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sábado, 29 de agosto de 2015

Eu sou lésbica!

Nesse dia importante de enfrentamento do desafio da invisibilidade, publicamos aqui um texto bonito e sensível enviado pela nossa amiga Andréa Balsan.

Todo nosso apoio e solidariedade às nossas irmãs, mulheres lésbicas!


Sinto-me corrompida em um mundo que me transforma em fetiche e demônio.
Muitas vezes sou só mais uma mulher invisível, algo a ser cobiçado pela falta de harmonia.
Matam, surram, abusam.
Me chamam de caminhoneira, sapatão, alguém possuído.
Mas sou só uma mulher.
Se corto o cabelo, se uso roupas diferentes...
Só penso em amor.
Homens, mulheres, poetas de todos os tipos, olhem os meus olhos!
Olhem em minha alma!
Vejam:

Eu sou lésbica!

E sou amiga, filha, trabalhadora, vizinha, irmã, mãe, companheira, namorada.

Eu sou lésbica!

Então não me vejam por estereótipos.
Vejam quem eu sou.
Ser humano como você.
Alguém que vive, sonha. E ama.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Eu, o Outro e Todos Nós: Intermediações possíveis entre homossexuais católicos e os cânones da Igreja

No próximo dia 27 de agosto, às 19 horas, o Diversidade Católica e a Edições Loyola, em parceria com a Blooks Livraria, organizarão no Rio de Janeiro o evento de lançamento do livro "Homossexuais Católicos: como sair do impasse", de Claude Besson, lançado no Brasil recentemente. Besson é uma das lideranças do grupo francês "Reflexão e Partilha", que tem uma história de mais de 10 anos de trabalho pastoral com pessoas gays e católicas, e seu livro promete oferecer pistas importantes para este apostolado aqui no Brasil. 

Em preparação para o evento, publicamos aqui uma bela resenha sobre o livro, a fim de oferecer uma pequena pitada das discussões. A análise é de Marcelo Maldonado, que é escritor e bacharel em Literatura Brasileira, e que será um dos palestrantes do lançamento. Para maiores informações, consulte a página do evento no Facebook. Divulgue e participe!



Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro

Quando Mário de Sá-Carneiro pôs fim à própria vida, às vésperas de completar 26 anos, num pequeno hotel em Paris, nos últimos dias de abril de 1916, aquele ato pareceu-lhe a única saída para o grande impasse de sua existência: como construir/ constituir uma identidade cujo conflito com a realidade não resulte na dispersão?

Não é à toa que este (Dispersão) é o título do único volume de poesias que publicou em vida e também do célebre poema em que declara: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim.” Grande parte da obra de Sá-Carneiro é permeada pela questão da alteridade, cujo sentido profundo reside na impossibilidade de ser, na inadequação do existir e na incomunicabilidade com o outro – grafado no poema com maiúscula, o que significa o outro enquanto entidade mítica. Preso em si mesmo e também aprisionado dentro de uma realidade hostil, o poeta não vislumbra qualquer possibilidade de diálogo para o estabelecimento de uma identidade concreta (e, portanto, de uma existência plena), quer no domínio da criação estética pura, quer no campo da vida cotidiana.

A homossexualidade surge, na obra de Sá-Carneiro, como uma espécie de mote para esse impasse: o espelhamento de um eu num outro que jamais pode se consumar porque se consome num jogo conflituoso de desejos e proibições. É o que declara Ricardo de Loureiro, personagem da novela A Confissão de Lúcio, de 1913: 
Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.[1]
Claude Besson, ao que parece, lida com uma questão bastante semelhante em seu estudo Homossexuais católicos: como sair do impasse (Edições Loyola, 2015), no qual expõe as contradições entre as rígidas posturas canônicas adotadas pelo apostolado católico em relação aos homossexuais que desejam não apenas professar a fé cristã, mas tornar-se parte atuante da vida de suas comunidades. Eu não sou eu nem sou o outro: como conciliar uma identidade – construída a duras penas em meio a uma realidade social que não contempla ou sequer legitima os modelos gays – com a fé cristã quando o discurso oficial da Igreja trata da condição homossexual de forma traumatizante, julgadora, culpabilizante e excludente?

Besson inteligentemente estrutura suas reflexões em três estágios distintos: em primeiro lugar, aplica um viés antropológico ao tratar da homossexualidade à luz de teorias que analisam suas possíveis origens e que, por fim, dada a complexidade da questão da formação da identidade pessoal – para a qual tanto características inatas quanto adquiridas tornam-se elementos constitutivos –, descartam o seu desenvolvimento enquanto fruto de uma escolha individual consciente e deliberada.

Ao avançar nesse sentido, o autor analisa o processo de reconhecimento da condição homossexual a partir das etapas da descoberta, da negação e rejeição, das tentativas de subverter a orientação sexual e da aceitação em si, após um percurso em que idas e vindas não raro expõem os indivíduos a sentimentos de vergonha, culpa, frustração, clandestinidade, estigmatização e violência, nos seus mais diversos graus e manifestações. Educado num mundo em que a heteronormatividade exclui e rechaça qualquer outra possibilidade de manifestação da sexualidade, o indivíduo homossexual carece de modelos positivos a respeito da própria condição e acaba por assimilar essa proibição, sofrendo um processo de homofobia interiorizada. 

O autor aborda ainda o mesmo processo de descoberta através do ponto de vista da família, para a qual o evento de percepção ou anúncio da homossexualidade de um filho ou filha na maioria das vezes representa um ganho significativo nas relações pessoais, no sentido de um maior entendimento e acolhimento entre seus membros. A importância do diálogo dos pais com os adolescentes é enfatizada para além das experiências sexuais que naturalmente ocorrem nessa fase da vida, devendo pautar-se no fortalecimento da confiança dos jovens em suas potencialidades e no desenvolvimento de uma afetividade mais amadurecida.

Encerrando essa primeira parte, a questão da alteridade se interpõe como importante discussão a respeito da noção errônea de que os homossexuais rejeitam a diferença entre os sexos, o que significaria a mera redução de homens e mulheres aos seus papéis sexuais. Eu não sou o outro: a alteridade se estabelece a despeito da igualdade sexual, pois se alicerça em bases mais profundas – o reconhecimento do outro em sua história pessoal, afetiva, educacional, em seus valores éticos, suas vivências e escolhas – do que apenas no valor diferencial (e impessoal) de um objeto de pulsão. 

Num segundo momento, Besson examina a aparente contradição contida na condição “gay católico”, no que considera a priori dois posicionamentos excludentes, uma vez que o indivíduo homossexual, ao confrontar-se com o parecer oficial da Igreja quanto à sua realidade, reveste-se de sentimentos de desonra, culpa, vergonha e desesperança, causando um inevitável afastamento e até mesmo um abandono da fé cristã. 

Como já havia feito na primeira parte, o autor entremeia suas reflexões com delicados e contundentes depoimentos de indivíduos que, através de suas experiências pessoais, descrevem as mais variadas reações diante da constatação das contradições entre os cânones do Magistério e a própria palavra de Jesus Cristo pregada pelos evangelhos. A maioria desses depoimentos refere-se a um sentimento doloroso de solidão e aponta para situações extremadas como as frequentes tentativas de suicídio relatadas. 

Ao contínuo e constante avanço das abordagens do tema no âmbito da sociedade civil e de uma ampla difusão de informações e discussões a seu respeito, o Magistério manteve-se num silêncio perturbador e omisso, quebrado apenas para reforçar as teses de que a manifestação da homossexualidade é reprovável e, portanto, pecaminosa. No entanto, a partir principalmente das reformas propostas pelo Concílio Vaticano II, houve uma ligeira evolução na postura doutrinal no sentido de reprovar os atos homossexuais, ao que o acolhimento ao indivíduo passou a ser estimulado com “respeito, compaixão e delicadeza.” Na prática, nas paróquias e comunidades, o que se deu foi que esse acolhimento manifestou-se na manutenção do silêncio em torno do assunto ou, quando muito, nos casos em que sacerdotes eram procurados por homossexuais para uma orientação, em conselhos sobre “a prática da sublimação dos instintos inferiores na castidade pelas virtudes do autodomínio.” Isso, obviamente, acabou por expor outro posicionamento excludente: como pode se dar esse acolhimento se, ao mesmo tempo, a doutrina rejeita e condena aquilo que, no homossexual, é parte constitutiva de sua identidade?

A esse respeito, Besson esmiúça na própria Bíblia as referências que alegadamente corroborariam a nomeação específica da homossexualidade como comportamento ou prática abominável e chega à (inevitável) conclusão de que não é possível fazê-lo, uma vez que as interpretações do texto bíblico à luz de suas contextualizações histórico-sociais não permitem reconhecer essa questão tal como ela se coloca na sociedade moderna: numa abordagem moral e ética individual. O autor expõe as análises de teólogos sobre as cinco passagens que mencionam a homossexualidade – a saber: dois versículos do Levítico, um versículo da Epístola de São Paulo aos Coríntios, um versículo da Epístola de São Paulo a Tito e um texto da Epístola de São Paulo aos Romanos – além da célebre narrativa de Sodoma e Gomorra e, finalmente, sobre as alusões à criação do homem e da mulher no livro do Gênesis para concluir que todas dizem muito mais respeito à prática em si em contextos ligados à conformidade ritual dos critérios de pureza, de pertença religiosa ou de idolatria do que à sua natureza sexual propriamente dita.

