Foto: Julian Bialowas
“Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão.
Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão...
Muito tempo não dura a verdade, nestas margens estreitas demais,
Deus criou o infinito pra vida ser sempre mais!
É Jesus, este pão da igualdade, viemos pra comungar,
com a luta do povo que quer ter voz, ter vez, lugar!
Comungar é tornar-se um perigo, viemos pra incomodar!
Com a fé e a união nossos passos, um dia, vão chegar!”
("Se calarem a voz dos profetas", Antonio Cardoso)
Uma porta aberta para a acolhida e a aceitação da diversidade da criação
De modo freqüente estamos nos deparando com um dilema: nossa ação se reduziria à militância ou à não militância? Abaixo a militância? Viva a militância? Seria aqui o espaço de mais uma militância? Mas seria possível abrir mão aqui, no nosso espaço, de alguns aspectos presentes naquilo que entendemos por militância? O que é militar? Atuar em prol de algo que se crê provavelmente com a disciplina ou, pelo menos, com a atitude espartana, o protótipo de uma militia. Mas os espartanos já vão longe e, em nome do “sejamos criativos”, deixemos o cimento disciplinar e belicoso que aglomerava as milícias espartanas.
Recordemos a atitude de um outro militante, ousamos assim chamá-lo, pois apaixonadamente defendeu até o fim o que e em quem acreditava: Jesus de Nazaré. Propomos, pois, a reflexão sobre o sentido da militância de Jesus: a vida plena e digna para todos, não importando se homem ou mulher, se de Jerusalém ou da Samaria, se judeu ou gentio. Propomos, ademais, a discussão acerca do sentido da militância, tendo como modelo o que encontramos nas ações de Jesus.
Particularmente, cremos no Jesus militante, não à maneira zelota, mas aquele que foi assassinado pelas autoridades religiosas, com a complacência das autoridades políticas, por defender vigorosamente um sentido diferente do encontrado no discurso oficial religioso. Não precisamos reunir aqui passagens que refresquem a memória de vocês, pois todos nós temos, ao menos, uma ou duas, “de cabeça”, na ponta da língua. As atitudes de Cristo nos recordam a possibilidade humana – tão-somente humana – de defender, em nome de uma inclusão na sociedade, os que estão nas bordas por diversos motivos; afinal, nós, humanos, somos pródigos em inventar os motivos! No nosso caso, aqueles que, para muitos, não merecem nem o nome de “filho de Deus”, ou quando muito, a tolerância da inclinação homoerótica e seu complemento necessário, a condenação da ação. Aqueles que são nomeados, equivocadamente ou não, homossexuais e por assim serem, estão excluídos desde a comunhão, passando pelo rol mínimo de direitos constitucionais e chegando até mesmo ao direito à vida.
Reunamos essa perigosa e desconfortável marginalidade social ao tema da militância de Jesus de Nazaré: pensemos nessa relação e no convite que ela nos propõe. A sedução de Iahweh é o que nos move, como impeliu o profeta há mais de dois milênios. A sedução não de mais um “partido”, ou “grupo” ou “milícia”, mas a sedução de uma mensagem que tem atravessado séculos e ainda continua fresca: a possibilidade da aceitação do outro na sua integridade, na sua diferença, na sua semelhança com a divindade e com as demais criaturas.
Nossa tarefa é mostrar o quão seduzidos estamos pela mensagem do cristianismo como porta aberta para os que crêem na mensagem inclusiva de um Deus que atravessa os desertos e os mares, soprando onde deseja, sobre todos, cuja máxima é o amor ao próximo como a si mesmo, tendo como horizonte o amor de Deus por suas criaturas. Um amor tão radical que não se apequena diante de bordões como “amo o pecador, mas detesto o pecado”, até porque o amor não pode ser fonte de pecado.
Nossa tarefa é atuar na recordação dessa memória do cristianismo, inclusivo e ‘includente’, em que pese toda a força do discurso religioso oficial. Afinal, a Igreja é o “povo de Deus”, como afirmou o Concílio Vaticano II. E para esse povo Deus, desde que se apresentou a Abraão, tem mostrado que a vida digna e plena para todos é o seu grande objetivo, o qual somente poderá ser atingido mediante a ação das pessoas, porque cada um de nós somos as mãos e os pés divinos.
