sábado, 18 de fevereiro de 2012

Cristãos negros, e não por acaso

Foto daqui

Nos últimos 30 anos, nas Igrejas cristãs da América Latina, foi-se desenvolvendo uma nova teologia, filha das comunidades negras descendentes dos escravos africanos, que une vontade de justiça, feminismo e inculturação.

A reportagem é de Mauro Castagnaro, publicada na revista Jesus, de dezembro de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.


"Eu sou a filha da teologia da libertação, porque sempre me identifiquei com a opção pelos pobres. No entanto, a minha pesquisa teológica começou da percepção de que a minha experiência de mulher, o fato de não querer ser marginalizada na Igreja como negra e, sobretudo, a intensa espiritualidade da população afrocolombiana exigiam uma reflexão mais aprofundada e inclusiva".

Essas palavras de Maricel Mena López, professora de Novo Testamento na Pontifícia Universidade Xaveriana de Bogotá, não descreve, apenas, de um ponto de vista feminino, um itinerário individual, mas também são representativas do processo mediante o qual surgiu a teologia afroamericana.

Nos últimos 30 anos, de fato, paralelamente ao surgimento de movimentos negros na cena sociopolítica e cultural latino-americana, também nas Igrejas – e particularmente na católica – ganhou espaço uma tentativa de reler a mensagem evangélica e o cristianismo dentro da vivência das comunidades afroamericanas, marcadas pelo violento desenraizamento da África, por séculos de escravidão e de revoltas, pela opressão, pela discriminação, pela marginalização e pela pobreza que ainda hoje acompanham a condição da grande maioria dos 150 milhões de afrodescendentes, presentes principalmente no Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador, na costa atlântica da Nicarágua e Honduras, e no Caribe (Haiti, Cuba, Jamaica e República Dominicana).

Entre eles, no entanto, cresceu a conscientização e a reivindicação da sua própria identidade cultural. Mena López resume: "A teologia afroamericana nasce da discriminação racial e da experiência de Deus vivida pelas comunidades negras em todo o continente. Ela propõe uma reflexão enraizada nas nossas cosmovisões culturais e religiosas, começando pelo culto praticado por diversas comunidades afrocatólicas".

O ponto de partida, pelo menos no plano do Magistério continental, é geralmente considerado o documento final da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla, no México, em 1979: o texto, referindo-se aos "rostos concretos" que assume "a situação de extrema pobreza generalizada" e em que "devemos reconhecer os traços sofredores de Cristo", dita os afroamericanos definindo-os, assim como os índios, de "os mais pobres entre os pobres".

Desde 1980, realizaram-se 11 Encontros de Pastoral Afroamericana, o último dos quais na Cidade do Panamá, em 2009, promovido pelo Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), enquanto, desde 1985, com uma frequência mais ou menos decenal, ocorreram três Consultas Ecumênicas de Teologia Afroamericana e Caribenha, e desde 1999 a Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo realizou quatro Encontros de Teologia Afroamericana e Caribenha.

À produção teológica popular, ligada diretamente à pastoral afro, juntam-se alguns órgãos de pesquisa, elaboração e divulgação como o Centro Afroequatoriano de Quito e o Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia de São Paulo, no Brasil, assim como grupos como o Guasá, na Colômbia.

Enquanto isso, aumentou o número de bispos negros, surgiram espaços inter-religiosos em que participam padres, religiosas, pastores protestantes, pais de santo e mães de santo (que presidem os cultos do candomblé), houve grandes encontros dos órgãos de pastoral negra católicos e protestantes, dos quais também participaram sacerdotes afro.

O padre Antônio Aparecido da Silva, professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pioneiro da pastoral afrobrasileira, falecido em 2009, explicava que "o Deus dos pobres se identifica com o povo negro. Deus é negro, caminha com o seu povo e se revela na sua história de marginalização como a única fonte de segurança". E identificava como tarefa principal da teologia afroamericana a de "ajudar a comunidade negra a compreender a sua fé no emaranhado tecido e na mistura das experiências religiosas", lembrando que "em algumas regiões do Caribe há comunidades de tradição protestante, mas a maioria da população negra do continente é católica. Uma parte significativa, no entanto, permanece fiel às tradições religiosas africanas, através do vodu (Haiti), do candomblé (Brasil) ou da santeria (Cuba). Igualmente significativo é o número de negros e negras que têm uma dupla filiação, participando da vida da Igreja católica e dos cultos afro".

Segundo Sílvia Regina de Lima Silva, teóloga brasileira que atualmente trabalha em San José, na Costa Rica, no Departamento Ecumênica de Pesquisa (Dei) e na Universidade Bíblica Latino-Americana, "no início, falávamos de teologia negra da libertação, assumindo o lugar, espaço, corpo da negritude como ponto de partida do fazer teológico, promovendo a formação dos agentes de pastoral negros e a liturgia afro, a partir de uma hermenêutica negra da Bíblia, muito atenta ao Deus libertador, à prática libertadora de Jesus, ao compromisso de libertação das primeiras comunidades cristãs. Depois, o fato de descobrir o povo negro como imagem e semelhança de Deus nos ajudou a desmontar o Deus que nos foi imposto pelo colonialismo teológico e a abrir a pesquisa à pluralidade de imagens, experiências, culturas. Hoje, quando se fala de interculturalidade e diálogo inter-religioso na nossa experiência, há esse encontro com um Deus plural, que remete à diversidade, à criatividade, à diferença".

No centro da reflexão teológica afroamericana há questões relacionadas à vida cotidiana das comunidades negras, como a pobreza, a terra, a saúde e a educação, mas também as relações com as religiões tradicionais. Estas, explica Lima Silva, "foram para os negros na diáspora um lugar privilegiado de encontro com Deus, que nelas se revelou como solidário e fiel". Isso facilita um diálogo com o cristianismo, porque "muitos negros e negras tiveram nele uma experiência do Deus libertador semelhante à vivida nos cultos africanos, que têm um cuidado especial pela vida, pela saúde, pelos relacionamentos amorosos, pela sobrevivência financeira, com o uso de ervas, peixes etc. Para mim, que cresci em comunidades cristãs, foi muito bonito me encontrar com esse Deus dos meus antepassados e experimentar o seu cuidado".

De acordo com López Mena, no entanto, "não se trata de inserir símbolos de um universo religioso em outro, mas sim de assumir e respeitar as riquezas de culturas não hegemônicas. O diálogo com as religiões afroamericanas deve ser conduzido a partir do conceito de 'macroecumenismo', que busca superar os limites impostos pelo 'ecumenismo' (limitado às Igrejas cristãs) e 'diálogo inter-religioso' (que nem sempre expressa a necessidade de um prática comum pela paz e pela justiça). O macroecumenismo implica respeito pelas diferenças religiosas e busca de ações comuns em favor de uma vida digna para todos e todas".

Marcos Rodrigues da Silva, teólogo brasileiro e professor convidado em diversas universidades no país, salienta que o centro de tudo é a cristologia desenvolvida a partir do "Cristo negro de Portobelo, no Panamá, do Cristo Negro de Limón, na Costa Rica, e pelo Senhor do Bonfim, na Bahia. O primeiro é triste, sofredor, torturado, o Cristo da Senzala (a casa dos escravos nas plantações). O segundo é um Cristo glorioso, o Cristo dos reis espanhóis. E o terceiro é o Cristo da dança, da bênção. Três aspectos que remetem ao Jesus da história, que já é salvífico na perspectiva do povo afroamericano".

Segundo Rodrigues da Silva, a teologia afroamericana está dando passos importantes na eclesiologia, "que surge a partir não só das comunidades eclesiais de base, mas também das comunidades quilombolas (onde vivem os descendentes dos escravos fugitivos das plantações), das confrarias e das congadas (festas populares religiosas)". E, acrescenta, "pode dar uma contribuição fundamental para enfrentar a 'questão ecológica', porque a essência dos mitos africanos – da água, da chuva, da floresta, da cura com as ervas – é o respeito pela natureza, que é mãe e vida".

A vertente feminista adquiriu recentemente uma grande. Mena López recorda que esse filão "nasce da necessidade de produzir teologia a partir da vida comunitária e religiosa de mulheres latino-americanas negros, sejam cristãs, sejam pertencentes aos cultos afroamericanos. A teologia negra feminista se preocupa acima de tudo com a tríplice opressão – de classe, de gênero e de raça – que caracteriza a sua existência nas nossas sociedades. Nós, mulheres negras, nos confrontamos não só com o racismo e o sexismo da sociedade dominante e das suas estruturas patriarcais, mas também, de um lado, com o racismo de um movimento feminista dominado por mulheres brancas e, de outro, com o antifeminismo e o heterossexismo normativo do movimento negro, que não raramente expressa um machismo violento e exalta o super-homem. Essa teologia quer manifestar a revelação de Deus na vida das mulheres negras, partindo tanto do seu sofrimento pela discriminação e pelo racismo, quanto das suas lutas e resistências. Mesmo sem esquecer que continuam sendo vítimas da fome, das doenças e das taxas mais altas de desemprego, ela lhes resgata do papel de 'pobres', domésticas e escravas, e lhes recupera como detentoras de poder e sabedoria".

Isso ocorre também "reivindicando os seus próprios corpos como espaços sagrados de revelação, em resposta a uma sociedade que desvalorizou o corpo da mulher negra e de uma teologia que, durante séculos, o considerou como 'corpo de pecado'. O corpo é o espaço em que confluem as nossas alegrias, as nossas angústias, os medos, a fé e a esperança, em que a mulher negra experimenta o mundo, o divino e a salvação".

A essa luz, no seu trabalho de biblista, Mena López se dedicou "à pesquisa de raízes afroasiáticas na Bíblia e ao estudo da influência dos povos de origem africana (Egito, Cuch ou Etiópia, Saba) na formação da tradição judaico-cristã. Depois, ao resgate de mulheres negras presentes na Bíblia dos papéis de escrava, bruxa e sedutora, evidenciando, por exemplo, como Hagar, a serva egípcia de Abraão, é a única mulher que fala diretamente com Deus (Gn 16); Séfora, a esposa de Moisés, é a única que circuncida um bebê (Ex 4), ato que a religião israelita reservava aos homens, e precisamente o papel sacerdotal da mulher cuchita parece estar na origem da hostilidade de Miriam e de Arão contra ela (Nm 12 e Ex 18). Assim, as afrocolombianas descobriram que o cristianismo não tinha chegado a elas apenas através da colonização, mas também havia uma herança bem mais antiga".

