos que o ser humano não age, nem só nem principalmente a partir da contribuição do discurso racional. O mais determinante em nossas vidas não são as verdades, que brotam de conteúdos mentais. O mais determinante são as convicções, que se traduzem em formas de conduta e em hábitos de vida.

Isto posto, a afirmação capital da minha reflexão se centra em que, segundo a tradição cristã, o Transcendente se torna presente em nossa imanência. Isto é, definitivamente, o que representa e o que significa Jesus de Nazaré. Quando a teologia afirma que Jesus é a encarnação de Deus, o que na realidade está dizendo é que Jesus é a humanização de Deus. Por isso, o “Senhor da Glória”, assim como se humanizou em Jesus, pôde dizer e deixou como sentença a afirmação decisiva: “O que fizestes a um destes, foi a mim que fizestes” (Mt 25, 31-46). Nessa sentença definitiva, já não se levará em conta nem a fé, nem a religião. Só ficará em pé o humano, o que cada ser humano tiver feito com os outros seres humanos.

A consequência que, em sã lógica, se segue do que acabo de dizer é que o projeto cristão não pode ser um projeto religioso ou sagrado de divinização, mas um projeto profano e laico de humanização. Deus não se encarnou no sagrado e seus privilégios, nem no religioso e seus poderes. Deus se mesclou com o humano. Portanto, encontramos Deus, sobretudo, no profano, no laico, no secular, no que é comum a todos os humanos e no que nos une aos demais seres humanos, sejam quais forem suas crenças e suas tradições religiosas. Porque o determinante, para encontrar Deus, não é a fé, mas a ética, que se traduz em respeito, tolerância, estima e misericórdia.


(Continua)

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