Retomando o viés histórico da noção de homossexualidade, propomos a discussão sobre a extensão do homoerotismo ou da orientação homossexual ou da inclinação homossexual na vida de cada um daqueles que se encontra nessa situação. Essa reflexão evidencia que a dimensão homoerótica é fundamental para fazer com que cada um seja o que é, contudo ela não esgota aquilo que somos, tal como o heteroerotismo também não.
Afora trejeitos, modos de vestir, gostos, algo identifica uma parcela da população humana: a orientação ou inclinação homoerótica/homoafetiva ou, conforme uma parte considerável do senso comum, “a pouca vergonha na cara” que faz com que mulheres busquem mulheres e homens busquem homens para repartir os momentos da vida, prazerosos e não prazerosos. Isto que os identifica tem sido motivo da vida à margem. De acordo com cada situação histórica, uma perigosa marginalidade.
Isso que os identifica, a partir do século XIX, recebeu uma denominação: homossexualidade, inicialmente situada como uma doença e que, no século XX, foi tirada da relação de enfermidades. Um nome e um rótulo identitário que não esgotam aquilo que as pessoas são. Todavia, ao mesmo tempo, o nome nomeia algo que as identifica e marginaliza. Todo conceito não dá conta das existências plenas dos entes que conceitua, mas, por outro lado, não deixa de fazê-los ser entendidos. No fio da navalha dessa ambivalência, a homossexualidade é um nome que não deve ser rótulo, mas que deve merecer ser apresentado em sua construção histórica, que, como qualquer situação humana, implica limites e usos limitados. Nesse sentido, a experiência homoerótica recebeu o nome de homossexualidade sendo, a partir de então, reconhecida como prática homossexual.
A grande maioria reconhece, equivocada e limitadamente ou não, os homens e mulheres homoeróticos, que constroem relações homoafetivas, como homossexuais. Cremos não ser possível ainda não utilizar essa nomeação. Entretanto, faz-se necessário mostrar o quanto ela é pouca, o quanto ela é limitada e limitadora para dizer o que as pessoas vivem.
No âmbito do olhar que lançamos aos indivíduos que vivem essa experiência, tal nomeação não deve ser rótulo que fixa de modo determinista (essencialista) algo como uma individualidade homoerótica que, a partir de então, somente poderia existir enquanto indivíduo homossexual: nesse caso, por exemplo, um homem homossexual antes de ser homem é visto pela sua adjetivação homossexual e passa a ser considerado como um homossexual homem. O que aconteceu aí foi a redução dessa pessoa a um elemento – um importante elemento, diga-se de passagem – de sua constituição. De fato, esse nome designa, quando muito, apenas um modo identitário de ser e que recorrentemente é utilizado pelos mecanismos e instrumentos discriminatórios para excluir, para tratar de modo intolerante, para restringir, para romper o princípio jurídico de igualdade entre as pessoas e, ainda, a mesma filiação divina. Especialmente quando essa compreensão é incorporada por aqueles que, de alguma maneira, o nome pode nomear, com alguma freqüência vemos ocorrer a assimilação absoluta do padrão identitário sexual e ainda dos estereótipos e a vivência cotidiana a partir deles, dada a dificuldade de descolar o padrão e os estereótipos e encontrar outros modos de ser e viver: no plano individual a identidade homossexual é afirmada e vivida como se não fosse possível a convivência com outras (ser pai, ser mãe, ser católico, ser atleticana, ser negro, por exemplo). Quando esse entendimento é absorvido pelos outros que o nome não nomeia, freqüentemente também vemos ocorrer, mediante a assimilação absoluta do padrão identitário sexual e dos estereótipos, a redução das diferentes possibilidades de ser e viver daquele/a que vive o amor homoerótico apenas à dimensão identitária homossexual: as pessoas são vistas e discriminadas por sua identidade sexual que pretensamente determina o que elas são.
No horizonte cristão esses eventos também ocorrem e põem a perder a mensagem inclusiva de Jesus de Nazaré como o Cristo de todos, que tem mantido seus braços abertos para todos. Como fonte inesgotável do amor, que faz novas todas as coisas, tem renovado em nós a esperança da mensagem inclusiva cristianismo. Movido pelo Espírito que sopra onde quer, Ele nos leva pela estrada do acolhimento da diversidade presente na criação, fazendo de nós sementes e semeadores do Reino de Deus.
Valéria Wilke
Departamento de Filosofia e Ciências Sociais - UNIRIO
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Publicado originalmente no site do Diversidade Católica. Tweet
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