No entanto, observa Rodrigues da Silva, "a teologia afroamericana custa para abrir espaço, porque o que provinha do povo da diáspora africana foi rotulado como sincretismo religioso". E Lima Silva vai mais longe: "Se existe a teologia negra, a teologia tradicional não é mais 'a' teologia. Ela deve renunciar a se apresentar como um 'universal' e reconhecer as suas próprias parcialidades".

No entanto, as maiores dificuldades, retoma Rodrigues da Silva, foram registradas "no campo litúrgico, porque ainda não está claro como conectar os rituais africanos de tradições diversas e o rito católico ou protestante".

Em 1981, a Congregação vaticana para os Sacramentos e o Culto Divino vetou a Missa dos Quilombos, composta por Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, e por ele celebrada em Recife nesse mesmo ano, juntamente com Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, e Dom Hélder Câmara, ordinário local.

O que desperta desconfiança, acrescenta Mena López, é também o fato de que, "enquanto os ocidentais separam o divino-espiritual, entendido como superior, do humano-corporal, considerado inferior, os afroamericanos e afroamericanas se expressam nas cerimônias com todo o corpo, na dança e com uma simbologia diferente, superando esses dualismos".

O caminho da inculturação parece ser, portanto, ainda muito longo caminho, mas no fundo resta o sonho de Dom Pires, hoje com 92 anos, "patriarca do cristianismo afroamericano", carinhosamente apelidado de "Dom Zumbi" (em homenagem ao líder da revolta negra decapitado em 1695): "Nós, negros, alimentamos a esperança de nos seja reconhecido o direito à cidadania eclesial. Estamos cada vez mais convencidos de que é possível para o negro ser discípulo de Cristo e viver na Igreja sem deixar de ser negro, sem renunciar à sua cultura, sem ter que abandonar a religião dos orixás (os ancestrais divinizados), que, como o judaísmo, poderá se deixar comprometer pela mensagem de Jesus Cristo" e ter "centenas de milhares de pequenas comunidades cristãs organizadas com base no terreiro (o espaço em que se celebra o culto do candomblé), com uma mãe de santo à frente, incorporando os valores evangélicos nas tradições africanas e mantendo uma profunda solidariedade com os mais pobres".

A campanha pelo casamento gay no Brasil


Vocês viram esta nota que estava rolando no Facebook esta semana? :-)

Chico Buarque já gravou. Sandra de Sá, Zélia Duncan e a atriz Arlete Sales também. Caetano Veloso se comprometeu a dar seu depoimento. Todos esses figurões estrelarão a campanha em apoio à proposta de emenda constitucional que permite o casamento civil de homossexuais, elaborada pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Os vídeos serão veiculados a partir do próximo mês nas redes sociais. O projeto precisa de mais 70 assinaturas de parlamentares para começar a tramitar nas comissões técnicas da Câmara.

- Leonel Rocha
Reproduzido da coluna de Felipe Patury no site da Revista Época

Quantas pessoas precisam ser curadas por dentro

Imagem daqui

A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos 2, 1-12 que corresponde ao 7º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Jesus foi considerado pelos seus contemporâneos um curador especial. Ninguém o confunde com os magos ou os curandeiros da época. Ele tem seu próprio estilo de curar. Não recorre a forças estranhas nem pronuncia conjuros ou fórmulas secretas. Não utiliza amuletos ou feitiços. Mas quando ele se comunica com os enfermos contagia-lhes a saúde. Os relatos evangélicos desenham de diferentes formas seu poder que cura. Seu amor apaixonado pela vida, sua íntima acolhida a cada enfermo, sua força para regenerar o melhor de cada pessoa, sua capacidade de contagiar sua fé em Deus criavam as condições que faziam possível essa cura.

Jesus não oferece remédios para resolver um problema orgânico. Aproxima-se dos enfermos na busca de uma cura desde sua raiz. Não procura somente uma melhora física. A cura do organismo fica englobada numa cura mais integral e profunda. Jesus não cura somente enfermidades. Ele sara a vida enferma.

Os diferentes relatos têm sublinhado isso de diferentes formas. Livra os enfermos da solidão e da desconfiança contagiando-lhes sua absoluta fé em Deus: “Você já acredita?”. Ao mesmo tempo, os resgata da resignação e da passividade, despertando neles o desejo de iniciar uma vida nova: “Você quer curar-se?”

Não acaba ali. Jesus os libera daquilo que bloqueia sua vida e o desumaniza: a loucura, a culpabilidade ou o desespero. Oferece-lhes gratuitamente o perdão, a paz, a benção de Deus. Os enfermos encontram nele algo daquilo que os curandeiros populares não lhes oferecem: uma nova relação com Deus que lhes ajudará a viver com mais dignidade e confiança.

Marcos narra a cura de um paralítico no íntimo da casa onde Jesus mora em Cafarnaúm. É o exemplo mais significativo para destacar a profundidade de sua força que cura. Vencendo todo tipo de obstáculos, quatro vizinhos conseguem trazer até os pés de Jesus um amigo paralítico.

Jesus interrompe sua predicação e fixa seu olhar nele. Onde está a origem dessa paralisia? Quais são os medos, as feridas, os fracassos e culpabilidades obscuras que estão bloqueando sua vida? O enfermo não diz nada, ele não se move. Ele esta ali diante de Jesus, amarrado a sua maca. Que precisa um ser humano para pôr-se de pé e seguir caminhando? Jesus fala-lhe com a ternura da mãe: “Filho, teus pecados estão perdoados”. Deixa de atormentar-se. Confia em Deus. Acolhe seu perdão e sua paz. Anima-te a levantar-te de teus erros e de teu pecado. Quantas pessoas precisam ser curadas por dentro. Quem os ajudará a se pôr em contato com um Jesus que cura?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Rainha da Bateria

Foto daqui

Um dia ela quis.

A família foi contra. Nem ligava, ela iria mesmo assim. Sair nua no carnaval. Nua inteirinha. A arte da pintura corporal a adornar. Nada mais. Nem tapa-sexo. Não tinha sequer certeza de que seria permitido.

Candidatou-se. Os 118 quilos não eram impedimento legal, confirmou com a advogada. Sambava melhor que qualquer magra. Animava a bateria. Tinha uma voz incrível e um fôlego incomparável. Cantava e sambava, ao mesmo tempo, a distância do sambódromo inteirinha. Era uma verdadeira sereia do samba.

Amava mulheres. Era, além de tudo, lésbica. Preta, pobre, gorda, lésbica e, claro, mulher. Ela que sonhava em sair nua no carnaval.

O feito rodou as notícias, a mídia. Vieram repórteres de todo o Brasil, do mundo. Se ela conseguisse o posto de rainha seria a primeira gorda e a primeira lésbica a comandar no pé uma bateria do grupo especial. No começo estava até tímida com tantas perguntas. Não gostava de revelar o peso, nem a idade. Os repórteres insistiam. Ela lá, firme. Importava o peso? “Já não dá pra ver que sou gorda?”, retrucava.

Perguntavam sobre a família, afinal, duas mulheres de mais de 100 quilos que têm um filho e uma filha não é exatamente o padrão do comercial de margarina. Biscates, desafiavam o mundo inteiro com sua mera existência. Que não é mera coisíssima nenhuma, vale dizer.

Imoral. Pronto. Como são geralmente as biscates, ela era uma verdadeira imoral. O mau exemplo em pessoa. Ninguém escolhe nascer negro, claro, mas ela podia fazer um regime. Exercícios. Cirurgia pra reduzir o estômago. Podia não se casar ou tentar um tratamento para resolver os problemas psicológicos que levavam “ao homossexualismo”. Podia fingir casando-se com um homem. Podia não desejar sair pelada pela avenida.

Ofensa. Foi esse o tom das respostas pela internet. Ofensa pelo amor que ela nutria à sua companheira. Ofensa por seu corpo. Ofensa por seu desejo carnavalesco. Enfim não foi eleita rainha da bateria.

Indagada pelo repórter, o último que veria em sua vida de curto flash midiático, como lidaria com essa derrota, com a frustração de não realizar o sonho, respondeu:

“Derrota seria não tentar” e acrescentou, ainda, esmigalhando o tom de autoajuda que a imprensa tanto gostaria de levar ao ar: “Meus fãs ainda poderão me ver. Fui convidada pela escola de samba Unidos do Tupiniquim, em São Vicente, para comandar a bateria. Me aguarde!”

Certas biscates não desistem. Que bom.

PS. Inspiradoras mulheres…quando ser biscate é ter coragem: A Musa (Haonê) e Vânia Flor (musa do Salgueiro/2012)

- Marília Moscou
Reproduzido do excelente Biscate Social Club

Não vos preocupeis

Foto: Eric Cahan

No Sermão da Montanha, Jesus identificou as preocupações materiais como sendo nossa principal fonte de ansiedade. Como podemos nos sentir mais confortáveis e reduzir o sofrimento pessoal? Esta é a maior preocupação que obscurece o momento presente e nos desconecta das verdadeiras prioridades.

"Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais que o alimento e o corpo mais do que a roupa?" Mt 6:25.

Quando ele nos diz para não nos preocuparmos, Jesus não está negando a realidade dos problemas do dia-a-dia. Está nos dizendo para abandonarmos a ansiedade, e não a realidade. Aprender a não se preocupar é uma tarefa difícil....[No entanto], a despeito de sua síndrome de atenção deficiente, até a mente moderna também tem sua capacidade natural de se aquietar e de transcender suas fixações. Nas profundezas, ela descobre sua própria clareza onde está em paz, livre da ansiedade. A maioria de nós tem cerca de meia dúzia de ansiedades favoritas, tais como doces amargos que mastigamos sem parar. Ficaríamos assustados se nos privassem delas. Jesus nos desafia a superar o medo de abrir mão da ansiedade, o medo que temos da própria paz. A prática da meditação é uma forma de aplicar seu ensinamento à prece; através da experiência, ela prova que a mente humana pode realmente optar por não se preocupar.