Na terceira e última parte de seu estudo, Claude Besson aponta para algumas possíveis estratégias para provocar o avanço das intermediações entre indivíduos homossexuais e agentes ministeriais e romper o silêncio em torno do assunto. O autor aposta no aprofundamento da fé cristã através de postulados como os de André Fossion, que convidam a repensar o cristianismo e a uma nova compreensão da fé baseada na distinção dos seus cinco efeitos salutares, três dos quais dizem respeito intrinsecamente à experiência homossexual:

– Libertação do medo de Deus: restauração de uma relação de confiança e reconhecimento no amor divino;
– Libertação da dominação do pecado: o amor incondicional de Deus esvazia a necessidade de um castigo, livra o indivíduo da culpa e restaura a esperança;
– Liberdade para desejar: livre do pecado, o indivíduo engaja-se com mais compromisso no projeto de caridade do Cristo, em favor de uma humanidade mais fraterna.

A esse chamado, o sentido da vida e das relações humanas (leia-se, da própria afetividade) passa a ser construído a partir da realidade da vida, a partir do(s) outro(s) e com o(s) outro(s), cotidianamente, uma realidade na qual o desejo de amar pauta-se pela liberdade de consciência. Em certo ponto, Besson afirma: toda relação de amor é uma abertura para o outro. Desta maneira, abre-se um novo entendimento para o termo “fecundidade” quando aplicado a relações homoafetivas fundamentadas nessa intermediação, traduzido na expressão “parentalidade espiritual”, na qual um casal do mesmo sexo pode perfeitamente criar condições plenas de uma vida fecunda no envolvimento com o trabalho, com a comunidade, com o acolhimento, a caridade, a pastoral, o apoio mútuo, a criação artística, a pesquisa científica, etc. 

Tendo em vista esse engajamento espiritual, o autor propõe outros tipos de engajamento a fim de impulsionar um diálogo sereno e produtivo sobre a questão da homossexualidade e sua conciliação com a fé cristã e dá exemplos de como, na França, algumas iniciativas conseguiram criar espaços para a partilha de experiências e a troca de informações entre as comunidades e seus membros. Besson enfatiza em primeira instância a necessidade de se falar sobre o assunto, de tirar a palavra homossexualidade literalmente do armário e ter a coragem de mencioná-la nos cultos, nas reuniões paroquiais, sempre acompanhada da disseminação da informação correta e sem mistificações. O autor menciona, então, a experiência do grupo Réflexion et Partage (Reflexão e Partilha), do qual é um dos fundadores, e de seus esforços para ajudar as comunidades cristãs a acolher a realidade homossexual.

Em seguida, salienta que é preciso ocupar um lugar em que se possa começar um trabalho de integração dos indivíduos homossexuais nas comunidades. Embora não seja tão simples assim, o autor dá como exemplo bem sucedido o que aconteceu em Saint-Merry, cuja comunidade foi procurada por membros do grupo David e Jonathan para abrigar um núcleo de orações e troca de experiências. Sob a condição de também participar da vida da comunidade local, o inicialmente pequeno núcleo foi tomando proporções cada vez mais expressivas, diluindo preconceitos, assumindo uma postura positiva e inclusiva e ganhando ampla visibilidade nas atividades paroquiais.

Por fim, mas não menos importante, reforçando sempre o conceito de que uma igreja se faz com (e para) os seus membros, ressalta a importância do favorecimento de locais de acolhimento e escuta dentro das dioceses, através da criação de pastorais que se ocupem especificamente do tema de forma ordenada, estruturada e constante. As iniciativas nesse sentido, apesar de terem gerado frutos importantes e bastante significativos, infelizmente ainda são poucas e isoladas. No Brasil, núcleos como o Diversidade Católica, no Rio de Janeiro, e o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, em São Paulo, tem desenvolvido ações não apenas centradas no acolhimento e partilha de experiências, mas também no sentido de promover um diálogo com a sociedade e instâncias superiores da hierarquia eclesiástica.

Na conclusão do seu estudo, Claude Besson afirma que o seu maior intento foi o de abrir portas. Talvez tenha sido essa a sua compreensão para responder à questão proposta, contida igualmente no poema de Mário de Sá-Carneiro: eu sou Eu – em construção, muitas vezes disperso, fragmentado – e devo necessariamente me abrir, sair de mim, deixar de ser qualquer coisa de intermédio, cruzar a ponte e bater à porta do Outro, que, por sua vez, deve estar disposto ao diálogo, à troca de impressões, ao enriquecimento de experiências que estabelecem o entendimento. 

Como ensina Besson, para quem o medo é mau conselheiro, deve ser a Fé (e não o tédio) o pilar de sustentação desse processo.

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[1] SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. In: Obras Completas, pg. 376, Alexei Bueno (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

sábado, 3 de março de 2012

Poesia e mística: o silêncio como origem e destino

Imagem: Chris Buzelli

“O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção”.

O convite a essa “profunda disposição para o silêncio” nos é feito pela poeta paulista Mariana Ianelli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Esse silêncio, derivado de “um estado concentrado de atenção” ao qual somos levados pela poesia e também pela mística, torna-se, assim, “uma abertura, como que uma chave de acesso, para essa via secreta do Mistério, que de outro modo não seria percebida”.

“O que acontece dentro desse espaço de atenção – afirma Mariana –, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura”. A partir daí, “pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor”.

Mariana Ianelli é poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, autora dos livros "Trajetória de antes" (1999), "Duas Chagas" (2001), "Passagens" (2003), "Fazer silêncio" (2005), "Almádena" (2007), "Treva Alvorada" (2010). Colabora para os jornais O Globo, caderno Prosa & Verso (RJ) e Rascunho (PR). Sua página na internet é www.uol.com.br/marianaianelli.

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU.


IHU On-Line – Em sua opinião, como a poesia e a mística colaboram para aguçar a percepção sobre o Mistério? Que vínculos você percebe entre poesia e mística?

Mariana Ianelli – O que as torna tão próximas, a poesia e a mística, é uma profunda disposição para o silêncio, o silêncio de um estado concentrado de atenção que, justamente por estar preservado do ruído, encontra uma abertura, como que uma chave de acesso para essa via secreta do Mistério que, de outro modo, não seria percebida. E porque a palavra que vem dessa mirada, tanto poética como mística, não pretende, como faria a ciência, submeter ou reter nela mesma essa realidade mais profunda, sua expressão se dá musicalmente, na forma do canto e da prece, que são formas aladas, por assim dizer, também vinculadas entre si, que têm como origem e destino o silêncio, e são inapreensíveis no registro de uma linguagem instrumental.

O que acontece dentro desse espaço de atenção, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura. Os símbolos a que recorrem os poetas e os místicos são uma espécie de receptáculo dessa verdade que, se antes pediu um estado profundo de atenção para ser percebida, agora pedirá a atenção e o coração aberto de um outro que procure ver além da figura.

IHU On-Line – Um de seus ensaios está intitulado "Por uma Poética do feminino", em que você afirma que “mito, história e corpo cantam quando canta uma mulher”. Como se dá a relação entre poesia e feminilidade?

Mariana Ianelli – Penso nos mistérios de Elêusis, nos séculos e séculos em que a mulher esteve obrigada à reclusão doméstica e ao mutismo, e em seu próprio corpo, em sua potência de gerar vida dentro de si, como diferentes marcas do feminino que convergem para essa intimidade com o oculto, com o que se elabora em segredo e tem por metáfora o duplo trabalho de Penélope , que é também sua arte e seu destino, de fiar e desfiar indefinidamente num exercício de esperança e sacrifício.

Aí estão as figuras emblemáticas de Marta e Maria em uma só mulher, aquela que ao mesmo tempo comparece em um gesto eficaz diante do mundo, e esta que se guarda no seu olhar contemplativo. Isso, levado para a poesia, encarna a paciente gestação interna de um poema face o ímpeto da escrita, os maravilhosos encadeamentos de um processo intuitivo, às escuras, e a trama que daí se vai constituindo à luz do dia.

São as duas respirações de que falava María Zambrano, a da vida e a do ser, esta, oculta no silêncio, que orienta o sentido do poema, engendra musicalidade e é “o hálito do ser depositado sobre as águas primeiras da Vida”, e aquela outra, que está justamente na superfície do viver e que sofre a ameaça de interromper-se não apenas por alguma razão fisiológica, mas sobretudo se falta a respiração do ser, que sustenta em silêncio a respiração da vida.

IHU On-Line – Amor, erotismo, segredo, ventre, criação... São diversos os símbolos relacionados ao feminino que fluem entre poesia e mística. A partir de um olhar poético-místico, o que é o feminino?

Mariana Ianelli – Vejo o feminino, sob essa perspectiva poética e mística, representado magnificamente na personagem bíblica de Judite. Uma mulher que, diante do cerco à cidade de Betúlia pelo exército de Nabucodonosor, quando os anciãos da cidade se reúnem para estabelecer um prazo para a manifestação de Deus, como se isso fosse possível, coberta de cinzas, faz sua oração mais fervorosa e pede a Deus para ser habitada por três forças: palavra, astúcia e ímpeto. Nessa prece, ela diz: “Tu é que fizeste o passado, / o que acontece agora e o que acontecerá depois. / O presente e o futuro foram estabelecidos por ti, / e o que pensaste aconteceu”.

