Foto: Michel Rajkovic
Hoje, dia de tragédia no Rio, assisti, em meio ao choque generalizado diante do ocorrido e às primeiras reações de compaixão e solidariedade, a uma crescente onda de boatos nas redes sociais acerca do autor dos disparos: que seria religioso, fundamentalista, islâmico, soropositivo, homossexual, ateu, crente - imediatamente acompanhada de uma avalanche de trocas raivosas de acusações... "gays" contra "religiosos", "fundamentalistas" contra "libertinos", "conservadores" contra "progressistas", "crentes" contra "ateus", "defensores dos direitos humanos" contra "reacionários"... e, em meio ao recrudescimento da raiva generalizada, as crianças feridas e mortas e o rapaz transtornado que as feriu e matou pareciam ter virado apenas um pretexto para o cabo-de-guerra entre interesses rivais.
...E, em meio à polarização das paixões e à intensificação da troca de insultos e agressões, o santo nome das crianças chacinadas me parecia cada vez mais usado em vão. Do impulso inicial de compaixão, algo parecia ter se perdido.
A mim não parece que a questão seja identificar de quem é a culpa - se da religião ou do ateísmo ou do fundamentalismo ou da libertinagem ou da homossexualidade ou do reacionarismo ou da soropositividade ou do fracasso do referendo contra as armas. Sobretudo, não me parece que a questão seja aproveitar - por convicção ou oportunismo - para identificar a culpa com aquele "outro" que pensa diferente de mim. Ao menos não agora.
Ao menos não agora. Por ora, demo-nos um minuto.
Mais que encher-nos de ódio pelo criminoso - seja ele louco, radical, gay, soropositivo, crente, ateu ou E.T. - a ocasião pede sobretudo humanidade diante de tanto sofrimento - das crianças, das famílias, dos amigos, dos profissionais que atuaram no resgate, nos hospitais, nos bancos de sangue, e por que não? Também do perpetrador de tamanha insanidade.* Diante de tamanho sofrimento, resta-nos sentir, resta-nos por um instante suspender toda pretensão, arrogância e julgamento, resta-nos baixar os olhos, e baixar a guarda, baixar as certezas de que certo estou eu e toda diferença está errada, e guardar por um instante as palavras e fazer um minuto que seja de silêncio, em silenciosa abertura para tão-somente compartilhar com o outro a sua dor. Resta-nos, diante da tragédia - desta de hoje como de outras - por um minuto que seja baixar as baionetas e as palavras aguçadas e dar-nos as mãos, como quem diz "Vem, irmão, apóia-te por um instante no meu ombro, sei que estás cansado, como cansado estou eu". E a dor assim dividida, com o peito assim aberto, por um minuto que seja nos faz mais humanos, porque mais humildes perante o mistério insondável da existência; o mistério da dor diante da qual só podemos dar-nos as mãos, calar e confiar que um dia as lágrimas secarão, as feridas irão cicatrizar um dia, e um dia - embora em meio a tamanha treva seja impossível acreditar - o sol voltará e será outro dia, outra vez.
E a dor assim dividida, por um minuto que seja desse silêncio que se instala porque não há resposta para o "por quê?!" mortificado, a dor assim dividida anula as diferenças. E porque anula as diferenças, porque não importa por ao menos um minuto a tua ideologia ou religião ou raça ou classe ou seja lá o que te faz diferente de mim e a mim, diferente de ti; porque nada mais importa voltamos a ser iguais como quando chegamos neste mundo, e a igualdade nos torna de novo simplesmente humanos e irmãos na dor.
Partilhemos com as vítimas essa dor tamanha, e demo-nos as mãos e façamos silêncio por um minuto que seja, para que pelo menos a tragédia nos torne outra vez irmãos. Porque a dor assim sentida, de mãos dadas, humaniza. Por um minuto, que assim seja.
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*Quem leu a sua carta? Quem, em meio ao horror das suas palavras, leu, nas entrelinhas, o fardo de solidão e desespero...? Tweet
2 comentários:
Por um minuto, que seja!
Belíssimo texto.
Precioso convite: os ombros, que aceitam a cabeça cansada, cheia, e às lágrimas, que se enxugam, no mesmo ombro em que a cabeça repousa!
Um passo para a solidariedade, amizade e misericórdia! Como Ele disse: "misericórdia quero e não holocausto!"
Parabéns!
Obrigada, Renato! Um grande abraço!
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