Isto não significa que possamos facilmente esvaziar a mente e afastar todos os pensamentos, à nossa vontade. Na meditação, permanecemos distraídos e, contudo, livres da distração, porque - por menos que seja, a princípio - estamos livres para optar por onde colocar nossa atenção. Gradualmente, a disciplina da prática diária fortalece essa liberdade. Seria pueril imaginar que conseguiremos realizar isso plenamente, em curto prazo. Permanecemos distraídos por muito tempo. Logo nos acostumamos com as distrações, como companheiras de viagem no caminho da meditação. Mas, elas não precisam ser dominantes. Optar por repetir o mantra com fé, e voltar a ele, sempre que as distrações intervém, é o exercício da nossa liberdade de prestar atenção.

Não se trata de algo como uma opção por uma determinada marca da prateleira do supermercado. É a opção pelo compromisso. O caminho do mantra é um ato de fé, e não uma jogada de poder do ego. Em cada ato de fé existe uma declaração de amor. A fé prepara o terreno para que a semente do mantra germine no amor. Não criamos um milagre da vida e do crescimento sozinhos, mas, somos responsáveis por seu desabrochar. Chegar à paz da mente e do coração - ao silêncio, à tranqüilidade e à simplicidade - não exige a vontade de um campeão, mas a atenção incondicional, a fidelidade continuada de um discípulo.

- Laurence Freeman OSB
In "Jesus, o Mestre Interior" (São Paulo, Martins Fontes,2004), pp. 277-278
Reproduzido via site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Amor de carnaval tem que ser sem violência

Imagem daqui

É fevereiro e começamos a contar os dias para a chegada do Carnaval. Época de festar, frevar, sambar e namorar bastante, como dizia a música: Beijo na boca é coisa do passado, a moda agora é, é namorar pelado. Em alguns estados são quase duas semanas de bloquinhos, bailes, micaretas, mesmo com as críticas que possamos ter a este período que começa a inebriar o país é importante lembrar que para nós feministas Carnaval não é sinônimo de carta branca para passar a mão na cabeça dos casos de violência machista e mercantilização do corpo da mulher e não é raro nos depararmos com aumento de casos de violência contra a mulher durante as folias, por que será, né?

O Observatório da Discriminação Racial, da Violência Contra a Mulher e a Comunidade LGBT, promovido pela Secretaria Municipal da Reparação (Semur), registrou 254 casos até o final da tarde da última terça-feira, 08 de março, último dia oficial do Carnaval.

A maior parte deles, 149, foi de racismo. As denúncias de agressão a mulher vem em seguida, com 63 registros. Contra grupos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis) foram 42 casos. (Violência contra a mulher foi a segunda mais recorrente no carnaval de Salvador)

A questão é tão séria que chama atenção dos governos estaduais, no nordeste aparecem campanhas em diversas unidades federativas com o eixo do combate à violência contra a mulher, principalmente a física. Tanto que este ano o afoxé Filhos de Gandhy levará para o circuito do carnaval soteropolitano o tema da violência machista, numa alusão carnavalesca e importante da campanha do laço branco. A questão é que o Carnaval, apesar de parecer para muitas pessoas, não é um momento de abertura de um vórtex onde toda a construção social e cultural que envolvem as mulheres e os negros somem como mágica.

Normalmente acabamos caindo pela máxima de que no Carnaval é meio inócuo de se fazer coisas para disputar ideologicamente a sociedade, passo longe dessa ideia e acho iniciativas como o “Maria vem com as outras” e o “Adeus Amélia” fantásticas e que devem ser mais exploradas, pois é importante ter bailes e bloquinhos que se pretendam festejar, mas sem perpetuar as opressões diversas existentes em nossa sociedade. Quando se tratam de blocos compostos por mulheres acho melhor ainda, pois normalmente as mulheres de verdade são substituídas pelas siliconadas da capa da playboy nas passarelas do samba. No caso das mulheres negras não somos apenas substituídas nas grandes escolas de samba, se em uma sociedade patriarcal a máxima para mulher é ser santa ou puta, para as mulheres negras é ser da cor do pecado ou domésticas e raramente a mulher para ser assumida como parceira de vida ou companheira.

A questão da mercantilização do corpo das mulheres não é menor, mas obviamente assusta mais casos de violência sexual estimulados por esta mercantilização, a mulher é sempre de alguém, nunca dela mesma e paga caro por esta concepção arraigada no senso comum. Talvez no carnaval seja um dos momentos mais ilustrativos, até por que como todo mundo vai para avenida com o intuito de se divertir, pular carnaval e afins nunca imaginamos ser alvo de violência ao ir com as amigas para um bloco de carnaval ou para um baile.

A objetificação da mulher e a perpetuação da lógica de propriedade do homem se perpetuam no Carnaval, as vezes de forma mais grave do que em outros períodos, talvez que de maneira mais massiva só se presencie durante as calouradas, nas quais veteranos muitas vezes se aproveitam de calouras bêbadas para poder irar uma casquinha. No carnaval talvez seja pior, justamente por conta da lógica do ninguém é de ninguém e eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem.

Durante a festa a mulher bebe, se diverte, como todo mundo. Diz ao homem que não quer ficar com ele. Isso já deveria bastar para um homem com um mínimo de senso ético desencanar da dita mulher. Pois não. Ele fica lá, enchendo o saco. Ela continua dizendo que não quer ficar com ele. No final da noite, ela trêbada se deita. Ele vai lá e começa a abusar dela. Carícias não só não-solicitadas, como repelidas, não são carícias. São atos de violência. Se a mulher não diz não, isso não significa um “sim” automático, até porque ela não estava em condições de dizer nenhum dos dois. (MOSCHKOVICH, Marília. A cena do Big Brother é um problema do Brasil)

Grande parte das vezes as mulheres vítimas de violência durante as folias não são acolhidas dessa forma, mas sim como se tivessem provocado sua própria violência, perpetuando a lógica de culpabilização das mulheres pelas ações machistas perpetradas em nossa sociedade e, sobretudo, pelos homens. Rodinhas de homens coagindo garotas a beijarem ou até mesmo se aproveitar de mulheres que não tem a mínima condição de sequer ficarem sentadas, recolocando assim o debate sobre estupro de vulnerável na pauta da sociedade.

Tão grave quanto o ataque do estuprador são os comentários que consideram que a culpa do estupro é da vítima. Estar bêbada, usar determinadas roupas e até mesmo “olhar” de certo jeito são argumentos frequentemente usados por defensores de estupradores para culpar a vítima. Ora, se o estupro fosse causado por uma saia curta, quase todos os homens heterossexuais seriam estupradores e todas as mulheres teriam sido estupradas. O que causa estupro não é a roupa, o comportamento da vítima (corrobora com isso, inclusive, o fato de que a maior parte dos casos de violência sexual acontece dentro da família da vítima, em casa). É o estuprador. (MOSCHKOVICH, Marília. A cena do Big Brother é um problema do Brasil)

Não fechar os olhos para coisas como estas enquanto nos divertimos entre amigos, ficantes, namorados e afins é importantíssimo, pois o combate a violência machista e a coisificação das mulheres também deve aparecer durante as festas e folias, é necessário que metamos a colher quando vemos acontecer em nossa frente abuso. Pois hoje pode ser com aquela menina que tu não conheces, mas amanhã pode ser tu, tua irmã, filha, mãe e faz parte das nossas tarefas como feministas sim reafirmarmos a necessidade de defesa e autodefesa das mulheres inclusive durante o Carnaval e em todos os estados do Brasil. Assim como deve estar casada uma política real de atendimento as mulheres em situação de violência, não apenas doméstica, mas de todas as formas. Política que tenha investimento suficiente para acolher e dar suporte as mulheres que sofrem com violência sexual, psicológica e afins durante os festejos momescos e que garanta para nós um ótimo Carnaval.

A maioria de nós curte pular o Carnaval e nada melhor do que pular nos bloquinhos e bailes sem ter a preocupação e o medo de ser abusada, violentada ou estuprada por um desconhecido, ou até mesmo por alguém próximo. O combate à violência contra mulher é por mim, por você, por todas nós e a todos os momentos.

- Luka
Reproduzido do excepcional Blogueiras Feministas

A unidade e a pluralidade de caminhos

Foto: Royce Bair

Para muitas abordagens cristãs teológicas, o nome atribuído ao fluxo que dá a todos uma possibilidade de vida não encerrada no horizonte de uma existência puramente terrena assume o nome de Espírito. Poder-se-ia afirmar que o Espírito é o itinerário com o qual o Pai do "nosso Senhor Jesus Cristo" se faz presente até lá onde o Deus trinitário não é abertamente conhecido.

A reflexão é do filósofo italiano Piero Stefani, grande conhecedor do judaísmo e diretor-científico da Fundação do Museu Nacional do Judaísmo Italiano e do Holocausto (MEIS, na sigla em italiano), com sede em Ferrara. O texto foi publicado no seu blog de reflexões bíblicas, Il Pensiero della Settimana, 19-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Às vezes, nos perguntamos se a mística pode ser uma via de encontro entre as religiões. A resposta é certamente negativa se se trata de "religiões". O discurso muda se, conformando-se a uma terminologia consolidada, falamos de diálogo entre experiências religiosas. No caso da mística, o núcleo do problema parece, porém, se articular de uma forma ainda diferente. Nessa área, embora sendo verdade que nos encontremos diante de uma experiência impossível de separar de alguma filiação religiosa, situamo-nos, de fato, em um céu colocado além das barreiras conectadas com uma determinada identidade. É isso mesmo?

A experiência cognoscitiva mística não tem nada a ver com o empirismo, não é um saber controlável e verificável. Ela, porém, não tem nada a ver com a dimensão prática de um pedido dirigido a Deus para obter qualquer benefício, nem se nos relacionamos com Ele na perspectiva de obter um prêmio ou de evitar um castigo. O Mestre Eckhart, para ridicularizar esta última hipótese, usava a comparação de uma pessoa que embarcava em uma viagem de milhares de léguas para ir a Roma a fim de ver o papa e, uma vez admitido à sua presença, pedia-lhe um feijão. Quando a presença de Deus – ou a sua ausência noturna – preenchem todo o horizonte, não é possível pedir nada mais do que Ele.