E então ela roga: “dá-me o ímpeto que pensei”, rogando, assim, pelo pensamento divino dentro dela, por um impulso em conformidade com uma vontade superior. Depois da oração, Judite se despoja do seu luto, põe seu vestido de festa, perfuma-se e se adorna com todas as suas joias, enche um odre de vinho, uma bilha de água, um alforje de farinha e com sua serva atravessa os portões da cidade para ir ao encontro de Holofernes, chefe do exército inimigo. Já pelo caminho, Judite vai seduzindo pela sua beleza os soldados que encontra e, ao ter com Holofernes, Judite o seduz também por sua palavra, uma palavra ambígua e profética, que fala de Deus enquanto Holofernes julga que ela fala de Nabucodonosor.

É assim que essa mulher permanece infiltrada entre 140 mil homens, durante quatro dias, nos quais, durante a madrugada, dirige-se ao pé da fonte da sua cidade para orar, para beber espiritualmente à fonte do pensamento divino. No quarto dia, quando Holofernes, em um banquete, pretende dormir com Judite, finalmente ela desempenha o gesto, aquele gesto preciso, movido por um ímpeto transcendente, por isso violento, de decapitá-lo com dois golpes de alfanje.

Acredito que essa narrativa, de uma mulher que afugenta um exército de milhares com a sedução da sua palavra ambígua, com a astúcia de um caminho que vai sendo urdido subterraneamente, sob o véu da beleza, e com o fervor, um fervor que se nutre da fé, e que transborda para a realidade num golpe mortal, acredito que esse episódio bíblico concentra de maneira emblemática, espiritual e poeticamente, em uma tríade perfeita, toda a potência que existe e está guardada sob a aparente delicadeza do feminino.

IHU On-Line – Por outro lado, em sua opinião, podemos também falar de uma “mística feminina” ou de uma “mística do feminino”? Quais seriam as contribuições do olhar feminino à percepção do âmbito místico da existência?

Mariana Ianelli – Creio que sim, que podemos pensar em uma mística do feminino sob muitos aspectos, um deles, a partir da visão para qual Maria Madalena é a escolhida, por amor, entre todos os discípulos, tornando-se ela a portadora de uma revelação secreta. Se lembramos das "Moradas" de Santa Teresa e das "Visões" de Hadewijch de Antuérpia, vemos o percurso de uma viagem interior, pródiga em figuras, que se vai delineando à vista dessas mulheres místicas e que nos remete ao relato visionário, de Maria Madalena em seu Evangelho, da ascensão da alma através dos céus até o silêncio e o repouso.

Não desconsidero com isso os místicos e poetas que também figuraram à sua maneira as jornadas da alma em suas etapas de purificação; apenas destaco a relevância desse vínculo intrínseco entre as viagens espirituais descritas por mulheres místicas e a visão de Maria Madalena, que provém de um conhecimento oculto cuja revelação ela, Maria, por ter sido a escolhida, tem o privilégio de transmitir aos outros homens.

A partir daí, pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor. Quanto à importância da figura, é inevitável sua relação com a poesia, e aqui vale mencionar a poeta Cristina Campo, que se dedicou a refletir intensamente sobre o valor de uma poesia hieroglífica, que sintetizaria de forma cifrada, na beleza da figura, a exemplo da sarça ardente, não a arbitrariedade da imaginação fantástica mas a verdade do real.

IHU On-Line – Na literatura ou na história, quais mulheres mais encarnam essa abertura místico-poética ao Mistério e à Realidade Última, em sua opinião? Por quê?

Mariana Ianelli – Cito mulheres que fazem parte do meu cotidiano de leitura, com as quais me identifico, e que transitam por esse espaço de poesia e mística. Cristina Campo, por ter se dedicado a pensar uma poesia que é refúgio do esplendor e que, semelhantemente aos ritos litúrgicos, celebra os mistérios divinos. Cristina Campo escreveu pouco mais de 30 de poemas, e dizia que gostaria de ter escrito menos, tal era o valor da paciência e do segredo que a palavra lhe impunha. No cenário dessacralizado do pós-guerra, Cristina teve a coragem de defender, em seus ensaios e poemas, a beleza, que ela considerava uma secreta virtude teologal e que parecia inadmissível em sua época porque aceitar a beleza, segunda ela, “é sempre aceitar a morte, o fim do velho homem e uma difícil vida nova”.

Outra figura marcante é Simone Weil, cuja obra, aliás, Cristina Campo foi uma das primeiras a estudar na Itália, em meados dos anos 1950, e com a qual dialoga em seus escritos. Simone Weil e Cristina Campo compartilham valores fundamentais: a atenção elevada ao grau de prece, a importância de um estado de vigília e a necessidade de amar aquele que está ausente, considerando aí toda a responsabilidade e o sofrimento que uma dedicação como essa implica, além da disciplina para compreender os símbolos através do olhar, uma disciplina que deveria levar a inteligência a se tornar contemplação.

Uma poeta cujos textos me deslumbram, justamente porque transcendem os limites do literário, é Alda Merini, com os poemas de "A Terra Santa" e de "Magnificat: Um encontro com Maria". Entre o seu livro de estreia, "A presença de Orfeu", e "A Terra Santa", Alda Merini passou cerca de vinte anos sem publicar, sete deles internada num hospital psiquiátrico. O que surge depois desse silêncio é uma transubstanciação da poesia em mística, especialmente no caso de "Magnificat", um livro em que a autora dá voz à mãe de Cristo como aquela que se torna, ela mesma, a morada da Palavra, simbolizando aí a poesia quando se funde à mística: Maria como aquela que traz a boca unida à boca de Deus e o pensamento criador feito carne. Nesse longo poema que é o "Magnificat", Maria é aquela que morre crucificada e ressuscita com o seu filho num “duro grão de amor”. O que alimenta a poesia de Alda Merini é a ancestralidade de um canto originário, que vem da natureza, e o que funda sua poética é o amor.

Outra poeta que passou um longo período em silêncio desde a publicação dos seus primeiros textos, e que mais tarde escreve sobre situações marianas, é María Victoria Atencia. Sua relação com a poesia envolve uma inspiração que independe da vontade e o momento subsequente da criação, que exige trabalho, esforço e técnica. María Victoria regressa à poesia depois de quinze anos com o livro Marta e Maria e, dez anos mais tarde, publica Transes de Nossa Senhora, poemas que vão pela mesma via do Mistério que Alda Merini percorreu, que falam do Verbo encarnado, da “prenhez gloriosa” de Maria, a que foi a escolhida e que por isso tem os seus sentidos incendiados.

Uma escritora, filósofa e também poeta com quem María Victoria Atencia dialoga e que encarna perfeitamente essa abertura místico-poética é María Zambrano, por tratar dessa aventura iniciática de descida ao fundo do coração, de onde se pode emergir com uma prece ou com um poema que espelha, como obra de criação, o próprio poeta na sua dimensão de criatura. Dos escritos de María Zambrano, as ruínas como lugares simbólicos de ressurreição e esperança, a morte como promessa de amor, a existência de uma palavra que nunca é pronunciada nem humanamente concebida, que permanece oculta e por isso inviolada, abrindo o espaço do silêncio da revelação, são algumas dessas passagens para o Mistério e para o desvelamento do real.

Em seu texto sobre São João da Cruz, que é belíssimo, María Zambrano se pergunta que religião é essa, do Monte Carmelo, que honra a Virgem Maria e faz dos seus santos poetas, a exemplo de São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Essa pergunta nos leva a pensar em uma mística do feminino sob a perspectiva de Maria como a portadora da palavra encarnada e da sua relação com a poesia, uma relação que justamente inspira os livros de María Victoria Atencia e Alda Merini.

Ainda pensando na Ordem do Carmo, temos esta outra mística, Edith Stein, que foi leitora fervorosa de Santa Teresa e uma figura emblemática da história, por ter sido conduzida, na trajetória da sua vida e da sua obra, ao extremo do silêncio interior, do amor e da expiação. Podemos dizer sem erro que Edith Stein encarnou o sentido espiritual do nome de Cristina Campo (cujo verdadeiro nome era Vittoria Guerrini): “a portadora de Cristo nos campos do III Reich”.

IHU On-Line – Em um de seus recentes poemas, "Pietà", você diz: Por delicadeza / Devia cada um resolver seu vestígio, / Não deixar o corpo a esmo, / Atravessado na passagem, / Sem desejo, sem enigma. Como podemos compreender a relação entre o corpo, a nossa materialidade, e a expressão místico-poética pessoal?

Mariana Ianelli – Pensando na natureza como uma “metáfora do sobrenatural”, como diz Cristina Campo, o corpo é esse casulo que guarda a alma até ela estar pronta para o voo. É também uma espécie de receptáculo semelhante à palavra. Se há espaço nesse corpo para o que não é vontade própria nem vontade imposta por um outro, se há espaço para uma inexplicável intuição encher esse vaso até o limite, e mais: se pode essa intuição transbordar para a vida, acontece uma inversão na ordem das coisas. Passamos a atuar como que na voz passiva, em vez de mover sentimos como se fôssemos movidos. Essa é uma maneira de realizar que o corpo que dizemos nosso na verdade nos é dado, é a nossa casa e, como toda casa, um dia será abandonado.

