sexta-feira, 6 de abril de 2012

A meditação de Haydn sobre As sete últimas palavras de Cristo


Anno Domini 1786. Sexta-feira Santa. A catedral de Cádiz, sob a cúpula resplandecente de telhas douradas, cala. Até mesmo o ardente sol de Andaluzia parece empalidecer ante o madeiro da Cruz. Tudo são trevas: Cristo está morrendo. Sofrimento. Poucas palavras. Só sede.

Um solícito canônico da catolicíssima província espanhola necessita exaltar este momento de fúnebre piedade com uma pompa a mais. O estuque ainda precisa de dourado.

Falta um artista. A pessoa adequada é o devoto mestre Franz Joseph Haydn – que a
costumava escrever seus manuscritos com a locução Laus Deo, ao qual o canônico encarrega uma “música instrumental” que tivesse o poder de encher de sonoridade o cenário preparado na catedral.

É o mesmo Haydn que envia a partitura à Breitkopf & Härtel para a publicação que relata o acontecimento: “Os muros, as janelas, os pilares da Igreja estavam cobertos de panos pretos e somente a lâmpada pendurada no centro do teto rompia aquela solene escuridão. Ao meio-dia, as portas se fechavam e começava a cerimônia. Depois de uma breve função, o bispo subia ao púlpito e pronunciava a primeira das sete palavras (ou frases) fazendo um discurso sobre ela. Depois do qual descia do púlpito e se prostrava ante o altar. Este intervalo de tempo se enchia com a música”.

Do encontro entre a barroca vontade de um sacerdote de província e o gênio musical de Haydn nasce a “Música instrumental sobre as sete últimas palavras do nosso Redentor na cruz – ou Sete Sonatas com uma introdução e ao final um terremoto”, na versão original para orquestra, à qual seguem, em 1787, uma transcrição para quarteto de arcos e uma redução para piano e, em 1796, uma versão em forma de oratório, para coro e orquestra, com texto de um canônico de Passau.

Uma introdução, Adágio e majestoso, e uma conclusão, Presto e com toda força  –  o terremoto que emocionou o Calvário, segundo o relato do Evangelho de Mateus –, marcam as sete palavras:

Pater, dimitte illis, quia nesciunt quid faciunt [“Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”; Lc 23:34], Hodie mecum eris in Paradiso [“Hoje estarás comigo no paraíso”; Lc 23:43], Mulier, ecce filius tuus [“Mulher, eis aí o teu filho”; Jo 19:26], Deus meus, Deus meus, utquid derilinquisti me? [“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”; Mt 27:46], Sitio, Consummatum est ["Tudo está consumado"; Jo 19:30], In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum [“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”; Lc 23:46]. Palavras dolorosas, pronunciadas pelo Filho de Deus que sacrifica de modo cruento a vida para a salvação do homem; palavras íntimas e comoventes, que Haydn transfigura em música, até o ponto de querer que fossem escritas debaixo da parte do primeiro violino, para que os executores pudessem viver mais intensamente as notas que estavam tocando. Notas que não terminam com a morte, mas que continuam em vórtice até um final luminoso, prefiguração da vitória de Cristo sobre a morte, na Ressurreição.

Não por acaso Haydn começa o Terremoto em Dó menor e o termina com tonalidade maior, marcando assim a relação íntima com o texto evangélico. Vencendo a morte, Cristo derrotou definitivamente as trevas: a música consegue captar plenamente a transcendência deste mistério, procedendo lentamente, dolorosamente, para a luz. Se é verdade que esta composição é um “equivalente sonoro das pinturas e das esculturas das Igrejas rococó da Europa Católica, cuja finalidade era a de induzir igualmente ao arrependimento e à paz do espírito” (David Wyn Jones), é também verdade que consegue olhar além da esfera sensível, além da perspectiva do visível. Embora consiga mostrar com comoção todas as chagas do Crucifixo, até mesmo a garganta seca, Haydn não pinta um quadro da Paixão.

Através da força das palavras, não pronunciadas porém ouvidas, contempla o inefável mistério do amor e o traduz em notas. Que a paixão e morte de Cristo não são mais do que um ato de amor. Por amor, o mais belo dos filhos do homem se faz Aquele que não tem nem aparência nem beleza. Amor, sinfonia de luz. Amor, música que desperta da sonolência da noite. Amor, harmonia entre o céu e a terra. Amor, ato de toda a criação. Laus Deo.

- Francesco d’Alfonso, para o ZENIT
(Tradução: Thácio Siqueira)

* * *

Atualização em 10/04/12:

(...) "As últimas sete palavras" constituem uma meditação sobre a morte de Jesus. Num texto que escreveu sobre a sequência da Páscoa (e que intitulou - justamente! -, “Uma das mais belas histórias do mundo”), a romancista Marguerite Yourcenar diz que o estatuto destas derradeiras palavras nos obriga, talvez, a aproximá-las das breves recomendações, comovedoras mas afinal muito frequentes, que, por exemplo, jovens soldados trocam entre si diante do perigo ou murmuram a um companheiro antes de fechar os olhos para sempre: um pedido para que se cuide da mãe ou se faça chegar a notícia a um irmão querido; uma palavra de encorajamento dirigida aos que restam, um ténue gesto de afecto, quase invisível já de tão extremo. O texto de Yourcenar sublinha, assim, como a morte de Jesus, na sua singularidade, se torna ícone do incontável sofrimento do mundo.

Mas o que as "Sete palavras" declinam não é simplesmente a monodia do drama humano. Há um segredo entre estas palavras. O dispositivo narrativo criado pela colagem dos textos salta de evangelho para evangelho, mas começa e acaba com Lucas («Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» - Lc 23,24, ao princípio, e, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» - Lc 23, 46, ao concluir). No desenho inclusivo que os dois momentos estabelecem, percebe-se que o destinatário das palavras de Jesus não é um confidente qualquer: é o próprio Deus. E o modo como Jesus o evoca, chamando-o Pai, confere ao diálogo uma densíssima intimidade, tanto mais paradoxal quanto ele é se encontra na situação de um anátema, prestes a padecer uma morte reservada aos infiéis, e afronta o aparente e inexpugnável silêncio da parte de Deus.

Mas há um segredo. É o da expressão derradeira, já depois de proferidas todas as palavras, e que apenas Marcos e Mateus nos transmitem. Entre as “Sete palavras” inseria-se já um grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (ou «Meu Deus, Meu Deus a que me abandonaste?», segundo algumas traduções contemporâneas). Mas depois desse, Jesus soltou ainda um outro grito, e então expirou. Perante este último, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. Isto é, o sagrado perde a sua reserva e desloca-se para o profano mais escandaloso: na carne daquele inocente, no corpo torturado, no lancinante silêncio que sucedeu ao seu grito reside agora a revelação de Deus.

Percebe-se, então, que todas as palavras anteriores se ligam misteriosamente a esta oitava palavra, e todas juntas se elevam diante de nós como uma aporia intransigente e intemporal. Contemplamos o mistério de Deus e o do Homem no mais devastador silêncio que o mundo conheceu. Mas desse, precisamente, partirá o “grande levantamento”, a “radical insurreição”.

- José Tolentino Mendonça
Via SNPC (Portugal)

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