Quando se insiste no termo conhecimento, escancara-se o tema crucial do sujeito que deve estar diante de Deus sem se perder completamente n’Ele. Justamente por essa razão, há aqueles que defenderam que não pode haver nenhuma mística autêntica sem uma mediação capaz de permitir uma relação mais intensa sem que ela envolva a fusão com Deus, que resultaria na dissolução do sujeito na infinidade do divino.

O grande místico muçulmano al-Hallaj (século X) escreveu expressões tão audazes que teve que pagar com o preço da vida. Entre elas, estão aquelas que falam a linguagem da identificação: "Eu sou Aquele que eu amo, e Aquele que eu amo sou eu; somos dois espíritos, que habitam um só corpo. Se tu me vês, vês a Ele: se vês a Ele, me vês (...) O teu espírito se misturou ao meu como o vinho com a água pura". Aqui, a fusão parece ser completa. É realmente assim? Al-Hallaj também nos transmitiu uma abissal reflexão sobre a manutenção e a transcendência contemporâneas da própria filiação religiosa.

Refleti sobre religiões,
tentando compreendê-las;
descobri que são ramos diferentes
de um só tronco.
Não peças a ninguém
que abrace uma determinada religião,
assim o afastarias
do seu Princípio.
Ele, o Princípio
está na busca dele
n’Ele ficam claros
todos os símbolos e os sentidos:
ele então compreenderá. [1]

O discurso do grande místico não é "relativista". Só quem é prisioneiro de rígidos preconceitos dogmáticos poderia, de fato, tomá-lo como tal. Certamente, é verdade que podemos chegar ao único tronco partindo de mais ramos. No entanto, não é menos certo que isso acontece por causa do fato de que é o próprio Princípio que vai à tua busca, alcançando-te lá onde tu estás. Tal linguagem pressupõe, em termos doutrinais, como nos acostumamos a denominar uma concepção pessoal de Deus.

O léxico de al-Hallaj é tendencioso. Em muitas tradições religiosas, não se compreenderia o que significa afirmar que o Princípio está à tua busca. O abismo divino sem forma nem rosto não vai à procura das suas próprias criaturas. Para as fés que têm a certeza no Deus criador, o problema da pluralidade de vias não deve ser articulado perguntando-se se há muitos itinerários através dos quais os seres humanos possam chegar a Deus. O discurso, de fato, deve ser proposto partindo do outro extremo. Portanto, é preciso tentar compreender de que modos Deus vai em busca das suas próprias criaturas, fazendo com que a seiva do único tronco alimente os mais diversos ramos.

Para muitas abordagens cristãs teológicas, o nome atribuído ao fluxo que dá a todos uma possibilidade de vida não encerrada no horizonte de uma existência puramente terrena assume o nome de Espírito. Poder-se-ia afirmar que o Espírito é o itinerário com o qual o Pai do "nosso Senhor Jesus Cristo" se faz presente até lá onde o Deus trinitário não é abertamente conhecido. Transcritos em termos cristãos, os versos de al-Hallaj se tornariam uma celebração da ação do Espírito. A maneira suprema com a qual o Princípio vai em busca das suas próprias criaturas assume agora este rosto. Pode-se falar de modo autêntico só apegando-se à linguagem específica do próprio ramo. Porém, a partir dele, é dado, de modo assimétrico e, por isso, não diretamente dialógico, ampliar o olhar a outros ramos alimentados pelo mesmo tronco. "Então compreenderás" que muitas são as vias por meio das quais Deus alcança as suas próprias criaturas, e múltiplos são, portanto, os itinerários com os quais os homens fazem experiência de Deus.

Notas:
[1] Citado em G. Scattolin. Esperienze mistiche nell’islam. I primi tre secoli, EMI, Bologna 1994, 128-129.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ti Sposerò



Ontem, 14/2, foi dia de S. Valentim - dia de celebrar o amor e a amizade. Nada nos pareceu melhor, para marcar a data, do que este lindo vídeo.

Fonte: Instinct Magazine

(Dica do nosso amigo Hugo Nogueira)

Homossexualidade e movimento LGBT: estigma, diversidade, cidadania

Foto daqui

Ensaio retirado da coletânea Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, lançada em julho de 2011 pela Companhia das Letras.

Acostumamo-nos a ver, em várias cidades brasileiras, multidões de pessoas reunidas em manifestações organizadas para celebrar o “Orgulho LGBT”, sigla que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros. No Brasil, assim como em vários outros países, os modernos movimentos LGBT representam um desafio às formas de condenação e perseguição social contra desejos e comportamentos sexuais anticonvencionais associados à vergonha, imoralidade, pecado, degeneração, doença. Falar do movimento LGBT implica, portanto, chamar a atenção para a sexualidade como questão social e política, seja como fonte de estigmas, intolerância e opressão, seja como meio para expressar identidades e estilos de vida.

A sexualidade é uma referência privilegiada em muitas interpretações clássicas do Brasil. Sensualidade e luxúria, manifestadas como uma espécie de propensão coletiva à precocidade sexual e ao desregramento erótico, foram apontadas como traços importantes (ou mesmo definidores) da brasilidade, por autores tão diversos em contextos distintos como Nina Rodrigues (1862-1906), Paulo Prado (1869-1943) e Gilberto Freyre (1900-1987). Deve-se observar que a visão do Brasil como terra do excesso sexual provinha já dos primeiros tempos da colonização, como sugerem os relatos de viajantes sobre práticas do “pecado nefando” entre os ameríndios e documentos sobre confissões e denúncias de sodomia durante a visitação do Santo Ofício, na Bahia e em Pernambuco, no final do século XVI e começo do século XVII. Nas interpretações da formação social brasileira que se desenvolveram desde o final do século XIX até meados do século XX, causas variadas foram propostas para explicar aquele pendor: a influência do calor tropical; a natureza supostamente mais excitável, ardente e descontrolada de africanos, ameríndios e portugueses; as condições sociais de desigualdade, violência e degradação moral forjadas na escravidão; ou, ainda, uma combinação de tudo isso. Diferenças de ênfase à parte, essas interpretações corroboraram a visão de um Brasil marcado por uma sexualidade excessiva, com sua busca de prazeres “perversos” de toda sorte, entre os quais se destacavam as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Apesar da importância que vários autores clássicos do pensamento social brasileiro atribuíram à sexualidade, somente a partir dos anos 1970 o tema deixou de ser incidental e se tornou foco de pesquisa sistemática nas nossas ciências sociais. Isso se ligou, em boa parte, ao contexto de intensificação dos movimentos em defesa da liberdade sexual nos Estados Unidos e na Europa durante a chamada “contracultura” dos anos 1960, culminando com a famosa rebelião dos frequentadores homossexuais do clube Stonewall contra a polícia de Nova York, no começo do verão de 1969. Na cena norte-americana, palavras de ordem como “assumir-se” e “sair do armário” simbolizavam o anseio de tornar visível e fonte de orgulho o que até então era motivo de vergonha e vivido na clandestinidade.

No Brasil dos anos 1970, sob a ditadura militar, formas locais de desbunde e contestação cultural abriram brechas na repressão política. A androginia adquiria então um potencial subversivo. Em seu primeiro espetáculo no Brasil depois da volta do exílio na Inglaterra, em 1972, o cantor e compositor Caetano Veloso surpreendia o público ao usar batom e encenar maneirismos à moda de Carmem Miranda. Ao mesmo tempo, surgia o grupo teatral Dzi Croquettes, cujos componentes misturavam barbas, cílios postiços, peitos peludos, sutiãs, meiões de futebol e saltos altos em espetáculos de humor, canto e dança que percorriam o país com grande impacto. Os Dzi Croquettes buscavam vivenciar no cotidiano o que representavam no palco, mobilizando fãs ou “tietes” com quem formavam uma comunidade com múltiplas relações eróticas e afetivas. Essas intervenções artísticas e existenciais foram, em boa medida, precursoras e coprodutoras da “saída do armário” no Brasil. No final da década de 1970, em meio a um movimento crescente de oposição ao regime militar, emergiria um movimento homossexual no país, cujos marcos foram a criação do jornal Lampião e a fundação do grupo Somos de Afirmação Homossexual, ambas em 1978.

Também nesse momento os trabalhos do filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984) sobre a produção histórica e social da loucura, do crime e da sexualidade foram introduzidos nos cursos de ciências humanas no Brasil. Em sua História da sexualidade: a vontade de saber (publicado na França em 1976 e traduzido no Brasil já no ano seguinte), Foucault argumentou que os especialistas médicos, desde a segunda metade do século XIX, em seus esforços de conhecer e prevenir tudo aquilo que poderia ameaçar a saúde do indivíduo e da nação, contribuíram decisivamente para estabelecer uma série de classificações de tipos humanos que deram corpo às sexualidades “marginais” ou “perversas”. Dessa forma, os médicos ajudaram a promover uma nova forma de controle social, tendo a sexualidade como alvo, ao mesmo tempo que moldaram novos personagens sociais. Um exemplo seria a figura do “homossexual”, que substituiu a figura do “sodomita” na linguagem da medicina e do direito. Na visão influenciada pela religião, o sodomita era um praticante eventual ou reincidente de relações sexuais ilícitas. Na visão dos especialistas médicos, o “homossexual” passava a ser um tipo de natureza física e psíquica singular, situada entre o masculino e o feminino, que se manifestaria em seu corpo, seu temperamento e sua conduta.

No âmbito do debate brasileiro dos anos 1970, cabe destacar o trabalho do antropólogo Peter Fry, por sua relevância para a configuração de uma área de estudos voltada às conexões entre homossexualidade, cultura e política, que também desenvolvia uma abordagem da sexualidade como produto histórico e social. Fry argumentou que no Brasil, na passagem do século XIX para o século XX, também se elaborou uma compreensão do “homossexual” como um ser dotado de uma natureza singular. Nossos especialistas médicos não apenas codificaram e descreveram “anormalidades” sexuais, mas procuraram associá-las a explicações para degeneração, delinquência e loucura fundamentadas em diferentes versões do determinismo biológico e das teorias raciais em voga.