O fato de irmos perdendo o controle sobre ele, de sermos traídos pela falta de vigor e de memória, por exemplo, isso também é uma lição que a vida impõe, em geral, para nós, a contragosto: de que esse corpo tão íntimo, tão pessoal, não é tudo ao que nos resumimos nem é sempre imediatamente reconhecível como nosso. Temos, materialmente falando, o mesmo destino da Abadia de Tintern que tanto encantou Wordsworth. E deixar esse vestígio para ser recolhido pelos outros é ainda uma lição.

O poema continua: “Mas se me fica o teu corpo / Eu te arrepanho nos braços / Com a maternidade do ofício / E lavo os teus ombros / De quanto pesou sobre eles, / O teu sexo, que a nenhum afago responde, / Lavo os teus pés, o ato mais santo. / Eu te arremato, eu te limpo da vida, / Faço com que desapareças, / Que o teu equívoco me abasteça / Da razão dos humildes. / Fardo ensoalhado esse, / De amparar o meu próprio destino”.

Porque o vestígio de alguém nos dá a ver a nossa própria morte e saber que vamos nos recolhendo uns aos outros ensina uma certa humildade e também um sentido maior de esperança. Ensina que, depois de um desastre, não importa o quão devastador ele seja, se depois a vida ressurge, então isso é a misericórdia. A observação dessas coisas passa pela vivência, pelo olhar e pela intuição, e a poesia, servindo-se disso, paralelamente à mística, encontra à sua maneira uma via de acesso para leituras da realidade em um nível além imediato, do visível e do material.

IHU On-Line – A linguagem mística muitas vezes se manifesta de forma ousada e radical. Como essa gramática e semântica se relaciona com a gramática e a semântica poética? Que relações ou distanciamentos você constata entre essas duas linguagens?

Mariana Ianelli – Não existe pudor quando se trata de ir ao mais íntimo da palavra, quando a linguagem ronda o indizível chegando ao extremo de circundar aquilo que já não é palavra. Esse mais além do verbo é o que se guarda e permanece cifrado sob a figura em uma representação simbólica. A forma ousada com que a linguagem mística se expressa se dá pelo arrojo de uma voracidade amorosa, e não somente os símbolos aos quais essa linguagem recorre, mas sobretudo uma unidade na aproximação dos contrários, se relacionam com uma lógica poética, como quando Santa Teresa diz: “Vivo sem viver em mim / E de tão alta vida espero, / Que morro porque não morro”. Desse paradoxo aparente, de um intermédio entre dois mundos, de uma palavra repleta de silêncio e um “contentamento descontente” também se faz a poesia.

O enleio de perseguir e ao mesmo tempo ser perseguido é o que alimenta o fogo da linguagem mística numa espécie de rito entre amantes que se aproximam se afastando, num jogo análogo à natureza insaciável desse amor que só se pode consumar em uma outra vida. Aqui, a relação entre corpo e alma se manifesta num elo dos sentidos físicos com os sentidos sobrenaturais e, ao mesmo tempo, em uma tensão da matéria como uma espécie de cárcere que impede a plena conciliação amorosa.

Esse fogo, esse hálito primeiro que impulsiona a criação, na linguagem poética, supõe um ponto de partida que é um estado de caos, de matéria informe anterior ao fiat lux da palavra. Nesse lugar intermediário entre o deserto e a vida, nesse espaço genesíaco entre noite e aurora, que remete à pré-história da poesia no seu parentesco com a palavra sagrada, o ato de criar materializa no poema aquela mariposa que devora a prisão do seu casulo para sobrevoar os vales e as montanhas com as asas de um canto.

Os distanciamentos que vejo em relação às duas linguagens, tal como os opostos de que ambas se alimentam para consagrar a beleza da unidade, são direções complementares de uma mesma seta, que tanto se lança para o alto como se crava no fundo do coração: a mística se servindo da figura para simbolizar o reino da outra vida neste mundo, ou relatar um itinerário espiritual, e a poesia estabelecendo, a partir da realidade sensível, uma senha mágica para ingressar nessa realidade sobrenatural, nesse instante do inefável.

IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, Faustino Teixeira afirma que você, em sua poesia, manifesta “a presença de um ‘céu absoluto’ que inspira os mais profundos enigmas. E também a busca de um Deus palpável”. Como você percebe a sua mística pessoal em sua vivência cotidiana e em sua obra de poetisa?

Mariana Ianelli – Desde os primeiros poemas já me atraía intuitivamente uma presença do sagrado. Em pelo menos dois poemas do primeiro livro ("Trajetória de antes", 1999) posso reconhecer o começo dessa busca, "Acalanto para Cassiana" e "Três vezes Cristo". Cassiana foi uma colega de escola, uma menina linda, que um dia fui obrigada a ver no meio de uma sala, deitada sobre um monte de flores. A morte dessa menina, que tinha a minha idade, me despertou para o sentido de muitas coisas, inclusive da poesia.

Nos poemas de "Passagens", que vieram quatro anos depois, uma releitura poética das "Lamentações" bíblicas e do "Livro de Jó" me pôs em contato com esse conflito da fé que se ressente de uma sensação de injustiça diante de uma calamidade. Há também nesse livro um poema que surgiu de um caso particular, quando meu avô sofreu um AVC e durante algum tempo ficou sem identidade. O poema diz assim: “Para honrar tua vontade, festejamos. / Esse amor rente à boca nos ensina / A crer no tempo da eternidade, / Num espaço em que a matéria é luz, enfim, / E onde o temor da morte se destrói. / Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, / Uma serpente se levanta entre os cascalhos / E se põe contra quem vem pelo caminho. / Mas somos muitos, somos teus, e aguardamos. / Se coragem há que torne as horas mais tranquilas, / Nós não sabemos, / Apenas contamos com o retorno dos teus olhos / E ao poder da natureza suplicamos / Que recuperes a mesma identidade / Pela qual te reconhecíamos diariamente / Como o soberano autor de tua vida / E não este ser convulso que de nós se afasta / Para vagar numa esfera invernal / De mudez, alienação e indiferença. / Estamos em ti sempre que te ausentas”.

O livro que veio a seguir foi "Fazer silêncio" (2005), e nele o que existe é “uma paragem para ir à fonte”, como diz María Zambrano. E depois de um conflito pessoal inspirado pelo "Livro de Jó", depois de realmente perceber a paciência que um poema exige, o que me aconteceu foi uma gratidão, um olhar para esse triunfo da vida, apesar dos desastres. Essa gratidão está em "Almádena", um livro que foi escrito com o pensamento no "Sermão de Quarta-Feira de Cinzas", de Antônio Vieira.

Além de um canto de ofício, ter visto a casa dos meus avós se transformar em uma ruína, ter passado pelo fim de uma geração da minha família, e perceber que a vida continua existindo, absoluta, agora acrescida de todos esses que vão conosco, apesar de já não estarem vivos, isso me impôs uma das tarefas mais difíceis, a tarefa de encontrar vida onde parece não haver mais nada, e de entender que essa vida que surge depois de uma casa arruinada é a própria misericórdia. Simone Weil fala a esse respeito, mas para compreender o significado disso, o livro que precisei ler foi o da vida, e o sentimento de esperança que veio dessa leitura, eu o reconheço agora nos poemas de "Treva Alvorada" (2010).

IHU On-Line – Como mulher e poetisa, em nossa situação contemporânea, qual o papel e o valor da poesia e da mística? Quem seriam as principais místicas-poetisas (ou poetisas-místicas) de hoje, em sua opinião?

Mariana Ianelli – Vivemos em uma época de tirania da produtividade, de apologia do que é novo e eficaz e de um aparente benefício de tudo o que nos abrevia o sofrimento, o esforço e uma aprendizagem demorada. As coisas não amadurecem mais no seu próprio tempo, amadurecem à força, como uma planta de estufa. Vejo isso atingir as relações humanas e mesmo certa dimensão da criação literária que se ancora na linguagem, nos pressupostos do método e da técnica, e pouco abre espaço para uma inspiração que não pode ser instrumentalizada.

O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção. E, como diz Cristina Campo, “pedir a um homem que nunca se distraia”, que não ceda “à preguiça do hábito, à hipnose do costume (...) é pedir-lhe uma coisa muito próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção”.

Pensando nesse outro tempo, não no presente imediato, as “poetisas-místicas” que eu mencionaria são duas: Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol. A leitura da obra de Hilda Hilst, sob a perspectiva da mística associada ao lirismo, revela uma jornada interior real, profunda, extraliterária, para a qual temos como chave de acesso a beleza, no caso da sua poesia, a extravagância no caso da sua prosa. Sobre a tua grande face é um dos muitos livros de poesia de Hilda Hilst em que o “exercício da procura”, como ela mesma diz, se reveste de um esplendor de imagem e de musicalidade para invocar o “Obscuro”, o “Sem Nome”, o “Desejado”. Na sua prosa acontece a mesma procura. Em "Qadós" (“Kadosh”), o “Pacto que há de vir” com que Hilda inicia o texto é também onde começa “o delírio de perseguição” de que fala María Zambrano no livro "O homem e o divino": o delírio de quem não sabe se persegue ou é perseguido até verbalizar esse conflito poeticamente e sair do delírio para o pacto.