A visão médica da homossexualidade viria se contrapor a um modelo mais antigo e persistente de classificação de tipos sexuais, que Fry denominou de “hierárquico-popular”. Nele, as categorias referidas às práticas homossexuais estão englobadas por uma hierarquia de gênero, distinguindo as figuras do “homem” e da “bicha” (ou “viado”, “boiola”, “xibungo” etc.), em termos de seu papel no ato sexual. Na lógica do modelo hierárquico-popular, os atos de penetrar e de ser penetrado adquirem os sentidos respectivos de dominação e submissão por meio das categorias de “ativo” e “passivo” (e várias outras expressões populares correspondentes, como “comer” e “dar”, “ficar por cima” e “ficar por baixo”, “meter” e “abrir as pernas” etc.). O parceiro ativo dominador conservaria sua masculinidade, enquanto o feminino é quem se entregaria de forma subalterna e servil. Seria possível conceber também uma versão desse modelo para as relações homossexuais femininas, com a figura do “sapatão” (ou “paraíba”, “fancha”, “mulher-macho” etc.), que desempenharia o papel “ativo” ao se relacionar com “mulheres”.

Fry sugeriu que o modelo hierárquico-popular teria raízes históricas profundas, mas não seria uma peculiaridade brasileira. Distinções similares de “ativo” e “passivo” já constavam em cancioneiros medievais que mencionavam praticantes do coito anal. Recuando ainda mais no tempo, podemos encontrá-las na Roma antiga, onde o cidadão adulto que se deixasse penetrar em relações homossexuais era vilipendiado em sua honra viril, enquanto a passividade era adequada aos jovens escravos. Cabe lembrar que Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1933), já havia equiparado o papel do moleque, como paciente do senhor moço entre as grandes famílias escravocratas do Brasil, ao do escravo púbere escolhido para companheiro do rapaz aristocrata no Império Romano, observando que, “através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado de “leva pancadas”, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico”.

Enquanto o modelo hierárquico-popular diz quem é masculino e quem é feminina, o modelo médico-psicológico insiste na distinção entre homossexualidade e heterossexualidade. Em um primeiro momento, os médicos incorporaram em suas classificações os princípios da hierarquia de gênero, dividindo os homossexuais em “ativos” e “passivos”, parcialmente correspondendo a suas concepções de homossexualidade “adquirida” e “congênita”. O modelo médico-psicológico se encaminharia depois para uma representação mais homogênea dos diferentes tipos, baseada em uma noção de orientação do desejo sexual. Assim, os homens que mantivessem relações sexuais com outros homens seriam considerados “homossexuais”, não importando mais se é “ativo” ou “passivo”.

Essa passagem é importante, pois permite a Fry argumentar que um modelo “igualitário-moderno” teria surgido como uma derivação do modelo médico-psicológico, mudando-se o valor social atribuído aos termos. Se “homossexual” apresenta conotações de patologia, perturbação e crime, termos como “gay” vêm substituí-lo para expressar literalmente uma pessoa “alegre” e “feliz”. O modelo igualitário-moderno alargaria a visão de que a orientação do desejo sexual é o que importa para identificar os parceiros de uma relação homossexual, ao mesmo tempo que buscaria separar a homossexualidade da inversão de gênero. Se “bicha” ou “travesti” trazem as conotações de afeminação e espalhafato, termos como “entendido” ou “gay” vêm substituí-los para referir-se a rapazes que, mesmo “alegres”, são discretos e viris.

É nesse terreno de convivência e disputa entre modelos concorrentes — com ênfase na igualdade de orientação sexual em contraposição à hierarquia de gênero — que Fry e outros pesquisadores situaram a emergência do movimento político em defesa dos direitos homossexuais no Brasil, no final dos anos 1970. Desde então, o movimento homossexual colaboraria de forma decisiva para a expansão do modelo igualitário-moderno, que se daria principalmente entre as classes médias urbanas, como também dependeria dessa expansão. As diferenças de valor entre “igualdade” e “hierarquia” nas relações homossexuais ajudariam a produzir uma hierarquia entre os próprios modelos, tornando-se assim um meio privilegiado de expressar e constituir distinções de classe. O emergente movimento político homossexual tenderia a incorporar a crítica aos papéis de gênero convencionais, formulada pelo feminismo. Desse modo, entraria em tensão crescente com os valores e comportamentos que prevaleceriam no universo “tradicional” e “atrasado” das “bichas”, “sapatões” e travestis.

Algumas qualificações podem ser feitas acerca dessa influente leitura da estruturação da homossexualidade e do movimento homossexual no Brasil. Em primeiro lugar, ela sugere uma tendência geral de transição do modelo hierárquico para o igualitário, através da mediação do modelo médico, cuja realização histórica não pode nem deve ser entendida de forma linear. O historiador James Green mostrou evidências de identidades homossexuais masculinas que extrapolavam o binário ativo/passivo na cena urbana brasileira desde a virada do século XIX ao século XX — contemporâneas, portanto, dos primeiros momentos de produção da visão médico-psicológica do “homossexual”; e bem anteriores ao surgimento e popularização das categorias de “entendidos” e “gays”.

Em segundo lugar, a insistência no termo “modelo” é crucial para definir com mais clareza o plano em que essa leitura se situa: isto é, das ideias, valores e suas conexões lógicas, por meio das quais comportamentos e identidades ganham inteligibilidade social, demarcam regras e contravenções. Em contrapartida estão os processos através dos quais indivíduos tornam-se sujeitos e agentes sociais, incorporando-se e reconhecendo-se em determinadas categorias; o que abre espaço para variações, deslocamentos e transformações nos próprios modelos. Assim, podemos encontrar rapazes que fazem sexo com outros homens por dinheiro ou alguma outra forma de recompensa, e que podem até desempenhar o papel “passivo” no ato sexual, mas que não deixam de se considerar e de ser considerados como “homens”. Temos ainda as travestis, que adotam nomes e modos de tratamento no feminino, submetem-se a modificações corporais irreversíveis para adquirir vistosas formas femininas, mas não se acham necessariamente “mulheres” e, muitas vezes, desempenham o papel “ativo” no ato sexual. Além disso, podemos encontrar homens e mulheres que se dispõem à experimentação erótica com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, sem recorrer a identidades fixas de orientação sexual.

Essa dinâmica não deixou de repercutir na própria trajetória do movimento LGBT no Brasil. O antropólogo Edward MacRae, em seu trabalho sobre o Somos, de São Paulo, um dos primeiros grupos homossexuais formados no final dos anos 1970, mostra que já naquele momento os militantes se dividiam quanto a se constituir ou não em torno de uma identidade homossexual. Havia então uma grande inquietação quanto aos riscos de se cristalizar (ou “reificar”, para usar uma expressão mais comum à época) a oposição entre hetero e homossexualidade, e daí promover novos rótulos e estigmas. MacRae registrou sua própria angústia de trabalhar com pressupostos analíticos (baseados na visão da homossexualidade como um papel social e historicamente construído) que se contrapunham a um princípio importante para a solidariedade do grupo, de que a homossexualidade seria uma característica interna e inescapável de cada pessoa.

Nos anos 1980 o cenário mudou. A eclosão da epidemia HIV-aids trouxe de volta velhas associações entre homossexualidade e doença, enquanto a democratização acenava com a abertura de canais de comunicação com o Estado, especialmente com as autoridades de saúde envolvidas nas respostas sociais à aids e com os novos partidos políticos. A partir de então, é possível observar também o desenvolvimento de um estilo de atuação política diferente, mais preocupado com aspectos formais de organização institucional e que buscava se organizar em torno de campanhas específicas, como a mobilização para incluir a proibição de discriminação por “orientação sexual” durante a Assembleia Constituinte. Embora não tenha atingido seu objetivo, essa campanha envolveu um significativo esforço pela produção de um consenso em torno da ideia de “orientação sexual”. A pesquisa da antropóloga Cristina Câmara sobre o grupo Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro, no final dos anos 1980, mostra como essa campanha mobilizou vários cientistas sociais brasileiros, que proferiram pareceres ressaltando vantagens da expressão “orientação sexual” como instrumento capaz de promover o direito individual à liberdade sexual e propiciar ao movimento maiores possibilidades de diálogo com a sociedade civil e com as diferenças.

Ao longo dos anos 1990, as parcerias com o Estado em torno do combate à aids consolidaram-se e deram impulso à multiplicação de grupos ativistas, inclusive de lésbicas e de travestis, promovendo a diversificação e a incorporação dos vários sujeitos do movimento homossexual na atual sigla LGBT. Parte considerável das entidades de base do movimento aderiu ao formato de organizações não governamentais (ONGs), estabelecendo estruturas mais formais de organização interna, conduzindo uma rotina de elaboração de projetos e relatórios, preocupando-se com a “capacitação de quadros” para estabelecer relações duráveis com técnicos de agências governamentais e organismos internacionais. A pesquisa da antropóloga Regina Facchini mostra como esse processo se deu em um pequeno grupo de ativistas de São Paulo, na segunda metade dos anos 1990.

Nesse período mais recente, o movimento LGBT lança campanhas pelo reconhecimento legal dos relacionamentos homossexuais e pelo combate à discriminação e à violência contra homossexuais, que contribui para popularizar o termo “homofobia”. É também o momento de emergência e consagração das Paradas do Orgulho LGBT, paralelamente ao crescimento de um mercado segmentado e à proliferação de diversos estilos de vida associados à homossexualidade, que acaba por refratar em múltiplas categorias e identidades.

Grande parte da visibilidade social e política alcançada pelo movimento LGBT deveu-se ao seu processo recente de institucionalização e estabelecimento de parcerias com o Estado. Nesse campo de relações, há vantagens, mas também riscos. Abrem-se novos canais para pressões vindas “de baixo” que, entretanto, podem também favorecer novas redes de clientela que amorteçam o potencial crítico do movimento. Sob esse aspecto, a trajetória do movimento LGBT recoloca de forma eloquente um fenômeno bastante conhecido e atual: a interpenetração e porosidade entre Estado e sociedade civil no Brasil. Poderia ser diferente? Afinal, o movimento LGBT leva consigo as tramas e tensões da sociedade em que está enredado.

- Júlio Assis Simões é professor do Departamento de Antropologia da USP e pesquisador colaborador do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. Tem pesquisas sobre movimentos sociais, participação política, envelhecimento, gênero e sexualidade.

Reproduzido do Blog da Companhia

Corresponsabilidade: mais espaço para os leigos na Igreja


A "corresponsabilidade" voltou. Durante o Concílio Vaticano II, essa era uma das palavras mais recorrentes. Depois, durante anos, desapareceu. Um congresso organizado na França traz novamente à tona a "corresponsabilidade" e indica a comunidade Saint-Luc, em Marselha, como modelo de colaboração entre clero e leigos na Igreja.

A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no sítio Vatican Insider, 20-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


Quem repropôs a discussão foi Nicole Lemaitre no sítio francês "Baptises", segundo a qual a corresponsabilidade se realiza a partir da noção de comunhão, no sentido daquilo que é a vida trinitária: "Todos os fiéis estão presentes nela, por causa da sua participação na graça dos sacramentos". Os pontos de partida são o lema da Assembleia Geral do Episcopado Francês de 1973 ("Todos responsáveis na Igreja") e a exortação apostólica Christifideles laici ("Em virtude dessa dignidade batismal comum, o fiel leigo é corresponsável, com todos os ministros ordenados e com os religiosos e as religiosas, pela missão da Igreja").

Os precedentes foram particularmente significativos. Na conferência inaugural do IV Congresso Eclesial (Verona, 16 a 20 de outubro de 2006), o cardeal Dionigi Tettamanzi indicou a corresponsabilidade como "fundamento de uma relação entre os vários componentes do povo de Deus, rico e fecundo do ponto de vista eclesiológico". De diversos setores eclesiais, explica Giorgio Campanini, professor de história das doutrinas políticas da Universidade de Parma, foram propostas iniciativas a fim de valorizar a contribuição dos leigos à vida da Igreja. "A contribuição do apostolado dos leigos na missão evangelizadora da Igreja foi definida no passado por duas palavras, atrás das quais há uma longa história de disputas eclesiológicas e de opções pastorais: 'participação' e 'colaboração'", afirma Campanini.

Mas a bússola no "revival" da corresponsabilidade é constituída pelo discurso proferido no fim de maio de 2009 por Bento XVI na Basílica de São João de Latrão, na abertura do Congresso Eclesial da diocese de Roma, que teve como tema "Pertencimento eclesial e corresponsabilidade pastoral" (leia aqui). O Papa indicou os leigos como corresponsáveis na missão da Igreja. Eles não podem mais ser considerados como "colaboradores" do clero, mas devem ser vistos como "corresponsáveis" pela missão da Igreja. Uma exortação a se interrogar sobre a verdade de fé sentida e praticada pelos fiéis, especialmente pelos leigos, e sobre o quanto o seu pertencimento eclesial está aberto à corresponsabilidade pastoral.

Joseph Ratzinger retomou os frutos do Concílio Vaticano II, mas, ao mesmo tempo, sublinhou que a sua recepção não ocorreu sempre sem dificuldades e de acordo com uma interpretação correta, enquanto houve a tendência de identificar a Igreja com a hierarquia. Em particular, ele alertou contra uma visão puramente sociológica da noção de Povo de Deus, advertindo que o Concílio não quis uma ruptura, uma outra Igreja, "mas sim uma verdadeira e profunda renovação, na continuidade do único sujeito Igreja, que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo porém sempre idêntico, único sujeito do Povo de Deus em peregrinação".

Hoje, muitos batizados se perderam do caminho da Igreja e não se sentem parte da comunidade eclesial, ou se dirigem às paróquias para receber serviços religiosos só em determinadas circunstâncias. "Isso exige uma mudança de mentalidade, que se refere especialmente aos leigos – destacou o papa –, deixando de considerá-los como 'colaboradores' do clero para reconhecê-los realmente como 'corresponsáveis' pelo ser e pelo agir da Igreja, favorecendo a consolidação de um laicado maduro e comprometido".

Daí a necessidade de uma formação mais atenta à visão da Igreja, uma melhor presença pastoral e a promoção da corresponsabilidade dos membros do Povo de Deus, sem diminuir o papel desempenhado pelos párocos.

Também é importante cuidar da liturgia da Eucaristia, da qual deriva a comunhão. De fato, disse o papa, devemos sempre aprender a proteger a unidade da Igreja de rivalidades, de contendas e de invejas que possam nascer nas e entre as comunidades eclesiais. "O crescimento espiritual e apostólico da comunidade leva a promover o seu alargamento através de uma convicta ação missionária", disse o papa. "Empenhem-se, portanto, para reavivar em cada paróquia, como nos tempos da Missão Cidadã, os pequenos grupos ou centros de escuta de fiéis que anunciam Cristo e a sua Palavra, lugares onde seja possível experimentar a fé, exercer a caridade, organizar a esperança".

Essa articulação das grandes paróquias urbanas através da multiplicação de pequenas comunidades permite um respiro missionário mais amplo, que leva em conta a densidade da população, da sua fisionomia social e cultural, muitas vezes altamente diversificada. O papa, assim, destacou a importância de utilizar esse método pastoral nos locais de trabalho. "Quando perguntados para explicar o sucesso do cristianismo dos primeiros séculos, a ascensão de uma suposta seita judaica na religião do Império, os historiadores respondem que foi particularmente a experiência da caridade dos cristãos que convenceu o mundo. Por isso, viver a caridade é a principal forma da missionariedade". Para os participantes do congresso organizado na França sobre a "corresponsabilidade", a nova eclesiologia começa com o batismo. E "a primavera de um novo cristianismo, mais aberto, mais dinâmico, mais utópico, parece estar mais perto".

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

“Felicidade é o nosso direito” – Campanha Rio Carnaval Sem Preconceito

“Felicidade é nosso direito” é o que diz o Samba do Arlindo Cruz para a Campanha do “Rio Carnaval Sem Preconceito” .

O guarda-chuva da Campanha é o preconceito. Simples assim. A roda de Samba conta com várias personalidades da Cidade. Veja o clipe e acompanhe o Samba, muito bonito e de bom gosto.




RIO CARNAVAL SEM PRECONCEITO
Autoria: Arlindo Cruz e Luana Carvalho

É verão, a cidade está em festa
É o reinado da alegria
Traga as suas fantasias
Mande embora o desamor
De pé no chão não existe diferença
Nem de cor e nem de crença
Vale tudo em nome do amor
Samba é tradição no meu rio de janeiro
Um redentor pra abraçar o mundo inteiro
Vem ser mais um
Um ser de paz na multidão
Deixar falar seu coração
Ser carioca no prazer de sonhar
Folião, ter liberdade é não ter medo
Sacode a poeira e bate no peito
O rio é carnaval sem preconceito
Tolerância zero com a discriminação
Você quer, eu quero
Mais respeito e inclusão
Felicidade é o nosso direito
Vamos lá, meu rio carnaval sem preconceito

:)

"Pode me chamar de gay"


Pode me chamar de gay, não está me ofendendo. Pode me chamar de gay, é um elogio. Pode me chamar de gay, apesar de ser heterossexual, não me importo de ser confundido. Ser gay me favorece, me amplia, me liberta dos condicionamentos. Não é um julgamento, é uma referência. Pode me chamar de gay, não me sinto desaforado, não me sinto incomodado, não me sinto diminuído, não me sinto constrangido.

Pode me chamar de gay, está dizendo que sou inteligente. Está dizendo que converso com ênfase. Está dizendo que sou sensível. Pode me chamar de gay. Está dizendo que me preocupo com os detalhes. Está dizendo que dou água para as samambaias. Está dizendo que me preocupo com a vaidade. Está dizendo que me preocupo com a verdade. Pode me chamar de gay. Está dizendo que guardo segredo. Está dizendo que me importo com as palavras que não foram ditas. Está dizendo que tenho senso de humor. Está dizendo que sou carente pelo futuro. Está dizendo que sei escolher as roupas.

Pode me chamar de gay. Está dizendo que cuido do corpo, afino as cordas dos traços. Está dizendo que falo sobre sexo sem vergonha. Está dizendo que danço levantando os braços. Pode me chamar de gay. Está dizendo que choro sem o consolo dos lenços. Está dizendo que meus pesadelos passaram na infância. Está dizendo que dobro toalha de mesa como se fosse um pijama de seda.

Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou aberto e me livrei dos preconceitos. Está dizendo que posso andar de mãos dadas com os anéis. Está dizendo que assisto a um filme para me organizar no escuro. Pode me chamar de gay. Está dizendo que reinventei minha sexualidade, reinventei meus princípios, reinventei meu rosto de noite. Pode me chamar de gay. Está dizendo que não morri no ventre, na cor da íris, no castanho dos cílios. Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou o melhor amigo da mulher, que aceno ao máximo no aeroporto, que chamo o táxi com grito.

Pode me chamar de gay. Está dizendo que me importo com o sofrimento do outro, com a rejeição, com o medo do isolamento. Está dizendo que não tolero a omissão, a inveja, o rancor. Pode me chamar de gay. Está dizendo que vou esperar sua primeira garfada antes de comer. Está dizendo que não palito os dentes. Está dizendo que desabafo os sentimentos diante de um copo de vinho. Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou generoso com as perdas, que não economizo elogios, que coleciono sapatos.

Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou educado, que sou espontâneo, que estou vivo para não me reprimir na hora de escrever. Pode me chamar de gay. Que seja bem alto.

A fragilidade do vidro nasce da força e do ímpeto do fogo.

- Fabrício Carpinejar
Crônica do livro Canalha!, reproduzida aqui via Gay1 - Políticativa

Uma fé enfraquecida nos palácios das intrigas



Se a Igreja está em crise, Bento XVI sempre repetiu, é porque a fé dos homens da Igreja está em crise. Sem excluir a hierarquia.

A opinião é do jornalista e escritor italiano Vittorio Messori, publicada no jornal Corriere della Sera, 13-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Nestes tempos, acompanhar certas crônicas vaticanas nada edificantes pode ser saboroso ou entristecedor, dependendo do humor anticlerical ou clerical. Na realidade, o católico que não só conhece a história da sua Igreja, mas que também não se esqueceu das advertências do Evangelho, não deveria se perturbar mais do que isso. Isto é, essa Igreja é um campo onde o grão bom e a cizânia venenosa crescerão sempre juntos; é uma rede lançada ao mar em que peixes bons e ruins sempre vão conviver.

Palavra do próprio Jesus, que exorta a não se escandalizar com isso e a não tentar nem mesmo dividir o são do corrompido, reservando a si essa tarefa no dia do Grande Juízo. Exemplo primeiro dessa situação é, obviamente, o centro e o motor da "máquina" eclesial: a Cúria vaticana, isto é, a administração central daquela que a Tradição chama de "a Igreja militante".