Quanto à Maria Gabriela Llansol, sua poética talvez esteja bem mais próxima da mística do que da literatura porque passa ao largo da intenção de um construto e deseja “entrar no real” através do texto, abrindo aí uma espécie de clareira onde um “mundo novo e fulgurante” pode ser sentido. Para Llansol, não existe o “como se”; para ela, “uma coisa é ou não é”, o que no texto se manifesta em um lugar de envolvimento afetivo com a beleza, a vida e o pensamento, um lugar que Llansol chama de “espaço edênico”. Nesse espaço, o que importa é a misericórdia, o princípio de bondade e a vontade de conhecer.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Mariana Ianelli – Já que o nosso ponto de chegada foi Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol, aproveito para transcrever um poema chamado "Neste lugar", que foi escrito depois de uma visita que fiz à Casa do Sol, que é também o lugar de uma passagem, um portal, um espaço edênico onde “a coisa é”, por isso não se conforma a analogias ou comparações. O poema diz: “Nenhum traço de delicadeza / Só palavras ávidas / E o tempo, / A devoração do tempo. / Um jardim entregue / Às chuvas e aos ventos. / O que para os cães / É febre de matança / E para um deus / Um dos seus inúmeros / Prazeres. / Caminho de sangue / Onde reina o amor primeiro. / Morada de súbita / Ausência do medo. / Um despenhadeiro, o céu / E uma queda / Sem alívio de esquecimento”.

(Por Moisés Sbardelotto)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Homossexualidade e movimento LGBT: estigma, diversidade, cidadania

Foto daqui

Ensaio retirado da coletânea Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, lançada em julho de 2011 pela Companhia das Letras.

Acostumamo-nos a ver, em várias cidades brasileiras, multidões de pessoas reunidas em manifestações organizadas para celebrar o “Orgulho LGBT”, sigla que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros. No Brasil, assim como em vários outros países, os modernos movimentos LGBT representam um desafio às formas de condenação e perseguição social contra desejos e comportamentos sexuais anticonvencionais associados à vergonha, imoralidade, pecado, degeneração, doença. Falar do movimento LGBT implica, portanto, chamar a atenção para a sexualidade como questão social e política, seja como fonte de estigmas, intolerância e opressão, seja como meio para expressar identidades e estilos de vida.

A sexualidade é uma referência privilegiada em muitas interpretações clássicas do Brasil. Sensualidade e luxúria, manifestadas como uma espécie de propensão coletiva à precocidade sexual e ao desregramento erótico, foram apontadas como traços importantes (ou mesmo definidores) da brasilidade, por autores tão diversos em contextos distintos como Nina Rodrigues (1862-1906), Paulo Prado (1869-1943) e Gilberto Freyre (1900-1987). Deve-se observar que a visão do Brasil como terra do excesso sexual provinha já dos primeiros tempos da colonização, como sugerem os relatos de viajantes sobre práticas do “pecado nefando” entre os ameríndios e documentos sobre confissões e denúncias de sodomia durante a visitação do Santo Ofício, na Bahia e em Pernambuco, no final do século XVI e começo do século XVII. Nas interpretações da formação social brasileira que se desenvolveram desde o final do século XIX até meados do século XX, causas variadas foram propostas para explicar aquele pendor: a influência do calor tropical; a natureza supostamente mais excitável, ardente e descontrolada de africanos, ameríndios e portugueses; as condições sociais de desigualdade, violência e degradação moral forjadas na escravidão; ou, ainda, uma combinação de tudo isso. Diferenças de ênfase à parte, essas interpretações corroboraram a visão de um Brasil marcado por uma sexualidade excessiva, com sua busca de prazeres “perversos” de toda sorte, entre os quais se destacavam as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Apesar da importância que vários autores clássicos do pensamento social brasileiro atribuíram à sexualidade, somente a partir dos anos 1970 o tema deixou de ser incidental e se tornou foco de pesquisa sistemática nas nossas ciências sociais. Isso se ligou, em boa parte, ao contexto de intensificação dos movimentos em defesa da liberdade sexual nos Estados Unidos e na Europa durante a chamada “contracultura” dos anos 1960, culminando com a famosa rebelião dos frequentadores homossexuais do clube Stonewall contra a polícia de Nova York, no começo do verão de 1969. Na cena norte-americana, palavras de ordem como “assumir-se” e “sair do armário” simbolizavam o anseio de tornar visível e fonte de orgulho o que até então era motivo de vergonha e vivido na clandestinidade.

No Brasil dos anos 1970, sob a ditadura militar, formas locais de desbunde e contestação cultural abriram brechas na repressão política. A androginia adquiria então um potencial subversivo. Em seu primeiro espetáculo no Brasil depois da volta do exílio na Inglaterra, em 1972, o cantor e compositor Caetano Veloso surpreendia o público ao usar batom e encenar maneirismos à moda de Carmem Miranda. Ao mesmo tempo, surgia o grupo teatral Dzi Croquettes, cujos componentes misturavam barbas, cílios postiços, peitos peludos, sutiãs, meiões de futebol e saltos altos em espetáculos de humor, canto e dança que percorriam o país com grande impacto. Os Dzi Croquettes buscavam vivenciar no cotidiano o que representavam no palco, mobilizando fãs ou “tietes” com quem formavam uma comunidade com múltiplas relações eróticas e afetivas. Essas intervenções artísticas e existenciais foram, em boa medida, precursoras e coprodutoras da “saída do armário” no Brasil. No final da década de 1970, em meio a um movimento crescente de oposição ao regime militar, emergiria um movimento homossexual no país, cujos marcos foram a criação do jornal Lampião e a fundação do grupo Somos de Afirmação Homossexual, ambas em 1978.

Também nesse momento os trabalhos do filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984) sobre a produção histórica e social da loucura, do crime e da sexualidade foram introduzidos nos cursos de ciências humanas no Brasil. Em sua História da sexualidade: a vontade de saber (publicado na França em 1976 e traduzido no Brasil já no ano seguinte), Foucault argumentou que os especialistas médicos, desde a segunda metade do século XIX, em seus esforços de conhecer e prevenir tudo aquilo que poderia ameaçar a saúde do indivíduo e da nação, contribuíram decisivamente para estabelecer uma série de classificações de tipos humanos que deram corpo às sexualidades “marginais” ou “perversas”. Dessa forma, os médicos ajudaram a promover uma nova forma de controle social, tendo a sexualidade como alvo, ao mesmo tempo que moldaram novos personagens sociais. Um exemplo seria a figura do “homossexual”, que substituiu a figura do “sodomita” na linguagem da medicina e do direito. Na visão influenciada pela religião, o sodomita era um praticante eventual ou reincidente de relações sexuais ilícitas. Na visão dos especialistas médicos, o “homossexual” passava a ser um tipo de natureza física e psíquica singular, situada entre o masculino e o feminino, que se manifestaria em seu corpo, seu temperamento e sua conduta.

No âmbito do debate brasileiro dos anos 1970, cabe destacar o trabalho do antropólogo Peter Fry, por sua relevância para a configuração de uma área de estudos voltada às conexões entre homossexualidade, cultura e política, que também desenvolvia uma abordagem da sexualidade como produto histórico e social. Fry argumentou que no Brasil, na passagem do século XIX para o século XX, também se elaborou uma compreensão do “homossexual” como um ser dotado de uma natureza singular. Nossos especialistas médicos não apenas codificaram e descreveram “anormalidades” sexuais, mas procuraram associá-las a explicações para degeneração, delinquência e loucura fundamentadas em diferentes versões do determinismo biológico e das teorias raciais em voga.

A visão médica da homossexualidade viria se contrapor a um modelo mais antigo e persistente de classificação de tipos sexuais, que Fry denominou de “hierárquico-popular”. Nele, as categorias referidas às práticas homossexuais estão englobadas por uma hierarquia de gênero, distinguindo as figuras do “homem” e da “bicha” (ou “viado”, “boiola”, “xibungo” etc.), em termos de seu papel no ato sexual. Na lógica do modelo hierárquico-popular, os atos de penetrar e de ser penetrado adquirem os sentidos respectivos de dominação e submissão por meio das categorias de “ativo” e “passivo” (e várias outras expressões populares correspondentes, como “comer” e “dar”, “ficar por cima” e “ficar por baixo”, “meter” e “abrir as pernas” etc.). O parceiro ativo dominador conservaria sua masculinidade, enquanto o feminino é quem se entregaria de forma subalterna e servil. Seria possível conceber também uma versão desse modelo para as relações homossexuais femininas, com a figura do “sapatão” (ou “paraíba”, “fancha”, “mulher-macho” etc.), que desempenharia o papel “ativo” ao se relacionar com “mulheres”.

Fry sugeriu que o modelo hierárquico-popular teria raízes históricas profundas, mas não seria uma peculiaridade brasileira. Distinções similares de “ativo” e “passivo” já constavam em cancioneiros medievais que mencionavam praticantes do coito anal. Recuando ainda mais no tempo, podemos encontrá-las na Roma antiga, onde o cidadão adulto que se deixasse penetrar em relações homossexuais era vilipendiado em sua honra viril, enquanto a passividade era adequada aos jovens escravos. Cabe lembrar que Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1933), já havia equiparado o papel do moleque, como paciente do senhor moço entre as grandes famílias escravocratas do Brasil, ao do escravo púbere escolhido para companheiro do rapaz aristocrata no Império Romano, observando que, “através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado de “leva pancadas”, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico”.

Enquanto o modelo hierárquico-popular diz quem é masculino e quem é feminina, o modelo médico-psicológico insiste na distinção entre homossexualidade e heterossexualidade. Em um primeiro momento, os médicos incorporaram em suas classificações os princípios da hierarquia de gênero, dividindo os homossexuais em “ativos” e “passivos”, parcialmente correspondendo a suas concepções de homossexualidade “adquirida” e “congênita”. O modelo médico-psicológico se encaminharia depois para uma representação mais homogênea dos diferentes tipos, baseada em uma noção de orientação do desejo sexual. Assim, os homens que mantivessem relações sexuais com outros homens seriam considerados “homossexuais”, não importando mais se é “ativo” ou “passivo”.

Essa passagem é importante, pois permite a Fry argumentar que um modelo “igualitário-moderno” teria surgido como uma derivação do modelo médico-psicológico, mudando-se o valor social atribuído aos termos. Se “homossexual” apresenta conotações de patologia, perturbação e crime, termos como “gay” vêm substituí-lo para expressar literalmente uma pessoa “alegre” e “feliz”. O modelo igualitário-moderno alargaria a visão de que a orientação do desejo sexual é o que importa para identificar os parceiros de uma relação homossexual, ao mesmo tempo que buscaria separar a homossexualidade da inversão de gênero. Se “bicha” ou “travesti” trazem as conotações de afeminação e espalhafato, termos como “entendido” ou “gay” vêm substituí-los para referir-se a rapazes que, mesmo “alegres”, são discretos e viris.

É nesse terreno de convivência e disputa entre modelos concorrentes — com ênfase na igualdade de orientação sexual em contraposição à hierarquia de gênero — que Fry e outros pesquisadores situaram a emergência do movimento político em defesa dos direitos homossexuais no Brasil, no final dos anos 1970. Desde então, o movimento homossexual colaboraria de forma decisiva para a expansão do modelo igualitário-moderno, que se daria principalmente entre as classes médias urbanas, como também dependeria dessa expansão. As diferenças de valor entre “igualdade” e “hierarquia” nas relações homossexuais ajudariam a produzir uma hierarquia entre os próprios modelos, tornando-se assim um meio privilegiado de expressar e constituir distinções de classe. O emergente movimento político homossexual tenderia a incorporar a crítica aos papéis de gênero convencionais, formulada pelo feminismo. Desse modo, entraria em tensão crescente com os valores e comportamentos que prevaleceriam no universo “tradicional” e “atrasado” das “bichas”, “sapatões” e travestis.

Algumas qualificações podem ser feitas acerca dessa influente leitura da estruturação da homossexualidade e do movimento homossexual no Brasil. Em primeiro lugar, ela sugere uma tendência geral de transição do modelo hierárquico para o igualitário, através da mediação do modelo médico, cuja realização histórica não pode nem deve ser entendida de forma linear. O historiador James Green mostrou evidências de identidades homossexuais masculinas que extrapolavam o binário ativo/passivo na cena urbana brasileira desde a virada do século XIX ao século XX — contemporâneas, portanto, dos primeiros momentos de produção da visão médico-psicológica do “homossexual”; e bem anteriores ao surgimento e popularização das categorias de “entendidos” e “gays”.

Em segundo lugar, a insistência no termo “modelo” é crucial para definir com mais clareza o plano em que essa leitura se situa: isto é, das ideias, valores e suas conexões lógicas, por meio das quais comportamentos e identidades ganham inteligibilidade social, demarcam regras e contravenções. Em contrapartida estão os processos através dos quais indivíduos tornam-se sujeitos e agentes sociais, incorporando-se e reconhecendo-se em determinadas categorias; o que abre espaço para variações, deslocamentos e transformações nos próprios modelos. Assim, podemos encontrar rapazes que fazem sexo com outros homens por dinheiro ou alguma outra forma de recompensa, e que podem até desempenhar o papel “passivo” no ato sexual, mas que não deixam de se considerar e de ser considerados como “homens”. Temos ainda as travestis, que adotam nomes e modos de tratamento no feminino, submetem-se a modificações corporais irreversíveis para adquirir vistosas formas femininas, mas não se acham necessariamente “mulheres” e, muitas vezes, desempenham o papel “ativo” no ato sexual. Além disso, podemos encontrar homens e mulheres que se dispõem à experimentação erótica com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, sem recorrer a identidades fixas de orientação sexual.

Essa dinâmica não deixou de repercutir na própria trajetória do movimento LGBT no Brasil. O antropólogo Edward MacRae, em seu trabalho sobre o Somos, de São Paulo, um dos primeiros grupos homossexuais formados no final dos anos 1970, mostra que já naquele momento os militantes se dividiam quanto a se constituir ou não em torno de uma identidade homossexual. Havia então uma grande inquietação quanto aos riscos de se cristalizar (ou “reificar”, para usar uma expressão mais comum à época) a oposição entre hetero e homossexualidade, e daí promover novos rótulos e estigmas. MacRae registrou sua própria angústia de trabalhar com pressupostos analíticos (baseados na visão da homossexualidade como um papel social e historicamente construído) que se contrapunham a um princípio importante para a solidariedade do grupo, de que a homossexualidade seria uma característica interna e inescapável de cada pessoa.

Nos anos 1980 o cenário mudou. A eclosão da epidemia HIV-aids trouxe de volta velhas associações entre homossexualidade e doença, enquanto a democratização acenava com a abertura de canais de comunicação com o Estado, especialmente com as autoridades de saúde envolvidas nas respostas sociais à aids e com os novos partidos políticos. A partir de então, é possível observar também o desenvolvimento de um estilo de atuação política diferente, mais preocupado com aspectos formais de organização institucional e que buscava se organizar em torno de campanhas específicas, como a mobilização para incluir a proibição de discriminação por “orientação sexual” durante a Assembleia Constituinte. Embora não tenha atingido seu objetivo, essa campanha envolveu um significativo esforço pela produção de um consenso em torno da ideia de “orientação sexual”. A pesquisa da antropóloga Cristina Câmara sobre o grupo Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro, no final dos anos 1980, mostra como essa campanha mobilizou vários cientistas sociais brasileiros, que proferiram pareceres ressaltando vantagens da expressão “orientação sexual” como instrumento capaz de promover o direito individual à liberdade sexual e propiciar ao movimento maiores possibilidades de diálogo com a sociedade civil e com as diferenças.

Ao longo dos anos 1990, as parcerias com o Estado em torno do combate à aids consolidaram-se e deram impulso à multiplicação de grupos ativistas, inclusive de lésbicas e de travestis, promovendo a diversificação e a incorporação dos vários sujeitos do movimento homossexual na atual sigla LGBT. Parte considerável das entidades de base do movimento aderiu ao formato de organizações não governamentais (ONGs), estabelecendo estruturas mais formais de organização interna, conduzindo uma rotina de elaboração de projetos e relatórios, preocupando-se com a “capacitação de quadros” para estabelecer relações duráveis com técnicos de agências governamentais e organismos internacionais. A pesquisa da antropóloga Regina Facchini mostra como esse processo se deu em um pequeno grupo de ativistas de São Paulo, na segunda metade dos anos 1990.

Nesse período mais recente, o movimento LGBT lança campanhas pelo reconhecimento legal dos relacionamentos homossexuais e pelo combate à discriminação e à violência contra homossexuais, que contribui para popularizar o termo “homofobia”. É também o momento de emergência e consagração das Paradas do Orgulho LGBT, paralelamente ao crescimento de um mercado segmentado e à proliferação de diversos estilos de vida associados à homossexualidade, que acaba por refratar em múltiplas categorias e identidades.

Grande parte da visibilidade social e política alcançada pelo movimento LGBT deveu-se ao seu processo recente de institucionalização e estabelecimento de parcerias com o Estado. Nesse campo de relações, há vantagens, mas também riscos. Abrem-se novos canais para pressões vindas “de baixo” que, entretanto, podem também favorecer novas redes de clientela que amorteçam o potencial crítico do movimento. Sob esse aspecto, a trajetória do movimento LGBT recoloca de forma eloquente um fenômeno bastante conhecido e atual: a interpenetração e porosidade entre Estado e sociedade civil no Brasil. Poderia ser diferente? Afinal, o movimento LGBT leva consigo as tramas e tensões da sociedade em que está enredado.

- Júlio Assis Simões é professor do Departamento de Antropologia da USP e pesquisador colaborador do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. Tem pesquisas sobre movimentos sociais, participação política, envelhecimento, gênero e sexualidade.

Reproduzido do Blog da Companhia

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Milagres


Quero fazer os poemas das coisas materiais,
pois imagino que esses hão de ser
os poemas mais espirituais.
E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade.
E à raça humana eu digo:
-Não seja curiosa a respeito de Deus,
pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso a respeito de Deus.
Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho...
Ora, quem acha um milagre alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres...
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- existirão milagres mais estranhos?

Walt Whitmann

(Via Tiago Medeiros)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O jornal que ousa dizer seu nome

Foto daqui

Flávia Péret lançou domingo, em Belo Horizonte, o livro Imprensa gay no Brasil, pesquisa sobre a história dos jornais e revistas dedicados à questão da liberdade e da diversidade sexual.