Bem, quanto a essa, não foi um herege ou um comedor de padres, mas sim uma santa que Paulo VI quis proclamar "Doutora da Igreja", a padroeira da Itália, Catarina de Siena, que constatou: "A corte do Santo Padre Nosso parece-me, às vezes, um ninho de anjos, outras, uma cova de víboras". Bem e mal, portanto, unidos na mesma realidade, assim como todas as coisas humanas: e a Igreja também é uma instituição humana, é um invólucro histórico (com os limites que derivam disso) para conter um Mistério meta-histórico.

Mas acenaremos a uma avaliação moral mais abaixo. Há, antes, um aspecto "organizacional" a considerar. Deve ser lembrado, de fato, que, do Vaticano atual, não vêm apenas ecos de "escândalos" de negócios, sexo, poder. É a própria máquina da administração que, há anos, já parece falhar com inquietante frequência; são os equívocos, as distrações, as gafes diplomáticas, até mesmo os erros – às vezes em documentos solenes – naquele latim que ainda é a sua língua oficial, mas que é conhecida cada vez menos e sempre pior.

Concordo, a Cúria, assim como a própria Igreja, semper reformanda est. Mas aqui não parece possível uma "reorganização empresarial", porque parecem faltar as forças novas e de qualidade. Os infinitos escritórios vaticanos são regidos, desde os tempos da Contrarreforma, por pessoal eclesiástico que vem de todas as dioceses e de todas as ordens religiosas do mundo. Mas é um mundo, este nosso, onde a maioria das dioceses e das congregações fecharam seminários por falta de frequentadores, e o seu problema certamente não é o de enviar a Roma, a serviço da Igreja universal, os jovens mais promissores. Esses jovens não existem e, se existir algum, é defendido zelosamente por bispos e superiores gerais.

No entanto, depois daquele Vaticano II que queria emagrecer a estrutura eclesial, o Anuário Pontifício quase triplicou as suas páginas, a expansão burocrática não teve descanso. Aumentam funções, postos, responsabilidades, enquanto diminuem, ano após ano, os recursos humanos. E os poucos reforços não parecem capazes de portar aquela esmagadora responsabilidade que é gerir na terra nada menos do que a vontade do Céu.

Assim, o realismo católico parece impor um drástico redimensionamento da estrutura de uma Catholica que, de massa como era, está se tornando ou já se tornou comunidade minoritária. Querer manter o imponente aparato barroco, quando as forças vêm a faltar (e as poucas que ainda restam às vezes não são adequadas), leva inevitavelmente aos desvios e aos erros que são constatados na gestão eclesial.

Levar a sério, portanto, aqueles que propõem um retorno ao primeiro milênio, confiando à Unesco, como lugares artísticos e turísticos, os palácios na colina do Vaticano e voltar à "verdadeira" catedral do bispo de Roma, a de São João de Latrão, com uma estrutura institucional ao mínimo? Não é o caso de se refugiar em tais extremos, mas o problema existe e deverá ser enfrentado, embora longe de ideologias de 1968, de demagogia pauperista.

Mas, dizíamos, parece haver também uma falha moral que não é só sexual (a questão dos pedófilos, mas não só, docet), mas é também o retorno, quase como nos tempos do Renascimento, de palácios vaticanos reduzidos a nós de intrigas e de luta por carreiras, poderes, dinheiro, interesses ideológicos e políticos. Pois bem, aqui, não há reforma que esteja à altura, aqui não há remédio apenas humano. Aqui, toda técnica de reorganização empresarial é ridiculamente impotente e deve se abrir ao "escândalo" da oração.

Palavra do Papa Bento XVI, mas, durante décadas, palavra também do cardeal Joseph Ratzinger. Se a Igreja está em crise, ele sempre repetiu, é porque a fé dos homens da Igreja está em crise. Sem excluir a hierarquia. Ele chegou a me dizer, uma vez: "No ponto em que estamos, eu confesso: a fé, a fé plena, a que não hesita, parece ter se tornado tão rara que, ao encontrá-la, ela me assombra mais do que a incredulidade".

Por isso, ele voltou às raízes de tudo, com os seus três volumes sobre o Jesus da história; por isso, ele quis um órgão especial para a nova evangelização; por isso, ele proclamou este 2012 como o "Ano da Fé". L'intendance suivra, dizia Napoleão: antes a conquista, depois os funcionários da administração.

A Igreja – o Papa Bento XVI está certo disso – também que fazer uma conquista, ou melhor, uma reconquista, a da fé na historicidade dos Evangelhos, no Deus que se encarnou em uma mulher, em um Jesus que, ressurgindo, mostrou ser o Cristo.

A Igreja já tem poucos homens, e às vezes pouco adequados. O despedaçamento, para a instituição, seria certo se quem ainda está "trabalhando na vinha do Senhor" (assim o papa gosta de dizer) perdesse a perspectiva de se empenhar não por um prêmio humana, mas sim divino. Se a fé vacila ou se apaga, se não é mais a razão cotidiana de vida, a preguiça dissimulada do burocrata está à espreita, o velho monsenhor, assim como o jovem, estão prontos para se transformar em funcionários do ministério clerical e, como tais, sujeitos a toda tentação.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um banheiro para Laerte/Sonia

Tirinha: Laerte Coutinho

Banheiro em casa é para todos. Vai a amiga, vai o primo, vai o cara que tá consertando a pia e ficou apertado. Enfim, no banheiro de nossas casas ambos os sexos o frequentam e porque existe algo chamado civilidade, em geral, o banheiro continua intacto.

Mas o assunto é o banheiro público e a divisão binária que hoje temos entre homem e mulher. Mais ainda, a questão é o projeto de lei do vereador da cidade de São Paulo Carlos Apolinário (DEM): criar um terceiro banheiro público unissex destinado a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e até heterossexuais.

A ideia surgiu depois que o vereador, autor também do controverso projeto – vetado – do Dia do Orgulho Hétero, soube que o/a cartunista Laerte Coutinho/Sonia Cateruni foi advertido pelo gerente de um restaurante por ter usado o banheiro feminino. Há dois anos, Laerte/Sônia vive com trajes de mulher e, mais do que isso, assumiu através das roupas a alma considerada e construída como feminina.

Um dos grandes sustos e abusos do/a cartunista é que seu simples existir mostra com evidência como masculino e feminino não passam de meras construções.

Laerte/Sônia não gostou nada da lei: “Carlos Apolinário propõe banheiro “unisex” - na verdade, um terceiro banheiro, para banir os diferentes (dele) das vistas dos homofóbicos. É a institucionalização do gueto. Não surpreende, vindo do sujeito que quis criar o Dia do Orgulho Hetero…”, escreveu em seu Facebook.

Na Folha, ele/ela foi mais enfático e chamou o projeto de “consagração do gueto”. "É uma solução que não é uma solução, porque discrimina de uma vez por todas. Como se os outros fossem normais e uma outra parte não".

Para esconder debaixo de todos os vestidos a verdade da feminilidade como construção, começou-se uma série de argumentos rasteiros partindo do próprio vereador. "Se qualquer cidadão do sexo masculino disser que está se sentindo mulher naquele dia, pode entrar no banheiro feminino. Às vezes, pode ser até um cidadão sem vergonha, mau caráter, que nem tem essa opção sexual", disse Apolinário à Folha.

Confunde-se assim sexo biológico (macho/intersexo/fêmea) com a forma que você demonstra seu gênero, a chamada expressão de gênero (masculino/andrógeno/feminino). Além disso, coloca-se no fácil e falso moralismo a questão da perversão, do sujeito que se aproveitará da situação para abuso.

Como expressão de gênero, Laerte/Sônia sentiu que naquele momento ele/ela deveria ir ao banheiro feminino e como tal se comportará como uma pessoa do sexo feminino (tenho certeza que urinará até sentada e com a porta fechada). Igual ao banheiro das nossas casas, é uma questão de civilidade.

- Vitor Angelo
Publicado originalmente no Blogay

Meu nome é medo

Imagem daqui

Meu propósito é dominar corações e mentes. Incutir em cada um o medo do outro. Medo de estender a mão, tocar em cumprimento a pele impregnada de bactérias nocivas.

Medo de abrir a porta e receber um intruso ansioso por solidariedade e apoio. Com certeza ele quer arrancar-lhe algum dinheiro ou bem. Pior: quer o seu afeto. Melhor não ceder ao apelo sedutor. Evite o sofrimento, tenha medo de amar.

Quero todos com medo da comunidade, do vizinho, do colega de trabalho. Medo do trânsito caótico, das rodovias assassinas, dos guardas que intimidam e achacam. Medo da rua e do mundo.

Convém trancar-se em casa, fazer-se prisioneiro da fragilidade e da desconfiança. Reforce a segurança das portas com chaves e ferrolhos; cubra as janelas de grades; espalhe alarmes e eletrônicos por todos os cantos.

Faça de seu prédio ou condomínio uma penitenciária de luxo, repleta de controles e vigilantes, e no qual o clima de hostilidade reinante desperte, em cada visitante, uma ojeriza ao prazer da amizade.

Tema o Estado e seus tentáculos burocráticos, os pesados impostos que lhe cobra, as forças policiais e os serviços de informação e espionagem. Quem garante que seu telefone não está grampeado? Suas mensagens eletrônicas não são captadas por terceiros?

O mais prudente é evitar ser transparente, sincero, bem humorado. Sua atitude pode ser interpretada como irreverência ou mesmo ameaça ao sistema.

Fuja de quem não se compara a você em classe, renda, cultura e cor da pele; dos olhos invejosos, da cobiça, do abraço de quem pretende enfiar-lhe a faca pelas costas.

Tenha medo da velhice. Ela é prenúncio da morte. Abomine o crescimento aritmético de sua idade. Jamais empregue o termo “velho”; quando muito, admita “idoso”.

Tema a gordura que lhe estufa as carnes, a ruga a despontar no rosto, a celulite na perna, o fio branco no cabelo. É horrível perder a juventude, a esbeltez, o corpo desejado!