O respeito à diversidade sexual no Brasil convive com uma sociedade machista. O mesmo país que exibe ao mundo passeatas de orgulho gay com milhões de pessoas na rua volta e meia se depara com manifestações homofóbicas que partem de deputados como Jair Bolsonaro e pastores evangélicos como Silas Malafaia, sem contar cenas explícitas de violência física. A contradição não é de hoje. A imprensa, que espelha a sociedade, parece também ir de um campo a outro, ora afirmando a liberdade, ora ecoando o preconceito. Há 50 anos, um folheto datilografado e reproduzido em mimeógrafo, o Snob, dava início a uma história singular: a imprensa gay brasileira.

As primeiras publicações – logo surgiu a mais expressiva delas, o Lampião da Esquina – tinham como característica o fato de serem produzidas por gays, com assuntos de interesse dos gays e consumidas por leitores gays. Entre o jornalismo e a militância, foram instrumentos de crítica política que não se concentravam apenas no combate à ditadura militar, mas sobretudo às tiranias da intimidade. Com linguagem direta, tom muitas vezes irônico, ampliaram a luta por liberdade de modo a criar constrangimentos até mesmo à esquerda, que sempre foi careta em matéria de sexualidade.

A jornalista Flávia Péret reconstitui essa história no livro Imprensa gay no Brasil, que lança hoje em Belo Horizonte, na Livraria Ouvidor. Resultado de pesquisa em arquivos, o estudo propõe ainda uma leitura dos jornais e revistas ao longo do tempo, a partir de elementos ideológicos, editoriais e de comportamento. Entre os temas que perpassam vários períodos está a luta sempre difícil pela manutenção dos periódicos, o preconceito, a divisão entre a vertente comercial e política, a entrada em cena da pornografia, a questão da Aids, o novo cenário inaugurado com a internet.

O caso do Lampião da Esquina é paradigmático. O jornal, surgido em meio à onda da contracultura, tinha em seu corpo editorial dois nomes que se tornaram marcantes na trajetória da imprensa gay no Brasil, Aguinaldo Silva e João Silvério Trevisan. Escritores e militantes, Aguinaldo e João Silvério se desentenderam quanto aos rumos da publicação. Para Aguinaldo, que depois se tornaria famoso como autor de novelas de TV (é dele o atual folhetim das nove, Fina estampa), o jornal precisava ter compromisso com o mercado em primeiro lugar. João Silvério, romancista e ensaísta, defendia o caráter prioritário da ideologia. Não foi uma questão apenas do Lampião, mas de toda a imprensa gay do período. O impasse levou ao fechamento do jornal.

A liberdade, mais que uma conquista, é uma construção que precisa ser renovada a todo momento. Os primeiros veículos, em sua corajosa mescla de militância e resistência, inauguraram formas editoriais e modos de linguagem, ampliaram os assuntos presentes na imprensa, combateram o preconceito e afirmaram um horizonte moral mais libertário. A reincidência, 50 anos depois, de elementos que parecem conter esse impulso, seja em nome do mercado, seja do conservadorismo, mostra que a história não cessa de ser escrita.

E não deixa de ser curioso que Aguinaldo Silva, um dos atores de ponta na luta contra o preconceito aos homossexuais, tenha optado por criar um personagem como Crodoaldo Valério, o Crô, em Fina estampa. Dono de todos os estereótipos que o movimento gay sempre combateu, o mordomo tem conquistado a simpatia do público, muito mais que os casais homossexuais politicamente corretos das novelas de Gilberto Braga, por exemplo. Como se vê, a contradição entre ideologia e mercado está longe de terminar.



A militância e o consumo: entrevista com Flávia Péret, jornalista e pesquisadora

A imprensa gay nasceu em época de repressão política e comportamental. Como esse contexto influiu em seu conteúdo?
É importante ressaltar que já existiam publicações gays antes de 1964. O Snob, por exemplo, que é, com o Lampião da Esquina, um dos jornais mais importantes da história do jornalismo gay no Brasil, surgiu em 1963. O pesquisador norte-americano James Green tem um estudo fundamental sobre o assunto (Além do carnaval – a homossexualidade masculina no Brasil do século XX). Ele mapeou dezenas de publicações gays, em todos os cantos do Brasil, que também já existiam antes do golpe. Sobre o contexto político e social, nós vivíamos um grande paradoxo, era um período bastante contraditório. Por um lado, a repressão política, a ditadura militar e o conservadorismo. No entanto, em várias partes do mundo ocidental – e a juventude brasileira foi bastante permeável a esses acontecimentos –, as pessoas estavam vivendo uma revolução de costumes muito forte, que chegou com mais ou menos uma década de atraso ao Brasil: a cultura hippie, o amor livre, o pacifismo e as lutas dos grupos minoritários, não só gays, mas mulheres e negros. A contracultura eclodiu nos Estados Unidos alguns anos antes e no país encontrou nos artistas brasileiros – Secos e Molhados, Dzi Croquettes, Caetano Veloso, Leila Diniz – e na imprensa alternativa bastante visibilidade. Então era algo bastante paradoxal: violento do ponto de vista político, mas com uma juventude aberta, curiosa e principalmente insubordinada às convenções sexuais.

Como essa situação se refletiu na imprensa?
A contracultura introduz um novo tom na imprensa brasileira. O Lampião, por exemplo, era um jornal supercombativo e polêmico e que marcava claramente sua postura ideológica. Eles não lutavam contra a ditadura militar apenas, como alguns alternativos da época, como o Opinião, o Pasquim, lutavam também contra o preconceito, contra a moral sexual conservadora, contra a hipocrisia sexual do brasileiro, o machismo. Era esse o contexto, a ditadura de um lado e a contracultura ou o desbunde de outro. E essa dicotomia estava ali, impressa nas páginas do jornal, as pessoas que fizeram o jornal respiravam e viviam esses dois mundos e é claro que o jornal refletia isso no seu conteúdo e na sua postura editorial: o humor, a ironia, o sarcasmo eram algumas das ferramentas de linguagem.

A mistura de militância com jornalismo repercutiu no resultado das publicações e em sua continuidade como projeto comercial?
Sim e não. Essa mistura foi superimportante para a repercussão política desses veículos, sua legitimidade e valor editorial perante a sociedade. No entanto, a continuidade não foi possível justamente porque os jornais não se sustentavam financeiramente em função de uma série de fatores. Infelizmente isso é uma constante nos casos que pesquisei, os veículos deixam de existir em função de questões financeiras, não se sustentam só com as vendas.

Por que, mesmo com o novo mercado gay, as revistas não se mantêm em circulação por muito tempo?
Por causa do preconceito. Infelizmente ainda existe muito preconceito por parte dos anunciantes. Eles não querem atrelar a marca a uma revista que traz, por exemplo, um homem seminu em poses sensuais ou que fala em assuntos como adoção ou casamento gay. Resumindo, os anunciantes evitam as polêmicas, os assuntos “delicados”... Engraçado, porque o mesmo não ocorre com as revistas de nu feminino. A Playboy tem grandes anunciantes, então está claro que não é a questão da nudez que é o tabu, é a questão da homossexualidade masculina. A falta de anunciantes inviabiliza a produção de uma revista.

Como as primeiras revistas sobreviviam?
Na década de 70 havia um jornalismo diferente, mais militante, por isso falo que a imprensa gay no Brasil se situa um pouco entre estes dois campos: a militância e o consumo. As pessoas que produziam essas publicações se reuniam em suas próprias casas, faziam jornais em mimeógrafos, colagem, xerox, iam para a rua vender, distribuíam via correio. Era um envolvimento intenso. Muitos não recebiam pelo trabalho, pelo contrário, gastavam o dinheiro que tinham para realizar o projeto de publicar um jornal ou um fanzine gay. Ou seja, elas iam driblando a falta de anunciantes. Hoje isso não é mais possível, mas por outro lado existe a internet.

A liberdade sexual no Brasil convive com fortes reações homofóbicas, em diversos setores, na política, na religião e na cultura. Que papel a imprensa tem nesse contexto?
O papel é importantíssimo, crucial, mas infelizmente enquanto a mídia se atrelar ideologicamente e economicamente a empresas e pessoas com pensamentos conservadores – principalmente os religiosos – será difícil para a imprensa atuar da forma adequada. Acho que a imprensa deveria ser mais corajosa, mais polêmica e, principalmente, mais autônoma. Muitas vezes o jornal fica em cima do muro. Às vezes o “princípio” da imparcialidade é uma desculpa para a falta de coragem de se posicionar em relação a temas polêmicos. Somos um país laico apenas na Constituição, vivemos um controle abusivo da Igreja Católica e das igrejas evangélicas. A imprensa deveria abrir mais esse debate, se posicionar efetivamente.

A ligação da imprensa gay com a pornografia interferiu no conceito que essas publicações tinham junto a um público mais amplo?
Com certeza, porque no Brasil pode-se falar das coisas até determinado ponto. Algumas pessoas até aceitam falar de homossexualidade e de direitos gays, mas mostrar um homem nu, não. Isso para mim é hipocrisia, patrulha ideológica do prazer. Durante anos o João Silvério Trevisan escreveu para a G Magazine, a Vange Leonel também. O João Silvério é para mim uma das pessoas mais importantes dentro do movimento da imprensa gay, muito mais do que o Aguinaldo Silva, aliás. Mas depois a G Magazine foi vendida e as pessoas que compraram a revista – um grande grupo internacional – não achavam que era importante ter outros assuntos além das fotos. O espaço do João Silvério foi diminuindo, diminuindo, até que ele parou de escrever. Acho isso pouco inteligente e pouco estratégico por parte dos novos donos da revista. As duas questões podem conviver.