Tenha medo da mais terrível inimiga: a morte. Ela se insinua quando você fica doente. Saiba que ninguém está interessado em sua saúde. Em seu bolso, sim. Basta adoecer para verificar como haverão de humilhá-lo os serviços médicos e os planos de saúde.

Não se mova! Por que viajar, abandonar o conforto doméstico e se arriscar num acidente de ônibus, navio ou avião? Nunca se sabe quando, onde e como os terroristas atacarão. Quem diria que numa bucólica ilha da pacífica Noruega o terror provocaria um genocídio?

Meu nome é medo. Acolha-me em sua vida! Sei que perderá a liberdade, a alegria de viver, o prazer de ser feliz. Mas darei a você o que mais anseia: segurança!

Em meus braços, você estará tão seguro quanto um defunto em seu caixão, a quem ninguém jamais poderá infligir nenhum mal, nem mesmo amedrontá-lo.

- Frei Betto
Reproduzido via Amai-vos

domingo, 12 de fevereiro de 2012

"Se queres, tu tens o poder de me purificar”


"O leproso, como o doente de AIDS dos nossos dias, é um ser rejeitado pela sociedade. Jesus o reintegra... Fica evidente que a misericórdia de Jesus não é uma cura, mas um nascimento”.

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 6º Domingo do Tempo Comum (12 de fevereiro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências Bíblicas:
1ª leitura: Lv 13, 1-2. 45-46
2ª leitura: 1 Co 10, 31-11, 1
Evangelho: Mc 1, 40-45

É triste contatar que todas as sociedades humanas tiveram e têm ainda seus excluídos, seus párias, seus intocáveis. Será que nós não temos os nossos também hoje? No antigo Israel, como em outras épocas e embaixo de outros céus, eram simplesmente os leprosos os que representavam essa categoria de malditos. É evidente que eles confundiam todas as doenças da pele com a lepra, o que a medicina atual saberia bem diferenciar... Além do mais, como a doença era considerada um castigo divino e a lepra representava um aspecto repugnante, existia uma punição dupla para os leprosos: eles sofriam de uma impureza moral e religiosa, mas também social. Porém, atualmente, não é porque a lepra seja mais estudada e melhor cuidada, que não temos os nossos pesteados, nossos marginais e excluídos, na nossa sociedade e na nossa Igreja. O teólogo francês, Jean Perron escreve: “Os hipócritas, os hipócritas que somos nós mesmos, sempre tiveram necessidade de poder catalogar alguém de impuro, para convencer-se que eles mesmos não o são”. Ainda hoje, nós temos nossos leprosos, e isso reconforta sempre os hipócritas da religião e da política. A partir dos textos da Palavra de hoje, que ensinamentos podemos tirar?

1. Transgredir a Lei: No livro do Levítico, que temos hoje na primeira leitura, apresenta-se o homem atingido pela lepra como um intocável, um morto-vivo. Esse homem perdia toda a sua dignidade humana. Chamavam-no pelo nome da sua doença: o leproso. No evangelho de hoje, São Marcos começa dizendo: “Um leproso chegou perto de Jesus“ (Mc 1, 40). O enfermo de lepra perdia todos os seus bens, sua casa, as suas pertenças... Devia morar fora da cidade ou do povoado: “Viverá separado e morará fora do acampamento” (Lv 13, 46). Além do mais, ele não podia mais entrar em contato com os outros: a sua esposa, seus filhos, seus pais, seus amigos... Quando uma pessoa não tem mais contato com ninguém, é um morto-vivo. E, para ter certeza de que ninguém se aproximaria de um leproso, ele devia andar “com as roupas rasgadas e despenteado, com a barba coberta e gritando: «Impuro! Impuro!” (Lv 13, 35). E, para evitar todo contato com um leproso, ele devia levar uma campainha no pescoço para advertir que ele estava no entorno. A lei proibia severamente o leproso de abordar alguém e, se ele se aproximava de alguma pessoa deixava-a impura.

Então, vejam que no evangelho, há uma infração: um leproso enfrenta a lei aproximando-se de Jesus: “pediu de joelhos: ‘Se queres, tu tens o poder de me purificar’” (Mc 1, 40). É todo um ato de fé; ele se confiou à vontade de Jesus: “Se queres”. Além do mais, ele não pede a cura, mas somente a purificação, isto é, a reinserção, a inclusão na comunidade. O leproso quer recobrar a sua dignidade humana. Mas, há outra coisa: o evangelho de Marcos nos diz que Jesus também transgride a lei: “tocou nele e disse: ‘Eu quero, fique purificado’” (Mc 1, 41). É a purificação instantânea, e assim, a inclusão na comunidade. “No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado” (Mc 1, 42). Transgredindo a lei da exclusão social e religiosa, aquele que era identificado pelo seu mal: o leproso, se tornou alguém: o homem. Isso significa que a exclusão desumaniza. O excluído se torna objeto a jogar ou a evitar. O contato com outro ser humano lhe fez reencontrar a sua dignidade; se tornou um homem.

Segundo a regra da época, Jesus envia-o para lhe mostrar ao sacerdote, pois são os sacerdotes os que podem reintegrar às pessoas excluídas da comunidade (Mc 1, 44). E mesmo se Jesus lhe adverte severamente (Mc 1, 43), o homem não se preocupa da recomendação e se torna missionário do evangelho, da Boa Notícia da Salvação trazida pelo Cristo ressuscitado (Mc 1, 45)... De maneira que, agora, é Jesus que se torna leproso, isto é, impuro, rejeitado e excluído. São Marcos escreve: “Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ele ficava fora, em lugares desertos” (Mc 1, 45). Por outro lado, o evangelista acrescenta: “E de toda parte as pessoas iam procurá-lo” (Mc 1, 45).

2. Entrar no coração de Deus: O episódio do evangelho de hoje nos diz algo do coração de Deus. Jesus se moveu pela compaixão, isto é, ele ficou emocionado até as entranhas. Ele quer purificar o leproso. Ele estende a mão e o toca. O amor vira as leis. Jesus recria a relação que a Lei tinha rompido. Ele demonstra a sua misericórdia. Toma sobre si o sofrimento do outro. É a única maneira de curar. E para demonstrar que há, de fato, inclusão e reinserção na comunidade, Jesus pede para o leproso cumprir as prescrições de lei: “Não conte nada para ninguém! Vá pedir ao sacerdote para examinar você, e depois ofereça pela sua purificação o sacrifício que Moisés ordenou” (Mc 1, 44). E o evangelista acrescenta: “para que seja um testemunho para eles” (Mc 1, 44).

Em poucas palavras, o evangelista Marcos demonstra o que pode fazer o amor em toda a sua gratuidade. Quando se exprime como compaixão e misericórdia, a cura é, não somente possível, mas automática, e ele se torna testemunho para os outros; de maneira que o homem curado se torna discípulo, missionário: “Mas o homem foi embora e começou a pregar muito e a espalhar a notícia” (Mc 1, 45). Será que não é o São Paulo que nos pede para fazer como ele na segunda leitura, hoje, quando ele nos diz: “Façam como eu, que me esforço para agradar a todos em todas as coisas, não procurando os meus interesses pessoais, mas o interesse do maior número de pessoas, a fim de que sejam salvas” (1 Co 10, 33). E por que tomar Paulo como modelo? Simplesmente porque seu modelo próprio é Cristo, e o Cristo que nos salvou e nos curou de todas as nossas feridas e as nossas exclusões.

Cristo acolheu todas as enfermidades e todos os excluídos sem exceção. Ele nos convida a fazer a mesma coisa. Para chegar a isso, precisa simplesmente de Amor. O exegeta francês Jean Debruynne escreve:“Para Jesus, o Amor que ama é sempre capaz de transgredir todas as proibições. O Amor será sempre mais forte que a regra, Sempre mais urgente que a regra. Quando ele encontra esse leproso em São Marcos, é um excluído que Jesus encontra. Mais do que uma doença médica, a lepra era vivenciada na época como uma enfermidade social. O leproso, como o doente de AIDS dos nossos dias, é um ser rejeitado pela sociedade. Jesus o reintegra e lhe recomenda claramente de não esquecer os passos a fazer para que seja reintegrado com a assinatura dos sacerdotes. Fica evidente que a misericórdia de Jesus não é uma cura, mas um nascimento”. No fundo, incluir, reintegrar, liberar, despertar a esperança de alguém por Amor, é dar-lhe de novo a vida, é fazê-lo renascer.

3. Aceitar pagar o preço do Amor: O preço do Amor é, infelizmente com bastante freqüência, a cruz, e ela se manifesta necessariamente. No evangelho, pelo fato de que Jesus deixa o leproso se aproximar dele, e mais ainda, que o toque e o purifique, Jesus se torna leproso por sua vez, isto é, rejeitado pelos outros. O que significa que Cristo, nos curando, carrega sobre si as nossas doenças, as nossas enfermidades, as nossas feridas, os nossos pecados. Como cristãos, discípulos de Cristo, nós somos convidados a fazer como ele, a liberar as pessoas feridas e a lhes devolver a dignidade, sob o risco de perder a nossa. Mas o Amor deve ir até lá. Por outro lado, não há que ter medo, pois o evangelista conclui dizendo: “E de toda parte as pessoas iam procurá-lo” (Mc 1, 45).

Para concluir, eu gostaria simplesmente de citar um comentário do francês Michel Viot, sobre este tempo litúrgico que chamamos comum, mas que não tem nada de comum: “A força de deixar de lado os leprosos de todos os gêneros, fizemos deles pessoas marginais... Os leprosos são proibidos de serem acolhidos assim como de serem saudados. Mas o próprio Jesus tem a audácia hoje de tocar o intocável. Isso acontece no sexto domingo que chamamos comum. Comum, vocês falam? Será que é comum tocar os reclusos? É comum tornar novo esse homem em sursis? Vamos lá, então! Todo é extraordinário neste domingo. Nada é como sempre. Nada é feito segundo as regras. Jesus o toca e está proibido. Jesus o envia para voltar à comunidade dos vivos e está proibido. É o sinal evidente de um mundo novo que nasce. É dar novamente um rosto humano a todas as proibições do coração, aos recalcados de toda parte, aos desocupados, aos aidéticos, às pessoas com necessidades especiais, aos divorciados, aos homossexuais, aos imigrantes... O Amor faz essas coisas!”.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...