Há alguma semelhança entre a imprensa gay e outros projetos editoriais ligados a causas minoritárias ou contra-hegemônicas?
Sim. Os movimentos contraculturais da década de 70 provocaram uma revolução na forma como determinados grupos minoritários passaram a se articular politicamente. Não só o movimento gay, mas o movimento negro, o movimento das mulheres, dos estudantes ocuparam um espaço de atuação até então inédito. Isso ocorreu porque uma série de descentramentos – quem fala muito sobre isso é o filósofo Stuart Hall – foram empreendidos no campo da política. Entre eles, o enfraquecimento de instâncias de representação social, ligadas exclusivamente ao conceito de classe. Houve também uma crescente politização da subjetividade – das identidades individuais. Ou seja, começa a surgir uma “política da diferença” nas décadas de 60 e 70. Tal deslocamento permitiu que atores sociais até então excluídos e desarticulados ampliassem o debate em torno de questões culturalmente silenciadas. No Brasil, na década de 70, além dos jornais gays tivemos jornais feministas, como o Brasil Mulher (1975 a 1980) e o Nós, Mulheres (1976 a 1978) e publicações produzidas pelo movimento negro como os Cadernos Negros (criado em 1978 e que existe até hoje), uma publicação referência no campo da literatura afro-brasileira. Acho que foi esse o espírito que uniu projetos editoriais e literários com temáticas tão diversas, dizer: existimos!

- João Paulo
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas. Reproduzido via Conteúdo Livre

* * *

Caso você se interesse pelo assunto e queira saber mais
Vale ler a nota do Ministério da Cultura sobre a criação do Primeiro Centro de Documentação LGBT (aqui). Aproveite para visitar o acervo digitalizado completo do histórico jornal "Lampião da Esquina", disponível para consulta aqui por iniciativa da ONG Grupo Dignidade do Paraná e com o apoio do Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Vietnã


Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.

- Wislawa Szymborska
Via bonito, isso

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A quem veneras neste recanto...?

Painel: Aryz

Deixa a cantilena, o cântico
e a recitação de contas de rosário!

A quem veneras neste recanto
solitário e escuro de um templo de portas fechadas?

Abre teus olhos e vê
que teu Deus não está diante de ti!

Ele está onde o agricultor está lavrando o chão duro
e onde o pedreiro está rachando pedras.

Ele está com eles no sol e na chuva,
e sua roupa está coberta de poeira.

Remove teu manto sagrado
e como Ele, desce para o chão empoeirado!

Libertação? Onde se encontra essa libertação?

Nosso mestre assumiu pessoalmente com alegria
os vínculos da criação;

Ele está vinculado a nós para sempre.
Sai de tuas meditações e deixa de lado tuas flores e o incenso!

Que mal há se tuas roupas ficam gastas e manchadas?
Encontra-o e fica com Ele na faina e no suor de tua face.

- R. Tagore
Reproduzido via blog Terra Boa

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Descuido


Felicidade se acha é em horinhas de descuido.

- Guimarães Rosa

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Sobre a morte de Maria


Celebrou-se ontem (15 de agosto) a festa de Nossa Senhora da Glória, a mesma festa litúrgica da Assunção de Nossa Senhora, em que a Igreja celebra a glorificação de Maria coroada como rainha do céu e da terra...

I

O mesmo grande Anjo que outrora
lhe trouxera a mensagem da conceção,
ali estava, aguardando a sua atenção,
e disse: o tempo do teu aparecimento é agora.
E ela perturbou-se como antes e mostrou
ser de novo a serva, assentindo profundamente.
Mas ele irradiava e, aproximando-se infinitamente,
desapareceu como que no rosto dela e mandou
aos Apóstolos que se tinham afastado
que se juntassem na casa da encosta,
a casa da Ceia derradeira. Eles vieram a passo pesado
e entraram cheios de temor: ali se encontrava posta
sobre estreito leito, aquela que tinha mergulhado
misteriosamente no declínio e na eleição,
imaculada, como criatura de indiviso coração,
escutando o coro angelical com ar maravilhado.
Então, quando os viu atrás das suas velas,
expectantes, arrancou-se ao excesso de harmonia
das vozes e ofereceu-lhes ainda as duas vestes belas,
de todo o coração, as únicas que possuía,
e ergueu a sua face para este aqui e aquele além...
(Ó fonte de inomináveis lágrimas em caudais!)

Mas ela reclinou-se nos seus requebros finais
e atraiu os céus para tão perto de Jerusalém
que a sua alma, ao escapar,
apenas teve de um pouco se elevar:
e já a levava Aquele que tudo dela sabia
para a Natureza divina a que ela pertencia.

II

Quem poderia pensar que até à sua chegada
o vasto Céu imperfeito era?
O Ressuscitado ocupara a sua morada,
porém a seu lado, havia vinte e quatro anos, estivera
um trono vazio. E todos já começavam
a habituar-se à pura ausência
que estava como que fechada, pois a ofuscavam
os raios de luz do Filho em permanência.

E assim ela também, ao entrar no Céu naquele dia,
não se dirigiu a Ele, por muito que o desejasse;
ali não havia ligar, só Ele lá se encontrava e resplandecia
numa claridade que a ela lhe doía.
Porém, como agora essa figura comovente
aos bem-aventurados se juntasse
e discretamente, luz na liz, um lugar viesse ocupar,
expandu-se então do seu ser um brilho incandescente
de tal intensidade que o Anjo que ela estava a iluminar
gritou, ofuscado: quem é esta?
Houve um silêncio de espanto. Depois todos viram em festa
Deus Pai nas alturas Nosso Senhor deter
de modo a, envolto na luz do amanhecer,
o lugar vazio, como um pouco de compunção,
se mostrar, uma réstia de solidão
como algo que ainda suportava, um nada
de tempo terreno, uma cicatriz sarada.
Olharam para ela: o seu olhar com receio aí pousou,
profundamente inclinado, como se sentisse: eu sou
a sua dor mais longa; e, de súbito, caiu para diante.
Mas os Anjos consigo a tomaram
e a apoiaram e cantaram de felicidade exultante
e a elevaram e no lugar cimeiro a colocaram.

III

Porém, diante do Apóstolo Tomé, chegado
já demasiado tarde, apareceu
o rápido Anjo, há muito para tal compenetrado,
e junto ao lugar da sepultura a ordem deu:

afasta a pedra para o lado. Queres saber
onde está aquela que comove o teu coração?
Vê: como almofada de alfazema, a jazer
se encontrou ali, em breve posição,

para que a Terra tivesse o seu odor
nas dobras, como um pano raro.
Tudo o que está morto (tu o sentes), toda a dor
Estão envoltos no seu aroma claro.

Olha para a mortalha: onde está a brancura
que a torne mais deslumbrante, sem a alterar?
A luz que emana desta morta pura
mais a iluminou do que a luz solar.

Não te admiras de quão suavemente lhe escapou?
Quase como se ela ainda aí estivesse, nada saiu do lugar.
Porém todo o Céu nas alturas se agitou:
Homem, ajoelha-te, segue-me com o olhar e começa a cantar.

- Rainer Maria Rilke

Fonte: SNP Cultura (Portugal)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Três links e um brinde

Instalação: Elise Morin

Rapidinho, três links para baixar trabalhos acadêmicos de qualidade sobre a relação entre homoafetividade e cristianismo:

Via(da)gens teológicas: itinerários para uma Teologia Queer no Brasil (tese de doutorado de André S. Musskopf, Bacharel, Mestre e Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia. Pesquisador nas áreas de: Estudos Feministas, Teorias de Gênero, Teoria Queer, Masculinidade, Homossexualidade e Diversidade Sexual, na sua relação com Religião e Teologia). Aqui

Homossexualidade, religião e gênero: a influência do catolicismo na construção da auto-imagem de gays e lésbicas (tese de mestrado em teologia de Valéria Melki Busin), aqui

A fé e os afetos: Diversidade Sexual, Catolicismo e Protestantismo em sites de grupos cristãos inclusivos, por Murilo Silva de Araújo e Maurício Caleiro. Trabalho apresentado no Intercom Júnior – IJ 07 – Comunicação, Espaço e Cidadania, do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, realizado de 12 a 14 de maio de 2011. (O Diversidade Católica está aqui! ;-)) Aqui

E um brinde:
"A Igreja do Diabo", conto de Machado de Assis. Uma análise atemporal (e deliciosa) sobre ética, vícios, virtudes e humanidade... aqui (RT @Wedge_issue) #ficadica

Com amor,

Cris

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A sabedoria e o corriqueiro da vida


O saber se aprende com os mestres. A sabedoria, só com o corriqueiro da vida.

- Cora Coralina
(RT @Wedge_issue)

domingo, 7 de agosto de 2011

O segredo da felicidade

Foto: Bobby Bong

‎Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


- Vicente de Carvalho
(via Rev. Marcio Retamero)
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